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SafeMed – O Blog de Segurança e Saúde no Trabalho 1 Saúde Ocupacional aplicada aos auxiliares, enfermeiros e médicos veterinários INTRODUÇÃO Os Médicos Veterinários (MVs) e os profissionais que com eles colaboram (enfermeiros e auxiliares) estão sujeitos a inúmeros riscos ocupacionais; contudo, a bibliografia explícita nesta área é escassa e não foram encontradas quaisquer guidelines orientadoras. Num estudo Australiano de 2005, menciona-se que 66% dos acidentes nestes profissionais envolve trauma direto com os animais; a situação onde tal mais frequentemente acontece é na imobilização dos mesmos para a realização de exame físico e exames auxiliares de diagnóstico, sobretudo nos de grande porte (situação dez vezes mais frequente). Devem ainda ser consideradas as mordeduras e arranhadelas, graves em alguns casos e os acidentes com agulhas e outros instrumentos ponteagudos e/ ou cortantes. Uma pequena parte dos acidentes são de viação, sobretudo quando o veterinário se desloca à empresa cliente, para consultar animais de grande porte. Tal como para os acidentes de trabalho, não abundam estatísticas relativas a doenças profissionais neste setor. Contudo, curiosamente, estima-se que as doenças profissionais são vinte vezes mais frequentes que os acidentes de trabalho. Neste contexto destacam-se o eczema de contato alérgico (ao pelo, penas e/ ou secreções dos animais), ao látex- sendo que o uso de luvas sem pó atenua a situação e a fármacos (como antibióticos e anestésicos); bem como asma ocupacional e, obviamente, as zoonoses. Estudos sobre mutagenicidade e teratogenicidade são, geralmente, controversos ou inconclusivos, existindo particular destaque neste contexto para os anestésicos, citostáticos e as radiações ionizantes.

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SafeMed – O Blog de Segurança e Saúde no Trabalho 1

Saúde Ocupacional aplicada aos auxiliares, enfermeiros

e médicos veterinários

INTRODUÇÃO

Os Médicos Veterinários (MVs) e os profissionais que com eles colaboram (enfermeiros e

auxiliares) estão sujeitos a inúmeros riscos ocupacionais; contudo, a bibliografia explícita nesta

área é escassa e não foram encontradas quaisquer guidelines orientadoras.

Num estudo Australiano de 2005, menciona-se que 66% dos acidentes nestes profissionais

envolve trauma direto com os animais; a situação onde tal mais frequentemente acontece é na

imobilização dos mesmos para a realização de exame físico e exames auxiliares de diagnóstico,

sobretudo nos de grande porte (situação dez vezes mais frequente). Devem ainda ser

consideradas as mordeduras e arranhadelas, graves em alguns casos e os acidentes com agulhas

e outros instrumentos ponteagudos e/ ou cortantes. Uma pequena parte dos acidentes são de

viação, sobretudo quando o veterinário se desloca à empresa cliente, para consultar animais de

grande porte.

Tal como para os acidentes de trabalho, não abundam estatísticas relativas a doenças

profissionais neste setor. Contudo, curiosamente, estima-se que as doenças profissionais são

vinte vezes mais frequentes que os acidentes de trabalho. Neste contexto destacam-se o

eczema de contato alérgico (ao pelo, penas e/ ou secreções dos animais), ao látex- sendo que

o uso de luvas sem pó atenua a situação e a fármacos (como antibióticos e anestésicos); bem

como asma ocupacional e, obviamente, as zoonoses. Estudos sobre mutagenicidade e

teratogenicidade são, geralmente, controversos ou inconclusivos, existindo particular destaque

neste contexto para os anestésicos, citostáticos e as radiações ionizantes.

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1.1.Riscos ergonómicos

Os MVs, enfermeiros e auxiliares, devido às cargas/ esforços inerente à manipulação dos

animais (por exemplo, no levantamento e acomodação em transportadoras, jaulas, mesas

de exame físico ou cirúrgicas) apresentam risco acrescido de desenvolverem lesões

músculo-esqueléticas. Para além disso, não é raro o animal ter dispositivos colocados que,

para se garantir o seu correto funcionamento, implicam uma postura ainda mais lesiva da

parte dos profissionais. Por vezes, as transportadoras e/ou mesas de trabalho estão

colocadas numa altura desadequada à estatura do profissional, o que torna a situação ainda

mais perigosa. Em alguns locais existem plataformas elevatórias que proporcionam algum

auxílio mecânico mas, obviamente, nem sempre estão disponíveis. Quando o tamanho da

transportadora é desadequado e/ou não tem superfícies de elevação ou suporte

ergonómicas, o esforço é também superior.

As técnicas de imobilização do animal no chão ou nas mesas de exame originam com

frequência posições incorretas e prolongadas, sobretudo no pescoço, dorso, pulsos e

membros inferiores. A existência de compartimentos (nas jaulas e mesas), que diminuam a

mobilidade do animal, atenua esta situação.

Por sua vez, no ato da cirurgia, frequentemente os profissionais fletem o tronco e pescoço,

dependendo da posição do animal e área a intervir, para ter maior proximidade com o

campo cirúrgico. Nestas circunstâncias também não é raro que, a manipular os diversos

instrumentos cirúrgicos, os pulsos sejam mantidos em posições incorretas e lesivas. Estes

riscos seriam amenizados com o uso de mesas de altura ajustável e de instrumentos melhor

desenhados ergonomicamente.

Acredita-se que cerca de metade dos MVs apresenta ou apresentou ao longo da sua carreira

episódios de lombalgia associados ao trabalho ou queixas álgicas nas mãos e dedos. Quase

1/6 destes também refere dorsalgia e/ou cervicalgia; globalmente, 82% apresentam alguma

queixa músculo-esquelética. De realçar que alguns investigadores verificaram existir uma

correlação positiva entre estas lesões e o stress ocupacional.

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MVs que trabalham só ou frequentemente com animais de grande porte, em zonas menos

urbanas, poderão passar uma parte importante do seu horário de trabalho a conduzir, o que

implica os riscos associados a postura sentada mantida, vibrações do veículo e ruído do

tráfego rodoviário.

Globalmente, alguns estudos estimam que estes profissionais tenham 9,2 vezes maior

probabilidade de sofrer um acidente de trabalho grave, comparativamente aos seus

homólogos na medicina humana.

1.2.Risco físico- radiações ionizantes e não-ionizantes

Durante a prática clínica é frequentemente necessário realizar exames auxiliares de

diagnóstico que envolvem o uso de radiações; as situações mais frequentes são a ecografia

para o caso das radiações não-ionizantes e os Rxs para as ionizantes (de realçar que estas

últimas também constituem um risco considerável na administração de fármacos

citostáticos). Estes profissionais de saúde podem ter que imobilizar o animal, ficando com

ele (ou na proximidade) no momento de execução do exame, o que implica ainda maior

exposição. Existem EPIs- equipamentos de proteção individual (como o avental de chumbo)

mas nem sempre estão disponíveis ou são utilizados. Apesar do escasso cumprimento das

regras de proteção individual e coletiva (comparativamente com a medicina humana) e de

existirem dosímetros disponíveis em alguns casos, estes raramente são utilizados.

1.3.Risco químico

Genericamente considera-se que as vias de contato mais importantes em relação aos

agentes químicos são a oral, através da contaminação das mãos (a comer, fumar, beber),

bem como a cutânea e a via inalatória.

Uma das classes farmacológicas mais utilizadas por MVs e seus auxiliares é a dos anestésicos,

quer locais, quer sistémicos. Quanto aos anestésicos inalatórios utilizados durante as

cirurgias, existe a possibilidade de ter no compartimento um dispositivo que facilita a sua

captação mas, sobretudo nos países menos desenvolvidos, tal não é frequente. Mesmo

quando este está disponível, nem sempre é utilizado, porque os profissionais banalizam o

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risco, dado as salas serem menos isoladas que as usadas na cirurgia humana e pela menor

percentagem de tempo dedicado à cirúrgica. Contudo, mesmo no recobro, os animais

libertam quantidades apreciáveis dos anestésicos utilizados. Enquanto alguns autores

defendem ser controversa a associação destes agentes com teratogenicidade, outros

consideram como provada a sua existência.

1.4.Agentes biológicos com potencial zoonótico

Várias infeções estão a surgir ou a serem descobertas devido à maior facilidade de

deslocamento no planeta, importações/ exportações de animais, alterações ecológicas e

climáticas, bem como adaptação/ evolução dos microrganismos e alterações das técnicas

de agricultura e pecuária.

Os MVs e profissionais associados estão sujeitos a escoriações (por exemplo, durante a

imobilização, exame físico, realização de exames auxiliares de diagnóstico e/ou

administração de terapêuticas) que, se entrarem em contato com alguns agentes

biológicos, poderão originar infeções que oscilarão entre assintomáticas a muito graves ou

até fatais.

A incidência da generalidade das infeções diminuirá se estes profissionais usarem EPI

adequados (como roupa, máscara, luvas, óculos e/ou viseira), além de praticarem uma

correta higiene de mãos. Outros autores destacam ainda o uso de aventais, galochas ou

cobertura de calçado, bem como touca; por vezes é também necessário um fato

adequado. Os óculos ou viseira diminuem não só o contato direto com os produtos

infetados, mas também com as próprias mãos e dedos contaminados. Em algumas

circunstâncias está também recomendado o uso de máscara com filtro.

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Em explorações pecuárias de grandes dimensões, frequentemente são introduzidos

animais novos que estarão em contato com os mais antigos, potenciando o risco de

contágio infecioso. Estas quintas são o local ideal para existir mistura génica entre os

vírus da gripe humana, aviária e suína; pelos motivos óbvios o contágio aos humanos será

superior se a infeção não tiver grande mortalidade entre os animais. Para complicar um

pouco mais a situação, enquanto que no passado estas grandes explorações só existiam

em países desenvolvidos, cada vez mais elas surgem noutras zonas do planeta onde as

infraestruturas sanitárias de saúde pública e apoio veterinário são rudimentares ou

inexistentes. Adicionalmente, a maioria dos países, ou não tem legislação reguladora do

setor, ou esta é bastante simplista. Nos casos mais difíceis não existem sequer EPIs,

instalações sanitárias para a higiene dos trabalhadores e estes levam para casa a roupa

contaminada no trabalho. Para além disso, um avultuado número de animais confinado

exige um sistema se ventilação sofisticado, controlo da humidade, remoção dos dejetos,

bem como separação entre animais sãos e infetados; é ainda necessário o controlo de

pragas (como insetos e roedores) que podem servir como veículos de transmissão de

doenças.

-Risco imunoalergénico

Alguns autores consideram que as alergias são muito prevalentes nestes profissionais (35).

A semiologia mais frequente carateriza-se por dispneia, obstrução nasal/ rinorreia,

espirros e lacrimejo. Para além disso, a lavagem repetida das mãos, a oclusão das luvas

de látex e o contato com diversos fluidos orgânicos (por exemplo, durante o parto)

potenciam ainda mais as dermatoses, cuja prevalência é superior à da população geral,

sendo que alguns autores a quantificam em quase 20%.

Existem também casos descritos de rinoconjuntivite e urticária após contato com leite de

cadela ou vaca, sem EPIs (como luvas), saliva de cão, fluido seminal de cão ou

excrementos de cabra; por vezes, até em familiares próximos do veterinário, sem contato

direto com o alérgeno. As principais alergias descritas na veterinária são assim inerentes

aos próprios animais, ao látex e aos seus aditivos, desinfetantes e fármacos.

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1.5.Risco psicossocial

Encontram-se inúmeros artigos onde se regista maior incidência e prevalência

de stress laboral em MVs (quando comparada com a da população geral), justificadas

através das elevadas cargas de trabalho, dificuldade de conciliar a vida pessoal e

profissional, pouco tempo para cada agendamento, dificuldades sociais para lidar com os

clientes, baixa auto-estima, insatisfação e desmoralização, depressão, ansiedade,

rudimentares progressão na carreira e apoio entre pares, remuneração baixa e pouco

reconhecimento social, clientes devedores, serviço de urgência ou à chamada, serviço em

feriados e fins de semana, competição entre clínicas e colegas e pressão económica pelo

avultado valor dos animais de grande porte.

Alguns estudos encontraram maior consumo de substâncias psicoativas nos MVs (em relação

à população em geral), tendo os respetivos autores associado tal condição ao stress laboral;

o mesmo não se verificou em MVs sem prática clínica direta, ou seja, apenas com tarefas

académicas, por exemplo. Dentro deste contexto, deve-se realçar que os MVs podem ter

acesso facilitado a alguns fármacos. A classe medicamentosa mais consumida neste âmbito é

a dos analgésicos. Outros também acreditam que esta condição é mais prevalente entre

profissionais que executam a eutanásia, sobretudo quando o funcionário estabelece laços

afetivos com os animais em geral; aliás, muitas vezes estes indivíduos escolhem profissões

onde têm de lidar com animais porque gostam bastante deste contato. Se o trabalhador

considerar que não existe uma justificação moral válida (como aliviar o sofrimento do

animal portador de doença grave e incurável), o dano emocional é maior- pois existem casos

onde a eutanásia é executada porque o dono já não quer o animal ou porque a experiência

laboratorial terminou; existem inclusive relatos de stress pós-traumático associado, bem

como maior prevalência de síndroma depressiva, ansiedade e irritabilidade. Aliás, existe

uma sub-entidade clínica desta condição, designada por stress pós-traumático perpetuado,

ou seja, quando o evento desencadeador se repete várias vezes. A reação destes também

está pois dependente do número de vezes que tal aconteceu, do apoio social que detêm, da

sua capacidade de coping, personalidade e experiências prévias.

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Mónica Santos

Licenciada em Medicina; Especialista em Medicina do Trabalho; Especialista em

Medicina Geral e Familiar e Mestre em Ciências do Desporto.

Diretora Clínica da empresa Quércia (Viana do Castelo).

A exercer Medicina do Trabalho também nas empresas Cliwork (Maia), Clinae (Braga),

Medicisforma (Porto), Sim Saúde (Porto), Servinecra (Porto) e Radelfe (Paços de

Ferreira). http://blog.safemed.pt/saude-ocupacional-aplicada-aos-auxiliares-

enfermeiros-e-medicos-veterinarios/

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Enquanto que alguns autores estimaram o stress laboral nesta classe em cerca de 80%, a

incidência de burnout entre MVs é também considerável (quase 1/5). Existem também alguns

artigos que mencionam existir maior risco de suicídio, sobretudo após a ocorrência de um erro

clínico grave. As consequências negativas do stress laboral podem ficar atenuadas com uma maior

satisfação profissional, tal como em qualquer outra profissão. De qualquer forma, seria

importante incluir no currículo académico destes profissionais estratégias de coping para a

generalidade das situações causadores de stress laboral, ansiedade e síndroma depressivo.

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

Os principais riscos que OS PROFISSIONAIS EM SAÚDE VETERINÁRIA estão sujeitos são as agressões

ergonómicas, agentes biológicos, químicos, físicos e os condicionamentos psicosociais. Em função

dos resultados da revisão bibliográfica e da experiência clínica dos autores, poderá supor-se que

se estes profissionais usufruíssem de uma equipa de Saúde Ocupacional assertiva, os acidentes de

trabalho e doenças profissionais diminuiriam, aumentando também a satisfação e produtividade.

BIBLIOGRAFIA

Saúde Ocupacional na Prática Clínica de Animais de Companhia. Santos, M; Gregório, H.

Veterinary Care, edição de maio/ junho de 2014.

Artigo elaborado em parceria com:

Armando Almeida

Docente no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa

Mestre em Enfermagem Avançada

Especialista em Enfermagem Comunitária

Saúde Ocupacional aplicada aos auxiliares, enfermeiros

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