modo operativo and: possibilidade de metodologia para

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12º Encontro da ABCP 18 a 21 de agosto de 2020 Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB) Área Temática: Ensino e Pesquisa em Ciência Política e Relações Internacionais MODO OPERATIVO AND: Possibilidade de metodologia para reparar narrativas políticas em redes sociais Jaqueline Barbosa Pinto Silva Universidade de Brasília

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Page 1: MODO OPERATIVO AND: Possibilidade de metodologia para

12º Encontro da ABCP

18 a 21 de agosto de 2020

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

Área Temática:

Ensino e Pesquisa em Ciência Política e Relações Internacionais

MODO OPERATIVO AND: Possibilidade de metodologia para reparar narrativas

políticas em redes sociais

Jaqueline Barbosa Pinto Silva

Universidade de Brasília

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Resumo

A conversação, tão importante para a formação da consciência política (Gamson, 2011),

difundiu-se para o virtual, com forte impacto na decisão eleitoral (Sampaio et al, 2019).

Considerando a dificuldade de lidar com as informações não textuais nas redes sociais, este

artigo mostra um estudo caso sobre as postagens da página do ex-Ministro da Educação no

Instagram em 2019 e a aplicação do Modo Operativo AND para ler imagens e mobilizar

criativamente a ação coletiva. Parte-se do pressuposto que esse método possui aproximação

com abordagens pragmáticas e interacionistas da teoria da ação e a sociologia dos

movimentos sociais que dialoga com essas abordagens. Concluiu-se que a aplicação do

método no caso proposto possibilitou organizar os repertórios de narrativas, dramaturgias e

retóricas públicas e privadas de forma simples e permitiu ampliar as possibilidades de

entendimento, de relacionamento e de sentimento de pessoas com posicionamento político

avesso ao conteúdo, suspendendo a situação polarizada e normatizada. Acredita-se no

potencial do método para trabalhar o afeto na experiência política e na criatividade do reparar

para a ação coletiva e para encontrar um plano comum público. Recomenda-se a aplicação

do método em grupos de ativistas e em movimentos sociais.

Palavras-chave: modo operativo AND, pragmatismo, criatividade da ação coletiva, Instagram,

análise de imagem.

Abstract

The conversation, so important for the formation of political consciousness (Gamson, 2011),

spread to the virtual, with a strong impact on the electoral decision (Sampaio et al, 2019).

Considering the difficulty of dealing with non-textual information on social networks, this article

shows a case study on the posts of the ex-Minister of Education's page on Instagram in 2019

and the application of the Operative Mode AND to read images and creatively mobilize

collective action. It is assumed that this method has an approximation with pragmatic and

interactionist approaches to the theory of action and the sociology of social movements that

dialogues with these approaches. It was concluded that the application of the method in the

proposed case made it possible to organize the repertoires of public and private narratives,

dramaturgies and rhetoric in a simple way and allowed to expand the possibilities of

understanding, relating and feeling of people with a political position averse to content,

suspending the polarized and normalized situation. It is believed in the potential of the method

to work the affection in the political experience and in the creativity of repairing for collective

action and to find a common public plan. It is recommended to apply the method to groups of

activists and social movements.

Keywords: Operatve Mode AND, pragmatism, creativity in collective action, Instagram, image

analysis.

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MODO OPERATIVO AND: Possibilidade de metodologia para análise de narrativas políticas em redes

sociais

Para além da conversação presencial, a conversação virtual, por meio da internet

e das redes sociais, tem tido crescente influência na formação da consciência política, nos

termos de Gamson (2011)1, e consequentemente na decisão eleitoral (Sampaio et al, 2019,

apud Braga, Carlomagno, 2018; Cervi, Massuchin, Carvalho, 2016; Larrea, 2010; Marques,

Aggio, Sampaio, 2013; Gomes, 2018). Uma das dificuldades atuais na pesquisa nesse campo

é investigar, para além dos likes, compartilhamentos e redes, como as pessoas assimilam as

informações não textuais: imagens, sons, emojis, memes, expressões virtuais, gírias e outros

elementos comunicativos, bem como suas respectivas tonalidades (ironia, crítica, exaltação,

piada, humor), cada vez mais monitorados (Han, 2018) e explorados no âmbito político

(Sampaio et al, 2019; Flusser, 2017, p. 114).

Em ambiente polarizado, esse trabalho é um pouco mais complicado: postagens

de um lado são produzidas para atacar o outro lado e por isso acabam sendo frequentadas e

lidas apenas por apoiadores, formando bolhas de informação, com símbolos compreendidos

apenas por um dos lados ou, o contrário, utilizados pelos ambos os lados com sentidos

diferentes ou até mesmo opostos. A tarefa é dificultada também pelas fake news, baseadas

em dados falsos, enviesados ou deslocados no tempo, eivadas de agressividade e ideias

“politicamente incorretas” (Di Carlo e Kamradt, 2018). Nesse contexto, para além de um

trabalho de tradução, as perguntas propostas neste artigo são: como lidar proativa e

criativamente com esse tipo de postagem nas redes sociais? Como como direcionar a ação

coletiva a partir disso?

Utilizando como fundamentos teóricos o pragmatismo político e o interacionismo

simbólico e como método o Modo Operativo AND (MO_AND), este artigo apresenta uma

proposta de análise das redes sociais, especificamente, o Instagram, plataforma que tem tido

crescente importância no âmbito político (Sampaio et al, 2019, apud Lalancette, Raynauld,

2017), e as implicações dela em termos de possibilidades de ativismo. A hipótese trabalhada,

portanto, era que esta metodologia poderia trazer não apenas outras formas de ler e

interpretar essas postagens, dos discursos políticos, mas também orientar ativismos

institucionais ou não em resposta a eles.

Assim, na primeira parte, este artigo traz os principais argumentos teóricos

pragmatistas e interacionistas simbólicos da Sociologia que dialogaram com a teoria da ação

e da mobilização coletiva na Ciência Política. Na segunda parte, apresenta-se o MO_AND e

1 De acordo com o autor, as pessoas organizam as informações obtidas na mídia, na experiência compartilhada e na cultura em enquadramentos que formaram a consciência política e motivaram a ação coletiva (GAMSON, 2011).

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as suas possíveis relações com essas abordagens. Na terceira parte, relata-se como esse

método foi aplicado em outubro de 2019, com as publicações do perfil do então Ministro da

Educação, Abraham Weintraub. Por fim, na quarta parte, discutem-se os resultados do uso

dessa metodologia no caso proposto, refletindo sobre os aprendizados e os limites da

ferramenta para análise de redes sociais e orientação de ativismo.

O pragmatismo político e o interacionismo simbólico

De forma geral, o pragmatismo e o interacionismo simbólico surgem com a

proposta de criticar o determinismo do estruturalismo e das dualidades, a suposta

racionalidade e individualidade da ação e as metodologias cartesianas de estabelecimento de

causalidade, enfatizando a experiência, a interação e as consequências não intencionais e

imprevistas como elementos importantes para a mudança política. Embora o pragmatismo

tenha sido inaugurado pelos autores James, Pierce, Dewey e Mead e o interacionismo

simbólico por Blumer, destacam-se neste artigo as leituras de Joas (1996), Strauss (2008),

Cefai (2009) e Hirschmann (2014).

Joas (1996) enfatiza que a criatividade teria ocupado uma posição marginal na

teoria da ação na sociologia. Contudo, ela seria característica intrínseca da ação, elemento

que estabeleceria condição para a reconfiguração de hábitos, o desenvolvimento de soluções

diferentes para problemas específicos e a mudança de estruturas. Assim, desenvolve uma

teoria da ação criativa, baseada em três fundamentos, cada uma em divergência a uma

premissa assumida pelas abordagens clássicas.

O primeiro é a situação, em oposição à intencionalidade da ação, que teria como

pressuposto implícito a racionalidade. No entanto, isso isolaria a ação do contexto e não se

verificaria na realidade – “os objetivos normalmente são relativamente indefinidos” (Joas,

1996, p. 154, tradução própria). Seria um contexto específico então que definira um sistema

de valores que orientaria a percepção, a intenção e a ação, simultaneamente: “a alternativa

para uma interpretação teleológica da ação é conceber a percepção e cognição não como

precedentes da ação, mas uma fase dela, na qual a ação é direcional e redirecionada no

contexto situacional” (ibidem, p. 158, tradução própria). Ainda, em alusão a Winnicott, o autor

argumenta que assim como a criança usa a inventividade nas brincadeiras para integrar

realidades interna e externa, os adultos utilizariam a criatividade na produção e a recepção

da cultura para a mesma funcionalidade, mas apenas potencialmente, dependendo de

diversos fatores para sua realização (ibidem, p. 167, tradução própria).

O segundo fundamento da teoria criativa da ação de Joas seria a corporeidade,

em confronto com a assunção implícita de que os corpos podem ser controlados, como se

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tivessem um aspecto meramente instrumental e como se a ação se confundisse com ativismo.

O autor defende a necessidade de se incluir na ação a sensibilidade, a passividade, a

receptividade aos acontecimentos não previstos ou não intencionais, inclusive as emoções e

as reações do próprio corpo, como rir e chorar. Ainda, exige “um conceito de ação que não

descreva a atividade contínua, a geração permanente de atos individuais, mas delineie a

estrutura específica da relação entre o ser humano como organismo e seu ambiente” (ibidem,

p. 168, tradução própria). Por fim, ressalta que não se trata de uma oposição à dualidade

corpo e mente, mas a uma outra noção de corporeidade. Considera importante o estudo do

desenvolvimento humano por meio da percepção corporal mediada pelas relações sociais, e

ressalta a ausência de pesquisas teóricas e empíricas sobre isso não só na infância, mas em

fases posteriores da vida (juventude, velhice) e em momentos decorrentes de situações

adversas (doença, gravidez).

Por fim, o terceiro fundamento da teoria criativa da ação de Joas seria a

socialidade, em contraposição à tácita premissa de auto interesse. Segundo o autor, Mead

protagoniza a teoria da formação da identidade com base na capacidade de assumir papéis,

sem, contudo, defender um indivíduo individualista. Para ele, a especificidade da

comunicação humana era o uso de símbolos significativos, por meio dos quais os humanos

representam as reações a suas ações como uma forma de antecipar o modo como os outros

se comportariam potencialmente em uma determinada ocasião. Essa habilidade permitiria que

os humanos adaptassem seu comportamento de acordo com o contexto e isso ampliado

coletivamente forma um padrão compartilhado de expectativas comportamentais mútuas.

Assim, a autoimagem seria um ponto de referência formado a partir desse padrão

compartilhado para avaliar a si mesmo e orientar a ação individual. Em decorrência, Mead

teria concluído que o desenvolvimento de habilidades comunicativas seria condição para o

aprendizado cognitivo e moral, ou seja, a individualidade seria consequência da socialidade,

mediada pelos papéis individuais assumidos e por representações simbólicas das

expectativas alheias.

Esses aspectos da teoria da ação trazidas por Joas (1996), sobretudo o último, da

socialidade, são mais detalhados por Strauss (2008), que estabelece dezenove assunções de

uma teoria da ação. No mesmo sentido de Joas (1996), Strauss (2008) deseja com isso

combater posições filosóficas como o idealismo, realismo e materialismo; atacar dualismos,

incluindo a separação entre mente e corpo e indivíduo e sociedade; localizar a natureza das

relações humanas; elucidar as características e as funções do pensamento reflexivo; e

compreender melhor o processo criativo humano (Strauss, 2008, p. 21, tradução própria). Em

sua teoria, Strauss (2008) desenvolve um pouco mais as ideias pragmáticas de Mead

articuladas pelo interacionismo simbólico introduzido por Blumer, trazendo alguns aspectos

sobre como o pragmatismo se relaciona com a estrutura e com a mudança política.

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Fazendo um paralelo entre ambas as teorias, pode-se dizer que, em relação ao

fundamento da situação de Joas (1996), Strauss (2008) assume que:

• “ações não necessariamente racionais, e muitas dessas podem ser entendidas como irracionais por outros atores”;

• “ações são caracterizadas pela temporalidade, de durações variadas e percebidas diferentemente por diferentes atores e em diferentes momentos”;

• “esquemas analíticos teleológicos não são apropriados para entender ação e interação, pois muito simplistas para interpretar a conduta humana”;

• “contingências provavelmente aparecerão no curso de uma ação, podendo trazer mudança em sua duração, ritmo, intenção, podendo alterar a estrutura do processo de interação, as interações podem ser seguidas de revisões de ações, das próprias pessoas e de outras, bem como projeções de futuro, e isso pode reconfigurar a interação parcial ou totalmente”;

• “outras condições para interação podem ser pensadas em uma matriz, variando entre condições mais abertas e indiretas para condições mais fechadas e diretas, e a relevância delas pode ser analisada pelo rastreamento de trajetórias”;

• “uma classificação útil para as interações é rotineira e problemática. Estas envolvem reflexão e discussão sobre questões para sua resolução, e isso forma uma arena, que vai direcionar o curso das ações nela tomadas”; e

• “interações problemáticas também trazem um processo de mudança de identidade que implica um grau de sofrimento e estranheza em relação as autoimagens individuais e coletivas” (assunções nº 7, 9, 11-13, 17-19, tradução própria).

Quanto ao fundamento da corporeidade de Joas (1996), pode-se associar as

seguintes assunções de Strauss (2008):

• “nenhuma ação é possível sem um corpo”; e

• “ações têm aspectos emocionais”. (assunções nº 1 e 8, tradução própria).

Por fim, no que atine o fundamento da socialidade de Joas (1996), pode-se

mencionar as seguintes definições de Strauss (2008):

• “ações estão inseridas em interações, ou seja, localizadas em sistemas de significados”;

• “humanos desenvolve autoimagens que se inserem em todas suas ações de variadas formas”;

• “significados ou símbolos são aspectos da interação e estão relacionados a outros em um sistema. Interações geram novos significados e símbolos e mantém velhos”;

• “os mundos externo e interno são representações simbólicas e podem ser criados e recriados por meio de interação, razão pela qual não existe divisão entre mundo externo e interno”;

• “ações abertas e fechadas podem ser precedidas, acompanhadas ou sucedidas de interações reflexivas, e em muitas delas a projeção está incluída”;

• “interações são definidas por sequencias, estágios ou fases, que podem coincidir ou serem compartilhadas ou negociadas”;

• “a inserção de uma ação em uma interação implica uma interseção de ações, o que torna possível ou provável diferentes perspectivas entre os atores sobre aquelas ações”;

• “os diversos atores de uma interação precisam de alinhamento, articulação de suas ações”; e

• “uma condição importante para isso é sua associação, que na sociedade contemporânea é complexa, sobreposta, contrastante, conflitante e nem sempre aparente para outros atores” (assunções nº 2-6, 10, 14-15, tradução própria)

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Avançando um pouco mais e interseccionando o pragmatismo, americano e

francês, com a sociologia das mobilizações coletivas, Cefäi (2009) reativa a noção de

“público”, e, com isso, intenta criticar a restrição das oportunidades políticas e dos cálculos de

custos tão determinantes nas teorias da ação coletiva e, sem negar sua importância,

pragmatizar o ativismo, trazendo as perguntas e alguns elementos dessa corrente teórica para

aprofundar seu desenvolvimento.

Segundo o autor, o projeto das novas sociologias de investigação das gramáticas

de justificação, de denúncia ou de reivindicação em público revelariam arquiteturas complexas

da situação, da pessoa e do coletivo, “um horizonte de possíveis” (Cefäi, 2009, p. 14). A ação

seria regulada, portanto, não por um sistema de ordens normativas, mas por um sistema de

regimes de ações, o que chama de arenas, e o conjunto dessas de cultura. Nesse contexto,

poder não seria só entendido como relação de dominação e de subordinação, nem de

normalização e de resistência, mas também como potência de agir em acordo e de instituir

direitos (ibidem, p. 17). Assim, as organizações teriam cada vez mais o estatuto de nós de

“redes de interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, de grupos ou associações,

envolvidos em conflito cultural ou político, e partilhando uma identidade coletiva” (ibidem, p.

19, apud Diani, 1992, p. 13).

Acrescenta que as novas sociologias teriam ocasionado três aprendizados para a

teoria da mobilização coletiva: 1) organizações (ou redes) preexistem à ação coletiva e são

componentes do agenciamento que as caracteriza, 2) é possível transitar por tramas

reticulares ou montagens organizacionais, em uma mesma situação; e 3) há uma pluralidade

de gramáticas de representar as identidades individuais e coletivas, que mudam de uma

sociedade civil e política para outra.

A partir daí, para Cefäi (2009), a investigação deveria cultivar uma sensibilidade

interpretativa e pragmática aos idiomas do engajamento e aos dispositivos políticos, jurídicos,

institucionais, teológicos e administrativos aos quais faz referência, todos de grande

heterogeneidade, “fazendo aparecerem figuras variadas da pessoa e de seus direitos,

partilhas entre o que é do domínio do público e do privado, e modos de conceber a

comunidade” (ibidem, p. 25).

Isso, que chama de abordagem gramatical, romperia com uma visão instrumental

e estratégica da cultura pública e da experiência coletiva, nos tornando sensíveis a

multiplicidade do que provoca “interesse” em uma ação coletiva: o que mantém juntas as

pessoas, ao que elas se prendem e o que as faz se prenderem. Logo, seriam incluídas as

dimensões da afetividade e da sensibilidade, da memória, da imaginação, para além da

racionalidade e a previsibilidade e a intencionalidade, na ação coletiva, que seria “uma

arquitetura móvel de contextos de sentido, mais ou menos próximos ou distantes, privados ou

públicos, pessoas ou típicos, que articulam diferentes grandezas de escala espacial e

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temporal e que são percebidos pelos atores como acessíveis a suas interações ou coercitivas

como ‘destinos’” (ibidem, p. 28).

Para se atualizar nesse sentido, a sociologia francesa teria se esforçado em

estudar os vocabulários de motivações pessoas e justificações públicas, que reordenam a

interação; as gramáticas do falar e do agir em público (performances, tipos engajamento,

adequação, coerção); e os repertórios dramáticos, retóricos e narrativos da ação coletiva, de

crítica, denúncia e reivindicação.

Porém, duas questões exigiriam um esforço maior da academia. Uma seria a

temporalidade, recomendando para tanto a pesquisa de trajetórias biográficas, de pessoas ou

de organizações, para desenvolvimento de um mapa de experiências se se entrecruzam, de

forma não linear e causal. E a segunda seria a investigação sobre o afeto ou paixão, que

significariam ter afeição por situações ou estar passível a eventos, e que difeririam de

sentimentos que advém da moralidade. Não obstante a dificuldade, Cefäi (2009) ressalta sua

importância dessa questão: “é o que faz como que haja experiência, tanto perceptiva, quanto

cognitiva ou moral, pois é o que garante contato com outros e com as coisas, e o que mantém

unidas as situações nos situando nelas” (ibidem, p. 31). A dimensão de afetividade da ação

coletiva, que não estaria toda no agir, mas no sofrer compartilhado, alteraria o sentido de

recurso ou de custo, de oportunidade ou de ameaça. Para trabalhar esse aspecto, o autor

sugere metodologicamente o uso da etnografia.

Ao final, alerta que:

A ênfase da investigação nesses modos de existência da “cultura pública” não deve nos fazer perder de vista as multiplicidades de provas da vida cotidiana e sua ressonância na experiência coletiva, em diferentes cenários públicos, que contribuem igualmente para articular a ação coletiva. Os “movimentos sociais”, pró ou contra aborto, eutanásia, biogenética, paridade entre homens e mulheres, direitos dos animais ou proteção do meio ambiente formulam suas denúncias e reivindicações se apoiando nesse pano de fundo. Assim sendo, identificam-se, coordenam-se e coagem, além de, endereçando-se às afetividades, às sensibilidades e à compreensão de seu público, mexerem com os critérios da experiência dos “particulares”, na esfera da relação íntima ou do colóquio pessoal. Eles redefinem as situações, reelaboram visões do mundo e redesdobram convicções e identidades. Os movimentos sociais são analisadores, catalisadores e aceleradores da formação dessa “cultura pública” (ibidem, p. 36)

Por fim, impende mencionar o possibilismo de Hirschman (2009), que pode trazer

algumas ferramentas para o estudo proposto. Segundo o autor, os estudos sobre os padrões

de mudança conseguem unir o debate sobre as estruturas e as ações que os transformam.

No entanto, muitas vezes se concentram na análise do passado, que dificilmente se repete.

Sua proposta, assim, é algo entre o realismo das mudanças incrementais e a utopia das

mudanças totais, com o intuito de ampliar o que é considerado possível por meio da habilidade

de ampliar o que é considerado provável.

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Duas iniciativas seriam importantes para isso: considerar as mudanças de

crenças, comportamentos e personalidades como consequências de ações, e não causas

delas; e tornar um obstáculo em estímulo, tendo nas consequências não intencionais

oportunidades para agir.

Embora os três autores acima apresentem algumas dicas metodológicas em como

explorar essas teorias, como as trajetórias biográficas, a etnografia ou mesmo o possibilismo,

exatamente como utilizar o interacionismo simbólico para interpretar uma narrativa pública e

o pragmatismo para projetar uma ação coletiva em resposta? Isso seria possível na academia

política, tradicionalmente analítica?

O próximo tópico explica um método, baseado em trabalhos antropológicos e

coreográficos, que se propõe a aplicar conceitos chave apresentados por essa teoria, como:

a não intencionalidade, a afetividade, a temporalidade dos acontecimentos, as trajetórias não

lineares, os acidentes (acontecimentos imprevistos), a materialidade, a corporeidade, a

presença (alternativa à representação e à interpretação), entre outros, como se verá a seguir.

O MO_AND

O Modo Operativo AND emergiu de uma experimentação da junção entre a

Etnografia como Performance Situada, estruturada pela antropóloga Fernanda Eugénio, e a

Composição em Tempo Real, desenvolvida pelo coreógrafo João Fiadeiro. Em suma, consiste

em um sistema de “ferramentas-conceitos e conceitos-ferramentas de aplicabilidade

transversal à arte, à ciência e ao quotidiano para tomada de decisão, a gestão sustentável de

relações e a criação de artefactos” (Eugénio e Fiadeiro, 2013, p. 222). Em outras palavras, a

finalidade dessa metodologia é investigar outras possibilidades de lidar com os imprevistos e

a complexidade do mundo e inventar outras formas de nos relacionarmos, nas quais as regras

emerjam na própria ato de se relacionar, e não antecipadamente ou teleologicamente.

Para os autores, os problemas de convivência normalmente girariam em torno do

argumento de suposta racionalidade da ação, que a limitariam e nos impediria de aproveitar

as potencialidades dos imprevistos e dos afetos. Agimos conforme o que sabemos ou

pensamos saber e para uma determinada finalidade, como se conseguíssemos prever as

causas e consequências daquela ação no tempo e no espaço. O MO_AND configurar-se-ia,

portanto, como uma maneira de emancipação da ação:

Os jogos que estamos habituados a jogar são aqueles em que, sendo as regras dadas de antemão, as posições também são postas mesmo antes de lá estarem: na prática, não são postas, mas “pressupostas”, acabando, assim, por serem também “impostas”. Em jogos desse tipo, há pouco ou nenhum espaço para aquilo que não seja esperado e sabido. O imprevisível, se e

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quando aparece, não consegue ativar senão o mesmo jogo do saber, e neste jogo não consegue ocupar lugar positivo: aparece quanto muito no negativo da “falta”. “Falta de sentido”, que nos remete imediatamente, não para lidar com o concreto do que o imprevisível traz consigo, mas com o abstracto do que supomos que ele nos tira, e que procuramos sem demora repor: o tal fim, o porquê nas suas infinitas gradações de finalidade ou causalidade. Nesse jogo do saber, portanto, não há espaço para o não saber: ou se sabe (o porquê) ou se procura saber (por quê?). Ou seja, resolver e responder. O jogo do saber é também o jogo da resposta: ou já a temos, e o imprevisível nem se nota, ou de súbito não a temos, pois este imprevisível intruso a rouba. E, nesse caso, há sempre algo que julgamos saber, há sempre uma resposta que ainda levamos escondida na manga: é preciso a todo o custo explicar ou interpretar, recuperar o porquê e o fio da narrativa-expectativa, devolver as coisas aos seus “devidos” e domesticados lugares (Eugénio e Fiadeiro, 2013, p. 223-224).

O MO_AND, por meio de um trabalho situado relacional, traria, assim, formas de

suspender esse saber limitante e impositivo da ação (o modo de operar É). “Como não saber”

ou “como não ter uma ideia” significaria suspender a intencionalidade da ação e isso seria,

portanto, a primeira pergunta que poderia ampliar as possibilidades de agir estabelecendo um

outro modo de operar, o E (and, em inglês). Nesse modo de operar AND, sujeito e objeto,

realidade interna e externa se fundem, e todas as ações, inclusive não humanas,

configurariam situações em que, por meio do afeto, acidente e acidentados irrompem e se

interrompem mutuamente.

Segundo os autores, o MO_AND pode ocorrer de duas formas: em escala

maquete, normalmente com um jogo de tabuleiro, ou em escala humana, com a própria vida

real. O jogo de tabuleiro seria uma simplificação da complexidade da vida real, uma redução

da escala do espaço e do tempo e do número de acidentes para aprendermos a operar nesse

outro modo ao qual não estamos habituados. É como se pudéssemos observar a vida do lado

de fora e acompanhar as coisas desde o início até o fim linearmente, o que, como o

pragmatismo assume, não ocorre de fato.

O jogo de tabuleiro pode ser jogado por um ou mais jogadores. O tabuleiro

consiste em um quadrado delimitado no chão por uma fita ou outro material. Ao lado, deve ter

sido separado um conjunto de “tralhas”, isto é, objetos quaisquer que possam ser manuseados

e utilizados nas jogadas. Basicamente, um dos “conceito-ferramentas ou ferramentas-

conceito” que é utilizado no jogo é o reparar, um gesto que possui três acepções.

A primeira é re-parar, isto é, parar de novo, suspender a reação decorrente do

jogo habitual do agir em conformidade com o saber, a racionalidade ou a intenção e fazer

oposição a ele, sustentando e habitando a situação em que acidente e acidentado irrompem

e se interrompem mutuamente, ou seja, se deixando afetar e identificando essas paixões.

O segundo significado de reparar é reparagem, no sentido de observar com

cuidado, e isso pode ser feito a partir de três perguntas: 1) O quê (pode), no que há, no que

já existe?, 2) Como (pode), com este quê? e 3) Onde-quando (pode), com este como? Trata-

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se, portanto, de uma decomposição, um inventário das possibilidades de relação, das

potências emergentes, das tendências contingentes, que fazem da situação um campo de

direções, dando ao acidente uma “intensidade extensiva e uma extensividade intensiva”.

Logo, é tornar o imprevisível (não saber) não apenas em visível, mas também em provável

(sabor2).

Por fim, o terceiro sentido de reparar é reparação, o que quer dizer, agir para

“consertar concertando”, isto é, manusear doses de repetição e diferença para que o

acontecimento se mantenha acontecendo, com precisão (nem mais, nem menos) e com

prontidão (nem antes, nem depois). É o ato de tomar posição-com algo, estabelecendo,

portanto, uma interação.

O reparar é executado em todas as jogadas, que consistem na escolha de um ou

mais tralhas escolhidas e/ou na feitura de um gesto no tabuleiro, baseados em uma afetação

recíproca entre objetos e sujeito. A primeira jogada marca uma [posição], a segunda jogada é

uma [posição-com] e marca um conjunto de possíveis relações entre as duas posições

tomadas e a terceira jogada é uma [posição-com-posição] e marca uma interação, isto é,

efetiva uma das relações entre as relações possíveis. As demais jogadas são remarcações

de relações possíveis vão se reconstituindo sucessivamente a cada posição3, que funcionam,

portanto, como condições, e não condicionamentos, e assim o jogo é constituído enquanto é

jogado.

Jogar o AND e não o É, na escala maquete ou na escala humana, seria um

desdobramento do que sabe o acontecimento, e não um dobramento do acontecimento no

que sabemos previamente. E então, nesse modo E, poderíamos talvez conseguir entrar em

um plano comum, o da convivência, saboreando o viver juntos. Não se trata, portanto, de um

consenso estabelecido antes, nem para estabelecer um consenso depois, mas do estabelecer

um dissenso continuamente, “pois, se para seguirmos juntos precisamos preservar o plano

comum, para preservar o plano comum precisamos, de quando em quando, mudar, o

suficiente para que sigamos juntos” (ibidem, p. 230).

O jogo começa-se e termina-se pelo meio, pelo que nos atravessa, o que nos

afeta. O cálculo sobre as causas que determinam as jogadas e sobre as consequências delas

não estão em jogo. O jogo não faz história com o desenvolvimento das tramas lineares das

narrativas-expectativas de cada jogador. O jogo faz geografia com o envolvimento entre as

posições tomadas e os jogadores, um mapa vivo de relações e afetos emergentes. Afinal,

2 Aqui há uma referência a uma expressão portuguesa de Portugal que não existe no Brasil. As pessoas lá perguntam “o que sabe essa comida” no sentido de “que sabor tem essa comida, que gosto tem essa comida”, como se a comida soubesse algo. Saber e sabor se confundem, pois, e os autores utilizam esse jogo de palavras para sugerir uma troca do saber, que limitaria a ação pelo que já sabemos previamente, para o sabor, que amplia a ação ao que ainda não sabemos, ao que o acontecimento ou a coisa sabem. 3 Jogo disponível em https://www.instagram.com/andlab.bsb/?hl=pt-br. Acesso em 9 set. 2019.

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concluem os autores, relações e afetos seriam tudo que temos e tudo o que nos tem, o que

nos é mais próprio e mais alheio. Não os escolhemos, somos escolhidos por eles. Por isso,

são acidentes, que irrompem e nos interrompem. O que normalmente fazemos é, no modo

operativo É, transformá-los em objetividades supostamente racionais, que nada mais são que

representações, sempre implícitas, que temos que em algum momento temos que explicar.

Não deixamos os afetos e as relações presentarem-se, explicitarem a que sabem, não nos

deixamos nos implicar por eles4 (ibidem, p. 331-332).

O MO-AND possui diversos pontos de convergência com as teorias pragmatistas

e interacionistas simbólicas apresentadas, mas as mais importantes podem ser resumidas no

quadro abaixo:

Quadro comparativo entre as teorias pragmáticas e o MO_AND

Teorias pragmáticas

Conceitos-ferramentas/ ferramentas-conceitos do MO_AND

Racionalidade, intencionalidade, previsibilidade Modo operativo É

Afeto, paixão, emoções e corporeidade (não divisão entre mente e corpo)

Como não saber ou não ter ideia, sabor, deixar-se ser interrompido pelo que o acontecimento ou a coisa sabe. Re-parar

Situação que cria oportunidade, arena de interações, problema real

Tabuleiro, na escala maquete

Cultura, fábrica de ações e experiências Vida real, na escala humana

Imprevistos como oportunidades (possibilismo) Acidentes, que irrompem e nos interrompem mutuamente, que podem ser manuseados com tralhas

Criatividade, no sentido de não reagir Re-parar, no sentido de parar de novo

Significados móveis; gramáticas, narrativas, dramaturgias moldáveis

Reparagem, inventário de possibilidades das relações e das potencias das tralhas manuseáveis

Criatividade, reconfiguração de hábitos Reparação

Temporalidade não linear Cartografia, geografia

Deliberação construtiva, público, político Como viver juntos, plano comum

Poder, agência Contaminação

Interações, sistema de regime de ações Jogo

O próximo tópico exemplifica a aplicação desse método para análise da página do

então Ministro da Educação no Instagram.

4 Nas palavras dos autores: “De modo que, também eles são acidentes que nos interrompem de quando em vez, sob a forma de inquietação – uma inquietação que detona aquilo a que chamamos de processo criativo. O problema é que, mal as inquietações emergem, a nossa tendência é apartarmo-nos delas – e não fazer “com” elas. Mal emergem, percebemo-las e assimilamo-las como ideias. Dito de outro modo, mal nos damos a oportunidade de conviver com o “Isso” nesta sua condição de inefável: muitas vezes, já o experimentamos via os canais dos nossos clichês, já o experimentamos como “Isto” decifrado. Não aguentamos tempo suficiente para inibir o hábito de decifrar, dizer, diagnosticar, interpretar, saber – e, assim, desativamos a hipótese de serem elas, as inquietações, que nos afectam, a nos dizerem “a que sabem”. Tornadas inspiração, idealização ou modelo, amparam a nossa “intenção”. E, de posse já não do afecto mas dessa “intenção”, o nosso processo criativo toma o trilho da representação: obra “sobre” a ideia “implícita” e não artefacto “com” o afecto “explícito”. Pior ainda: de posse dessa “intenção”, já não podemos reparar na “inclinação” do terreno-afecto, no sentido-direção para o qual ele tende e nos convida. Já estamos, tão depressa, mergulhados na decifração do sentido-significado pessoal que aquela inquietação nos desperta. Já estamos, tão depressa, na viagem da “ilusão biográfica”, trabalhando para produzir um “efeito” a partir desse afecto que tão logo tomamos como “causa”. O problema é que os critérios pessoais da intenção só por uma feliz coincidência permitem que a “obra” funcione como ocasião de partilha, posto que a inscrevem na constelação dos códigos e significados individuais de quem a faz”. (Eugénio e Fiadeiro, 2013, p. 231 232).

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13

A aplicação do MO_AND no caso concreto: análise do perfil do Abraham Weintraub

A aplicação do MO_AND na análise do perfil de Abraham Weintraub foi pensada

e executada no segundo semestre de 2019 pelo grupo de estudantes que investiga esse

método em Brasília, composta por alunos da graduação e da pós-graduação em Ciência

Política, Artes Cênicas e Artes Visuais da Universidade de Brasília5.

Inicialmente, a proposta era analisar o “Future-se”, programa governamental

voltado para o Ensino Superior Público, de adesão voluntária, lançado em julho de 2019. Com

os eixos “Gestão, governança e empreendedorismo”, “Pesquisa e inovação” e

“Internacionalização”, possui a finalidade de “promover maior autonomia financeira nas

universidades e institutos federais por meio de incentivo à captação de recursos próprios e ao

empreendedorismo”. Apesar de essa ser justificação pública, em pronunciamentos oficiais, o

Presidente e o representante da pasta fizeram afirmações sobre a aplicação dos recursos

financeiros nas políticas públicas educacionais no sentido de atribuir a falta de recursos à má

gestão das instituições escolares e universitárias6. Ainda, disseram que as ciências humanas

e sociais não trariam retorno à sociedade7 e que comporiam “massa de manobra”8 de

governantes esquerdistas.

Esse caso foi escolhido por diversos motivos, mas especialmente: 1) por se referir

a um projeto político cuja construção das narrativas que o fundamentam estavam em curso,

sendo testadas inclusive na opinião pública, podendo ser reparada em ato; 2) por ter como

tema central a educação e a cultura, conjunto de símbolos que estruturam a linguagem e

diversos valores morais em disputa política acirrada, ultimamente; 3) por ter como porta-voz

um representante do Estado que utilizou como principal forma de comunicação com o público

as redes sociais, especialmente Twitter e Instagram, a linguagem imagética, com perfil de

celebridade9.

5 Agradeço em especial àqueles que executaram e debateram essa experiência: Alina D’Alva Duchrow, Guilherme

Meyer Santos, Luana Santana Castro e Rosa Dias Schramm. 6 Disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/em-live-com-bolsonaro-ministro-da-educacao-explica-cortes-do-mec-usando-bombons-23654375 e https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/esta-chovendo-fake-news-diz-ministro-da-educacao-ao-som-de-cantando-na-chuva/. Acesso em 10 ago. 2019. 7 Disponível em https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/05/09/sob-ameaca-de-cortes-no-governo-bolsonaro-cursos-de-ciencias-sociais-e-humanas-concentram-diversidade-racial.ghtml e https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/atacadas-por-bolsonaro-ciencias-humanas-sociais-ja-recebem-menos-recurso-para-bolsas-do-que-area-de-exatas-23626458 . Acesso em 10 ago. 2019. 8 Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/nos-eua-bolsonaro-chama-manifestantes-contra-cortes-de-idiotas-uteis/. Acesso em 10 ago. 2019. 9 Kamradt (2017) aponta esse uso do Instagram por políticos, que transformam sua página pessoal em um local

de entretenimento, assumindo cada qual uma persona, com histórias de heróis, vilões e outros mitos (Kamradt, 2017, apud Mancini, Swanson, 1996, p. 9). Com efeito, Weintraub destaca nos textos e nos comentários que sua página é pessoal, embora a maior parte das publicações sejam divulgação profissional, que consiste em fazer o trabalho deixado pelos governos anteriores e a gerir bem o dinheiro do cidadão. Mesclada a isso, em menor parte, suas postagens referenciam sua vida privada, como fotografias de casa, domingos, cachorro, lazeres, viagens,

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No entanto, quando foi tentado coletar as tralhas desse caso, não foram

encontradas muitas materialidades para além das postadas pelo então Ministro, nas notícias

e nos pronunciamentos oficiais do MEC e das universidades públicas sobre o tema não

emergiram muitos elementos. Assim, decidiu-se reparar o próprio perfil de Weintraub, no

Instagram, por envolver mais imagens e engajamento, ampliando-se o escopo para outros

programas e políticas que não apenas o Future-se. Essa passou a ser a proposta a ser levada

ao tabuleiro.

Foram analisados todos os posts desse perfil desde a entrada de Weintraub no

Ministério da Educação, em 9 de abril de 2019, até a data do jogo, em 30 de outubro de 2019.

De cada postagem ou do conjunto de postagens repetidas foi extraída apenas uma

materialidade, chamada de tralha, conforme quadro abaixo:

Quadro de tralhas10

Correlação Postagens Tralhas

1 “Está chovendo fake news” Guarda-chuva

2 Porcentagem dos cortes no orçamento Chocolatinhos

3 Operação Lava Jato, lavagem de dinheiro,

julgamento de Lula

Detergente para carros

Dinheiro

4 Tiro Armas de brinquedo

5 Almoço de família aos domingos Macarrão

6 “Eu sou Davi, que venço Golias com uma

pedrinha”

Pedras

7 Homenagem ao militar Vilas Boas Envelope do laboratório Villas boas

8 “Lacrei” Óculos escuros

9 Paulo Freire Um livro do Paulo Freire

10 Folha de São Paulo

O Globo

“Tigrada”, seguidores do Instagram

Folhas secas

Jornal O Globo

Chaveiro de tigre/sacola com animal print

11 Página para humor Nariz de palhaço

12 Dia do professor Maçã, canetas de quadro branco

13 Ônibus escolares Ônibus de brinquedo

14 Enem Canetas

15 Universidade que tem boa gestão Manteiga Viçosa 16 PM nas escolas Distintivo

17 Presidente Faixa presidencial

18 Anticomunismo, “mortadela” Bandeira do Brasil

19 Corte da reportagem por falta de bateria Baterias, carregadores

20 Justificativa das notas ruins na faculdade Faixa de farmácia, boletim

Quadro de imagens exemplificativas sobre a extração da materialidade das postagens

igual à maioria dos usuários dessa plataforma. No entanto, em ambos os tipos, diz que o objetivo desse canal é se divertir, utilizando para isso o “humor”, principalmente por meio de memes, apelidos, expressões populares, entre outros recursos discursivos de interação com o público, como “não pode ser comunistinha e chato ao mesmo tempo (tenho que dar risada quando ler)”, “meu Twitter, minhas regras”, “estou sendo radical?”. Assim, por meio de um espetáculo, personaliza e publiciza as políticas educacionais do governo, voltado não a cidadãos, mas a espectadores. 10 Imagens disponíveis em

https://www.instagram.com/p/B8Gn8wUFGoYAkN7aSekEI3EMhtN_33WVH_iVo40/. Acesso em 3 fev. 2020.

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15

1. 2.

3. 4.

5. 6.

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7. 8.

9. 10.

Tendo em vista que um dos objetivos da aplicação desta metodologia era produzir

uma alternativa à interpretação e à representação, suspender a intencionalidade da ação, com

vistas a não saber ou não ter ideias, essa primeira etapa de extração das materialidades foi

feita por apenas uma das integrantes do grupo, sem explicar aos demais a correlação feita

antes do jogo. Também, foram misturadas extrações literais, como o próprio jornal “O Globo”,

para se referir a ele, e não literais, como folhas secas para se referir ao jornal “Folha” [de São

Paulo].

A lista das materialidades extraídas das postagens foi passada ao grupo e cada

um levou o que entendeu da lista, o que tinha ou o que encontrou no caminho, mas nem todas

foram levadas. Também, nem todas foram jogadas, que foram sequenciadas no quadro

abaixo11:

Quadro de jogadas

1) Amassa folhas e deixa cair no tabuleiro;

2) Junta todas no meio com as mãos;

3) Dá um passo dentro do tabuleiro, pisando em cima das folhas, devagar;

11 O vídeo acelerado do jogo encontra-se no perfil @andlab.bsb no Instagram. Disponível em https://www.instagram.com/p/B8GqrUWFkEKZdScg5_HiWPblL-_rsrVqcc5tH40/?hl=pt-br. Acesso em 3 fev. 2020.

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4) Junta todas no meio com as mãos;

5) Dá um tapa nas folhas;

6) Junta as folhas com outras folhas, dinheiros;

7) Dá um tapa nas folhas com pedras, deixa elas em cima;

8) Deixa cair macarrão no tabuleiro;

9) Pisa no macarrão;

10) Junta macarrão no centro com os pés;

11) Coloca o vasilhame de sabão para carros no centro e em cima e pisa nele, com força;

12) Abana todas as coisas com o livro do Paulo Freire;

13) Junta todas as coisas com o envelope do Vila Boas~

14) Enfileira o dinheiro;

15) Inclui na fileira o Globo;

16) Inclui na fileira as folhas, expandindo-a;

17) Abre o jornal;

18) Abre o livro e segura a página com uma pedra;

19) Inclui na fileira macarrão

20) Afina e alonga a fileira;

21) Dobra o jornal para afinar a fila;

22) Retira o que não pertence a fileira;

23) Retira o que não está no tabuleiro;

24) Posiciona os objetos do tabuleiro na linha do tabuleiro;

25) Coloca outros objetos (canetas e chocolates) nos espaços vazios da linha do tabuleiro;

26) Coloca um arco também;

27) Arqueia as linhas do tabuleiro com as coisas;

28) Limpa o que não faz arco;

29) Inclui armas entre arcos;

30) Incluir carregadores entre arcos;

31) Coloca um guarda-chuva de cabeça pra baixo no meio;

32) Expande o guarda-chuva pra cima e coloca fitas para prendê-lo e deixá-lo de cabeça para baixo;

33) Gruda papeis e canetas nas fitas;

34) Come chocolate e grupa embalagens na fita.

O jogo durou aproximadamente uma hora. O final não foi previamente

determinado, e depois o grupo conversou sobre ele. Três pontos chamaram atenção no

debate. O primeiro foi a dificuldade de se reparar nas três acepções do MO_AND quando o

tema era político. Além de essa proposta nunca ter sido experimentada antes por nenhum

participante antes, todos tinham posicionamento definido sobre o tema e, como estudantes,

tinham afeto por ele. Então, por exemplo, ver um livro de Paulo Freire remete muito facilmente

aos debates em torno da finalidade da educação, mais do que pensar que é um empilhado de

papel mais ou menos A3, com escritos pretos e fundo branco amarelado.

O segundo foi a variação entre gestos mais agressivos e menos agressivos,

concluindo o grupo que partilhar o comum não é sobre pacifismo e que a precisão das

posições, mesmo não sendo reações, tem uma dose nem mais nem menos do que a situação

pede.

O terceiro e último ponto foi a observação de o corpo foi mais utilizado no início

do jogo, ocupando aquele espaço, e menos utilizado no final, em que o espaço já havia sido

cartografado com as tralhas, e o jogo seguiu preenchendo e esvaziando espaços.

Após compartilhado o vídeo, não houve observações adicionais.

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Aprendizados e limites do MO_AND para análise de redes sociais e orientação de ativismo

Primeiro, considerando que o grupo que efetivou o jogo tinha o objetivo que

estudar o método e não de reagir às políticas educacionais, o escopo do jogo se ateve à

interpretação do caso, não se expandindo para o pensamento sobre estratégias ativistas

como pensado inicialmente. De toda forma, isso poderia acontecer, artisticamente por

exemplo, considerando que são estudantes de artes, mas não aconteceu. Também não há

garantia que do jogo surja necessariamente alguma ideia de mobilização coletiva se for jogado

entre ativistas para essa finalidade, mas essa possibilidade não pode ser descartada apenas

a partir dessa experiência.

Segundo, da coleta de tralhas, notou-se que o Future-se, embora tenha tido

bastante repercussão, não tinha materialidades suficientes para o jogo de tabuleiro, e que

isso coincidiu com o fato de o programa não ter engatado na realidade. Sua primeira versão

não teve praticamente nenhuma aderência pelas universidades públicas e, embora tenha sido

reformulado, nenhum andamento foi dado, ao menos diretamente, até mais de um ano e meio

depois de seu primeiro anúncio.

Terceiro, a extração das materialidades, ainda na coleta de tralhas, engajou uma

organização dos repertórios dramáticos, retóricos e narrativos de Weintraub. Nesse sentido,

foram identificadas três temáticas predominantes, com diferentes grupos palavras-chave:

1. Enriquecimento meritocrático camuflado de liberdade e progresso: o

governo deve favorecer a iniciativa privada nacional (benefícios

fiscais, financiamento de serviços e produtos, desoneração dos

serviços e dos bens públicos) e internacional, e, assim como ela, deve

apresentar resultados concretos para a sociedade mundial, o que se

restringe à inovação e à tecnologia. Logo, a educação assim como

todo o Estado serve a essa concepção de economia, como livre

mercado;

2. Controle da informação disfarçada de verdade: as mídias atuais, a

esquerda e parte da ciência (a humana) estão corrompidas, têm

ideologias auto interessadas que não favorecem o cidadão de bem e

o povo. A única fonte de realidade é o governo vigente por meio de

seus pronunciamentos pessoais.

3. Controle de corpos e ideias mascarado de ordem social: a segurança

pública deve ter não apenas autonomia para reagir violentamente a

um ato perturbador, a fim de garantir a paz, como também hierarquia

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para gerir negócios do governo, a fim de conservar os valores da

pátria.

Essas temáticas coincidem em algum grau com as ações voltadas à educação

iniciadas em 2016, no Governo Temer, a partir da Emenda Constitucional n. 95 (Teto dos

Gastos e fim do mínimo constitucional educacional), da Medida Provisória n. 746/2016, que

previa a Reforma do Ensino Médio e visava, principalmente, flexibilizar o currículo para se

ajustar à realidade do mercado de trabalho, e o Programa Escola Sem Partido, formalizado

em diversos projetos de lei visando coibir professores pela doutrinação política, religiosa e

ideológica de alunos.

Quarto, após reparar as postagens, coletar as tralhas e operar o jogo, analisar a

sequência de jogadas, como uma cartografia de posições traduzidas em gramáticas

interpretativas de um discurso político, não trouxe elementos que evidenciassem um plano

comum, uma “posição-com”, entre pessoas divergentes politicamente, ao menos em termos

intelectuais. Contudo, não se deve desprezar ou descartar a experiência como um todo. Em

termos afetivos, o jogo proporcionou que os participantes entrassem em contato com um

material ao qual se tinha aversão. De acordo com os relatos, o exercício de reparar aquele

material, mesmo com dificuldade suspender os saberes neles sedimentados e reforçados

cotidianamente pelos ataques e defesas nas bolhas das redes sociais, abriu outras

possibilidades de entendimento, de relacionamento e de sentimento com aquele conteúdo.

Em outras palavras, por um instante foi possível habitar corporalmente um outro espaço,

despolarizado, ainda que presentes as mesmas tensões.

Quinto e último, considerando que essa plataforma, o Instagram, é composto de

estórias de no máximo quinze segundos, vídeos de no máximo um minuto e textos-imagens

que rolam nas micro telas de aparelhos celulares à velocidade dos dedos e não dos olhos, e

que os algoritmos são operacionalizados por graus de “reações” (tipos de curtidas,

encaminhamentos, compartilhamentos, comentários, entre outros), só o fato de parar e

reparar as postagens do caso, ou seja, não reagir, consistiu em um ato político, fenômeno

pouco visto pelos estudos sobre ações coletivas pela internet.

Mas essa conclusão não é nova, e anterior até mesmo ao próprio Instagram.

Flusser (2017) já dizia que as imagens se tornavam cada vez mais transportáveis, e os

receptores cada vez mais imóveis e o espaço político cada vez mais supérfluo (Flusser, 2017,

p. 153). “Os novos meios, da maneira como funcionam hoje, transformam as imagens em

verdadeiros modelos de comportamento e fazem dos homens meros objetos” (ibidem, p. 159),

conduzindo a “uma despolitização generalizada, a uma desativação e alienação da espécie

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humana, à vitória da sociedade de consumo e ao totalitarismo da mídia de massa” (ibidem, p.

124).

Tampouco não reagir solitariamente é suficiente: “não é factível para o receptor

interromper a transmissão simplesmente desligando o seu aparelho e passar, assim, da

condição de objeto à condição de sujeito. Para isso, ele teria que desistir de sua função e

segregar-se socialmente” (ibidem, p. 157). Ou seja, são necessárias a responsabilização

coletiva e a transformação das imagens em portadoras e das pessoas em designers de

significados. Acredita-se que a experiência do caso concreto ora proposto foi uma tentativa

nesse sentido.

Considerações finais

A aplicação do MO_AND para a análise das narrativas da página do então Ministro

da Educação, Abraham Weintraub, no Instagram possibilitou organizar os repertórios de

narrativas, dramaturgias e retóricas públicas de forma simples e ampliar as possibilidades de

entendimento, de relacionamento e de sentimento com conteúdo político avesso,

suspendendo a situação polarizada e normatizada. Nesse sentido, acredita-se no potencial

do método para o trabalho com os afetos, que “é o que faz como que haja experiência, tanto

perceptiva, quanto cognitiva ou moral, pois é o que garante contato com outros e com as

coisas, e o que mantém unidas as situações nos situando nelas” (Cefäi, 2009, p. 31).

Ainda, o exercício de reparar as postagens do caso, isto é, de parar de novo,

inventariar e consertar aquelas materialidades, consistiu em uma ação política, em

contraposição à reação esperada pela plataforma.

Considerando que o método não mobilizou coletivamente os participantes para

além disso, recomenda-se que o MO_AND seja testado em grupos de ativistas e em

movimentos sociais.

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Referências Bibliográficas

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