modernidade medieval - cidadania e urbanismo na era global

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  • 8/7/2019 Modernidade Medieval - cidadania e urbanismo na era global

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    Modernidade Medieval

    Nezar Alsayyad e Ananya Roy

    traduo de Joaquim Toledo Jr.

    Resumo

    Este artigo examina ormas de cidadania associadas ao urba

    nismo contemporneo. Concentrase em trs espaos paradigmticos: o enclave echado, a ocupao regulamentada e o

    campo. Os autores argumentam que a paisagem ormada pela cidadania urbana crescentemente ragmentada e dividi

    da. Essas geograias so constitudas por soberanias mltiplas e concorrentes que, quando exercidas sobre o territrio,do origem a eudos de regulao ou a zonas sem lei. A im de entender essas prticas, os autores empregam o quadro

    conceitual da cidade medieval. O uso da histria como teoria joga luz em tipos particulares de cidadania urbana, tais

    como a cidade livre ou o bairro tnico, presentes em dierentes momentos do medievalismo e que guardam seme

    lhanas com processos atuais.

    Palavraschave: Cidade medieval; Enclave echado; Ocupao

    regulamentada; Campo.

    ABsTRACT

    This paper examines orms o citizenship associated withcontemporary urbanism. Focusing on three paradigmatic spaces: the gated enclave, the regulated squatter settlement

    and the camp, the authors argue that the landscape o urban citizenship is increasingly ragmented and divided. These

    geographies are constituted through multiple and competing sovereignties which, when territorially exercised, produce

    iedoms o regulation or zones o no law. In order to understand these practices, the authors employ the conceptual

    ramework o the medieval city. This use o history as theory sheds light on particular types o urban citizenship, such

    as the ree town or the ethnic quarter, that were present at dierent moments o medievalism and that are congruent

    with current processes.

    Keywords: Medieval city; Gated enclave; Regulated squatter settlement;

    Camp.

    Novos esTUdos 85 NoveMBro 2009 105

    InTRoduo

    A renovao do interesse pelas cidades marcou o incio do novo sculo. O sculo XXI ser um sculo urbano, quando

    mais pessoas vivero em cidades do que em qualquer outro tipo de ormao espacial. H o temor de que grande parte desse processo deurbanizao se d nas cidades do Sul global, cidades que tm sido caracterizadas pelo hipercrescimento. Para alm da hiprbole demogrca,

    cn ubnm n gb

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    [1] Sassen, S. The Global City: NewYork, London, Tokyo. Princeton, NJ:Princeton University Press, 1991.

    [2] A escola de Chicago reqentemente identifcada com a abordagemda ecologia urbana. Ns sustentamos que o conceito de cidade globalpreserva essa abordagem ecolgica,mas a aplica a uma escala dierente isto , escala global, e no da cidade.

    [3] Friedmann , J. e Douglass, M.(eds.). Cities or citizens. Nova York:John Wiley & Sons, 1998; Evans,

    P. (ed.). Livable cities?. Berkeley, CA:University o Caliornia Press, 2002.

    [4] Campbell, T.The quiet revolution:decentralization and the rise o political

    participation in Latin American cities.Pittsburgh, PA: University o Pittsburgh Press, 2003.

    [5] Graham, S. e Marvin, S. Splintering urbanism. Nova York: Routledge,2001.

    [6] Yitalchel, O. e Yakobi, H. Control, resistance, and inormality:urban ethnocracy in BeerSheva, Israel. In: Roy, A. e Alsayyad, N. (eds.).Urban inormality: transnational pers

    pectives rom the Middle East, Latin

    America, and South Asia. Lanham, MD:Lexington Books, 2004.

    [7] Harvey, D. Spaces o hope. Berkeley, CA: University o CaliorniaPress, 2000.

    [8] Smith, N. The new urban rontier:

    gentriication and the revanchist city.Nova York: Routledge, 1996; Mitchell, D. The right to the city: social justice and the fght or public space. NovaYork: Guilord Press, 2003.

    [9] Para uma boa reviso dessas dierentes interpretaes das cidadese da cidadnia, ver Holston, J. e Appadurai, A. (eds.). Cities and citizenship.Durham, NC: Duke UniversityPress, 1999.

    [10] Perlman, J. The reality o marginality. In: Roy, A. e AlSayyad, N.(eds.). Urban inormality: transnational perspectives rom the Middle East,

    South Asia, and Latin America. Lanham, MD: Lexington Press, 2004.

    h tambm a constatao de que as cidades so os locais centrais deadministrao e controle do capitalismo global contemporneo. Ostericos da cidade global1 retratam uma ecologia da globalizao2que essencialmente uma hierarquia de cidades e que pode ser enten

    dida tanto como um argumento darwinista sobre a sobrevivncia domais apto quanto como uma anlise durkheimiana da diviso do trabalho. Aceitese ou no tais mapeamentos ecolgicos da globalizao,o tema persiste: apesar do discurso da desterritorializao, as cidadese seus territrios ainda importam.

    Mas h muita discordncia sobre como interpretar a paisagem urbana de hoje. De um lado, um discurso otimista v as cidades comoarenas de vivncia, subsistncia e transormao social3. Em locaiscomo a Amrica Latina, h o sentimento de que a descentralizao da

    governana, passando da escala nacional para a escala urbana, est relacionada com uma revoluo democrtica silenciosa4. Nos EstadosUnidos, persiste a esperana de que as polticas urbanas so capazesde azer rente ao chauvinismo dos regimes nacionais, como revelamas tentativas em diversas cidades, como So Francisco, de legalizar ocasamento gay, muitas vezes contrariando decises dos governos estadual ou ederal. De outro lado, um certo discurso crtico v o surgimento de ormas ragmentadas e dispersas de cidadania urbana, constitudas por enclaves echados e espaos exclusivos5. A democracia, na

    ormulao terica provocativa de Yitachel e Yakobi, territorializadasegundo uma etnocracia urbana, uma orma de governana marcadapor divises raciais e tnicas proundas6. Estudiosos do surgimentodo neoliberalismo, as ideologias do livre mercado que predominaramdurante a dcada de 1980, chamam a ateno para a orma pela qualprojetos de renovao urbana conduzidos por interesses privados7 soacompanhados por um conjunto de polticas perversas que acelerama remoo dos pobres das cidades8. Se So Francisco resume um tipode regime urbano que civiliza e liberaliza a cidadania nacional,

    tambm resume um conjunto de polticas urbanas neoliberais vis eagressivas que criminalizam os despossudos em nome do desenvolvimento urbano.

    Como colocar em ordem essas dierentes interpretaes das cidades e da cidadania?9 Algum desses discursos se sobrepe ao outro?Ou descrevem processos muito distintos? evidente que as narrativasconcorrentes apontam para abordagens tericas dierentes. Mas halgo mais: os paradoxos insistentes da cidadania urbana amplicados pelos paradoxos do processo de globalizao contemporneo. Por

    exemplo: uma pesquisa recente de Perlman10 sobre as avelas do Riode Janeiro mostra como a democratizao pode ser acompanhada peloaproundamento da desigualdade e como melhorias de inraestrutura podem existir ao lado da violncia extrema do trco internacional

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    [11] Rothman, H. Neon metropolis:How Las Vegas started the 21st Century.Nova York: Routledge, 2003.

    [12] Pirenne, H. Medieval cities. Princeton, NJ: Princeton University Press,1925, p. 217.

    [13] Mumord, L. The city in history.Nova York: Harbinger Books, 1961,p. 255.

    de drogas e do aparato estatal. A anlise de Las Vegas eita por Rothman indica, igualmente, que algumas polticas urbanas para o espaopblico so constitudas segundo a idia de liberdade, mas a prprianoo concebida como estar livre de (da presena dos pobres urba

    nos, de protestos) ou como liberdade para consumir11. H, portanto,uma duplicidade inerente idia de liberdade, que territorializada nombito da cidadania urbana.

    Neste artigo, procuramos mostrar que a discusso atual a respeitodas cidades e da cidadania pode ser abordada a partir da reernciaconceitual oerecida pela cidade medieval. A cidade medieval nos lembra que a relao entre cidades e globalizao no nova. Se hoje acidade global o comando e o ncleo central do comrcio internacional, ento a cidade medieval tambm pode ser considerada uma cidade

    global. Seja o argumento de Pirenne12 de que o renascimento econmico do sculo XII levou ormao de cidades livres, seja o argumento exatamente oposto de Mumord13 de que oi o reaparecimentoda cidade protegida que ajudou a reabertura das rotas comerciaisinternacionais, o vnculo entre a cidade medieval e o comrcio global inquestionvel. Mas, talvez ainda mais importante, a cidade medievaltraz mente os paradoxos, as excluses e as segmentaes que sempreestiveram associados estrutura das cidades e organizao urbana.Assim, Pirenne reerese cidade medieval como uma cidade livre,

    enquanto Mumord reerese a ela como uma cidade protegida. Emoutras palavras, a cidade livre medieval era tambm a cidade protegida;no havia um conceito medieval de liberdade que no osse tambmum conceito de associao, clientelismo e deesa.

    Essa duplicdade uma erramenta analtica valiosa para o examedas geograas urbanas contemporneas. Nas sees que compemeste artigo, destacamos trs ormaes espaciais peculiares: o condomnio echado, a ocupao e o campo, mostrando como ormas dourbanismo medieval tornam possvel uma compreenso dos parado

    xos e dos potenciais desses trs espaos. Enatizamos trs pontos decongruncia entre as cidades medievais e as cidades contemporneas.Em primeiro lugar, se a cidadania moderna oi constituda por meio deuma srie de direitos individuais abstratos enraizados no conceito doEstadonao, ento agora assistimos emergncia de ormas de cidadania localizadas em enclaves urbanos. Como nos tempos medievais,essa cidadania est ligada ao clientelismo (centrado na gura do bispo,por exemplo) ou ao pertencimento a associaes (como a guilda), e emambos os casos tratase undamentalmente de proteo. Em segun

    do lugar, tais ormas de cidadania substituem ou so mesmo hostisao Estado. Das associaes de proprietrios de imveis declaraopor grupos religiosos undamentalistas de repblicas islmicas emseus bairros, so sistemas privados de governana que operam como

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    [14] Holston e Appadurai, op. cit., p. 13.

    [15] Grunebaum, G. von. Islam: essaysin the nature and growth o a cultural

    tradition. Nova York: Routledge, 1955.

    [16] Kosto, S. A history o architecture. Oxord: Oxord University Press,1985, pp. 36970.

    [17] Ibidem, p. 371.

    [18] AlSayyad, N. Cities and Caliphs.

    Nova York: Greenwood Press, 1991.

    [19] Robinson, J. Global and worldcities: a view rom o the map.International Journal o Urban and

    Regional Research, vol. 26, n 3, pp.531554, 2002.

    [20] Pirenne, op. cit.

    eudos medievais, impondo verdades e normas muitas vezes contrrias s leis nacionais. Em terceiro lugar, essa lgica de dominao temmaniestaes territoriais. A cidade se articula, segundo a expresso deHolston e Appadurai, na orma de colmias de jurisdio, um cor

    po medieval de associaes privadas sobrepostas, heterogneas,nouniormes e crescentemente privadas14. importante lembrar que, ao azer uso da categoria analtica da

    cidade medieval, no estamos insinuando que a Idade Mdia seja umperodo histrico consistente ou uma geograa unicada e uniorme.Apesar de no levarmos em considerao as dierentes geograas dacidade medieval, cremos que a diversidade temporal e espacial da cidade medieval contribui mais do que prejudica nossa tarea analtica.Por exemplo, um dos debates a respeito da cidade medieval envolve

    a suposta dierena entre os contextos europeu e do Oriente Mdio.Kosto, com base no texto clssico orientalista de Grunebaum15, considera que a cidade medieval islmica no dispunha das ormas deautogovernana e da organizao municipal das cidades medievaiseuropias. Para ele, Cairo medieval, uma massa solidamente construda repleta de labirinto de becos sem sada, alta um mbitopblico16. Em contraste, ele v em cidades como Florena uma batalha para assumir o controle de suas ruas e espaos abertos [] paraazer da estrutura da cidade um plano intencional [] e uma ordem

    visvel17. Em outras palavras, a cidade islmica desordenada era umaalegoria que tornou possvel a norma da cidade europia ordenada. Taldistino entre cidades islmicas medievais caticas e misteriosas e ascidades medievais europias uncionalmente ordenadas ressoa hojena distino entre as cidades ingovernveis do Terceiro Mundo e as cidades governadas dos Primeiro Mundo. uma distino que tem sidoquestionada no que diz respeito s cidades medievais, e os tericosarmam que o que est em jogo so dierentes lgicas de regulao eadministrao, e no a presena ou ausncia de governana18. A mesma

    distino igualmente colocada em questo no que diz respeito scidades contemporneas19.

    A histria da cidade medieval recobre muitos sculos. Em vezde procurar por um urbanismo medieval coerente, dedicamos umaateno especial s dierentes temporalidades e ormas da cidademedieval e sustentamos que essa diversidade permite uma abordagem muito til das transies e transormaes urbanas. A cronologia do urbanismo medieval pode ser resumida da seguinte orma:com o m do Imprio Romano, as cidades antigas declinaram; nos

    primeiros tempos da Idade Mdia, nos sculos IX e X, a cidade sobrevive como cidade espiscopal governada por bispos20; os sculosXI e XII assistem a um ressurgimento das cidades como centros decomrcio internacional e de transaes econmicas e, mais generi

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    [21] Braudel, F. The structures oeveryday lie. New York: Harper & RowPublishers, 1979, p. 512.

    [22] Pirenne, op. cit., p. 288.

    [23] Mumord, op. cit., p. 355.

    [24] Ibidem, p. 216.

    [25] Ibidem, p. 347.

    [26] Braudel, op. cit. , p. 512.

    [27] Pirenne, op. cit., p. 65.

    [28] AlSayyad, op. cit.

    [29] Agamben, op. cit. , p. 181.

    [30] Mumord, op. cit. , p. 227.

    [31] Agambem, op. cit.

    [32] Comaro, J. e Comaro, J. Millennial capitalism: frst thoughts ona second coming. Public Culture, vol.12, n 2, 2000, p. 328.

    camente, para usar a expresso de Braudel, como postos avanadosda modernidade, uma coleo de regras, possibilidades, clculos21; essas cidades davam corpo a um embate por soberania, noapenas nas mltiplas soberanias que marcaram a poltica econmi

    ca do perodo medieval, mas tambm nas tentativas das cidades dese tornarem estados dentro do Estado22; no sculo XVIII, essa lutahavia sido resolvida em avor de uma estrutura poltica caracterizadapor um centralismo barroco incorporado em um Estado nacional,no qual os privilgios de cidadania eram obtidos no da cidade masdo prncipe, e podiam ser excercidos em qualquer lugar do reino23.

    Pretendemos aqui relacionar os espaos urbanos contemporneoscom esses momentos histricos. Mumord24 sustenta que o mito dosculo XVIII do contrato social, que sobrevive na idia de cidadania

    nacional at o sculo XX, era uma racionalizao da base poltica dacidade medieval. Ser possvel ento ver a dissoluo da cidadania nacional, sua ragmentao, localizao e decentralizao na escalaurbana, como um retorno ao que Mumord chama de localismo medieval25? Sero os enclaves echados do urbanismo contemporneoiguais s cidades medievais sustentada por privilgios, adquiridos ouextorquidos26? Poderia o urbanismo estilhaado de hoje ser considerado semelhante ao da cidade do m da Idade Mdia? Se voltarmosainda mais no tempo, encontramos nos incios da Idade Mdia a ci

    dade do bispo, a cidade onde, como nos lembra Pirenne27, a idia dacidadania, da civitas, era sinnima com a dominao religiosa e na qualo bispo exercia poderes de policiamento e administrao. Seu paralelono mundo islmico tambm relevante nesse caso: osse a cidade doscalias ou a cidade do sulto, a cidade Islmica era o modo de existncia urbana predominante28. Seriam os regimes de governo religiososem uncionamento nos espaos inormais de cidades contemporneas reminiscentes da cidade medieval religiosa?

    E se voltamos ainda mais no tempo, nos deparamos com o m do

    Imprio e com o debandar da cidadania urbana e da cidade. Teria essemomento alguma semelhana com o nosso momento presente, noqual, como notou Agambem, o paradigma biopoltico o campo, e noa cidade29? Com o declnio do Imprio Romano, a vida pblica da cidade de Roma centrouse cada vez mais nos rituais de extermnio, quealcanou seu clmax nos espetculos de gladiadores, morte na tarde,dramatizados na orma de circo30. Hoje, as cidades buscam aplicar aestratgia do espetculo na criao de vida pblica; algumas, como LasVegas, alegam ser o maior show da terra, assim como Roma j oi o maior

    show da terra. Mas o show tambm est se transormando em mortena tarde a vida nua de Agambem31 apresentada como espetculo,ao vivo pela CNN e AlJazeera. Comaro e Comaro32 chamam ateno para o carter mgico do Estado na era do capitalismo milenar, o

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    [33] Benjamin, W. Theses on thephilosophy o history. In: Arendt,H. (ed.). Illuminations . Nova York:Schocken Books, 1950, p. 263.

    [34] Roy e AlSayyad, op. cit.

    excesso ritualstico que unciona como libi para arealpolitik. Em uma erade imprio, o excesso ritualstico toma a orma de rituais de extermnioexibidos como hiperrealidade. Ou seria esse o espetculo que marca odeclnio do imprio?

    Deve estar claro, agora, que o nosso uso da cronologia medievalopera ao reverso vamos do centralismo do sculo XVIII ao localismo medieval do m da Idade Mdia ao governo de bispos do incioda Idade Mdia e, nalmente, ao m do Imprio Romano. Ao azlo,no estamos propondo uma teoria a respeito da regresso, refexo invertido da doutrina do progresso. Antes, procuramos destacar as idase vindas da urbanizao, a simultaneidade de dierentes lgicas urbansticas e a importncia de uma abordagem nolinear do tempohistrico. Nossa abordagem, como diria Benjamin, histricomate

    rialista, mais do que historicista, na qual procuramos azer irromper,do curso homogneo da histria, um perodo especco33. Esperamosque tal abordagem torne possvel um complexo engajamento com ahistria, que nos permita pensar a histria no como periodizao linear mas, em vez disso, como uma onte de conceitos, cuja exploraopossibilita a articulao da teoria. Essa abordagem tambm coloca emperspectiva histrica prticas urbanas aparentemente novas, mostrando assim que no so simplesmente ormas desviantes ou anmalas mas componentes undamentais da paisagem urbana. Se parte de

    nossa pesquisa anterior teve alcance transnacional, usando l paracolocar questes crticas a respeito daqui34, ento este argumento transhistrico, e gera questes a respeito de agora desde a perspectiva do ento.

    Acima de tudo, esse artigo uma tentativa de tornar mais complexos conceitos como modernidade ou democracia, pressupostos emdiscusses urbansticas contemporneas. A longa histria das cidadesrevela o imbricamento entre democracia e liberdade com as estruturaspolticas do imprio e do medievalismo. A articulao das cidades de

    hoje como medievais coloca em questo a inevitabilidade do progresso. A m de dirigir a ateno para os paradoxos persistentes davida e orma urbanas, azemos uso da expresso paradoxal modernidade medieval, sugerindo que ormas medievais de organizao ecomunidade se escondem no corao do moderno.

    enClAves feChAdos

    Nas cidades, de Los Angeles a Manila, o paradigma de organiza

    o espacial mais comum hoje o enclave echado, mantido com aajuda de tcnicas sosticadas de vigilncia, policiamento e arquitetura. Esses espaos so no apenas murados e cercados, mas estotambm ligados a outros espaos de excluso, tais como megapro

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    [35] Graham e Marvin, op. cit., p. 284.

    [36] Caldeira, T. City o walls. Berkeley, CA: University o CaliorniaPress, 2000.

    [37] New York Times, 15 ev. 2000.

    [38] Weizman, E. e Segal, R. (eds.).

    A civilian occupation. Londres: Verso,2003.

    [39] Low, S. The edge and the center: gated communities and urbanear. In: Low, S. e Lawrencezuniga,D. (eds.). The anthropology o spaceand place. Cambridge, MA: Blackwell,2003, p. 390.

    [40] Ibidem, p. 390; Davis, M. City o

    quartz. Londres:Verso, 1990.

    [41] McKenzie, E. Privatopia: homeowner associations and the rise o residen

    tial private government. New Haven,CT: Yale University Press, 1994.

    jetos urbanos e desenvolvimentos dos hbitos de lazer. essa combinao de espaos urbanos de seduo e segurana que Graham eMarvin chamam de urbanismo de estilhaos: redes de segregaoespacial mantidas por meio de inraestruturas especiais que so

    quase literalmente segregadas do ambiente urbano circundante.Tais ormas de segregao maniestamse hoje tanto horizontalcomo verticalmente. Das estradas elevadas semiprivadas e rotasareas aos ediciosortalezas, h uma paisagem tridimensional deexcluso e polarizao35.

    Essas tendncias aparecem de orma bastante consumada no Brasil, onde a elite se retirou a condomnios echados, procurando rompersuas conexes com os pobres urbanos, apesar de, assim como armaCaldeira36, os pobres ainda serem necessrios para limpar as piscinas

    e cuidar dos jardins. Hoje, So Paulo possui a maior rota privada dehelicpteros porque sua elite urbana abandonou as ruas da cidade pelos cus inacessveis. O helicptero mais vendido no Brasil o Robinson R44, que acomoda conortavelmente quatro pessoas. Custo algoem torno de US$380 mil, aproximadamente noventa vezes a rendaanual mdia de um habitante de So Paulo37. Para que ter uma BMWblindada quando se pode usuruir de um helicptero? Nessa cenriode segregao digno de Blade Runner, enquanto as poucas centenasde membros da elite urbana vagam pelos cus em seus helicpteros,

    3,7 milhes de habitantes enrentam todo dia o sistema precrio detransporte pblico da cidade. Weizman e Segal entendem esse entalhamento da cidade em eseras de circulao separadas como umapoltica da verticalidade. Eles observam que os assentamentos judeusestrategicamente localizados na Cisjordnia ocupam espaos nas colinas, enclaves suburbanos separados dos vizinhos palestinos, muitomais pobres, mas que tambm gozam de superioridade vertical de vigilncia e de redes de inraestrutura ornecidas pelo aparato militardo Estado de Israel38.

    Tais paisagens de muros e cercas indicam uma territorializao peculiar da cidadania, ou o que Low39 chama de nova estrutura espacial degoverno. A principal caracterstica desses regimes espaciais a ormaode conjuntos cercados governados por entes privados. Os Desenvolvimentos de Interesse Pblico (DIP) so um exemplo dessa tendncia.Uma DIP uma comunidade na qual os residentes so proprietrios deou controlam as reas comuns ou instalaes compartilhadas, o que implica direitos e obrigaes recprocas garantidos por um corpo administrativo provado. Denida legalmente como compromissos, contratos

    e restries (CC&Rs) especializados, essa estrutura de governana crianovos tipos de governos privados na orma de associaes de condminos40. Como reparou McKenzie, essas privatopias marcam a secesso dos bemsucedidos41. Aqui, a lei contratual a autoridade suprema;

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    [42] Ver tambm Flusty, S. e Dear,M. Invitation to a postmodernurbanism. In: Beauregard, R. e Bodygendrot, S. (eds.). The urban moment: cosmopolitan essays on the Late

    20thCentury city. Thousand Oaks,CA: Sage Publications, 1999.

    [43] Pirenne, op. cit., pp. 19394.

    [44] Ibidem, p. 194.

    [45] Mumord, op. cit., p. 262.

    [46] Kosto. The city shaped. Londres:Thames and Hudson, 1991, p. 70.

    [47] Idem, A history o architecture,op. cit., pp. 359, 371.

    [48] Hollister, W. Medieval Europe: ashort history. Nova York: John Wiley &Sons, 1964, p. 148.

    a tica da propriedade o undamento da vida comunitria; e a excluso o undamento da organizao social42.

    Os enclaves echados podem ser analisados em relao ao urbanismo medieval e ormao das cidades autnomas. O argumento

    amoso de Pirenne sobre as cidades medievais arma que o ar dacidade liberta: Liberdade, na Idade Mdia, era um atributo to inseparvel da condio de cidado de uma cidade como o hoje dacondio de cidado de um Estado43. Os elementoschave dessaliberdade incluam a liberdade pessoal isto , a liberdade da servido eudal e liberdade undiria isto , a liberdade de transerire adquirir propriedade de uma maneira semelhante quilo que hojechamamos de propriedade imobiliria44. Tais liberdades eram concedidas pelos cdigos municipais, criando um distrito legal para o

    qual habitar uma cidade corporativa por um ano e um dia anulavaas obrigaes de servido, o mais notvel das quais era o controledo senhor eudal sobre as mentes e os corpos dos sditos eudais45.Esses enclaves legais eram governados segundo um sistema de regras e regulamentaes, incluindo algumas que davam origem a umambiente construdo altamente controlado, dotado de unidade esttica. Em Siena, por exemplo, houve grande esoro para completar,polir e codicar o arranjo sico mais inormal de seus primeirostempos. Ali, no sculo XIV, o conselho da cidade raticou uma lei

    determinando que todos os novos edicios em construo devemestar alinhados com os edicios ao seu redor [] e devem ser igualmente construdos de orma a contribuir para a beleza da cidade46.Em Bruges, os comerciantes representados pelas guildas societriasexerciam um papel central nos processos que governavam a ormao dos espaos pblicos e, na Florena do m da Idade Mdia, ajovem repblica codicou seu controle sobre as ruas da cidade47. Erauma unidade esttica, que submetia ou sujeitava a ao individuala um ideal coletivo mais amplo. Os compromissos, os cdigos e as

    regulamentaes (CC&R) das associaes de condminos de hoje eos cdigos e guias de padro do Novo Urbanismo tm eeito similar,criando enclaves esteticamente codicados e unicados.

    As conseqncias mais importantes do urbanismo medieval paraa compreenso das cidades contemporneas esto ligadas ao conceitode liberdade. O cdigo municipal que garantia liberdade era um tantoparadoxal. Em primeiro lugar, era um enclave de liberdade cuja premissa era a idia de uma liberdade de nesse caso, a liberdade deerramentas de consco e outras extorses cobradas pelos senhores

    eudais48 ou pelos bispos. Pirenne escreve:

    Nada estava mais distante da mente da classe mdia original do quequalquer concepo dos direitos do homem e do cidado. A prpria liberdade

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    [49] Pirenne, op. cit., p. 171.

    [50] Ibidem, p. 212.

    [51] Mumord, op. cit., p. 269.

    [52] Pirenne, op. cit., p. 177.

    [53] Hollister, op. cit., p. 149.

    [54] Girouard, M. Cities and people: asocial and architectural history. NewHaven, CT: Yale University Press, 1987.

    [55] Hollister, op. cit., p. 149.

    [56] Mumord, op. cit.

    pessoal no era reivindicada como um direito natural. Era cobiada apenaspor causa das vantagens que coneria49.

    Essas vantagens estavam ligadas principalmente ocupao,

    como o exerccio de ocios e a prtica de comrcio. Em segundo lugar,o cdigo era inerentemente excludente. Suas vantagens, tais como osbenecios scais ou as protees do cdigo penal, estendiamse apenas queles que habitassem o enclave codicado. A classe mdia urbana tornouse ento um grupo social como o clero e a nobreza umaordem privilegiada dotada de uma orma legal e territorial especcaque lhe permitia preservar seu status excepcional e os benecios a eleassociados, pela excluso da massa de habitantes rurais. Nas palavrasde Pirenne, a liberdade era um monoplio50. Em terceiro lugar, tal li

    berdade s poderia ser exercida por meio da associao. No haviasegurana a no ser na proteo do grupo, nem liberdade que no reconhecesse as obrigaes constantes de uma vida corporativa51. Apesardas dierenas de escala, possvel comparar as associaes de proprietrios de imveis hoje ao enclave medieval codicado. Hoje, a propriedade central da mesma orma que a ocupao era central na IdadeMdia. Em ambos os casos, a cidadania urbana tem como premissa aadministrao de um espao secessionrio dotado de regulamentaes e cdigos internos.

    Finalmente, os enclaves medievais de associaes competiam unscom os outros, criando condies para o surgimento da soberaniaragmentada que discutiremos na prxima seo. A cidade codicadado m da Idade Mdia era uma revolta contra a dominao, do incio da Idade Mdia, dos bispos52. As cidades codicadas eram muitas vezes criao de comerciantes prsperos que governavam comouma oligarquia da cidade53. Em algumas dessas cidades, a guildados comerciantes chegava a dominar a guilda dos artesos, superandoo poder dos artesosmestres com o poder dos comerciantes, como

    nas cidades famengas at a revolta das guildas de artesos no sculo XIV54. A competio entre as guildas era comparvel competioentre comerciantes e senhores eudais. Em alguns casos, os senhoreseudais criavam cdigos municipais que garantiam a liberdade pessoal da condio de servido, liberdade de movimento, liberdade detaxas irregulares, o direito a possuir propriedades55. Em outros casos,alianas eram eitas entre autoridades reais e enclaves municipais codicados, com o objetivo de enraquecer a nobreza eudal56. Assim, aliberdade era constantemente negociada, osse por secesso osse por

    hierarquizao, na paisagem medieval.O caso das cidades italianas do m da Idade Mdia oerece um

    exemplo dessas disputas. Aqui, segundo as anlises de Kosto, amlias da nobreza haviam reproduzido, no interior das cidades, os

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    [57] Kosto, The city shaped, op. cit.,p. 50.

    [58] Braudel, op. cit., p. 518.

    [59] Pirenne, op. cit., p. 228.

    [60] Mumord, op. cit., p. 347.

    [61] Rose, N. Powers o reedom: reraming political thought. Cambridge:Cambridge University Press, 1999.

    basties orticados de suas residncias rurais, criando bairros nucleares semiautnomos com suas torres de deesa ameaadoras57.Um dos principais desaos das novas comunas, ou cidadesestadoautogovernadas, no m da Idade Mdia, seria a abertura desses bol

    ses privados e a retomada das ruas e dos espaos pblicos em nomede todos os cidados.Mas a prpria cidadania era um conceito limitado: cidados inte

    grais eram uma minoria desconada, uma cidade pequena dentroda prpria cidade58. E enquanto esses enclaves dos poderosos eramdesaados, a prpria cidade tentava manterse como enclave, procurando, em outra escala, tornarse cidadeestado ou repblica municipal. Como nota Pirenne, se elas tivessem poder, teriam, em toda parte,se tornado Estados dentro do Estado59. Entre os sculos XV e XVIII,

    na Europa, esses enclaves estavam reunidos sob um novo signo: osigno do Prncipe, exemplicado pelo tratado de Maquiavel60. A cidadania seria agora codicada e regulada no mais segundo o statusexcepcional do cdigo da cidade, mas generalizada para todo o espaoeconmico do Estadonao moderno.

    possvel alar em enclaves echados e cidadania contemporneasem azer reerncia s cidades medievais. possvel documentar acrescente quantidade de enclaves para explicar o uncionamento doscircuitos do capital de propriedade e analisar a ecologia do medo que

    produz a esttica das comunidades protegidas. So temas de pesquisaimportantes, mas no azem parte de nosso projeto. Armamos que,nesse breve desvio histrico, a analogia com a Idade Mdia iluminaduas dimenses dos enclaves echados contemporneos: a naturezamonopolstica da liberdade conorme territorializada no espao urbano e codicada nos cdigos municipais; e a multiplicidade e ragmentao da soberania. Tais questes levam da viso dos enclaves echados como eeitos do neoliberalismo ou do conservadorismo social anlise de suas relao com as tecnologias de subjetivao, soberania e

    espacialidade. Os enclaves echados do corpo a que Rose, valendosede Foucault, chamou de poderes da liberdade, as ormas de governar que so o pressuposto da liberdade dos governados61. Em outraspalavras, o enclave uma importante tecnologia de dominao, umaorma de dominao que opera por meio da dupla hlice da liberdadee soberania, liberdade e proteo.

    A oCupAo RegulAmenTAdA

    Ao longo da histria, a ocupao tem sido um mecanismo importante de uso da terra. Hoje, as ocupaes, muitas vezes chamadas dehabitaes inormais, so parte considervel do ambiente edicadodas cidades do Sul global. Os processos por meio dos quais as ocupa

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    [67] Alsayyad.Streets o Islamic Cairo.Cambridge, MA: Aga Khan Program/MIT, 1981.

    [68] Ibidem.

    [69] Akbar, J. Crisis in the built environment. Singapore: Concept Media,1988.

    [70] Alsayyad, N. e Bristol, K. Levelso congruence: comparing spaces inthe Middle Ages. Journal o Architecture and Planning Research, vol. 9, n 3,1992, pp. 193206.

    No entanto, h muito mais envolvido nesses processos do quesimplesmente a transormao da orma sica e da morologia urbana. O que est em jogo uma poltica espacial peculiar. Assim comona contemporaneidade, a ocupao na Idade Mdia era uma prtica

    altamente regulamentada. O que primeira vista parece ser uma paisagem desordenada oi de ato produzido por uma teia intrincada denormas e regulamentaes. Nas cidades medievais do Oriente Mdio,os muhtasib, gura equivalente podestaeuropia, agiam como policiaisde edicios e mercados. Eles no erradicaram a inormalidade, masantes ormalizaram prticas inormais ao permitir que acontecessem,primeiramente, depois aceitlas como precedente e, por m, encontrar decises legais islmicas para validar sua aceitao67. Por exemplo,um proprietrio de loja ocupa determinada parte da rua para exibir

    sua mercadoria. No existe um cdigo que o impea de azlo, mas,dessa orma, o comerciante interere na circulao e no movimentodentro da cidade. Como resultado de uma queixa ou de uma inspeopelo rgo dos muhtasib, o lojista recebe ordens de ou retirar seus produtos do espao pblico ou lhe concedida autorizao para ocuparapenas uma parte dele. Outros lojistas observam o incidente e, porm, adotam a conveno. Assim, surge uma orma de apropriao doespao pblico urbano para uso comercial privado. Essa orma de vidaurbana ento aceita e normalizada tanto pela administrao da ci

    dade como pelos residentes68. Outro exemplo envolve o morador deuma casa que a expande, adicionando um segundo andar. Alguns elementos estruturais devem ser construdos no espao pblico da rua,possivelmente sobre esse espao, e o acrscimo tambm interere noespao privado de outras casas. Tais violaes de normas sociais noseriam toleradas pelos muhtasib, ento a pessoa que realiza a expansodeve negociar no s com os vizinhos a exata localizao das janelas,resolvendo assim o problema da invaso de privacidade, como tambm com a administrao da cidade a extenso da invaso do espao

    pblico; assim, minimiza a inrao sem deixar de ocupar a parte doespao areo de uma rua, mas sem intererir com sua uno de circulao e transporte69. Tais exemplos ocorrem tanto no Oriente como noOcidente os Sabbats, em Tnis, e o SottoPortice, de Veneza. Comoresultado das negociaes to delicadas do tecido urbano da cidade,uma constelao de ormas irregulares legitimada70. Esse processode negociabilidade, que existia em muitas cidades rabes durante aIdade Mdia, no deve ser interpretado como uma revolta contra oEstado; deve ser entendido como a articulao de uma orma espec

    ca de cidadania que envolvia aliana entre os dierentes grupos queconstituam a massa das sociedades urbanas.

    A discusso a respeito da inormalidade moderna tem dado muitaateno poltica urbana. consenso hoje que os Estados modernos,

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    Novos esTUdos 85 NoveMBro 2009 117

    [71] Castells, M.The city and the grassroots. Berkeley, CA: University o Caliornia Press, 1983.

    [72] Roy e AlSayyad, op. cit.

    [73] Bayat, A. Activism and socialdevelopment in the Middle East.International Journal o Middle East

    Studies, vol. 34, n 2, 2002, pp. 128.

    [74] Ibrahim, S. An Islamic alternative in Egypt. Arab Studies Quarterly,vol. 4, n 1/2, 1982, pp. 721.

    [75] Ismail, S. The popular movement dimensions o contemporarymilitant Islamism: sociospatialdeterminants in the Cairo urban set

    ting.Comparative Studies in Society andHistory, vol. 42, n 2, 2000, pp. 36393.

    [76] Elkak, M. H. Postwar Beirut:resources, negotiations, and contestations in the Elyssar Project.In: Shami, S. (ed.). Capital cities: ethnographies o urban governance in the

    Middle East. Ottawa: University oToronto, 2001; Bayat, op. cit.

    [77] Majdalani, R. The governanceparadigm and urban development:breaking new ground?. In: Shami,S. (ed.). Capital cities: ethnographieso urban governance in the Middle East.Ottawa: University o Toronto, 2001.

    sejam democrticos sejam autoritrios, engendram e administram ainormalidade como uma orma de subscrever a acumulao capitalista e assegurar sua legitimidade poltica71. No entanto, nos ltimosanos, tem havido um interesse crescente no que parecem ser novas or

    mas de governana e poltica no mbito da inormalidade urbana. Como aproundamento das medidas neoliberais de austeridade, surgematores noestatais que assumem o papel de Estado de acto em ocupaes inormais em vrias regies do mundo72. O mais impressionante a convergncia entre as geograas inormais e a territorializao doundamentalismo religioso. Com o abandono dos programas sociaispelo Estado, grupos religiosos undamentalistas se tornaram o principal prestador de servios urbanos em ocupaes inormais73.

    Um dos lugares onde esses processos se tornaram visveis pela pri

    meira vez oi o bairro de Imbaba, no Cairo. Em 1992, o exrcito egpciorealizou incurses em Imbaba, pondo m no controle do bairro porum grupo islmico. Como um grupo islmico pode criar essa zona desoberania? Parte da resposta est ligada reestruturao neoliberal. Aadeso estrita do Egito s regras de ajuste estrutural oi de mau agouropara os pobres urbanos de cidades como o Cairo. Em bairros como Imbaba, constatase um grande aumento da pobreza e do trabalho inormal. Formado por conjuntos habitacionais dilapidados e ocupaes,em ns dos anos de 1970 Imbaba era palco de tumultos por alimentos

    desencadeados por polticas do FMI74. Nos anos de 1980, Imbaba havia sido tomada pelo Gamaa al Islamiya, grupo ligado ao assassinatodo presidente egpcio Anwar Sadat, que se tornou o Estado de acto.De um lado, passou a prestar a maior parte dos servios sociais dasade educao. De outro, dividiu Imbaba em dez sesses, cada umacomandada por um emir, que governava segundo interpretaesundamentalistas do Isl75.

    Imbaba no uma exceo. No Lbano, o Hezbollah, grupo queocupa uma posio alta na lista norteamericana ps11 de novembro

    de organizaes terroristas, tornouse igualmente um Estado de acto.Seus programas de desenvolvimento nos subrbios do sul de Beiruteincluem o ornecimento de casas por meio do Jihad para construo,educao, servios de sade, gua, sistema de esgoto e eletricidade76.Como Beirute oi reconstruda segundo projetos urbansticos sosticados, tais como o Solidere ou o Elyssar, o Hezbollah tem se destacadocomo o principal mediador dos direitos habitao da populao xiita pobre77. Sua ascenso ao poder s pode ser entendida no contextoda guerra civil em Beirute, quando a cidade oi dividida em diversas

    zonas, cada uma governada por uma milcia religiosa, que no era apenas mquina de guerra, mas tambm rgo de prestao de serviose de desenvolvimento. Em Mumbai, grupos hindus undamentalistas, como o Shiva Sena, ganharam apoio popular em toda a cidade ao

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    [78] Appadurai, A. Spectral housing and urban cleansing: notes onmillennial Mumbai. Public Culture,

    vol. 12, n 3, 2000, pp. 62751.

    [79] Davis. Planet o slums. NewLet Review, n 26, 2004, pp. 534.

    [80] Bayat, op. cit.

    [81] Comaro e Comaro, op. cit.,pp. 310, 327.

    [82] Pirenne, op. cit., p. 63.

    [83] Ibidem, p. 68.

    [84] Lapidus, I. Muslim cities in theLater Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. XV.

    prometer reivindicar espao no mercado imobilirio incrivelmenteechado. Essa reivindicao custou, como notou Appadurai, a integridade do corpo muulmano78. Ou, no caso das avelas e das ocupaeslatinoamericanas, o pentecostalismo surgiu como lgica de gover

    nana e poltica79. Obviamente, nem todos esses grupos religiosos soundamentalistas. Em alguns casos, a lgica da religio secundriaem relao a redes de parentesco e comunitrias, assim como nas associaes de auxlio mtuo das cidades egpcias, descritas por Bayatcomo o Isl social80. No entanto, essas associaes retalham a cidade em dierentes ordens de cidadania, dando origem a regimes religiosos de dominao urbana e regimes urbanos de dominao religiosa.Comaro e Comaro consideram esses regimes religiosos smbolodo capitalismo neoliberal: a privatizao do milnio por meio da

    criao de estruturas paraestatais e a redenio da cidadania comoalgo condicional, parcial e situacional81.

    Mais uma vez, o urbanismo medieval oerece uma erramentaanaltica til para a compreenso de tais processos contemporneos. Segundo o retrato de Pirenne, no incio da Idade Mdia, a cidadeera sinnimo de administrao religiosa82. Os termos civis e civitasno tinham nenhum signicado legal; signicavam apenas residncia na cidade episcopal. A dominao dos bispos desenvolveuse nocontexto do desaparecimento do comrcio no sculo IX. Os bispos

    atuavam no apenas como lderes religiosos, mas tambm gozavamde poderes de polcia vagamente denidos, tais como a supervisodos mercados e a regulamentao de erramentas83. Essa oi a articulao da cidadania no sentido restrito do clientelismo, sem nenhuma das complexas ormas de associao urbana que viriam arecalibrar o clientelismo e a proteo no m da Idade Mdia. Para Pirenne, as cidades codicadas tardomedievais so uma revolta contra os bispos. Como deveramos ento olhar para regimes urbanoscontemporneos de dominao religiosa? Podem ser considerados

    a revolta contra o enclave echado e a secesso dos bemsucedidos?Se a Idade Mdia testemunhou o imprio do cdigo, como revoltacontra os bispos, ento talvez o imprio de hoje dos bispos seja arevolta dos excludos da generosidade do cdigo neoliberal.

    No entanto, como j discutimos, o urbanismo medieval raramenteteve uma nica lgica de dominao. A maior parte da cidade medievalera governada por uma aliana instvel mas duradoura entre comerciantes, representados pelas guildas; autoridades religiosas, representadas pela Igreja; e burgueses, representados pela cmara munici

    pal. As alianas com senhores eudais eram menos estveis. Lapidusarma que as cidades medievais do Oriente Mdio, dierente de suascontrapartes europias, careciam de tais ormas territorializadas deassociao84. Ele arma que, no Oriente Mdio, havia comunidades

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    Novos esTUdos 85 NoveMBro 2009 119

    [85] Castells. The rise o the networksociety. Cambridge: Blackwell, 1996.

    [86] Mbembe, A. e Roitman, J. Figures o the subject in times o crisis.In: Enwezor, O. e outros (eds.). Undersiege: our Arican cities. Hatje CantzPublishers, 2002.

    [87] Bayat. From dangerous classes to quiet rebels: the politics o theurban subaltern in the global south.International Sociology, vol. 15, n 3,2000, pp. 53357.

    polticas no governadas, mas que eram, ainda assim, mantidas unidas graas a relaes sociais como associaes religiosas muulmanas.Apesar dos clculos precisos de governana, a cidade medieval podeser considerada, ento, um espao composto por soberanias em com

    petio, que operavam por meio de uma lgica territorializada de associao e clientelismo, seja a dominao religiosa do incio da IdadeMdia sejam as guildas urbanas da alta Idade Mdia.

    Como no caso do enclave echado, a inormalizao do espaourbano contemporneo pode ser discutida sem que se aa reerncia s cidades medievais. possvel vasculhar as conexes entre oneoliberalismo e a inormalizao; identicar as vrias ormas deinormalidade na cidade neoliberal; rastrear o surgimento histrico de espaos como Imbaba no contexto da economia poltica da

    dependncia e dos ajustes estruturais. Mas essas consideraes, algumas das quais zemos em outra ocasio, no so o oco de nossapreocupao neste artigo. Em vez disso, procuramos destacar aquias ormas pelas quais a analogia com a cidade medieval chama aateno para uma dimenso crucial da ocupao regulamentada:multiplicidade e complexidade. A ocupao regulamentada da Idade Mdia unciona segundo a lgica do clientelismo. Ela expressa ocarter negocivel das regras e regulamentaes que governam o espao da cidade. Mas quando o clientelismo ormalizado pela domi

    nao dos bispos, o espao de negociao possvel drasticamentereduzido. E, ainda assim, na cidade medieval, a lgica de dominaonunca singular; o terreno sempre aquele das alianas e soberaniasinstveis. Tal discusso a respeito da lgica de dominao redeneo debate a respeito das cidades contemporneas. O urbanismo dehoje tem sido reqentemente diagnosticado como um momento deaproundamento da excluso e da incluso, mapeadas pelos padresde segregao e dramaticamente representadas no cone do muro ouda cerca. Esse o vocabulrio da cidade dual, que evoca a imagem,

    de um lado, daqueles que esto conectados e, de outro, daqueles queoram desligados e tornados redundantes85. A analogia com a cidademedieval permite uma nova compreenso daquilo que Mbembe eRoitman chamam de a gura do sujeito na era da crise86. Essa no, simplesmente, uma gura que est includa ou excluda, dentrodo enclave echado ou ora dele; antes, essa gura cria ormas intrincadas de negociabilidade e racionalidade, assim como aquilo queBayat chama de a invaso silenciosa do ordinrio87. Tal abordagempermite ver o poder estrutural no como um regime de dominao

    monoltico e singular, mas, antes, como um domnio ragmentadode soberanias mltiplas e concorrentes. Isso bastante evidente em ocupaes inormais contemporneas, onde existe uma duracompetio entre dierentes ormas territorializadas de associao

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    [88] Hardt, M. e Negri, A. Empire.

    Cambridge, MA: Harvard UniversityPress, 2000, p. XIII.

    [89] Ibidem, p. 337.

    [90] Ibidem, p. 339.

    e clientelismo sejam o Estado, as organizaes religiosas, asONGs ou as instituies internacionais de desenvolvimento. esseexcesso de poder, articulado de orma ragmentria e mltipla, queaz a cidade de hoje ser um espao de dominao atordoante. Assim

    como na cidade medieval, essas soberanias concorrentes no devemser entendidas em termos de um liberalismo undado em gruposde interesse, como num sistema democrtico de controles e equilbrios. Antes, devem ser entendidas como um endurecimento deundamentalismos e paroquialismos em constante ragmentao uma poltica de eudos negociada por meio de regulaes visveise invisveis.

    o CAmpo

    O momento atual pode ser caracterizado como um momento detransio, no qual o imprio espreita ameaadoramente no horizonte. Em anos recentes, tem crescido a sensao de que a globalizaoneoliberal est se transormando em globalizao imperial, ou pelomenos revelando seu carter inevitavelmente imperial. Uma dasanlises mais debatidas a esse respeito aquela oerecida por Hardte Negri. Eles sustentam que o imprio de hoje um aparato de dominao descentralizado e desterritorializado88. No entanto, tambm

    enatizam que esse espao suave89 da soberania global requer umanova gesto do espao social, mais especicamente, ormas ractaisde administrao:

    A segmentao da multido tem sido, realmente, condio da administrao poltica ao longo da histria. A dierena hoje repousa no ato de que,enquanto nos regimes modernos de soberania nacional a administraoatuava na direo de uma integrao linear dos conitos e na direo de umaparato coerente que os poderia reprimir [] no quadro do imprio a ad

    ministrao de torna ractal e tem como objetivo integrar conitos no pelaimposio de um aparato social coerente mas pelo controle das dierenas90.

    Os autores comparam os regimes locais do imprio com sistemas polticos medievais, em particular a relao administrativaentre organizaes territoriais eudais e estruturas monrquicasde poder. Tais ormas de administrao ractal so amplamenteevidentes hoje. O Aeganisto psinvaso um exemplo pereito. Ali, o assim chamado governo central, em resposta aos admi

    nistradores imperiais, tem controle principalmente sobre Kabul,sendo que o restante do pas constitudo por zonas de soberaniasob controle de chees de milcias. A respeito do novo momento daguerra, Mbembe escreve:

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    Novos esTUdos 85 NoveMBro 2009 121

    [91] Mbembe. Necropolitics. Public Culture, vol. 15, n 1, 2003, p. 31.

    [92] Agamben, op. cit., p. 174.

    [93] New York Times, 21 abr. 2004,p. A20.

    [94] Hardt e Negri, op. cit.

    [95] Agambem, op. cit., p. 181

    A pretenso autoridade mxima ou fnal em um espao poltico no coisa simples. Na verdade, az surgir uma colcha de retalhos de direitos dominao sobrepostos e incompletos, inextricavelmente sobrepostos eintrincados, no qual dierentes instncias jurdicas de acto esto geogra

    fcamente emaranhadas e no qual abundam lealdades plurais, suseraniasassimtricas e enclaves91.

    Sob tais condies, o tipo espacial paradigmtico o campo. Segundo as ormulaes de Agamben, o campo pode ser entendido como umespao no qual a ordem normal est de acto suspensa92. Em outras palavras, o campo o espao no qual o Estado de emergncia, e portantoo Estado de exceo, se torna regra, um arranjo espacial permanente.Considere, por exemplo, os debates recentes na Suprema Corte nor

    teamericana a respeito dos detentos em Guantnamo, em que o governo, representado pelo sr. Theodore Olson, argumentou que os tribunaisnorteamericanos no tinham jurisdio sobre esses detentos por causado carter permanentemente excepcional da guerra contra o terror:

    Ministro John Paul Stevens: Sr. Olson, supondo que a guerra tivesse acabado, voc poderia continuar a manter essas pessoas detidas em Guantnamo, ehaveria, ento, jurisdio?

    Sr. Theodore Olson: Ns acreditamos que no haveria jurisdio.

    Ministro John Paul Stevens: Ento a existncia da guerra , de ato, irrelevante para o sistema legal, no ?93.

    Se o imprio entendido como uma ronteira sem m de just bellum,guerra em nome da justia94, ento o campo exatamente o espao noqual a violncia constantemente empregada em nome da paz e daordem. Nesse sentido, o campo pode ser muitos espaos dierentes: apriso, a priso de guerra, o abrigo para semteto, o campo de trabalho,o campo de concentrao, o campo de reugiados.

    O campo um espao pscidade. Ele coloca em questo a relaonormativa entre as cidades e a cidadania. Como arma Agamben, ocampo joga uma luz sinistra sobre os modelos a partir dos quais ascincias sociais, a sociologia, os estudos urbansticos e a arquiteturahoje procuram conceber e organizar o espao pblico das cidades detodo o mundo, sem nenhuma conscincia de que em seu centro repousa a mesma vida nua (mesmo que tenha sido transormada e tornada,aparentemente, mais humana) que deniu a biopoltica dos grandesEstados totalitrios do sculo XX95.

    A trindade Estado/sujeito/espao que sustenta o discurso liberal arespeito da cidade e da cidadania potencializada no campo. um espao sem lei, um sujeito que vida nua, e um Estado que combinacontrole com cuidado, vida com morte.

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    122 ModerNidade Medieval Nezar Alsayyad e Ananya Roy

    [96] Butler, J. Precarious lie: the powers o mourning and violence. NovaYork: Verso, 2004, p. 98.

    [97] Ibidem, p. 67.

    [98] importante notar que os casos de Guantanamo, que percorremos meandros da Suprema Corte norteamericana, esto baseados no habeas corpus. Agamben interpreta essehabeas corpus como o primeio registroda vida nua como o novo sujeito poltico []. Nada permite que se mea adierena entre a liberdade antiga e amoderna e a liberdade que est na baseda democracia moderna do que essarmula. No o homem livre e seusestatutos e prerrogativas, nem mesmo

    simplesmentehomo, mas ocorpusque o novo sujeito da poltica[]. Voc terum corpo para mostrar (Agamben,op. cit., pp. 123124).

    [99] Mbembe, op. cit.

    [100] Malkki, L. News rom nowhere. Ethnography, vol. 3, n 3,2002, p. 353.

    [101] Agamben, op. cit., p. 174.

    O campo o espao da exceo porque, no momento da emergncia, ele designado como um espao extraterritorial. Aqui, a soberania excede as ronteiras nacionais, estendendo a suspenso da lei acorpos que esto ora do corpo poltico. Mas a extraterritorialidade

    mais do que isso. Como cou evidente em Guantnamo, tratase deuma zona sem lei, criada por meio do carter duplo da soberania: osEstados Unidos alegam que Cuba detm a soberania nal mas queos Estados Unidos tm jurisdio e controle totais. Guantnamo ,assim, um espao sobredeterminado, que pode ser entendido segundo o conceito orwelliano de duplopensar: aceitar duas crenas contraditrias simultaneamente. Os Estados Unidos so o poder soberano em Guantnamo, e, desde 1991, podem ali manter estrangeiros que,por estarem detidos ora do territrio americano, no so protegidos

    pela constituio norteamericana.Na zona sem lei do campo, os sujeitos so tratados como vida

    nua. Em seu envolvimento recente com a obra de Agamben, Butler96repara que o campo no simplesmente um Estado de exceo, mastambm um estado de dessubjetivao. aqui que o prprio statusontolgico dos sujeitos suspenso quando o estado de emergncia invocado97. Essa a vida nua no viver como os animais polticos devem viver, em comunidade e unidos por leis, mas tampoucoa morte, e, assim, estar ora da condio constitutiva do Estado de

    direito98. nesse sentido que o campo excede o biopoder, pois o sujeito biopoltico se torna vida nua e a soberania se torna o que Mbembechama de necropoltica, a demarcao daqueles sujeitos cuja vida emorte no tm importncia99.

    Mas o exerccio da soberania no campo no simplesmente a suspenso do Estado de direito. O campo o espao paradoxal onde a lei suspensa pelo guardio da lei e em nome da paz, da ordem e do bemmaior. O campo tambm, nas palavras de Malkki, um instrumentode cuidado e controle100, no qual o primeiro depende da compaixo

    excepcional do soberano: as atrocidades so cometidas ou no dependendo no da lei, mas da civilidade e do senso tico da polcia que age,temporariamente, como soberano101. Lembramse de Abu Ghraib?

    H muitas analogias possveis entre o espao biopoltico do campo e a cidade medieval. A construo de espaos sem lei um dessespontos de convergncia. Como ca claro na atual guerra no Iraque, osaparatos de segurana, assim como os militares, so crescentemente privados, com mercenrios assumindo a responsabilidade pelaproteo de uncionrios do governo norteamericano, pelos inter

    rogatrios de prisioneiros e pela administrao da inraestrutura dopetrleo. Esses mercenrios no esto sujeitos a nenhuma jurisdiolegal, pois operam a partir de um status excepcional. Isso lembra muitoo papel desempenhado por grupos de mercenrios reqentemente

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    [102] AlSayyad , Cities and Caliphs,op. cit.

    [103] Agier, M. Between war and thecity. Ethnography, vol. 3, n 3, 2002,p. 332.

    [104] Malkki, op. cit.

    [105] Hourani, A.The Islamic city. Philadelphia, PA: University o Pennsylvania Press, 1970.

    [106] Gottriech, E. On the origins othe mellah o Marrakesh.International Journal o Middle East Studies, vol.

    35, n 2, 2003, pp. 287305.

    ormados segundo critrios tnicos ou raciais para ajudar a pacicare controlar as cidades islmicas no incio da Idade Mdia, tanto nascidadesortaleza, como nos centros de poder dos calias ou em cidades ocupadas102. Tais tendncias exigem, mais uma vez, que o poder

    territorializado seja entendido para alm dos conceitos de segregao,cercamento e quarentena, e que seja entendido tambm por meio doconceito de excepcionalidade.

    Porm, tais discusses a respeito do campo no exigem um retorno cidade medieval. Foucault e Agamben bastam como ontes de conceitos analticos. O que a analogia com a cidade medieval acrescenta,ento, anlise do campo? Aqui, vale a pena voltarmos a um debatebastante especco a respeito de um tipo de campo: o campo de reugiados. Recentemente, Agier levantou a possibilidade da cidadecampo.

    Ele arma que, enquanto o campo de reugiados uma verso deeituosa da orma urbana, como eram os distritos do apartheid, possvelperceber algumas dimenses cruciais da cidade no campo: no sentidorelacional de urbs e no sentido poltico da plis. Em particular, ele estinteressado nas ormas pelas quais tabuleiros de xadrez tnicos somontados nos campos103. Sua linguagem, segundo a qual no campo asnacionalidades se tornam etnicidades, ecoa no apenas medievalistascomo Pirenne, mas tambm a escola de sociologia urbana de Chicago: a cidade como um mosaico de etnonacionalidades. Contra Agier,

    Malkki arma que a questo da cidadania urbana no pode ser to acilmente levantada em relao ao campo de reugiados. Concordandocom Agamben, ela v o campo como o espao da vida nua, um espaobiopoltico absoluto, que contrasta radicalmente com o cosmopolitismo da cidade. Em seu quadro terico, o campo a nocidade104.

    O debate a respeito da relao entre cidade e campo traz menteo bairro tnico do urbanismo medieval tanto no Oriente como noOcidente. Na cidade rabeislmica da Idade Mdia, grupos tnicosou religiosos eram connados a reas e bairros especcos. A essas po

    pulaes eram reqentemente atribudas unes ou prosses urbanas especcas105. O movimento de entrada e sada do bairro tnicoera por vezes controlado em pocas de crise ou quando se instalavaregimes opressores. Os bairros judeus de muitas das cidades medievais da Europa e do Oriente Mdio parecem ter surgido em respostaao desejo de excluir os judeus de algumas partes a vida urbana e dastrocas econmicas, mas ao mesmo tempo lhes permitia certa fexibilidade econmica106. Os bairros tnicos, em outras palavras, produziamcidados de segunda classe.

    O problema da segregao na cidade rabeislmica medieval exige um pouco mais de refexo. A maioria das cidades do mundo rabeda Idade Mdia exibiam alto grau de segregao tnica, racial, religiosaou tribal. Seja em Tnis no sculo XVI, seja em Aleppo no sculo XVII,

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    [107] Raymond, A. Grandes villes arabes lpoque Ottomane. Paris: Sindbad, 1985.

    [108] Ibidem, p. 22.

    [109] Ibidem, p. 221.

    [110] Appadurai, A. Sovereignt ywithout territoriality: notes or apostnational geography. In: Low,S. e LawrenceZuniga, D. (eds.). Theanthropology o space and place. Cambridge: Blackwell, 2003.

    no se pode negar a importncia do bairro tnico107. Mas seria umequvoco chamar todos esses bairros de guetos, como o gueto originalde Veneza ou tomando o signicado moderno da palavra. Realmente,pelo menos no Oriente Mdio, alguns grupos tnicos e religiosos no

    eram obrigados a viver nesses bairros. Foi apenas quando o ImprioOtomano assumiu o controle da maioria das cidades do mundo rabeque essa segregao passou a ser induzida pelo Estado. A aplicaodesse novo padro no surgiu como resposta ao medo da violnciatnica, pois tais comunidades de minorias mantinham boas relaessociais com outros grupos. De ato, parece que essas comunidadessegregadas eram, assim como o campo de reugiados moderno, uminstrumento do aparato estatal para gerir e controlar populaes tnicas108. Ali, as minorias tnicas encontravam um grau de autonomia

    religiosa e social de que de outra orma no gozariam109.Se o bairro tnico pode ser considerado uma orma de vida, com as

    invenes cotidianas e o bricolage de novas identidades evidentesna cidadecampo de Agier, tambm pode ser considerado um mecanismo de controle. Assim como o campo de hoje, o bairro tnico dacidade medieval era um Estado de exceo, no qual a cidadania urbanaera suspensa por meio do carter fexvel do poder soberano. O bairrotnico como espao de exceo no estava ora da ordem jurdica dacidade; no era a ausncia de lei que precede a lei. Ao contrrio, por

    meio de seu status excepcional, era constitutivo do prprio conceito decidadania urbana assim como, nas cidadesestado da Grcia e deRoma, a noo de homem livre como cidado pleno era constitudapela excluso das mulheres e dos escravos. De orma semelhante, ocampo constitutivo da cidade de hoje.

    Vale levar essa idia um passo adiante. Podese dizer que o campoconstitui a cidade na orma de um exterior constitutivo. Apesar deAgier e Malkki discordarem seriamente a respeito de se o campo dereugiados pode se transormar em cidade, ambos concebem a cidade

    como uma norma oposta ao campo. Para Agier, a cidade pode ser entendida, segundo a concepo da escola de Chicago, como uma ecologia de etnicidades, ou, segundo o mapeamento de Certau, uma ecologia de prticas cotidianas que desestabilizam as estruturas de poder.Para Malkki, a cidade um espao cosmopolita, um ndulo da ordempsnacional de Appadurai110, que contrasta com o etnonacionalismo puricado e enrijecido do campo. Tanto Agier como Malkki, portanto,propem uma viso da cidade que lembra a armao de Pirenne: o arda cidade liberta. O bairro tnico medieval indica que a cidade jamais

    oi livre ou, melhor, que suas liberdades resultam da limitao erestrio do Outro. Nesse sentido, tais espaos de exceo so um interiorconstitutivo das cidades. So as ormas de exepcionalismo queconstituem as estruturas da normalidade. No repousam na perieria

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    [111] BuckMorss, S. The dialecticso seeing: Walter Benjamin and the ar

    cades project. Cambridge, MA: MITPress, 1991.

    extraterritorial do espao da cidade; so as prprias ormas de estado,subjetividade e espao que produzem a cidade. Para alar na linguagemde nossos tempos, a cidade e o campo esto inevitavelmente ligadosporque nossas liberdades pressupem a alta de liberdade deles; por

    que aps certo tempo impossvel policiar as ronteiras entre a exceo e a generalizao, entre o etnonacionalismo e o cosmopolitismo,entre o soldado em Abu Ghraib e o agente penitencirio em WestVirginia, entre a atrocidade e a necessidade.

    modeRnIdAde medIevAl: ComenTRIo fInAl

    Existem muitas erramentas conceituais dierentes para a discusso a respeito das cidades contemporneas e das ormas de cidadania

    urbana. Nossos crticos talvez perguntem: por que no simplesmentealar das excluses e segmentaes das cidades contemporneas? Anal, no se trata de mapear os contornos da cidade neoliberal e, portanto, isso no exige uma explicao da produo neoliberal do espao?Sim, responderamos, mas esses projetos j oram perseguidos porvrios e valorosos estudiosos. O que persiste na anlise do neoliberalismo, na linguagem que ns mesmos usamos em outras publicaes, um senso de novidade: um novo modo de produo, uma nova produo do espao, novas ormas de disciplina e controle. Nosso uso do

    medieval tem como objetivo colocar em questo essa teleologia, amarcha inevitvel atravs de ases histricas e modos de produo eregulao social. Nosso quadro terico talvez cause desconorto aosmaterialistas histricos; anal, no estamos separando o medievaldo modo de produo eudal? No seria uma trivializao da produo histrica do espao? Em resposta a tais receios, gostaramos deazer as observaes a seguir.

    Em primeiro lugar, o uso do medieval como categoria analticapossibilita uma quebra em relao s compreenses teleolgicas da

    modernidade. Se o eudalismo um sistema de relaes polticas,econmicas e sociais, e se o urbanismo medieval um sistema deordenao do espao, ento a expresso aparentemente contraditriamodernidade medieval indica como o medieval se esconde no corao do moderno, como o eudalismo existe no interior do capitalismo.Essa a repetio inernal que permite a Benjamin aniquilar o mitodo progresso histrico111. Tais crticas teleologia tambm oram areconsiderao da prpria categoria moderno. Os exemplos de cidadania que discutimos indicam como a cidade moderna unciona

    segundo uma ordenao medieval do espao. Tambm indicam queessas ormaes espaciais de tipo medieval expressam identidades easpiraes modernas, tais como o direito produo do espao, ou apromessa de democracia e prosperidade econmica. Como notaram

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    [112] Comaro e Comaro, op. cit.,p. 313.

    [113] Watts, M. Islamic modernities? Citizenship, civil society andIslamism in a Nigerian city. PublicCulture, vol. 8, n 2, 1996, pp. 25190.

    [114] Stein, R. Medieval, modern,postmodern: medieval studies in apostmodern perspective, .

    Comaro e Comaro a respeito de regimes de dominao religiosa:eles incorporam uma orma potente de compresso de tempo e espao, a habilidade de cumprir suas promessas aqui e agora [] comoum legtimo Deus global112. O oximoro modernidade medieval

    revela, assim, os paradoxos inerentes do moderno: eudos de democracia, o imediatismo do undamentalismo religioso, a simultaneidade de guerra e humanitarismo. Assim como o termo modernidadesislmicas113, ele ultrapassa a diversidade geopoltica que conceitostais como modernidade alternativa ou mltiplas implicam. Nestecaso, a modernidade no assume simplesmente ormas dierentes emdierentes lugares; ela um projeto reconhecidamente raturado, dividido e contraditrio.

    Em segundo lugar, essa complicao do conceito de moderno

    uma prestao de contas com a histria das origens, com a narrativade uma modernidade original gestada no local originrio da cidade.Aqui vale a pena citar um trecho longo de um texto de Robert Stein arespeito da uno crtica dos estudos medievais:

    Os humanistas do sculo XV passaram a reerirse sua prpria pocacomo Renascimento e, como conseqncia, inventaram a Idade Mdia parademarcar o perodo entre eles mesmos e a Antigidade clssica que pretendiam imitar e da qual desejavam se apropriar. O termo renascimento

    assim um ponto de origem: surge daquele momento defnitivamente modernoda autoconscincia histrica quando a Europa ocidental comea a narrarsua prpria histria. Esse momento traz luz uma noo de modernidade e,com ela, simultaneamente, uma narrativa de sua histria. Sem modernidade,no h historicidade. Ou, para colocar de outra orma, a prpria Histria desde o comeo sempre e apenas a narrativa do surgimento da modernidade.A Idade Mdia, localizada entre dois momentos da narrativa do moderno,tem uma uno meramente proteladora [] a Idade Mdia a parte dahistria que no precisa ser contada []. No quero dizer com isso que a

    periodizao histrica seja arbitrria no sentido de ser vazia de signifcado;ao contrrio, quero enatizar que o sentido produzido, e no dado, e a periodizao um determinante estrutural precisamente porque ela tambm produzida e por meio de uma narrativa []. Um limite que demarca umperodo um lugar onde o sentido produzido114.

    Uma vez que a teoria urbana se insere nesse limite de perodo,tornase possvel levantar questes a respeito do passado e do uturo, mas sem pressupostos de progresso ou regresso. Se a noo de

    modernidade medieval coloca a repetio inernal de Benjaminno lugar do mito do progresso histrico, ela tambm sugere a dinmica antecipatria da cidade. Como podemos tornar mais complexa anoo de tempo linear que est ligada antecipao? Como podemos

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    [115] Ferguson, J. Expectations o modernity. Berkeley, CA: University oCaliornia Press, 1999; Mbembe eRoitman, op. cit.

    [116] Lilley, K. D. Mapping cosmopolis: moral topographies o the medieval city.Environment and Planning

    D, n 22, 2004, pp. 68198.

    comear a alar das ormas de modernidade nas quais o uturo piordo que o passado115, quando em muitas regies do mundo a idia deprogresso se esvaziou? certo que uma promessa e uma antecipaoainda persistem, mas no necessariamente a de progresso, de um u

    turo melhor do que o passado. Ao nos voltarmos para o urbanismomedieval, procuramos sugerir que as ormas modernas de cidadanianacional podem estar dando lugar territorializao ractal e estilhaada da cidadania tpica dos enclaves medievais. Estaria esse medievalismo, por sua vez, dando lugar ao imprio? No nossa intenoconstruir uma teleologia reversa, em que uma ase histrica d lugar aoutra. Antes, essas modalidades de tempo e espao o nacionalismomoderno, os enclaves medievais e a brutalidade imperial coexistem de orma nolinear, tornando complexa a questo de progresso e

    atraso, de moderno e nomoderno. No entanto, permanece o desao:se ssemos antecipar, o que anteciparamos? Alguns historiadoresjulgam que esta no apenas a era do imprio, mas tratase do lentoesgotamento do imprio, estranhamente semelhante aos espetculosde extermnio, aos excessos ritualsticos e s ronteiras violentas deum Imprio Romano moribundo. Se essa comparao convincente,o que se pode antecipar a respeito do m do imprio? Seria o renascimento das cidades e da cidadania na Idade Mdia que se seguiu morte de Roma? Ou seria um retorno s alturas do imprio, s cidades

    platnicas e aristotlicas dos homens livres? Em ambos os cenrios,as liberdades da cidadania urbana esto emaranhadas com as noliberdades da escravido, da servido, da hierarquia e da excluso. Talveza democracia tenha sido sempre ou imperial ou medieval, orjada naglria da Roma imperial ou no pragmatismo das sociedades eudais.

    Em terceiro lugar, a reerncia explcita cidade medieval permiteum conronto com a alteridade. Em diversas disciplinas, o medievalcontinua a ser tratado como o outro116. o campo dos medievalistas,e no dos tericos crticos. o campo dos historiadores e no dos ge

    graos ou urbanistas. No apenas uma questo de ronteiras disciplinares e especializaes. tambm a persistncia de dois dualismosde tempo e espao complicadores: a separao de histria e geograa;e uma alteridade de tempo que tambm alteridade do espao. O medieval muitas vezes visto como prmoderno, anacrnico, como aIdade das Trevas. Nosso termo modernidade medieval , nesse sentido, uma contribuio modesta aos diversos esoros que indicam ocarter moderno da cidade medieval e que questiona inevitavelmentea superioridade de nossa modernidade.

    Mas o termo medieval tambm est sendo ressuscitado para indicar o m do moderno e o retorno do Outro, do brbaro. Em umaera de imprio, a alteridade temporal do medieval est sendo reescritana orma de uma geograa da alteridade. Esse o uso de medieval

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    [117] Kobrin, S. Back to the uture:neomedievalism and the postmodern digital world economy. In:Prakash, A. e Hart, J. (eds.). Globalization and governance. Nova York:

    Routledge, 1999, p. 166.

    [118] Washington Post, 16 maio 2004,p. B01.

    na literatura de relaes internacionais, por aqueles que lamentam om da ordem mundial moderna, como Kobrin117, preocupados com oato de que a era moderna talvez seja uma janela prestes a echar, deque o uturo neomedieval. Assim, Robin Wright, correspondente

    internacional do Washington Post, pergunta: A modernidade ser pegade surpresa pelo Iraque?118. Para ela, o momento atual a ase nalda modernizao, que est levando mais tempo para se completar doque o esperado, sendo o Oriente Mdio o obstculo nal que a modernidade precisa enrentar, o ltimo espao que resistiu onda deempoderamento e modernidade que varreu o restante do mundo. Seudiscurso revela como o processo civilizatrio enxerga seu inimigo nono passado histrico, mas nos espaos de exceo identicados com opassado selvagem, como ca claro nas expresses brbaros rabes e

    velha Europa, correntes entre os norteamericanos. Nesse sentido,o moderno sempre medieval, sempre prmoderno. Nesse sentido, otempo sempre articulado no espao.

    Um comentrio nal. Se este artigo uma tentativa de complicar ateleologia do moderno, tambm uma tentativa de complicar o conceito normativo de cidade. O medieval se esconde no corao do moderno, assim como o campo se esconde no corao da cidade. Apesarde termos denido trs categorias, elas no so excludentes; elas sesobrepem por exemplo, o enclave cercado muitas vezes produ

    zido por meio de regulamentaes inormais. Todas as trs ormaesespaciais so expresses do que pode ser considerado a modernidadedo enclave. Porm, mais importante do que isso: so todas Estado deexceo. Se a noo de campo de Agamben no pode ser consideradauma noo espacial, mas um diagrama do poder (como o panpticopara Foucault), ento os diversos espaos discutidos neste artigo somarcados por essa lgica da soberania. E essa lgica medieval. Elanos ora a pensar em um urbanismo pscidade, no qual o paradigmano a cidade nem mesmo a cidade neoliberal excludente , mas

    o Estado de exceo.

    Nezar Alsayyad e Ananya Royso proessores na Universidade da Calirnia.

    Recebido para publicaoem 30 de julho de 2009.

    novoS eSTUdoS

    ceBraP

    85, novembro 2009pp. 105128