modernidade e reflexividade-considerações à luz do pensamento de anthony giddens

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4 Modernidade e reflexividade: considerações à luz do pensamento de Anthony Giddens GEILSON FERNANDES DE OLIVEIRA * MARCÍLIA LUZIA COSTA MENDES ** Resumo: O presente ensaio teórico tem como objetivo discutir o conceito de reflexividade na obra do sociólogo inglês Anthony Giddens. Para tanto, por meio de uma revisão de literatura, tomamos como ponto de análise as condições de possibilidade desta ação reflexiva indicada pelo autor, considerando-se as suas perspectivas no que se refere à concepção de uma radicalização da modernidade, opondo-se ao sentido de uma pós-modernidade, analisando assim os seus reflexos, entre os quais podem ser explicitados o sentido de desencaixe ou deslocamento. Pelo viés da modernidade reflexiva, apontada por Giddens, identifica-se uma teoria da ação social na qual o papel do indivíduo não é visto como mero apêndice das estruturas que compõem a sociedade, mas compatível com a reflexão e recomposição das subjetividades e dos sujeitos. Palavras-chave: Reflexividade; Modernidade; Ação reflexiva. Abstract: This essay aims to discuss the concept of reflexivity in the work of the English sociologist Anthony Giddens. To this end, through a literature review, the starting point for analyzing the conditions of possibility of this reflexive action indicated by the author, considering their perspectives regarding the design of a radicalization of modernity, opposing direction a post-modernity, thus analyzing their reflections, among which may be explained the sense of disengagement or dislocation. By reflexive modernity, Giddens pointed by bias, we identify a theory of action in which the role of the individual is not seen as a mere appendage of the structures, but compatible with reflection and restoration of subjectivities and subjects. Key words: Reflexivity; Modernity; Reflexive Action. * GEILSON FERNANDES DE OLIVEIRA é Mestre em Ciências Sociais e Humanas pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. ** MARCÍLIA LUZIA GOMES DA COSTA MENDES é Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Docente do Departamento de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN.

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    Modernidade e reflexividade: consideraes luz do pensamento de Anthony Giddens

    GEILSON FERNANDES DE OLIVEIRA*

    MARCLIA LUZIA COSTA MENDES**

    Resumo: O presente ensaio terico tem como objetivo discutir o conceito de reflexividade na obra do socilogo ingls Anthony Giddens. Para tanto, por meio de uma reviso de literatura, tomamos como ponto de anlise as condies de possibilidade desta ao reflexiva indicada pelo autor, considerando-se as suas perspectivas no que se refere concepo de uma radicalizao da modernidade, opondo-se ao sentido de uma ps-modernidade, analisando assim os seus reflexos, entre os quais podem ser explicitados o sentido de desencaixe ou deslocamento. Pelo vis da modernidade reflexiva, apontada por Giddens, identifica-se uma teoria da ao social na qual o papel do indivduo no visto como mero apndice das estruturas que compem a sociedade, mas compatvel com a reflexo e recomposio das subjetividades e dos sujeitos.

    Palavras-chave: Reflexividade; Modernidade; Ao reflexiva.

    Abstract: This essay aims to discuss the concept of reflexivity in the work of the English sociologist Anthony Giddens. To this end, through a literature review, the starting point for analyzing the conditions of possibility of this reflexive action indicated by the author, considering their perspectives regarding the design of a radicalization of modernity, opposing direction a post-modernity, thus analyzing their reflections, among which may be explained the sense of disengagement or dislocation. By reflexive modernity, Giddens pointed by bias, we identify a theory of action in which the role of the individual is not seen as a mere appendage of the structures, but compatible with reflection and restoration of subjectivities and subjects.

    Key words: Reflexivity; Modernity; Reflexive Action.

    * GEILSON FERNANDES DE OLIVEIRA Mestre em Cincias Sociais e Humanas pelo Programa de Ps-Graduao Interdisciplinar da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

    ** MARCLIA LUZIA GOMES DA COSTA MENDES Doutora em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Docente do Departamento de Comunicao Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN.

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    Introduo

    Na contemporaneidade, definies das mais distintas tem buscado enquadrar o momento corrente no qual estamos imersos. Modernidade, sociedade ps-industrial, ps-modernidade, seria algum desses o melhor termo para caracterizar a atualidade, ou nenhum deles? E quais as caractersticas que poderamos destacar como expresses deste momento histrico?

    No presente ensaio, so realizadas discusses sobre esta problemtica, em especfico, sobre a noo de reflexidade apresentada nas obras do socilogo ingls Anthony Giddens, considerando as condies de possibilidades para que possamos pensar nesta ao reflexiva, se moderna, ps-moderna, etc. Para tanto, so analisados aspectos referentes ao que Giddens denomina como radicalizao da modernidade ou alta modernidade, termos utilizados para denominar o perodo contemporneo, em contraposio aos expressos no pargrafo anterior.

    Assim, o texto dividido em duas partes. Na primeira, discutimos sobre as noes de modernidade, considerando a distino desta com a tradio, bem como levando em conta os seus reflexos ou efeitos na vida social e humana. neste ponto que so analisadas questes concernentes a ideia de reflexidade, postulada por Giddens como sendo uma conversa do sujeito consigo mesmo, dando-lhe, por conseguinte as possibilidades de autoconstruo em relao aos conceitos de sujeito e subjetividades.

    Em um segundo momento, buscando caracterizar o contemporneo para assim podermos entender a ao reflexiva, temos uma breve discusso sobre os sentidos da concepo de alta modernidade ou de sua radicalizao,

    colocando em questo se estaramos inseridos em algo posterior modernidade, ou em seu momento de transio.

    Modernidade e reflexividade

    A concepo de modernidade vem sendo debatida j h bastante tempo. Como eixo principal para estas discusses, explicita-se que a partir do seu entendimento, poderemos por consequncia compreender as sociedades contemporneas das quais somos parte. O socilogo ingls Anthony Giddens um dos autores que tem se dedicado ao estudo da modernidade, analisando tanto o seu sentido como os seus reflexos nas mais diversas esferas da vida e contextos, passando desde a anlise de classes, dos nacionalismos, questes referentes sexualidade at as identidades pessoais.

    Como definio para este perodo histrico, Giddens (1991, p. 11) afirma que a modernidade trata-se de uma organizao social que teve sua emergncia na Europa a partir do sculo XVII, a qual tornou-se ulteriormente mais ou menos mundial em sua influncia, proporcionando outros costumes e estilos de vida.

    Com a modernidade, pressuposto o sentido de deslocamento de um perodo histrico para outro, isto , da tradio das sociedades medievais ou pr-modernas para a modernidade. Tais mudanas, vlido reforar, no ocorreram de uma hora para outra, mas a partir de condies de possibilidades histricas e sociais dadas, a partir das quais fez emergir a percepo de modernidade.

    A anlise destas mudanas nos indica a partir da leitura de Giddens que os modos de vida produzidos pela modernidade desvencilharam-se de modo incisivo dos tipos tradicionais da

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    ordem social de forma at ento ainda no vista. Segundo o autor, tais alteraes foram mais profundas do que a maioria das formas de mudana que caracterizaram a passagem dos perodos precedentes. Tanto no que se refere a extensionalidade como a intensionalidade, as transformaes foram efetivas (1991, p. 14). No que se refere ao plano extensional, as alteraes estabeleceram para aquele momento novas formas de interconexo do meio social entre todas as partes do globo terrestre. J em termos intensionais, houve mudanas no s nos nveis gerais, mas tambm nas mais ntimas esferas pessoais da nossa existncia.

    A separao entre tempo e espao outra mudana advinda com a modernidade, que insere as relaes e aes sociais em intervalos de espao e tempo distintos, incluindo a no s as esferas globais, mas tambm as particulares, gerando um sentido de deslocamento, ou como coloca o autor, de desencaixe. O advento dos meios de comunicao, que emergem neste cenrio histrico, outro exemplo do estabelecimento de novas relaes que modificaram as noes de tempo e espao, como apontado por Giddens.

    O jornal e a sequncia de programas de televiso durante o dia so os exemplos concretos mais bvios deste fenmeno, mas ele genrico organizao tempo-espao da modernidade. Estamos todos familiarizados com eventos, com aes, e com a aparncia visvel de cenrios fsicos a milhares de quilmetros de onde vivemos. O advento da mdia eletrnica sem dvida acentuou estes aspectos de deslocamento, na medida em que enfatiza a presena to instantaneamente e a tanta distncia (GIDDENS, 1991, p. 154-155).

    O deslocamento ou desencaixe pode ser entendido pela ideia de separao da interao das particularidades do lugar em que ocorrem. A interao efetivada por telefone ou pela internet so exemplos deste tipo de interao em que h a diferena entre o tempo e o lugar, podendo ocasionar o sentido de deslocamento, seja com relao ao local, ao tempo, ou at de si mesmo. Alm deste, Giddens (1991, 1993) apresenta outros mecanismos de desencaixe, entre os quais destacam-se as fichas simblicas e os sistemas peritos (ou sistemas especializados), que juntos, compem os sistemas abstratos

    As fichas simblicas so os meios de intercmbio que podem ser circulados sem ter em vista as caractersticas especficas dos indivduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular (GIDDENS, 1991, p. 32). Tipos diversos de fichas simblicas podem ser distinguidas, principalmente aquelas que versam sobre os meios de legitimao poltica, no entanto, o dinheiro um dos exemplos mais esclarecedores desse tipo de ficha.

    J os sistemas peritos, referem-se aos sistemas de excelncia tcnica ou competncia profissional que organizam as reas sociais nas quais os indivduos vivem. Estes oferecem considervel grau de confiana aos agentes sociais, que pode ser justificada principalmente pelo alto grau de segurana e conforto que ofertam. Por exemplo, graas a competncias desses sistemas, existem inmeros remdios para tratamentos que salvam vidas, o nmero de acidentes areos pequeno, andamos em carros sem preocupaes quanto s possibilidades de risco, ou seja, graas relao de confiana promovida por estes sistemas peritos, os quais

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    proporcionam a superao dos desconfortos.

    Estes sistemas, assim como as fichas simblicas so mecanismos de desencaixe por removerem as relaes sociais das imediaes de seu contexto, promovendo o sentido de deslocamento ou distanciamento entre o tempo e o espao. Ressalta-se que alguns mecanismos de desencaixe, ao invs de induzirem a insegurana, implicam na maioria das vezes a atitude de confiana. tomando por base esta constatao que Giddens afirma que os sistemas abstratos propiciaram uma boa dose de segurana na vida cotidiana que estava ausente nas ordens pr-modernas (GIDDENS, 1991, p. 125).

    Pode-se dizer que tais mecanismos tm como fator negativo o fato de tirar as relaes sociais ou as trocas e interaes de seu tempo e espao particulares, no entanto, Giddens (1991, p. 155) assegura que ao mesmo tempo em que isto pode ocorrer, outras novas oportunidades para a reinsero ao tempo e espao so apresentadas. O desenvolvimento dos transportes e o auxlio propiciado na dissoluo das distncias entre localidades um exemplo de mecanismo de reencaixe, pois, facilita a percepo de reinsero em contraposio a um deslocamento espao-temporal.

    Apesar de reconhecer a ocorrncia de variados estudos sobre a modernidade, Giddens enfatiza que ainda h a necessidade de uma reflexo mais apurada sobre ela, baseando-se na abrangncia insuficiente dos estudos realizados e, sobretudo, pelo fato das prprias cincias sociais no terem refletido sobre ela de forma suficiente. Entre os fatores possveis para este quadro, pode ser identificado que apesar de ser um fenmeno especfico, a modernidade carrega em si uma gama

    complexa e variada de relaes, as quais ainda no foram debatidas de forma ampla, seja devido s diversas nuances que comporta, seja ao seu movimento intenso de novidades e mudanas.

    O movimento uma das caractersticas sumrias da modernidade, defendem Bauman (1998) e Giddens (1991). Diferentemente do perodo da tradio, quando havia segundo os autores certa permanncia e solidez nos acontecimentos e movimentaes do social, na modernidade, h um movimento frentico de mudanas, impulsionadas desde o advento da Revoluo Industrial, no sculo XVIII e com o desenvolvimento dos meios tcnicos de comunicao, que tornam ainda mais rpidas e intensas as relaes sociais e os seus movimentos. Com efeito, tais questes so concernentes a todas as instncias da vida moderna, principalmente com relao aos indivduos que a compem, isto , aos sujeitos, bem como aos seus modos de ao e subjetividades. Conforme Bauman,

    Em outras palavras, a modernidade a impossibilidade de permanecer fixo. Ser moderno significa estar em movimento. No se resolve necessariamente estar em movimento como no se resolve ser moderno. -se colocado em movimento ao se ser lanado na espcie de mundo dilacerado entre a beleza da viso e a feiura da realidade realidade que se enfeitou pela beleza da viso. Nesse mundo, todos os habitantes so nmades, mas nmades que perambulam a fim de se fixar. Alm da curva existe, deve existir, tem de existir uma terra hospitaleira em que se fixar, mas depois de cada curva surgem novas curvas, com novas frustraes e novas esperanas ainda no destroadas (BAUMAN, 1998, p. 92).

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    Neste movimento de alta velocidade e de grande complexidade, Giddens (1991) explicita uma atitude de pensamento que pe em questo as relaes entre as estruturas da modernidade e os indivduos. De acordo com ele, ao passo em que h uma distino entre os antigos referenciais vistos como slidos e estveis em relao aos atuais, nos quais a atividade social comumente desencaixada dos contextos de copresena, torna-se possvel a liberdade de restries anteriores referentes s prticas e hbitos dos sujeitos. Com isto, emerge a noo de reflexividade.

    A concepo de reflexividade ou de um sujeito reflexivo compreendido pela premissa de que h por parte dos indivduos um autoexame das suas prprias aes e atravs dele a possibilidade de reformulao das mais diversas prticas sociais e do prprio sujeito, tendo em vista a percepo de acesso ao pensamento e s informaes, formuladas e reformuladas continuamente durante toda a existncia do indivduo.

    enfatizado por Giddens que a reflexividade no algo inerente somente modernidade, de modo que sua presena pode ser observada nas sociedades pr-modernas, no entanto, est [...] limitada reinterpretao e esclarecimento da tradio (GIDDENS, 1991, p. 48), diferentemente do que acontece na modernidade, quando a reflexividade se estende para outros domnios, logo, assumindo um carter distinto. Afirma-se que em todas as culturas, as mudanas por meio do acesso s informaes so existentes, mas que somente nas sociedades modernas que esta reviso ou reflexo toma propores maiores, sugerindo a sua aplicao no que se refere a todos os

    aspectos da vida humana, desde a relao com os outros sujeitos at as relaes entre a interveno tecnolgica no mundo material.

    No perodo moderno, a reflexividade passa a ser inserida na prpria base de reproduo do sistema, estabelecendo o ponto de vista de que a ao e o pensamento esto refratados, de forma constante, um com o outro. Esta viso pressupe o fato de que todas as prticas sociais da vida social moderna so examinadas e reformadas constantemente, tanto por parte das instituies, como tambm dos sujeitos, que adquirem por meio deste exame das prprias aes informaes renovadas sobre as suas prticas, podendo, neste sentido, modific-las. Na ideia de reflexividade, inclui-se uma [...] reflexo sobre a natureza da prpria reflexo (GIDDENS, 1991, p. 49).

    Em uma sociedade reflexiva, so consideravelmente modificadas as relaes existentes at ento com a tradio. Conforme Giddens, estas mudanas expressivas demonstram que o mundo contemporneo superou o seu passado, isto , o ultrapassou, abandonando como consequncia os costumes, hbitos, crenas e rotinas que caracterizavam a tradio. Analisando os sentidos e reflexos da modernidade, na obra Conversas com Anthony Giddens (GIDDENS; PIERSON, 2000), os autores apontam que a reflexidade possui duas percepes: uma que bastante ampla e outra que se refere de forma mais direta moderna vida social.

    De um ponto de viso mais amplo, todo ser humano reflexivo no sentido de que pensar a respeito do que se faz parte integrante do ato de fazer, seja conscientemente ou no plano da conscincia prtica (GIDDENS; PIERSON, 2000). Ao mesmo tempo, a

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    reflexividade social considerada aquela produzida em um mundo que cada vez mais atravessado e constitudo pelos sistemas de informao, e no mais pelos modelos anteriormente preestabelecidos de conduta, portanto, da ao.

    A perspectiva de Giddens prope que ao nos afastarmos da natureza e da tradio, passamos a ter de tomar decises diversas, cada vez mais prospectivas. Neste sentido, defendido pelo autor que temos vivido em um mundo muito mais reflexivo do que aquele das nossas geraes precedentes. A modernidade, afirma, reconstruiu a tradio ao mesmo tempo em que a dissolvia.

    A tradio, pode-se afirmar, perdeu o seu lugar at ento privilegiado dando espao para a noo de reflexividade institucional, termo entendido pela explicao de que institucional por ser parte de todas as atividades sociais do momento corrente, e reflexiva por poder propiciar modificaes no sujeito, levando-se em conta a possibilidade de escolha e deciso, seja com relao ao consumo, a sexualidade, enfim, nas mais corriqueiras e diversas aes.

    Nas sociedades tradicionais, os sujeitos possuam uma dependncia das foras exteriores, explicita Giddens, o que limitava as suas possibilidades de ao e era perpetuado pela experincia entre geraes. Nestas discusses entre tradio e modernidade reflexiva, importante destacar que esta ltima um processo em andamento, e atravs dele que os sujeitos passam a poder escolher e refletir sobre as suas aes, assim como aos seus prprios destinos e escolhas, todavia, ainda convivendo com algumas das velhas tradies e os seus discursos que vo aos poucos sendo reconfiguradas de acordo com os preceitos da modernidade.

    Com o objetivo de explicitar a concepo de reflexividade com base nas ideias de Giddens, pode-se afirmar que a reflexividade est presente quando o sujeito ou um agrupamento passa a constituir conselhos comunitrios para discutir e refletir questes referentes ao seu bairro ou cidade, quando diante de situaes econmicas difceis buscam desenvolver estratgias para lidar com este quadro, ao fazer as suas prprias escolhas de forma independente conscientemente, tanto em nveis amplos, at os mais particulares, como nas escolhas sexuais e construo da identidade. Percebe-se, dessa forma, a rejeio ao ponto de vista de que o comportamento humano seria resultado somente das foras exteriores ao prprio sujeito, tidas como deterministas da ao.

    Ao contrrio, graas renovao constante das informaes apreendidas, h tambm uma reforma das prticas reflexivas, tidas como sociais. Constri-se o entendimento de que os sujeitos possuem uma histria prpria, a qual constituda pela constante ao reflexiva, autnoma e fora de vieses deterministas, podendo ser significada, resignificada e modificado por meio da reflexo durante toda a existncia do sujeito, implicando a possibilidade de mobilidade e em um sentido mais amplo, a alterao da ordem social.

    Com o alto grau de reflexividade da modernidade, h a proposta de crescente autonomia frente s expectativas do meio social. Formas e opes de levar a vida so ento libertadas da tradio e abrem-se espaos outros para explorao e experincias pessoais. No que diz respeito questo das identidades, conforme Giddens estas tambm so perpassadas pelas aes reflexivas, passando a ter um carter

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    aberto, no sendo mais uma identidade, mas autoidentidade, ou seja, maior recorrncia de reflexes sobre quem se e/ou quem se pode ou poder ser o sujeito (GIDDENS, 1993; 2002, p. 41).

    Com os momentos de reflexividade, identificados pelo autor como uma conversa consigo mesmo (GIDDENS, 1993, p. 103), as identidades so igualmente tornadas reflexivas. A proposta do terico que h uma nova identidade, ou novas identidades para o eu da modernidade, sendo esta passvel de revises e monitoramentos recorrentes realizados pelo prprio sujeito. O eu torna-se um projeto reflexivo, assim como a concepo de identidade, vista como algo autoconstruda pelos processos reflexivos individuais e coletivos.

    Mais uma vez, destaca-se que este eu reflexivo no se trata de uma entidade estabilizada e muito menos passiva ou determinada, isto , identificada somente pelas influncias sociais determinantemente externas. Em oposio, um eu que trama e desenvolve a sua autoidentidade, pautado na sua autonomia conduzida pelos processos de reflexo e pelas condies histricas e sociais dadas de que fazem parte.

    Sumariando, a reflexividade representa a possibilidade de reinvenes na modernidade, especialmente por parte dos prprios sujeitos, propondo a existncia de mltiplas formas de ser e agir, em contraposio a algumas vises unvocas e universais de uma pretensa unicidade determinista, tanto no que remete as aes dos sujeitos, quanto aos seus modos de ser.

    Considerando as movimentaes intensas e constituintes da modernidade, h alguns estudiosos que defendem a

    passagem da modernidade para algo posterior sociedade industrial, ps-moderna, hiper-moderna, etc. sobre esta questo que trataremos no tpico seguinte.

    Modernidade: j estamos em um depois?

    Desde o final do sculo XX, alguns estudiosos (LYOTARD, 1990; JAMESON, 1996; LIPOVETSKY e CHARLES, 2004, et al) tem argumentado que o mundo como o conhecemos estaria no limiar de uma nova era, a qual estaria nos levando para caminhos alm da modernidade. Tais perspectivas atravessaram a passagem do sculo XX para o XXI e, neste cenrio, uma grande diversidade de termos emergem buscando definir tanto este momento de transio quanto o que vem depois dele, pois, alguns tericos postulam que j estamos vivendo nesse novo perodo ou nova ordem social. Alguns a definem como sociedade da informao ou de consumo, enquanto outros alegam a necessidade de pensarmos no sentido de uma ruptura ou encerramento da modernidade, propondo que vivemos em tempos ps-modernos, ps-industriais e at hipermodernos.

    De acordo com Giddens (1991), o primeiro autor responsvel pela noo de ps-modernidade, foi Jean-Franois Lyotard. Mas o que seria essa ps-modernidade na viso deste ltimo autor? Segundo Giddens,

    Como ele a representa, a ps-modernidade se refere a um deslocamento das tentativas de fundamentar a epistemologia, e da f no progresso planejado humanamente. A condio da ps-modernidade caracterizada por uma evaporao da grand narrative o "enredo" dominante por meio do qual somos inseridos na histria

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    como seres tendo um passado definitivo e um futuro previzvel. A perspectiva ps-moderna v uma pluralidade de reivindicaes heterogneas de conhecimento, na qual a cincia no tem um lugar privilegiado (GIDDENS, 1991, p. 12).

    As demais denominaes tambm tm sido amplamente propagadas e defendidas, enquanto outras tm perdido seu potencial de representao. A sociedade ps-industrial apresentada por David Bell (1973), pressupe algo alm da modernidade, assim como a ps-modernidade em Lyotard (1990) e Harvey (1992). Lipovetsky e Charles (2004), afirmam que o perodo no qual vivemos j ultrapassou e muito a modernidade. Na percepo desses autores, nossa sociedade hipermoderna.

    Fredric Jameson, norte americano que tem se dedicado a construo do conceito de ps-modernidade, a define como uma revoluo, tanto cultural, quanto no modo de produo do sistema capitalista, segundo ele, agora mais focada na especializao flexvel de produo de mercadorias, alm, destacadamente, de produzir a fragmentao das grandes narrativas e dos sujeitos.

    Durante certo tempo, Bauman tambm fez uso do termo ps-moderno, no entanto, observando-se a sua obra, percebem-se algumas mudanas referentes a esta concepo, de modo que o autor passa a fazer o uso do sentido de sociedades lquidas. Tal mudana explicita um vis da falta de superao dos aspectos da modernidade. Para Bauman, a ps-modernidade passa a ser considerada como uma modernidade sem modernismos. Por sua vez, a ideia de liquidez, no estaria em oposio ao slido, mas sim na sua busca. Os efeitos da modernidade sero

    os principais pressupostos desta liquidez, na qual h preponderante incerteza, planejamentos em curto prazo, enfraquecimento das instituies da tradio, etc.

    Em Giddens, pode ser observado certo desconforto nos pontos de vista que reivindicam ou atestam o fim da modernidade, pois, apesar de admitir as alteraes e complexidades do tempo presente, o autor discorda fortemente que a modernidade tenha sido superada por algo posterior. reconhecido que alteraes decisivas tem se efetivado na sociedade e na sua complexidade de relaes, influenciando as formas de vida de homens e mulheres que tem passado cada vez mais a experimentar a ordem vigente de modos diferentes, os quais so cotidianamente renovados.

    No entanto, ao afirmarmos que estamos vivendo em algo diferente da modernidade, isto , na ps-modernidade, denota-se que caminhamos para uma outra ordem, e [...] isto significa que a trajetria do desenvolvimento social est nos tirando das instituies da modernidade rumo a um novo e diferente tipo de ordem social (GIDDENS, 1991, p. 56). No entanto, na contemporaneidade, inmeras instituies da modernidade ainda permanecem, desvalidando assim o sentido de ps-modernidade.

    Nos contornos da modernidade, so percebidas caractersticas de algo novo, mas ainda insuficientes ao ponto de podermos assegurar que a sociedade tenha superado a modernidade. Com uma viso menos radical e tomando por base as pressuposies j elencadas, Giddens sugere que ns no nos deslocamos para alm da modernidade, porm estamos vivendo precisamente atravs de uma fase de sua radicalizao (1991, p. 62). As caractersticas desta modernidade

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    radicalizada possuem maior correspondncia com o momento histrico-contemporneo, o qual at pode ser visto como de uma transio em andamento, mas no j efetivada, propondo ainda, que na era moderna, diversas modernidades so possveis de conviver.

    justamente nesta fase de radicalizao que a reflexividade ainda mais solicitada e recorrente, uma vez que a partir das relaes estabelecidas e das constantes e intensas mudanas, o sentido de si mesmo obtido por meio de uma conversa consigo tornam-se indispensveis para o desenvolvimento e constituio dos sujeitos.

    Radicalizao da modernidade e reflexividade: algumas consideraes

    Na passagem de uma de suas obras, Giddens afirma que nunca seremos capazes de nos sentirmos inteiramente seguros, seja com relao definio da era em que vivemos, s suas relaes e at com ns mesmos, porque o terreno por onde viajamos ou vivemos no mais aquele da tradio, mas outro, instvel e fadado s mudanas, como bem enfatiza, da radicalizao da modernidade, sendo esta amplamente reflexiva.

    Ao se contrapor a um sentido de algo posterior a modernidade, Giddens demonstra que isto algo polmico e necessrio de discusses, uma vez que no ocorreram ainda rupturas expressivas a tal ponto que pudessem demarcar a passagem da modernidade para algo posterior, como a ps-modernidade, postulando uma viso menos radical com relao as mudanas que so percebidas na contemporaneidade. Trata-se, segundo o autor, de um perodo de radicalizao da modernidade, no qual diversas modernidades podem conviver e

    produzir e reproduzir formas de ser e estar na sociedade, destacando-se como marca deste perodo, o potencial reflexivo dos sujeitos, visto como uma refrao da reflexo em si mesma.

    Com relao ao sentido de reflexidade, por meio de sua teoria da estruturao, Giddens argumenta sobre a necessidade das cincias sociais reverem o papel do sujeito na sociedade, considerado pelo terico no como um mero complemento dos modelos e estruturas. Por este vis concebida a perspectiva de recomposio constante das subjetividades moderno-contemporneas, corroborando para um sentido de desalienao e emancipao reflexiva dos sujeitos, atravs do estmulo a um modo de ao cada vez mais reflexivo, tpico da radicalizao da modernidade, no qual a autocrtica e autoconfrontao tornam-se recorrentes, promovendo processos mltiplos de individualizao bem como de destradicionalizao do pensamento.

    Todavia, algumas crticas so apontadas ao autor quando da ideia de reflexividade. Por exemplo, Alexander (1987) cr que houve uma subestimao das estruturas sociais concomitante a uma superestima no que se refere ao potencial reflexivo dos sujeitos. Sobre isto, Lash (1997) vai mais adiante e faz alguns questionamentos:

    Fora da esfera da produo imediata, como possvel uma me solteira, que vive em um gueto urbano, ser reflexiva? Ulrich Beck e Anthony Giddens escreveram com profundidade sobre a autoconstruo das narrativas de vida. Mas, partindo da necessidade da estrutura e da pobreza estrutural, quanta liberdade esta me do gueto possui para autoconstruir sua prpria narrativa de vida? (LASH, 1997, p. 146-147).

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    Conforme as vises de Lash (1997) e Alexander (1987), h a necessidade de revises acerca da ideia de reflexividade, no sentido de poder incorporar outras questes no to bem explicitadas por Giddens, como a referente situao econmica entre outras condies estruturais.

    A guisa de consideraes finais, vemos as crticas como fatores positivos e possuidoras de sentido, pois elas no visam desqualificar as ideias desenvolvidas por Giddens, mas estimular uma melhor formao dela, alm de ser um convite para pesquisas e ensaios posteriores, os quais podero, vlido ressaltar, trazer no consensos, mas possibilidades de problematizar ainda mais a complexidade do mundo contemporneo.

    Referncias

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    Recebido em 2015-03-16 Publicado em 2015-07-09