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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Sociologia realizada sob a orientação científica de Professor Doutor José Manuel Vieira Soares de Resende

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre em Sociologia realizada sob a orientação científica de Professor

Doutor José Manuel Vieira Soares de Resende

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AGRADECIMENTOS

Todo o trabalho que apresento como fruto da investigação que realizei não teria sido

possível sem o apoio e o auxílio de um conjunto de pessoas de importância

incomensurável e para as quais um simples mas sincero obrigada nunca chegará. Este

não foi nunca um projeto só meu, um trabalho só meu ou uma conquista só minha; foi

nossa pois sem este conjunto de pessoas não teria passado da fase inicial com mais

dúvidas e mais problemas do que respostas e certezas.

Tenho, antes de mais, de agradecer ao Frei Filipe por me ter encaminhado para o

Refeitório Rosália Rendu onde fiz a minha investigação. Sem esse auxílio tão

importante esta investigação não tinha encontrado um terreno onde se desenvolver.

De igual modo, devo o meu mais sincero agradecimento à Irmã Celeste que me acolheu

no Refeitório, explicando-me pacientemente o funcionamento do espaço e das pessoas,

facilitando o diálogo em algumas situações e demonstrando um constante interesse na

evolução do meu trabalho.

No momento de agradecer acabo por sentir que não há palavras para exprimir quão

grata estou pela disponibilidade constante, o apoio, as orientações, o auxílio em

momentos em que duvidei das minhas capacidades, a compreensão quando os prazos

falhavam ou os capítulos eram extensos demais, a força para seguir com a tese adiante,

a transmissão de conhecimentos vários…tudo…um tanto tão extenso que o Professor

José Resende me proporcionou ao orientar-me ao longo desta investigação. Muito

obrigada!

Às pessoas sem-abrigo com quem tive o prazer de conviver e que tanto me ensinaram

sobre a vida, sobre eles, sobre mim. Com quem partilhei horas e momentos de alegria

sincera. Que me contaram as suas histórias, as suas vidas e me acolheram no seu

mundo. A estas pessoas um sincero obrigada, espero que as histórias continuem…

À minha família, aos meus pais e irmãs que só não estiveram comigo junto das pessoas

sem-abrigo e a ler as mais variadas obras porque não podíamos estar todos num espaço

pequeno como o Refeitório. Eles que foram o apoio, o ouvido, o ombro amigo, o/a

sociólogo/a por associação de tanto ouvirem as mesmas ideias em repetição. Sem vocês

nunca teria chegado a Antropologia, a Sociologia, a escrever uma tese. Não sei como

agradecer, sei que só a palavra obrigada não chega, é minúscula em relação ao que são

para mim.

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As Pessoas Sem-Abrigo: Apropriações e Relações

Mariana da Silva Oliveira Dias

[RESUMO]

Para analisar a população sem-abrigo utente do Refeitório Rosália Rendu são utilizados

três eixos principais: acolher, habitar e apegar. Procura-se, partindo desses eixos

observar a relação que as pessoas sem-abrigo desenvolvem com o espaço público ao

apropriarem-se dele, moldando-o às necessidades que vão surgindo no seu dia-a-dia e

dando a notar um novo tipo de conhecimento que estes indivíduos passam a deter do

espaço público assente nas experiências diárias nesses mesmos espaços públicos.

Assim, a cidade vai acolher das mais variadas formas o cidadão que agora se encontra

em situação de sem-abrigo, sem uma casa onde pernoitar e onde realizar as tarefas que

outrora haviam sido realizadas dentro de quatro paredes. Com o efeito do tempo em

situação de sem-abrigo estes indivíduos desenvolvem um conjunto de mecanismos que

vão permitir falar de formas de habitar o espaço urbano numa tentativa de tornar

privado aquele local que é público, aprendendo como e onde se dirigir nos vários

recantos da cidade para obter uma solução para os seus problemas que podem ir da

necessidade de comer à necessidade de passar as horas que o dia contém. O terceiro

eixo vai ser utilizado para questionar as relações sociais que os indivíduos sem-abrigo

mantêm ao longo dos seus quotidianos que sendo pautados pelas ausências várias têm

também espaço para uma superação daquela que pode ser apelidada de “ausência de

afetos”. Ou seja, torna-se interessante descobrir de que modo estes indivíduos se vão

apegar e (re)ligar ao outro através da confiança depositada nesse outro, jogando aqui a

situação de sem-abrigo não só como consequência mas também como causa de um novo

tipo de relações que vão existir quando, além de se (sobre)viver na rua, também se

convive neste espaço, partilhando esta realidade.

PALAVRAS-CHAVE: Pessoas sem-abrigo, apropriações, relações sociais, quotidianos,

experiências

[ABSTRACT]

In order to analyze the homeless population of the Refeitório Rosália Rendu I will use

three main axis: to welcome, to inhabit and to relate to. With this axis I’ve tried to

perceive the relationship that the homeless people develop with the public space by the

appropriation of those spaces, by shaping them to the needs that they experience along

their everyday life and giving us the idea of a new kind of knowledge of the public

space that they have now because of those daily experiences. Thus, the city will

welcome, in many ways, the citizen that is now a homeless, without a home where to

sleep and where to do the tasks that used to be performed within the house. With the

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effect of the time that they are living as homeless, these individuals will develop a set of

mechanisms that will allow us to use the term “to inhabit” the urban space by trying to

turn a public place into a private one, learning how and where to go in the city to solve

their problems that can range from the need to eat to the need to spend the hours of a

day. The third axis will be used to question the social relationships that the homeless

people keeps through their everyday life, that despite being based on absences have also

room to overcoming the so-called “absence of affections”. In other words, it is

interesting to discover how these individuals will relate and connect to the other through

the trust on the other person, being homeless here not only a consequence but also a

cause of a new kind of relationships that will exist when besides the survival on the

street they also live together in this space, sharing this reality.

KEYWORDS: Homeless, appropriations, social relationships, everyday life,

experiences

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ÍNDICE

Introdução – As Pessoas Sem-Abrigo: Acolher, Habitar, Apegar……….9

Metodologia ...................................................................................................... 13

Observação etnográfica e Diário de Campo: registos de observações,

conversas e gestos na análise das pessoas sem-abrigo……………………...16

A Entrevista: relatos, histórias e momentos do “eu”…………………………19

Percurso metodológico: balanço e reflexão ..................................................... 23

Como pensar as Pessoas Sem-Abrigo: definições, vulnerabilidades,

experiências e problemáticas………………………………………...…... 25

As Pessoas Sem-Abrigo e o Espaço: Apropriar Habitando………..……….41

Relacionar, confiar, apegar: um olhar para o afeto nas

pessoas sem-abrigo…….…………………………………………………...46

Análise de Conteúdo

Acolher e Habitar: a Apropriação do Espaço por Parte das Pessoas Sem-Abrigo

1. Múltiplos espaços, múltiplos quotidianos………………………………..63

1.1 Albergues, casas e a rua………………………………………………...63

1.2 Caminhos do quotidiano ............................................................................. 73

1.3 O Refeitório: observação da apropriação de um espaço……………….78

Apegar: as Relações das Pessoas Sem-Abrigo

2. A Carência nos Afetos……………………………………………………83

2.1 As relações no Refeitório……………………………………………….83

2.2 As relações fora do Refeitório…………………………………………....89

Conclusões: As Pessoas Sem-Abrigo – Apropriações e Relações……….97

Referências Bibliográficas ............................................................................. 108

Anexos ............................................................................................................ 115

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Introdução – As Pessoas Sem-Abrigo: Acolher, Habitar, Apegar

Olhando a população sem-abrigo de Lisboa enquanto objeto principal deste

trabalho, podemos utilizar três principais eixos para problematizar essa realidade:

acolher, habitar e apegar.

Estes três eixos são pensados ao longo de um trabalho que, observando a

realidade de alguns utentes sem-abrigo do Refeitório Rosália Rendu, vai tentar dar conta

das dinâmicas e experiências de quem, além de não ter uma casa própria, tem também

um conjunto de outros problemas que impedem a superação da situação vulnerável em

que se encontram.

Ao encarar outros problemas que surgem na vida das pessoas que estudo há uma

tentativa de ir além do conceito oficial de pessoa sem-abrigo1 que se reduz a questões

associadas à ausência de uma casa ou, nos casos que detêm uma casa, às condições

precárias da mesma.

As pessoas sem-abrigo que procuro analisar surgem como um conjunto de

indivíduos com as mais variadas problemáticas. Das dificuldades associadas à

documentação, à procura de trabalho, passando por problemas de saúde. A ideia é

sempre olhar além da associação entre pessoa sem-abrigo e falta de casa. Se o problema

é exclusivamente de habitação a solução poderia parecer simples: basta arranjar casas

ou albergues e estes indivíduos deixam de ser sem-abrigo.

Pelo contrário, trata-se de um processo mais moroso, trata-se de um exame que

vai além do que é visível à partida. O nosso olhar deve deslocar-se ao detalhe, à história

de cada indivíduo, ao que cada um apresenta como problema, como incapacidade, como

dificuldade.

Concretizando o que foi referido, as pessoas sem-abrigo com quem falo ganham

uma certa humanização que vai além da adoção de procedimentos estandardizados,

passíveis de serem observados por exemplo nos albergues. No Refeitório e no âmbito

deste trabalho, cada utente tem espaço e forma de expor os problemas com que se

depara tentando analisar-se caso a caso, problema a problema, pessoa a pessoa, numa

1 “A pessoa em situação de sem abrigo é aquela que, independentemente da sua nacionalidade, idade,

sexo, condição socioeconómica e condição de saúde física e mental, se encontra sem teto a viver no

espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário, ou sem casa,

encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito.” (in Programa Municipal para a

Pessoa Sem-Abrigo 2016/2018)

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procura não só da solução dessas situações concretas como também da autonomia e

liberdade de escolha que cada utente passa a deter.

“É fulcral interagir com estes sujeitos, ouvir as suas palavras e aprender as suas visões

sobre si mesmos e sobre a sociedade.” (Aldeia 2011, 6)

“I: (…) eu penso que cada um tem os seus problemas, não é? (…) e alguns desabafam

connosco outros nem por isso, guardam para eles, têm a história das necessidades

básicas que não têm, que dormem na rua, os que não dormem na rua também eu penso

que há muitos aqui que têm casa mas depois não têm nem água nem luz lá dentro

porque não têm como pagar isso, e eu penso que isto aqui há muitos problemas e muito

diferentes, há alguns que nós sabemos e outros que nós nem fazemos ideia.” (excerto de

entrevista a Isabel)

Deste modo, torna-se importante neste estudo sobre as pessoas sem-abrigo um

questionamento sobre como é que a cidade (Lisboa neste caso) e os seus espaços e

dinâmicas acolhem a pessoa que se encontra em situação de sem-abrigo.

Que oportunidades é que a cidade, que passa a ser observada tendo em conta as

experiências da pessoa que agora é sem-abrigo, pode encerrar em si? Com que

hostilidades se deparam estas pessoas? Que espaços são descobertos? Como se

(sobre)vive e como se (con)vive ao ser um indivíduo sem-abrigo? O que pensam as

pessoas sem-abrigo dos espaços criados especificamente para os acolher,

nomeadamente os albergues onde alguns pernoitam?

Tendo em conta estas variadas formas de acolhimento da cidade face à pessoa

sem-abrigo sou levada a ir além deste momento inicial e desta relação inicial que os

indivíduos estabelecem com o espaço.

Assim, interessa-me pensar a passagem do tempo na situação de sem-abrigo e

como, através da experiência e do conhecimento que vai sendo adquirido, se redescobre

a cidade com uma nova lente que vai tornar os seus espaços habitáveis. Descobrindo os

seus caminhos, mecanismos e locais aos quais se pode recorrer para habitar a cidade

sem que se tenha uma casa onde se resguardar de tudo o que é público. Onde se

encontrar a privacidade, o íntimo, o meu, onde descansar, comer, estar e passar o tempo

do dia-a-dia.

Como, por não ter casa, determinado indivíduo ganha uma nova forma de olhar a

cidade e de potenciar as características dos seus espaços, moldando-os às necessidades

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que possa ir tendo? Como falar de uma apropriação dos espaços múltiplos da cidade ao

longo do quotidiano de quem não tem casa onde desempenhar as tarefas simples como

tratar da higiene, da alimentação, mesmo repousar? A que instituições recorrer tendo em

conta as necessidades sentidas? Será que apesar dessa possível habitabilidade do espaço

público estes indivíduos pensam um futuro sem ser em situação de sem-abrigo?

No entanto, enquanto delineava os eixos desta pesquisa deparei-me com um

conjunto de inquietações que me levavam além desta análise da relação das pessoas

sem-abrigo com o espaço no duplo eixo acolher-habitar.

Em algumas das obras que fui lendo2, bem como através do senso comum

generalizado sobre a população sem-abrigo, as ideias perpassadas eram de que eu me

iria deparar com pessoas desligadas da sociedade, sem laços sociais, sem relações,

confiança ou qualquer forma de apego ao outro.

Todo este conhecimento a priori acaba por me deixar com especial interesse em

questionar a natureza das relações destes indivíduos, a proximidade, as dinâmicas

sociais que poderiam existir nas suas vidas, as experiências de convívio que têm, as

aprendizagens, a sua forma de se ligarem a alguém.

Como é que a pessoa sem-abrigo se relaciona com o outro? Será uma relação

pautada pela entreajuda e descoberta conjunta das possibilidades que a cidade oferece,

unindo a sobrevivência ao convívio e sociabilidade? Ou por outro lado, encontraremos

uma tensão permanente de quem procura o melhor local de pernoita, o melhor espaço, o

melhor caminho da cidade numa demarcação do espaço? Existirá de forma visível, de

facto, um paradoxo entre a autonomia que estes indivíduos procuram e a

vulnerabilidade da situação em que se encontram? Com quem escolhem passar o seu

dia-a-dia? Que comportamentos e gestos encontramos que evidenciem um querer saber,

um confiar em, um ligar-se a, junto da população sem-abrigo?

Procuro, assim, como principal objeto deste trabalho analisar as pessoas sem-

abrigo (utentes do Refeitório Rosália Rendu) nas suas relações e apropriações, apoiando

a minha análise nas dinâmicas presentes nos eixos acolher, habitar e apegar que irão ser

encontrados, ou não, nos quotidianos, nas experiências, nos modos de vida destes

indivíduos sem-abrigo.

2 Cf. Barreto 1998/2000; Plano Cidade 2009; Prates, Prates e Machado 2011; Tuller 2015

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A abordagem utilizada para dar conta de possíveis respostas às inquietações que

o terreno ia levantando passa por uma investigação onde impera a observação

participante e a realização de entrevistas, indo ao encontro do que é perpassado por

Heinich (2014) ao falar da Sociologia Pragmática – área em que sustentei o meu

trabalho: “esta sociologia se apoia principalmente em pesquisas empíricas

fundamentadas na observação cuidadosa de ações no seu contexto atual.” (Heinich

2014, 373).

É importante neste caso dar conta da forma como as pessoas sem-abrigo olham a

sua realidade, as suas relações, o seu espaço, o seu quotidiano e as suas experiências,

procurando, assim, relatos na primeira pessoa em relação às questões por mim

colocadas.

Assim, procuro ir ao seu encontro, falar com estas pessoas, quer em conversas

informais enquanto voluntária do Refeitório, quer em entrevistas realizadas ao longo do

trabalho de campo. A ideia é sempre obter a “versão” das experiências, dos modos de

vida e dos quotidianos das pessoas sem-abrigo com quem falei tal como perspetivadas

pelas mesmas.

Por fim, outra questão que deve ser mencionada é a importância de realizar uma

observação etnográfica densa, com atenção ao detalhe, com uma base no contexto atual

destes indivíduos mas sem esquecer o seu passado, as suas experiências anteriores.

É através desta observação sociológica que os gestos e os comportamentos vão

ser encontrados durante os momentos vividos no Refeitório, ganhando uma importância

acrescida na medida em que, por várias vezes, foi através da observação que

descobrimos uma verdade paralela àquela contada pelas palavras.

Saliento, ainda, a tentativa de um olhar para esta população partindo do conceito

de frame, tal como pensado por Goffman (1986), ou seja, através do princípio de que

toda e qualquer situação na realidade social tem o seu enquadramento, sendo a análise

desse enquadramento essencial na compreensão do fenómeno em estudo.

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Metodologia

Para pensar a vulnerabilidade das pessoas sem-abrigo que andam pela cidade de

Lisboa, e as formas como estas habitam os seus territórios e se apropriam dos espaços

que consideram mais acolhedores escolhi realizar um estudo de caso, nomeadamente

analisando as pessoas sem-abrigo que habitualmente almoçam no Refeitório Rosália

Rendu.

Assim, esta primeira escolha de realizar um estudo de caso é tomada indo ao

encontro daquilo que Yin (2001) apresenta como sendo, por um lado, as vantagens deste

tipo de investigação – “Em resumo, o estudo de caso permite uma investigação para se

preservar as características holísticas e significativas dos eventos da vida real” (Yin

2001, 19) ou “O estudo de caso é a estratégia escolhida ao se examinarem

acontecimentos contemporâneos, mas quando não se podem manipulas

comportamentos relevantes.” (Yin 2001, 27) – bem como a definição deste tipo de

abordagem ao terreno: “Um estudo de caso é uma investigação empírica que investiga

um fenómeno contemporâneo dentro do seu contexto da vida real, especialmente

quando os limites entre o fenómeno e o contexto não estão particularmente definidos.”

(Yin 2001, 32).

Ao optar por um estudo de caso, os atores sobre os quais recaem as minhas

questões levaram-me a escolher técnicas de observação sociológica que, tendo em conta

as suas características, tornaram possível acompanhar de perto os seus quotidianos e os

modos como confrontam os espaços urbanos por onde circulam diariamente.

Captar estes movimentos requer uma escolha de técnicas mais próximas de uma

Sociologia compreensiva. Assim, na tentativa de exercitar essa compreensão recorri a

técnicas habitualmente utilizadas em estudos qualitativos, realizando uma investigação

onde o método indutivo impera, uma vez que tal como Flick (2005) refere foi

importante criar uma abordagem que, tendo um conhecimento teórico prévio, fosse

buscar à empiria, ao objeto de estudo, ao terreno e às complexidades aí apresentadas o

ponto de partida para um questionamento e levantamento de hipóteses numa tentativa de

“descobrir teorias novas, empiricamente enraizadas” (Flick 2005, 5), dotando, desse

modo, a empiria de uma importância extrema para, juntamente com a teoria, investigar

as problemáticas que me propunha analisar e chegar às conclusões deste trabalho.

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Foi importante, neste processo metodológico, uma delimitação não só do objeto

de estudo como também efetuar o recorte do terreno sobre o qual me iria debruçar –

momentos estes que se interligaram, influenciando-se mutuamente, com a metodologia

selecionada, numa tríade em constante construção com as consecutivas idas e vindas do

terreno consoante a informação que ia sendo recolhida.

Deste modo, o meu projeto começou com apenas uma população que despertava

o meu interesse pela sua presença pautada de ausências no quotidiano da cidade de

Lisboa – eram pessoas com as quais me cruzava diariamente nos seus diferentes rostos e

feições e sobre as quais nada sabia além de serem apelidadas de “pessoas sem-abrigo” e

que andavam pela cidade, dormiam na cidade, viviam na cidade, servindo-se do espaço

público de modo peculiar devido às ausências que marcam as suas vidas – encontrava

assim um locus e uma população que queria problematizar e refletir sociologicamente.

Bruyne, Herman e Schoutheete ([1977] 1982) são-nos úteis, aqui, para pensar a

importância de, por exemplo, “situar o lugar do campo da pesquisa”, isto é: o “lugar

efetivo do trabalho dos pesquisadores, é essencialmente o lugar dinâmico e dialético no

qual se elabora uma prática científica que constrói objetos de conhecimento

específicos, os quais impõem, por sua vez, a sua matriz particular de apreensão e

interpretação dos fenómenos.” (Bruyne, Herman e Schoutheete [1977] 1982, 28).

Ou seja, com estes autores e a sua obra conseguimos depreender a extrema

importância, antes de iniciar a investigação, que haja já uma delimitação do campo que

pretendemos estudar (delimitação essa que pode sofrer alterações com o decorrer do

trabalho de campo, como tentarei demonstrar neste capítulo metodológico), bem como

um conjunto de hipóteses problematizantes da realidade que procuramos olhar pela

lente da Sociologia.

Com a evolução deste projeto o afunilar necessário à linha problemática que fui

desenvolvendo apareceu com alguma clareza: o que mais me intrigava nesta população

que tanto caminha e cujos estudos realizados tanto apresentam conjuntos de solução de

cariz negativo e derrotista, era, precisamente, como é que não tendo as posses que o

“cidadão normal” tem, não tendo uma casa, não tendo um trabalho, como é que estas

pessoas se apropriam de um espaço que tem tudo para ser definido como público mas

que para elas é tornado familiar, na medida em que é nesse espaço que vão desenvolver

não só relações com outros indivíduos mas também uma relação com o espaço que será

equiparado a uma “casa” (cf. Entrevistas e Diário de Campo).

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Esta questão das vivências que são mantidas na rua ou em abrigos ou em

espaços que não são destas pessoas sem-abrigo mas acabam por ser apropriadas por

estas num paradoxo incrível entre o público, o privado, o meu, o nosso, o vosso, imbuiu

a minha pesquisa de todo um conjunto de questões acerca do espaço, da cidade,

daqueles que caminham e marcam, assim, o espaço por onde andam. Apresentavam-se,

deste modo, os dois primeiros eixos da minha investigação: o modo como a cidade

acolhe as pessoas sem-abrigo e o modo como estas pessoas, com o passar do tempo na

situação de sem-abrigo, habitam a cidade e o seu espaço público através da apropriação

que fazem desse espaço.

Tendo a população de estudo e já dois eixos estruturantes para a minha

investigação comecei a realizar um conjunto de leituras de forma a preparar um projeto

que me permitisse entrar no terreno de estudo com uma ideia clara do que queria

questionar. No entanto, se há momento numa investigação que pode levantar mais

dúvidas, problemas e interrogações do que as que tínhamos à partida é, precisamente, o

confronto entre as ideias do investigador e as teorias formuladas em relação aos

elementos que o primeiro quer trabalhar.

Foi neste círculo de perguntar, ler em busca de respostas encontrando ainda mais

questões que surgiu o terceiro e último eixo basilar do meu trabalho: as relações que as

pessoas sem-abrigo mantêm com o “outro”. Esta população é percecionada em inúmeras

obras, artigos, capítulos como “desvinculada”, como tendo “cortado as relações”, como

sendo isolada da sociedade, como sendo egoísta, sozinha, estranha a uma norma social3.

Ora, tendo em conta as minhas inquietações face às pessoas sem-abrigo e a lente

que procurava utilizar para analisar as mesmas, não me era permitido manter esta visão

tão derrotista e, como tal, para contornar as conclusões tão assertivas já apresentadas

pelos mais variados autores que estudaram esta população antes de mim, coloquei como

objetivo da minha tese de Mestrado estudar as relações de quem é “desvinculado”,

“desafetado”, “desligado”, correndo o risco de acabar por concordar com quem debate o

tema antes de mim mas tendo a esperança de encontrar uma realidade diferente ao

chegar ao terreno.

3 Cf. Barreto 1998/2000; Plano Cidade 2009; Prates, Prates e Machado 2011; Tuller 2015

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Observação etnográfica e Diário de Campo: registos de observações, conversas e

gestos na análise das pessoas sem-abrigo

Nesta fase que antecedia a entrada no terreno imperava descobrir qual iria ser,

concretamente, o meu terreno, ou seja, onde e como é que eu iria analisar as pessoas

sem-abrigo com base nos três eixos acima referidos. Assim, foi tomada uma outra

decisão que veio a revelar-se fulcral para a concretização da minha investigação: a

escolha de uma pesquisa com base na observação participante, o being there de

Malinowski ([1922] 1984), que se transportava neste trabalho para o papel de voluntária

no Refeitório Rosália Rendu que assumi desde outubro até à conclusão do trabalho de

campo.

Porquê optar pela observação participante vestindo o papel de voluntária

enquanto investigo esta população? Desde o delinear do tema e do problema que me fui

apercebendo que iria lidar com uma população que, dadas as circunstâncias em que

vivem, não iria ser de acesso fácil ou sequer óbvio.

Não podia limitar-me a seguir alguém que desconheço e me desconhece pela

rua, dizendo que sou investigadora e formulando um conjunto de perguntas sobre a sua

vida com a justificação de estar a fazer um trabalho para a minha tese de Mestrado. Não,

tal como Soulet (in Balsa 2006), também eu cheguei à conclusão de que para me

aproximar desta população que já de si é vulnerável não podia ter uma abordagem

invasiva e propiciadora de aumentar essa vulnerabilidade, mas antes deveria criar laços,

aparecendo como uma figura presente no quotidiano destas pessoas para que uma

relação de confiança pudesse surgir de modo a que me fosse permitido questioná-los

acerca das suas vidas e ouvir a sua verdade acerca da sua realidade.

A observação participante enquanto voluntária abria assim portas a uma

presença regular no dia-a-dia destas pessoas sem-abrigo que queria problematizar e,

através desta técnica de recolha de informação, consegui descobrir momentos, gestos,

olhares, palavras, desentendimentos, situações de aprendizagem, de camaradagem, de

alegria, de revolta, que caso não estivesse lá naquele instante não teria sido possível

recolher pois ninguém me teria contado com o mesmo detalhe aquilo que eu observei,

nem mesmo os próprios teriam reproduzido a ação tal qual como ela acontecera se me

fossem contar o que eu observei instantes antes.

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Uma vez feita esta escolha metodológica foi necessário não ser absorvida nem

pelo terreno, nem pela população de estudo, nem pelas interrogações imparáveis com

que me fui deparando. Para evitar essa absorção – que acabou por acontecer em alguns

momentos da investigação – tinha de colocar balizas, frames, limites na minha

observação através da formulação de tópicos acerca desta população e tendo em conta

este terreno que queria ver esclarecidos de modo a não cair no erro de me perder na

abundância de informação com que me deparava.

O que observar e como observar foram questões da maior importância e

pertinência ao longo de todo o trabalho, na medida em que se, por um lado, tinha de

cimentar uma relação com as pessoas do Refeitório para que fosse mais fácil o acesso às

suas vidas, por outro lado, não podia esquecer as linhas orientadoras da minha

observação, o que tinha de registar, o que queria encontrar, as perguntas que tinha de ir

fazendo, as dinâmicas às quais tinha de estar atenta, os pormenores que tantas vezes

olhamos como “normais” e “desinteressantes” mas que neste trabalho assumiram uma

importância fulcral pois revelaram mais do que as palavras dos nossos interlocutores4.

Outra técnica de observação de grande importância foi o registo com algum

detalhe da informação que ia recolhendo aquando dos momentos no Refeitório, ou seja,

uma vez criados laços com as pessoas do Refeitório e definidas as balizas orientadoras

do meu olhar sociológico (Pais 2015) tinha de aproveitar os momentos essenciais de

contacto com a população que queria estudar para reter informação pertinente para o

meu trabalho – imperava manter o pormenor, o detalhe, a descrição densa, os factos

relatados em conversas, os gestos recolhidos no decorrer do quotidiano do Refeitório –

e para tal contei com o Diário de Campo como suporte em que registei dia a dia, ida a

ida ao Refeitório, tudo o que a minha memória transportava desse mesmo dia, todos os

detalhes que saltavam à vista, sempre com base nas questões acima explicitadas.

Com um trabalho de duração longa teria sido impossível recorrendo apenas à

memória descrever tudo o que foi sendo vivenciado com base na observação

participante e que tinha um papel deveras essencial no trabalho com uma população que

não confia facilmente, que conta os seus factos e as suas vidas servindo-se de histórias,

de relatos experienciados algures num tempo ausente porque incerto – foi assim que

4 Como exemplo explicativo desta questão apresento a entrada do Diário de Campo do dia 28.10.2016:

“Continuei a servir almoços e a distribuir pão; muito pão para a mesa dos senhores russos fez com que

“ganhasse” a simpatia do grupo com quem é mais difícil comunicar.”

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obtive aquela que é a história de vida de algumas das pessoas sem-abrigo utentes do

Refeitório, ouvindo, estando atenta às feições quando falavam de determinados temas,

observando as interações que tinham e o que escolhiam dizer, quando e a quem.

O Diário de Campo surge, assim, como a base de todos os registos de momentos

informais mantidos quer com a equipa de voluntários quer com os vários utentes do

Refeitório e, como tal, não se trata de uma ferramenta rígida e constante. Pelo contrário,

demonstra, por um lado, como, de facto, estamos a lidar com pessoas vulneráveis neste

trabalho e não com seres afastados ou “desvinculados” da sociedade, com o

estranhamento que tal ideia pode comportar, e assim tudo o que é comportamentos e

conversas mantidas vão oscilando não apresentando uma linha única quer de uma forma

de estar calma ou agitada, quer de um discurso pautado pela veracidade ou

enviesamento.

Corri, através desta escolha metodológica, o risco de apresentar conclusões com

apoios instáveis, optando por ultrapassar esse risco ao adotar uma postura com a maior

objetividade científica possível quando se lida com pessoas, chegando a ter de recorrer a

um distanciamento em prol dessa mesma objetividade5 (cf. Gold 1958, 221).

O Diário de Campo que fui escrevendo ao longo da investigação contém em si

todas as observações, curiosidades, questões, conversas, momentos, gestos, olhares,

risos, ansiedades, revoltas, confissões e desabafos que ouvi e vi durante a minha ida ao

Refeitório Rosália Rendu enquanto voluntária e investigadora. É, pois, uma ferramenta

de extrema utilidade para que de lá retiremos algumas dinâmicas, especificidades e

contradições da população de sem-abrigo utentes desse espaço.

Este diário é, assim, um registo que se interliga com a observação participante

comungando desta forma das suas obrigações científicas ao nível dos frames e da

objetividade adotada, dos objetivos pelos quais recorri a este método e das conclusões

que pude ir retirando após uma análise do que fora sendo escrito nesse mesmo diário,

com o ponto positivo de ser não só detalhado como mantido num registo pessoal, o que

me permitiu escrever informação que por outra via não teria sido possível.

5 Como exemplo explicativo do distanciamento apresento a entrada do Diário de Campo de dia 7.11.2016:

“Nas duas últimas idas ao voluntariado não escrevi diário de campo porque o meu trabalho foi, de certa

forma, perturbado pelos utentes do Refeitório. Criou-se uma proximidade excessiva, muito perto do

intolerável (cf. Marc Breviglieri) que fez com que estas pessoas em situação de vulnerabilidade se

apegassem em demasia e me tratassem com termos que não me deixavam à vontade e capaz de

prosseguir o meu trabalho quer como investigadora quer como voluntária.”

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Tendo em conta que já tinha nesta altura um conjunto de técnicas de observação

sociológica formuladas, já tinha um terreno delimitado, um tema e uma linha

problemática, uma mala de leituras composta, chegava ao momento de desenhar a forma

como deveria abordar diretamente as pessoas sem-abrigo para poder obter a sua visão

acerca dos tópicos que queria analisar na minha investigação.

Foi uma tarefa complexa e que foi sendo construída à medida que o trabalho

tomava corpo e eu ia percebendo que abordagens funcionavam, que abordagens eram

bem recebidas, que abordagens levavam a uma reflexão profunda destas pessoas sem-

abrigo (cf. entrevista a Francisco), que abordagens, por oposição, levavam a um

fechamento imediato.

Interessava-me, assim, descobrir quem são estas pessoas e qual o seu contexto, o

seu passado e o que pensam em relação ao futuro; como é o seu quotidiano, quais são as

rotinas que estas pessoas poderiam ter ou não; a relação entre as pessoas sem-abrigo e

os vários locais por onde passam, os vários locais que habitam e de que se apropriam

através do caminhar constante; a questão de ao não terem muitas posses suas passarem a

dar ou não mais importância ao pouco que possuem; a relação com os serviços,

nomeadamente o Refeitório mas não só, no que de reflexão pode haver por parte das

pessoas sem-abrigo e de inquietações que lhes trazem estes dispositivos criados para os

auxiliar; e as dinâmicas familiares e relacionais que têm seja com os outros utentes do

Refeitório, seja com possíveis amigos/conhecidos, seja ainda com a família.

A Entrevista: relatos, histórias e momentos do “eu”

Os tópicos de interesse da investigação acima apresentados são recrutados para

um capítulo metodológico pelas várias reações que suscitaram na população em estudo,

tendo sido visível um conjunto de reações diferente de pessoa para pessoa mas sendo de

notar um certo desconforto geral nas primeiras entrevistas em que as questões foram

sendo colocadas quase automaticamente e seguindo uma ordem pré-estabelecida para

guiar a entrevista, o que, após um ajuste na estrutura da entrevista, deixou de acontecer.

Outra questão interessante de reportar ao falar da metodologia é o porquê da

escolha das entrevistas como técnica de recolha de informação, bem como os objetivos

e as consequências dessa escolha.

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Seguindo a ideia de Burgess de entrevistas “como «conversas com um objetivo»”

(Burgess 1997, 112) queríamos encontrar nesta técnica uma forma de receber os

discursos das pessoas sem-abrigo utentes do Refeitório após uma primeira fase da

investigação onde os laços de confiança e proximidade foram sendo cimentados.

Procurava-se ouvir o seu encadeamento das suas histórias, dos seus factos, das suas

vidas e modos de percecionar o que os rodeia tendo em conta a situação de pessoas sem-

abrigo.

Não queria, no entanto, obter um conjunto de respostas formatadas, procurando,

por oposição, dotar os meus interlocutores de um estar à vontade e de uma liberdade

para encadearem eles mesmos o que me queriam contar, do que me queriam falar, o que

me queriam mostrar daquilo que guardam como a sua verdade acerca de si mesmos6 (cf.

Aldeia 2011 e a importância de ouvir as vozes das pessoas sem-abrigo).

Foi, assim, fundamental partir deste comprometimento a «“levar a sério” as

justificativas e as críticas dos atores», isto é, o discurso produzido pelos vários

interlocutores não surge aqui como um conjunto de invenções, de histórias produzidas

por eles, mas antes como material a ser analisado tendo em conta por um lado “um

esforço para justificar o seu fundamento prático” e por outro lado o “cuidado em

analisar os seus efeitos sociais” (Barthe et al. 2016, 98).

O importante a ter em mente nesta opção metodológica é, portanto, “considerar

que eles têm razões para afirmá-lo – razões ligadas às contradições reais das suas

práticas.” (Callon; Rabeharisoa, 1999 in Barthe et al. 2016, 99), e assim se realizou a

análise dos discursos que foram sendo apresentados não só por via direta nas entrevistas

como também nas conversas ouvidas e percecionadas aquando da observação

participante enquanto voluntária no Refeitório.

Esta técnica revelou-se bastante útil para captar informação, uma vez que todos

os interlocutores permitiram a gravação das entrevistas e a maioria acabou por

6 Não posso deixar de incluir aqui um pequeno parêntesis acerca da noção de veracidade do que me foi

sendo contado por parte das pessoas sem-abrigo e por parque da equipa de voluntários do Refeitório, uma

vez que, por vários momentos ouvi da parte de algumas voluntárias um aviso de cautela em relação ao

que me iam contando e ao que ia registando como verdadeiro em relação às pessoas sem-abrigo. Muitas

foram as vezes em que tanto uns como os outros me foram mencionando suspeitas de factos não

comprováveis acerca uns dos outros, ou seja, tanto as voluntárias me diziam que achavam que o utente a)

ou b) tinha feito isto ou aquilo daí estar em situação de sem-abrigo, como o utente a) ou b) me dizia que a

voluntária x) ou y) agia deste ou daquele modo. Tendo isto em conta optei por definir claramente que, no

caso das entrevistas, a verdade que captaria seria aquela que os meus interlocutores me transmitissem.

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desenvolver uma conversa bastante longa acerca daquela que é a sua forma de vida

enquanto pessoa sem-abrigo mas dotada de um passado e esperando por um futuro (cf.

Breviglieri e Stavo-Debauge 1999).

Também devo assinalar como algo importante de notar o facto de cada

interlocutor ter escolhido o local onde queria que fosse a sua entrevista, havendo casos

que preferiram ficar dentro das instalações do Colégio onde é o Refeitório, casos que

quiseram realizar a entrevista no local em que almoçam ocupando o lugar exato em que

se sentam todos os dias no Refeitório, e casos que quiseram afastar-se das imediações

deste espaço para obter uma maior privacidade.

Tendo em conta a natureza dos utentes do Refeitório acabei por encontrar aqui

um conjunto de dificuldades à realização das entrevistas por dois principais motivos: 1)

A maioria dos utentes do Refeitório Rosália Rendu são estrangeiros, estando ainda

muitos deles a aprender a falar português, o que dificulta as vias de comunicação e

acaba por impedir a realização de uma entrevista; 2) Trata-se, como já acima foi dito, de

uma população um pouco instável e que tem dificuldades em confiar no outro para falar

sobre si (ou de si), o que acabou por se concretizar em duas outras situações: 2.1)

Alguns utentes com quem fui criando uma relação de proximidade deixaram o

Refeitório ou sofrem de problemas que afetam as suas capacidades psíquicas, e 2.2)

Alguns utentes afirmaram claramente que não queriam falar comigo ou acabaram por

combinar um dia e uma hora aos quais nunca compareceram.

Assim, de uma população vasta apenas alguns utentes são “fixos” e desses

utentes “fixos” apenas alguns falam fluentemente português ou mesmo inglês e desses

utentes com os quais a comunicação é possível apenas foi exequível desenvolver uma

relação de proximidade e confiança com alguns levando a que, no final, conseguisse

realizar 10 entrevistas, sendo uma delas feita a uma das voluntárias para entender

também um pouco acerca do funcionamento do Refeitório de modo a fornecer uma

visão mais geral e contextualizadora do ambiente envolvente dos utentes deste espaço

(cf. Balsa 2012).

Esta técnica de recolha de informação deve ser assim analisada na sua

globalidade, devendo ser objeto de reflexão na medida em que comporta em si uma

forma de conseguir o material necessário tendo em conta os objetivos deste trabalho

mas tem em si tanto de peculiar na forma de o obter como de complicado e, por vezes,

frustrante. A entrevista semi-estruturada levou-me a verdadeiros momentos de

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confissão, de perceção de uma reflexão que o outro faz quando questionado acerca de si

mesmo, de humanização da minha população de estudo com a importância que tal

assumiu para eles7.

Não foi, no entanto, uma técnica de recolha de informação fácil tendo em conta

todo o contexto quer da população que tinha muito de irregular nas idas ao Refeitório,

que nem sempre falava português, que nem sempre comparecia para as entrevistas, que

nem sempre compreendia o que lhes perguntava, que muitas vezes optava por alterar os

factos, que muitas vezes optava pelo silêncio ou por divagar acerca de outros temas

além daqueles que questionava8; quer do terreno em si na medida em que sendo um

espaço de ordem e regras e com elevada importância para estas pessoas nem sempre se

sentiam à vontade para falar sobre as suas vidas, nem sempre se sentiam à vontade

mesmo quando distantes do Refeitório para falar sobre a sua realidade9. Foi, ainda

assim, uma técnica que acabou por dar frutos.

Tendo a metodologia apresentada em conta, é importante diferenciar as

perspetivas e hipóteses com que fui para o terreno e para um primeiro contacto com as

pessoas sem-abrigo do Refeitório e os momentos sucessivos em que tive

obrigatoriamente de realizar um ajuste seja nas hipóteses que criara seja nas relações

entre tópicos que imaginara seja no comportamento que tinha à partida10.

Esta ideia é fundamental tanto neste trabalho como em qualquer outro que seja

científico e estude uma população em geral: trata-se de um processo, de um

encadeamento, de uma ligação entre várias fases na qual a ideia de partida, a pergunta

7 Como exemplo explicativo dessa importância posso incluir a entrada do Diário de Campo de dia

4.1.2017: “Levou a ideia de entrevista muito a sério não deixando ninguém falar perto dele para que não

perturbasse a gravação.” E de dia 17.4.2017: “De certa forma, todos aqueles com quem falei para o

trabalho fazem questão de me ir mantendo a par da evolução das suas situações/problemáticas com que

se deparam (…)”

8 Cf. Entrevista a Francisco; entrevista a Nicolay; entrevista a Jallah

9 Cf. Entrevista a Nicolay; entrevista a Yassine

10 Como é o caso, por exemplo, dos tópicos de conversa que tinha inicialmente em que incluíra questões

como: “Tem algum sítio a que possa chamar casa?” ou “O que significa não ter uma casa?” ou “O que

significa ser sem-abrigo?” ou “Tendo em conta a situação de vulnerabilidade que soluções lhe foram

sendo apresentadas?” e que mais tarde foram retiradas para não ferir suscetibilidades depois de ter falado

com a pessoa que gere o Refeitório e esta me ter alertado para não utilizar o termo “sem-abrigo” (cf.

Diário de Campo). Também posso dar o exemplo da alteração de comportamento que se deu na forma

como me relacionava com as pessoas sem-abrigo que frequentavam o Refeitório, sendo visível na entrada

do Diário de Campo de dia 7.11.2016.

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de partida, as teorias e perspetivas analíticas, as metodologias, são constantemente

alteradas à medida que vamos e regressamos do terreno, relevando este processo a

necessidade de adquirirmos uma postura de abertura à mudança e ao que o terreno nos

dá, numa completa contradição daquelas ideias metodológicas que apelam a um

conjunto de formas rígidas e padronizadas de olhar o que queremos investigar,

chegando quase a moldar o terreno e a informação àquilo que queremos à partida

encontrar.

Todo este trabalho de pesquisa, de formulação de hipóteses, de aproximação ao

terreno, de contacto com a população de estudo, de análise dos dados recolhidos, foi

realizado tendo em conta alguns dos princípios da Sociologia Pragmática, na medida em

que foi com base nessas premissas que conseguimos ir para o terreno com uma lente

que nos permite olhar ao mesmo tempo os processos e as operações presentes no

contexto estudado e a forma como a pessoa sem-abrigo se envolve e é envolvida nesses

mesmos processos e operações que lhe são exteriores mas interiores porque têm uma

implicação direta no “eu” dos indivíduos por mim estudados (cf. Barthe et al. 2016).

Percurso metodológico: balanço e reflexão

Tendo em conta o percurso metodológico realizado, que começou na definição

da população de estudo – as pessoas sem-abrigo –, do terreno onde iria decorrer o

trabalho de investigação – a cidade de Lisboa, em geral, e o Refeitório Rosália Rendu,

em particular – e de alguns eixos basilares que sustentaram tanto a observação

participante como as entrevistas realizadas – resumidos nos verbos acolher, habitar,

apegar –, cabe-me apontar aqui alguns aspetos positivos, bem como alguns aspetos que

recomeçando ponderaria alterar.

A metodologia por mim escolhida levou-me a realizar um estudo de cariz

qualitativo, a observar detalhadamente a realidade das pessoas sem-abrigo com quem

estive no papel de voluntária desde outubro de 2016, a conversar com estas pessoas

durante o período de almoço com os momentos que lhe antecediam e sucediam e a

entrevistar um pequeno grupo de pessoas com quem a comunicação e a relação

estabelecida foram obtendo menos obstáculos face ao grupo geral.

Consegui, por esta via, bastante informação acerca das várias problemáticas das

pessoas sem-abrigo, da forma como lidam com as suas inquietações, das dinâmicas

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entre uns e outros seja com base no país de origem, na língua falada, no lugar que

ocupavam durante o almoço.

Consegui, igualmente, ter uma noção daquela que é a apropriação do espaço

efetuada por estas pessoas sem-abrigo, sendo neste caso mais visível se deslocarmos o

olhar da cidade para o Refeitório onde cada um tem o seu prato, tem o seu lugar, tem a

sua forma de tratamento que o diferencia do utente que está imediatamente ao seu lado,

tem as suas especificidades, o seu nome, a sua caixa, tem uma hipótese de ser tido como

ser humano.

Por fim, foi notório através das entrevistas realizadas, que as vivências e as

experiências destas pessoas vulneráveis adquirem uma outra dimensão quando relatadas

por quem as vive e experiencia. Isto é, as entrevistas serviram não só para recolher

informação acerca dos tópicos de interesse em relação à população em análise mas,

também, para que estas pessoas acabassem por refletir um pouco elas mesmas na sua

história, no seu presente, na situação que vivem.

Acabaram por – dadas as circunstâncias em que falámos, a importância que tinha

para mim ouvi-los, a confiança que foi sendo construída, a escolha do local onde seria a

entrevista – servir-se destes momentos de entrevista para falarem abertamente comigo,

para se justificarem, para criticarem, para sugerirem, para sonharem e perspetivarem,

tornando-se as entrevistas quase como momentos condensados e afastados da

normalidade dos seus quotidianos.

Tendo em mente o objeto final da investigação que realizei posso dizer que num

futuro em que trabalhe com uma população de pessoas sem-abrigo por um lado irei

tentar ir o mais cedo possível para o terreno, resolvendo as questões logísticas tais como

a que instituição me associar para ter acesso à minha população de estudo; tentarei

igualmente privilegiar um terreno com pessoas que dominem o português ou o inglês

para que a comunicação possa fluir; e provavelmente outra ideia seria conseguir tempo

suficiente na investigação e ter confiança suficiente nas pessoas sem-abrigo e delas em

relação a mim para as acompanhar no antes e depois do Refeitório para que melhor

conseguisse observar não só a sua relação com a cidade e o espaço que habitam e

marcam com o seu caminho como também a sua relação com o “outro” que coabita os

mesmos espaços.

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Como pensar as Pessoas Sem-Abrigo: definições, vulnerabilidades, experiências e

problemáticas

Ao partir para o terreno na investigação que procurei desenvolver era

fundamental ir já com uma mala de leituras prévia, sendo que, depois das várias

conversas e observações realizadas empiricamente essas leituras tiveram de passar por

todo um processo de atualização para que pudessem acompanhar os desenvolvimentos

que aconteciam na vertente mais prática deste trabalho.

Imperava pensar em três tempos a realidade das pessoas sem-abrigo do

Refeitório Rosália Rendu – espaço por mim escolhido para realizar o trabalho de

voluntária e investigadora, onde a diversidade e especificidade das pessoas sem-abrigo

abundava.

Num primeiro momento o foco prende-se com o “acolher” – como é que a

cidade acolhe a pessoa que passa a ser/estar sem-abrigo, quais os mecanismos que é

necessário aprender para (sobre)viver na cidade enquanto pessoa vulnerável sem-abrigo,

quais os dispositivos existentes para, de facto, acolher esta população desprovida da

maioria dos bens e do conforto associados ao habitar uma “casa”.

Com o passar do tempo pela experiência da pessoa sem-abrigo podemos olhar o

“habitar” – quais as táticas para tornar o espaço público um espaço “habitável”, o que

implica “habitar” um espaço do comum, como se realiza a “apropriação” e a

“marcação” do espaço por uma população vulnerável.

Por fim, interessa-nos ainda um terceiro tempo que passa pela equação do

“apegar” – como se (re)faz o laço de confiança com o “outro”, como se olha e se sente a

proximidade do outro, como se relacionar numa realidade pautada pelas ausências.

É com base nestes três principais eixos que queremos problematizar a população

sem-abrigo do Refeitório Rosália Rendu (no Campo Grande), na apropriação que faz do

espaço urbano e também do status de serem pessoas sem-abrigo, e ainda na relação que

desenvolvem com o “outro” na multiplicidade de figuras assumida por esse “outro”.

Ora, torna-se deveras importante articular várias formas de pensar a realidade

das pessoas sem-abrigo no panorama atual, seja, por um lado, na sua definição oficial,

seja através de uma observação com a lente científica dos estudos produzidos acerca

desta população e das várias problemáticas que lhe são inerentes, seja, ainda, tendo em

conta a experiência dos próprios atores sem os quais não se poderia realizar um estudo

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que correspondesse à realidade na forma que é vivida pelas próprias pessoas sem-

abrigo.

Temos, atualmente em Lisboa, que pessoa sem-abrigo é “aquela que,

independentemente da sua nacionalidade, idade, sexo, condição socioeconómica e

condição de saúde física e mental, se encontre: sem teto – vivendo no espaço público,

alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário; sem casa –

encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito.” (in Estratégia

Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo, 2008; Plano Cidade para a Pessoa

Sem-Abrigo, 2009; Programa Municipal para a Pessoa Sem-Abrigo, 2015).

Deparamo-nos, ao analisar esta definição oficial pela qual são orientados os

dispositivos de auxílio à pessoa sem-abrigo, que a preocupação principal face a estas

pessoas passa pela questão da falta ou precariedade de habitação, deixando de lado

todas as outras problemáticas que existem na vida quotidiana de quem se encontra em

situação de sem-abrigo.

Importa, então, levar o nosso olhar além da questão habitacional uma vez que é

de pessoas que estamos a falar, de seres vivos que são seres humanos, ou seja, tal como

defendido por Ricoeur e analisado em Breviglieri (2012) devemos equacionar estas

pessoas sem-abrigo através de uma “antropologia das capacidades”11, surgindo aqui a

ideia de uma “garantia íntima de poder tornar-se capaz”12 associada a uma noção de

“eu posso”13 que nos vai permitir pensar as histórias de vida das pessoas sem-abrigo no

que de vulneráveis e frágeis podem ser nesta distinção do eu como pessoa ou, então,

numa perspetiva distinta com relatos de superação das contrariedades que vão surgindo

no quotidiano destes meus interlocutores.

Refiro-me, aqui, a um olhar para as pessoas sem-abrigo que transporta em si

uma reflexão não só nossa como também dos indivíduos com quem fui interagindo,

numa tentativa de “recuperar a sua «capacidade de agir, de pensar, de sentir,

capacidade quase enterrada, perdida, nos saberes, nas práticas, nos sentimentos que

11 «anthropologie capacitaire» (Breviglieri 2012)

12 «assurance intime de pouvoir se rendre capable» (Breviglieri 2012)

13 «je peux» (Breviglieri 2012)

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exterioriza sobre si mesmo” (Vallée 2010, 263-264, tradução minha14), ou seja, aquilo

que faz destes sujeitos seres humanos, pessoas sem-abrigo que são mais do que meros

corpos sem um teto – são pessoas (cf. noção de manutenção de si em Vezeanu 2004).

É precisamente para esse todo de problemas, questões, faltas, dificuldades que se

articulam naquilo que é ser pessoa sem-abrigo que queremos olhar, problematizando

esta realidade bem como os dispositivos de auxílio que foram entretanto criados, as

relações que são mantidas e desenvolvidas tendo em conta a carência que vai além dos

bens materiais e chega, de forma alarmante, a uma falta de afeto notável a quem quer

que doe um pouco do seu tempo a falar com estas pessoas sobre as suas experiências.

Quintas (2010) surge aqui com uma extrema importância num aspeto do seu

trabalho ao qual recorri para melhor realizar a minha investigação, pensar os resultados

e analisar não só a população de estudo como os serviços disponibilizados para os

auxiliar.

Essa importância surge quando a autora nos diz que “importa, antes de mais,

salientar que não é por falta de proteção jurídica e de enquadramento legal que

existem pessoas sem-abrigo. O direito a uma habitação condigna, ao trabalho, ao

acesso à saúde e a um tratamento igual perante a lei é universalmente proclamado,

como podemos constatar, nomeadamente, pela Declaração Universal dos Direitos do

Homem e pelo Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais,

estando também defendido na Constituição da República Portuguesa e nos diversos

Decretos-Lei que adotaram as medidas internacionalmente propostas.” (Quintas 2010,

4).

O aumento das pessoas sem-abrigo num processo marcado pela sua constância

nesse aumento visível é justificado pela autora com recurso ao patamar individualista e

competitivo em que a nossa sociedade se situa, num contexto claramente impregnado

pelo tecnicismo, a massificação e a virtualidade, “retirando ao homem as suas ligações

ao concreto e desvirtuando-o da sua verdadeira condição humana (…). Neste sentido,

não serão os sem-abrigo os inevitáveis vencidos desta corrida quotidiana tantas vezes

desleal?” (Quintas 2010, 4).

14 «ressaisir sa «puissance d’agir, de penser, de sentir, puissance en quelque sorte enfouie, perdue, dans

les saviors, les pratiques, les sentiments qui l’extériorisent par rapport à lui-même».» (Vallée 2010, 263-

264)

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Aqui, podemos olhar a tese de João Aldeia (2011) quando este autor nos fala do

principal problema da atual lente através da qual se perceciona o fenómeno das pessoas

sem-abrigo em Portugal, que passa por uma ausência da voz das pessoas em questão, ou

seja, os estudos desenvolvidos têm vindo a deixar de fora, ao não inquirir, as pessoas

que experienciam diariamente não só o que é ser “sem-abrigo” como também a

adaptabilidade ou não das soluções apresentadas nas investigações que vão sendo

desenvolvidas não só pela via da psicologia como também pela via

governamental/estatística, afirmando o autor que “Não é possível produzir informação

relevante sobre o fenómeno sem considerarmos as perspetivas dos próprios indivíduos

sem-abrigo.” (Aldeia 2011, 6).

Aldeia (2011) acaba por ir ao encontro das opções metodológicas tomadas na

minha investigação, na medida em que também este autor se apercebe que para se

escrever, analisar, problematizar, formular teorias, hipóteses, conclusões ou soluções em

relação às pessoas sem-abrigo “É fulcral interagir com estes sujeitos, ouvir as suas

palavras e apreender as suas visões sobre si mesmos e sobre a sociedade.” (Aldeia

2011, 6) – sendo no nosso caso esta interação desenvolvida através do papel de

voluntária no Refeitório, mantendo uma relação praticamente diária com os utentes

desse Refeitório, com os seus problemas, com as conversas que têm entre si, com as

suas realidades transportadas para um pequeno espaço e colocadas em comum num todo

partilhado entre o tempo do período pré-almoço ao período pós-almoço.

É também com João Aldeia (2011) que somos levados a pensar algumas das

problemáticas que orientam a ideia de que ao ser sem-abrigo não se tem um espaço

privado, o que faz com que estas pessoas (que se veem impedidas do direito a um

espaço só seu) se apropriem do espaço público, do espaço do comum, para aí realizarem

tarefas que seriam, à partida do foro privado15.

Uma vez que um dos eixos nos quais se articula a presente investigação passa

pela importância das relações entre as pessoas sem-abrigo e o “outro” somos levados,

não só através da formulação de algumas hipóteses como também através de informação

empírica recolhida, a pensar a importância dos laços sociais para estas pessoas, a forma

15 Um exemplo dessa questão surge na entrevista realizada dia 3.1.2017: o senhor Marcelo dizia que,

como o albergue onde vive tem horários em que está fechado ele faz, por vezes, a troca de roupa, por

motivos de higiene, no sítio onde estiver, realizando um ato de higiene, à partida privado, em locais

públicos, frequentados pelo cidadão comum, onde não se sente confortável por sentir um constante

observar das suas ações.

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como estes potenciaram a sua situação atual16 ou mesmo como são um resultado direto

da vida na rua onde a interação com o “outro” é necessária à sobrevivência se

equacionarmos uma aprendizagem constante e uma interajuda existente entre as pessoas

sem-abrigo com quem fui falando.

Através das conversas que fomos tendo com os utentes do Refeitório e da

observação que foi sendo realizada conseguimos apreender que, apesar de não ser

evidente, existem muitas relações a serem desenvolvidas no contexto em questão e entre

as várias pessoas sem-abrigo que frequentam este espaço, o que nos leva a pensar, tal

como Aldeia (2011), que “A vida na rua elimina laços, mas também os cria.” (Aldeia

2011, 77), como por exemplo, no caso de Francisco que perdeu a ligação com os pais e

com a restante família mas refere um conjunto de pessoas que o “adotou” ao longo das

situações que foi vivenciando, ou mesmo Marcelo que refere o rompimento dos laços

com os colegas, com os amigos, com as filhas mas que assume um papel de mentor em

relação aos outros utentes do Refeitório, ou ainda o caso de Nicolay que não se

relaciona com a sua família mas diz ter criado em Portugal uma nova família composta

pelos seus amigos.

Surge, de igual modo, a ideia associada a um “desprestígio” – seja numa

autoavaliação potenciada pelas conversas que fui tendo com as pessoas sem-abrigo, seja

pelos discursos perpassados em relação a alguns casos por parte da equipa de

voluntários – da pessoa que passa de ser um cidadão inserido na sua sociedade e no seu

contexto, para ser uma pessoa quase unicamente definida – como visto naquela que é a

definição oficial de pessoa sem-abrigo – pela falta de uma casa, portanto, uma pessoa

sem-abrigo com a vulnerabilidade, a necessidade quase permanente de assistência que

resulta num olhar “desqualificador” destes indivíduos (cf. Pizzio e Veronese 2008;

Aldeia 2011).

Uma vez que nos encontramos a estudar as apropriações e relações desta

população em específico, as ideias de uma possível “solução” para cada conjunto de

problemáticas comportado na história de pessoa com quem fomos falando acabam por

surgir. No entanto, não passa, este trabalho, por uma organização detalhada de vários

16 “Estes são importantes quer para compreender as causas do fenómeno – alterações estruturais nas

relações entre indivíduos e esferas da sociedade – quer para entendermos as formas que essas causas

assumem nas vidas dos sujeitos – despedimento, divórcio/separação, ausência de suporte de outros

indivíduos aquando da perda da habitação.” (Aldeia 2011, 35).

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conjuntos de solução perante várias questões e problemáticas apresentadas. Passa, antes,

pelo momento que antecede o aparecimento dessas soluções: passa por uma mudança no

olhar que temos para com estas pessoas, nos quadros analíticos que recrutamos para

pensar os modos de vida, as experiências, as dificuldades, as superações, as

potencialidades destes indivíduos.

Ao procurar estudar a pessoa sem-abrigo numa tentativa de olhar além da

definição oficial redutora da realidade que observei aquando do trabalho de campo, fui

levada a consultar o trabalho de Prates, Prates e Machado (2011), na medida em que

estes autores alertam para a necessidade de evitar olhar para a população sem-abrigo

como sendo uma população da rua, pois “considerar que um sujeito é de rua seria o

mesmo que considerar que alguém é de casa ou de apartamento. (…) Ver essa situação

como estado e não como processo é um modo de reiterá-la, sem reconhecer a

perspetiva do movimento de superação (…).” (Prates, Prates e Machado 2011, 194), o

que me fez pensar a situação de sem-abrigo como um processo pautado por um conjunto

de experiências que coexistem num modo de vida que é especial e caracteristicamente

marcado pela ausência de uma casa, não sendo só isso mas também isso.

Em Prates, Prates e Machado (2011) é-nos apresentado como conclusão algo que

tomei como ponto de partida, anterior ainda a uma primeira ida ao terreno, que é

precisamente o “necessário reconhecimento da heterogeneidade [desta] população

[tendo] como consequência, a elaboração de estratégias diversas que contemplem as

particularidades desses sujeitos para possibilitar a superação dos processos de

rualização, evitando abordagens massificadas, a partir da criação de serviços

específicos com corpo profissional diferenciado e capacitado.” (Prates, Prates e

Machado 2011, 211).

Nesta tentativa de concetualização da pessoa sem-abrigo inerente a todo o

trabalho desenvolvido, da denominação de um todo com partes tão diversas que é o ser

“sem-abrigo”, olhamos por um lado os seus discursos onde o termo se funde com uma

realidade pautada para alguns pela ausência de uma casa e de recursos para manter uma

casa17 e para outros por um todo mais global que vai da falta de habitação, à falta de

trabalho, passando mesmo por uma ideia associada à inexistência de autoestima e de

17 Cf. entrevista a Marcelo

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motivação, de capacidades do “eu”18 para conseguir fazer face ao “ciclo” ou à “espiral”

associada àquilo que é percecionado por estes indivíduos como o ser (com a variação

entre ser e estar) sem-abrigo.

Barreto (1998/2000) refere a questão da relação entre o par “não ter habitação”-

“não ter trabalho” como duas faces distintas, na medida em que ao haver rendimentos

do trabalho, pensões, reformas, estes não garantem por si mesmos o acesso à habitação,

mas diz, tal como Aldeia (2011) e como os utentes do Refeitório, que o facto de não ter

habitação condiciona o acesso ao trabalho e o facto de não terem trabalho condiciona a

possibilidade de possuírem uma casa sua com recursos para a manter.

Ao focarmos, aqui, a população sem-abrigo é importante mencionar o trabalho

de Sousa e Almeida (2001), na medida em que estes autores vão procurar a voz destes

indivíduos para se poderem pronunciar sobre as suas necessidades e relações com os

serviços que são orientados para os auxiliar, tal como eu procuro também dar voz às

pessoas sem-abrigo com quem falei de modo a construir uma análise das suas

experiências e modos de vida nas apropriações e relações que mantêm.

Outro aspeto importante referido por estes autores é a ressalva que fazem acerca

da existência de um novo tipo de pessoa sem-abrigo, uma vez que as condições em que

vivemos hoje são diferentes daquelas vivenciadas há alguns anos atrás, o que acaba por

influenciar o tipo de necessidades e as problemáticas que podemos encontrar ao falar

sobre as experiências das pessoas sem-abrigo hoje (cf. Sousa e Almeida 2001).

Torna-se, de igual modo, interessante recrutar algumas ideias presentes em

Becker (1953), tais como aquelas que se prendem com a ideia de experiência como

fundamento de um dado comportamento (“a presença de um certo tipo de

comportamento é o resultado de uma sequência de experiências sociais, durante as

quais a pessoa adquire uma conceção do significado do comportamento (…)”19 (Becker

1953, 235, tradução minha)), que procuramos transportar para a análise da nossa

problemática de investigação.

Isto é, procuramos pensar as pessoas sem-abrigo e os comportamentos que estas

tendem a desenvolver com uma lente que tenha por base explicativa desses mesmos

18 Cf. entrevista a Francisco

19 “the presence of a given kind of behavior is the result of a sequence of social experiences during which

the person acquires a conception of the meaning of the behavior (…)” (Becker 1953, 235)

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comportamentos as experiências que foram e vão sendo vividas por estas pessoas,

moldando-as e reconfigurando a forma como se apercebem e autocategorizam não só os

seus modos de vida como, de igualmente e por conseguinte, a si mesmos.

No caso das pessoas sem-abrigo, tal como no caso que Becker (1953) nos

apresenta, existe todo um processo de aprendizagem pelo qual passam as pessoas ao

transitarem de uma situação em que têm um abrigo para a de pessoa sem-abrigo, seja no

que concerne as táticas de sobrevivência na rua, seja a nível de a que instituições

recorrer, em que sítios permanecer, que locais evitar20.

Tendo em conta as observações feitas durante o trabalho de campo conseguimos,

de certo modo, transportar-nos e à nossa população de estudo para aquilo que já Howard

Becker dizia na sua obra Outsiders: “Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em

certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las.” (Becker [1991] 2008, 15) –

tornando-se possível só ao olhar as interações no Refeitório encontrar estas regras do

grupo de utentes entre si como grupo, dentro de si como indivíduos diferentes

pertencentes por si a outros grupos, e com o “outro” representado na figura dos

voluntários e das regras que lhes são impostas ao frequentarem este Refeitório.

Becker ([1991] 2008) continua ainda na temática associada às regras do grupo

social, tal como nós continuamos através da observação participante, dizendo: “Regras

sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando

algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra

é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo

especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo

grupo. Essa pessoa é um outsider.” (Becker [1991] 2008, 15), o que nos leva a pensar

as formas e o modo de qualificação e os julgamentos assentes numa moral política que

tal implica, ou numa vinculação política assente em normatividades com cunho moral.

Ora, no caso da nossa pesquisa, quem será então o “outsider”? Como poderemos

definir “o grupo” a ser estudado uma vez que os elementos desse grupo são por si

mesmos “outsiders” em relação à sociedade no seu todo? Neste caso em particular não

serão as pessoas que vivem em conformidade com as regras da sociedade os “outsiders”

em relação à população observada? Através de que regras, experiências e valores surge

um “outsider” no grupo que procuramos estudar?

20 Cf. entrevista a Francisco; entrevista a Igor; entrevista a Jallah

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É ainda em Becker (2010) que somos levados a questionar, por um lado, a

importância das imagens que o indivíduo social constrói para si mesmo como

entendimento do seu contexto e das suas experiências e, por outro lado, a ideia de que

“aquilo que encontramos numa área da vida social pode, talvez, iluminar outras áreas,

mesmo aquelas aparentemente muito diferentes.” (Becker 2010, 17), o que nos levou a

analisar os discursos dos nossos interlocutores tendo por base a ideia de que a sua linha

de diálogo, as suas experiências, os seus modos de vida, acabam por ganhar uma nova

luz de entendimento quando relacionados entre si, ao invés de compartimentar o

conhecimento obtido em pequenas “caixas” desligadas umas das outras.

Uma das questões que se colocou ao ter como base empírica da presente

investigação os discursos das pessoas sem-abrigo acerca das suas experiências e modos

de vida foi a da veracidade dos mesmos, de um juízo a ser feito sobre se o que é

formulado por estas pessoas coincide com aquilo que é “a” verdade ou se, por outro

lado, devemos manter algumas reservas em relação ao que nos é dito, tal como as

voluntárias do Refeitório foram dizendo em forma de conselho.

Será através de Goffman (1956) que me proponho olhar uma solução para esse

paradigma entre a verdade factual e a verdade que cada indivíduo transmite quando

discursa sobre aquilo que entende ser a sua experiência, passando precisamente por uma

análise das formas através das quais estes indivíduos se vão apresentar no decorrer do

seu quotidiano, tendo em conta a salvaguarda do autor: “devemos estar preparados para

ver que a impressão da realidade obtida através de uma performance é uma coisa

delicada e frágil que pode ser destruída por percalços menores.”21 (Goffman 1956, 36,

tradução minha).

Olhamos, assim, uma organização discursiva, física e de desempenho perante

um “outro”, que passa por um encadeamento de assuntos, de momentos, de gestos e

expressões reveladoras daquilo que é importante para o “eu” que se dá a conhecer, que

se apresenta representando um determinado papel face à situação em que se encontra,

dando-nos a conhecer aquilo que para ele é importante, em dado contexto, dar a

conhecer (cf. Goffman 1956).

21 “we must be prepared to see that the impression of reality fostered by a performance is a delicate,

fragile thing that can be shattered by very minor mishaps.” (Goffman 1956, 36).

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Todo este trabalho em torno das pessoas sem-abrigo de Lisboa terá, portanto, um

especial enfoque nas experiências destas pessoas e serão essas experiências que irão

servir para obter quer um contexto quer uma tentativa de conclusão acerca dos

problemas por nós enunciados ao longo do trabalho.

Deste modo, utilizarei o conceito de experiência na esteira de Dewey, isto é, a

ideia de que a experiência conjuga os vários tempos da vida do indivíduo (passado,

presente e futuro) num processo de aprendizagem que significa, em último caso, a

integração do indivíduo (cf. Santos 2011).

Santos (2011) diz-nos ainda que Dewey pensa a experiência tendo por base o

“conhecimento acumulado ao longo do tempo. A experiência não se limita ao ato no

presente, mas também remonta ao que foi aprendido no passado e se reporta ao futuro

para se aprimorar a inteligência quando existe algum problema. O ser humano sofre a

experiência e reage ao mesmo tempo.” (Santos 2011, s.p.).

Além de Dewey (cf. Santos 2011), recrutamos para a nossa análise empírica o

conceito de “experiência” à luz do que Breviglieri (2008b) diz, na medida em que

define este conceito como “eixo de valor”, o que nos vai ajudar a suportar teoricamente

a nossa ideia de pensar as pessoas sem-abrigo com base nas experiências por si vividas

que nos levam não só ao seu passado como à importância que o mesmo teve e tem no

presente e a ideias que, com base nesse presente marcado pelo passado, são formuladas

em relação ao futuro.

Assim, podemos concetualizar a experiência destas pessoas sem-abrigo, na

esteira de Breviglieri (2008b), pela ideia da capacidade de um indivíduo tirar partido das

suas potencialidades para a solução das divergências e problemáticas com que se vai

deparando, o que acaba por ir ao encontro do que procuramos na análise da pessoa sem-

abrigo, é precisamente esta capacitação das potencialidades do “eu” pessoa para fazer

face à situação que o “eu” sem-abrigo enfrenta para, assim, conseguir (sobre)viver em

condições vulneráveis, não deixando de olhar com curiosidade para as questões de

como (con)viver quando se está nessas condições mais vulneráveis, como é que se vai

dar o apegar a alguém ou a algo numa vida pautada pelas carências e ausências.

Ao analisar a população sem-abrigo, uma população vulnerável, vista como

carente não só de meios de sustento financeiro e habitacional mas, como já referi acima,

também de afeto, comportando consigo uma imagem de grupo que vive à margem da

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sociedade, “outsiders” por si mesmos se comparados com a sociedade dita “normal” (cf.

Becker [1991] 2008), torna-se deveras interessante olharmos além de todos estes pré-

conceitos e, através de uma análise dos discursos como formas de agir, como

dispositivos operativos que trazem consigo e dos comportamentos que têm (no

Refeitório enquanto espaço onde o paradoxo autonomia-vulnerabilidade está muito

presente (cf. Breviglieri 2010b), uns com os outros e entre eles e os voluntários),

olharmos os seus motivos morais nas suas tentativas de justificação (cf. Boltanski 2001)

que, talvez por se tratar o nosso locus de observação de um espaço que tem por base a

ideia de tratar estes indivíduos como seres humanos, faz com que eles se sintam

capacitados de utilizar justificativas e críticas que, no dia-a-dia, não podem demonstrar

por serem, de certo modo, “desumanizados” perante a restante sociedade.

Torna-se interessante olhar para os comportamentos, para as interações, para a

forma como recorrem à crítica, à justificação, numa análise que tem por base a ideia de

que “contra as tentativas de redução das justificações, fornecidas pelos atores a

ideologias que dissimulam interesses e relações de força, tomámos o partido de levar a

sério as exigências normativas que as pessoas fazem a si próprias, as suas

justificações.” (Boltanski 2001, 15).

Ora, toda esta formulação de exigências normativas do “eu” das pessoas sem-

abrigo para consigo mesmas acaba por ser bastante visível num contexto pautado pela

palavra “ordem”, que tem um conjunto de “regras” que ao não serem cumpridas

levantam questões que catapultam o ator social para a formulação clara de um discurso

justificativo de onde se consegue facilmente extrair os seus motivos, as suas críticas, as

suas justificações perante determinada forma comportamental que tem.

Numa outra linha de pensamento ao analisar esta população pautada por um

quotidiano de experiências de ausência acabamos por recorrer às ideias de Paperman

(2013) quando olhamos as emoções que vão exprimindo estas pessoas, seja nas relações

mantidas e observáveis no Refeitório, seja nas relações de que nos falam em

confidência, seja ainda naquelas que estão presentes no discurso por eles formulado (cf.

entrevistas a todos os interlocutores e Diário de Campo).

Estas emoções vão exprimir algo não capturado pelas palavras mas percecionado

no tom de voz, na forma como se mexe as mãos, como se desvia o olhar ao falar de

determinado tema, como se evita ao nível do discurso um certo tópico escolhendo

outros para mencionar, acabando por revelar alguma incongruência discursiva que

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deverá ser ultrapassada numa análise atenta aos detalhes juntando a escuta ao olhar

nesta tentativa de compreender as relações sociais das pessoas sem-abrigo que estudei.

Os sentimentos surgem em Paperman (2013) também como um indicador da

pertença a um grupo ou coletividade. Isto é: “As regras dos sentimentos não são nada

mais que um conjunto de regras sociais, que contribuem para delimitar a pertença a um

grupo ou a uma entidade coletiva. Elas são um dos elementos da constituição do

coletivo, permitindo traçar uma linha de partilha entre aquele que manifesta uma

pertença, é reconhecido e identificável como tendo uma conduta inteligível pelo grupo e

aquele que, suprimindo as regras, perde essa inteligibilidade imediata, aquela que

advém da aceitação das condutas associadas às regras.”22 (Paperman 2013, 167-168,

tradução minha).

Procurando, então, analisar uma população vulnerável (no sentido dado pelo

paradoxo autonomia-vulnerabilidade, tal como referido em Breviglieri (2004)), entendi

que o contexto estudado implicaria uma dupla vulnerabilidade: estava a lidar com

pessoas sem-abrigo estrangeiras, na sua maioria, o que me levou a questionar se esta

particularidade de estar sem-abrigo num país que não o seu não acabaria por agravar a

vulnerabilidade acima referida.

Deste modo, debrucei-me no texto de Breviglieri e Stavo-Debauge (2004) onde

os autores analisam a fragilidade das identidades, nomeadamente dos imigrantes. Daí

consegui extrair algumas ideias interessantes a ter em conta aquando da aproximação à

população de estudo que procuro problematizar, como por exemplo quando os autores

mencionam que aquele que é imigrante “não é aquele que «vem ao mundo», ele é

aquele que «vem a um mundo» (depois de outro) perante o qual ele se apresenta pouco

ou mal equipado e que se espera que possa, no decorrer de um percurso, dizer e ser

dito como parte «desse mundo».”23 (Breviglieri e Stavo-Debauge 2004, s.p., tradução

22 «Les règles de sentiments ne sont rien de plus qu’une certaine sorte de règles sociales, contribuant à

délimiter l’appartenance à un groupe ou une entité collective. Elles sont un des éléments de la

constitution du collectif, permettant de tracer une ligne de partage entre ce qui manifeste l’appartenance,

est reconnaissable et identifiable comme conduite intelligible pour le groupe et ce qui, dérogeant aux

règles, perd cette intelligibilité immédiate, celle qui ressort de l’acceptabilité de conduites pouvant être

rattachées à des règles.» (Paperman 2013, 167-168)

23 «S’il n’est pas celui qui «vient au monde», il est celui qui «vient à un monde» (depuis un autre) pour

lequel il se présente peu ou mal équipé et dont on attend qu’il puisse, à l’issue d’un parcours, se dire et

être dit partie prenant «de ce monde».» (Breviglieri e Stavo-Debauge 2004, s.p.)

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minha) – o que nos pode levar a problematizar a aproximação destas pessoas sem-

abrigo ao “mundo” de Portugal e Lisboa, em particular, dotando-se para essa

aproximação de alguns dispositivos que vão possibilitar engajamentos, vinculações,

estar ligados ao “outro” ou, por outro lado, evitar o “outro”, desligar-se ou desapegar-se.

Sendo estes indivíduos imigrantes, vários entraves se colocam tendo em conta a

sua pertença à sociedade portuguesa, passando primeiramente pela aprendizagem da

língua (quando comecei o voluntariado no Refeitório havia quem não soubesse falar

outra língua além do russo, o que dificultava a relação e o auxílio) e, num outro

momento, pela adaptação às especificidades dos modos de vida que são diferentes

daqueles experienciados no seu país de origem, acabando por ser através das suas

relações sociais que vão aprender a orientar-se e que vão descobrir o Refeitório que

surge aqui muitas vezes como um primeiro dispositivo de apego destas pessoas

estrangeiras.

Coloca-se também a questão dos motivos e das implicações de quem se sujeita a

realizar esta mudança que tanta agitação causa ao “eu” num primeiro momento quanto

refletimos sobre “(…) a questão da fragilidade da sua pertença”24 (Breviglieri e Stavo-

Debauge 2004, s.p., tradução minha), na medida em que acaba por haver um jogo de

onde pertence e onde deixa de pertencer, com o que tal vai significar para possíveis

questões não só identitárias como também práticas – “Olhar a realidade da pertença

leva os investigadores a mostrarem-se atentos a um certo número de «lugares» onde se

anuncia a existência persistente de obstáculos que impedem o exercício de capacidades

e a obtenção de bens permitidos àqueles que pertencem «plenamente».”25 (Breviglieri e

Stavo-Debauge 2004, s.p., tradução minha).

Focando-nos ainda nesta dupla vulnerabilidade – de pessoa sem-abrigo e

estrangeira – temos de pensar, então, nos processos e nas experiências pelas quais estas

pessoas passaram desde o seu país de origem e da saída desse país, com os motivos

associados a essa saída, até hoje em Lisboa na situação de pessoas sem-abrigo, o que

leva a que olhemos a ideia tida em Breviglieri (2010a) de que “o primeiro

24 «(…) la question de la fragilité de son appartenance.» (Breviglieri e Stavo-Debauge 2004, s.p.)

25 «Se soucier de la réalité de l’appartenance amène les chercheurs à se montrer attentifs à un certain

nombre de «lieux» où s’annonce l’existence persistante d’obstacles entravant l’exercice de capacités et

l’obtention de biens promis à ceux qui «pleinement» appartiennent.» (Breviglieri e Stavo-Debauge 2004,

s.p.)

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acontecimento sofrido na migração emerge no momento de partida e tem que ver com a

separação dos que são próximos, com a perda e uma certa rutura com um mundo

familiar.”26 (Breviglieri 2010a, 58) – ou seja, teremos de recuar a nossa análise das

experiências destas pessoas sem-abrigo migrantes a um tempo passado, apelando à

memória de uma vida ancorada noutro país, com outras ocupações, outros modos de

vida e outras relações, de forma a percebermos o seu presente e a sua tentativa de

manter uma “coesão de vida” (cf. Breviglieri 2010a).

Ao conversar com pessoas sem-abrigo migrantes ou não migrantes torna-se

interessante a ideia de uma nostalgia em relação ao seu passado, seja ao nível de um

país onde outrora viveram com algumas posses, um trabalho, uma família e um conceito

de felicidade, seja ao nível de um passado onde, embora no mesmo país, tinham as suas

relações, trabalhos e estabilidade.

Olhamos, assim, estes discursos que nos levam ao conceito de nostalgia perante

um passado e um país que outrora formaram uma realidade distinta da que hoje

experienciam, à qual alguns se querem manter agarrados enquanto realização prática da

felicidade e de perspetivas futuras e outros se querem afastar devido a momentos de

rutura dolorosos ao ponto de não se ponderar um regresso ao país de origem – levando-

nos ao que Breviglieri (2010a) dizia pensando esta nostalgia associada a uma tentativa

de coesão do “eu”: “É, por conseguinte, através de uma frágil coesão identitária que

faz da nostalgia, não só um esforço notável leva a que o migrante se mova do seu lugar

de origem, instituído pelo próprio exílio, para o sítio onde ele vai; mas também há uma

inclinação retrógrada, uma postura desatualizada que tende a cristalizar esse lufar e a

dar-lhe uma forma fechada e definitiva. A coesão consolida-se mas numa quase-

virtualidade problemática, uma vez que ela não opera senão em detrimento de qualquer

encontro real, de qualquer possibilidade de descentramento da perspetiva, e na

impossibilidade de fundar um mundo comum num outro lugar onde a mediação do outro

é necessária.”27 (Breviglieri 2010a, 63).

26 «(…) le premier événement subi dans la migration émerge au moment du départ et prend le visage de

la séparation des proches, de la perte et d’une certaine rupture avec un monde familier.» (Breviglieri

2010a, 58)

27 «Il y a donc, à travers la fragile cohésion identitaire que permet la nostalgie, non seulement un effort

remarquable que produit le migrant pour déplacer son lieu d’origine, institué par l’exil même, là où il

va ; mais il y a aussi une pente rétrograde, une posture passéiste qui tend à cristalliser ce lieu et à lui

donner une forme close et définitive. La cohésion se consolide alors, mais dans une quasi-virtualité

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É, prosseguindo com a problematização da “nostalgia” presente no discurso dos

nossos interlocutores, que retornamos à ideia de “habitar” – bastante central num

trabalho sobre uma população sem um abrigo, sem uma estabilidade associada ao seu

habitar, sem um local certo, fixo, permanente que possam “habitar”, mas que acabam

por, através de diversas táticas adotadas, aprendidas, observadas, base de um jogo de

tentativa-erro, encontrar um conjunto de espaços que vão ser por si “apropriados”, logo

“habitados”, na esteira do que Breviglieri (2010a) diz: “Habitar supõe uma certa

ancoragem fenomenal do corpo, alimentada por uma matriz de experiências familiares,

um conjunto de emoções tranquilizantes procuradas na intimidade da casa, uma sutura

afetiva que tem cada um como ligado aos que lhe são próximos por um laço não-

arbitrário” (Breviglieri, 2002 in Breviglieri 2010a, 63, tradução minha28).

Conseguimos já depreender que uma das problemáticas com que nos deparámos

no âmbito da investigação, no seu momento mais prático, e que se tornou impossível

não olhar com mais atenção, foi a questão da imigração e da forma como o acolhimento

destas pessoas migrantes pelo país de destino (Portugal) acabou por ditar a forma como

estas se adaptaram e o estilo de vida que acabaram por manter num país que sentem ser

pouco deles face ao seu país de origem.

Deste modo, tornou-se importante, na medida em que catapultou o nosso

interesse para outros parâmetros que não os pensados inicialmente, pensar esta questão

da imigração e do direito à cidadania com base no texto de Lacroix (2012).

Esta autora menciona questões que já tínhamos concebido, tais como a

vulnerabilidade e a precariedade, orientando estas questões em torno do migrante (cf.

Lacroix 2012), daquele que sai do seu país de origem, do seu espaço de familiaridade e

segurança, e se dirige para um outro país muitas vezes em busca de um futuro melhor e

acabando, nos casos por nós estudados, por sucumbir a uma vida vulnerável, sem

apoios, com carências monetárias, habitacionais e afetivas (mencionando apenas

algumas), acabando por se tornar sem-abrigo e viver na rua nos casos mais extremos.

problématique car elle ne s’opère qu’à la défaveur de toute rencontre véritable, de toute possibilité de

décentrement de perspective, et dans l’impossibilité de fonder un monde commun dans un ailleurs où la

médiation de l’autre est requise.» (Breviglieri 2010a, 63)

28 «Habiter suppose un certain ancrage phénoménal du corps, nourri par une matrice d’expériences

familières, un foyer d’émotions sécurisantes procurées dans l’intimité du chez soi, une suture affective

qui tient chacun comme attaché aux proches par un lien non-arbitraire» (Breviglieri, 2002 in Breviglieri

2010a, 63)

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Somos, então, alertados para o facto de que “Certas categorias de pessoas,

incluindo migrantes sem documentos, vítimas de tráfico, trabalhadores temporários,

trabalhadores sazonais, trabalhadores domésticos, e pessoas que procuram asilo, são

mais vulneráveis do que outras devido à natureza precária do seu estatuto de

imigração. Significando precária que eles não sabem se lhes vai ser permitido ficar ou

não no país, se vão ter um estatuto de residência permanente, se podem pensar em

assentar no país anfitrião a longo prazo como cidadãos com os mesmos direitos que

devem ser tidos para todos, independentemente do estatuto de imigração. Estes

migrantes caem na categoria de pessoas que foram relegadas para as margens não só

das políticas sociais e de imigração, e da participação social nas políticas de

acolhimento, eles também veem negados os direitos de cidadania na sua totalidade.”29

(Lacroix 2012, 97, tradução minha).

Acabamos, assim, por ter em mente uma das principais conclusões de Marie

Lacroix (2012) – “O argumento apresentado neste ensaio é de que a natureza precária

do estatuto de imigração experienciado pelas várias categorias de migrantes nas

diferentes partes do mundo (…) é definido por processos de exclusão social universais

que são um resultado direto das políticas sociais e de imigração e, num nível

individual, caracterizadas pela ansiedade e incerteza.” (Lacroix 2012, 97, tradução

minha30) – quando olhamos as pessoas sem-abrigo migrantes com as quais nos

deparamos, ajustando, pois, a forma como pensamos as possíveis soluções e influências

das características “migrante” e “vulnerável” na experiência e nos modos de vida destas

pessoas, não deixando, precisamente, de sublinhar a importância, tanto em Lacroix

(2012) como no meu trabalho, de analisar os discursos das pessoas em questão.

29 “Certain categories of people, including undocumented migrants, victims of trafficking, temporary

workers, seasonal workers, domestic workers, and asylum seekers, are more vulnerable than others due

to precarious nature of their immigration status. Precarious meaning that they do not know if they will be

allowed to stay or not in the country, if they will be given permanent residency status, if they can envisage

settling in the host country for the long term as citizens endowed with the same rights that should be

accorded to all, regardless of immigration status. These migrants fall into a category of people that have

been relegated to the margins not only of social and immigration policies and of social participation in

host polities, they are also denied full citizenship rights.” (Lacroix 2012, 97)

30 “The argument presented in this paper is that the precarious nature of immigration status experienced

by various categories of migrants in different parts of the world (…) is defined by universal processes if

social exclusion that are a direct result of immigration and social policies and, at an individual level

characterized by anxiety and uncertainty.” (Lacroix 2012, 97)

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Ao estar a analisar uma população que, como vimos, é composta por alguns

imigrantes, nomeadamente alguns dos países de Leste, torna-se interessante olhar para a

questão da integração destas pessoas em Portugal, que se apresenta muitas vezes como

uma das problemáticas que leva à situação de sem-abrigo.

Recorri, então, ao trabalho realizado por Castro e Marques (2008) pela forma

como analisam esta questão, com a importância que tem para esta investigação, que é a

da integração dos imigrantes no país que os vai receber (neste caso, Portugal). Tendo

como base essa integração são analisadas as categorias de legalização, língua e

educação, percursos profissionais, habitação e mobilidade territorial, acolhimento e

relações interétnicas, segurança social e, por fim, saúde.

Coloca-se, então, a questão de como é que estes indivíduos participam das

pluralidades mantidas e perpetuadas no quadro da realidade social em questão. Como

falar de cidadania daquele que ainda tem questões de pertença por resolver? Como

integrar sem homogeneizar, sem retirar àquele que chega os seus princípios-base tidos

na relação com o país em que outrora viveu? Transportando-nos para um sistema de

auxílio às pessoas sem-abrigo migrantes: como auxiliar na pertença e na vulnerabilidade

sem retirar autonomia e poder de escolha?

As Pessoas Sem-Abrigo e o Espaço: Apropriar Habitando

Uma vez que nos encontramos a realizar um trabalho sobre a apropriação do

espaço pelas pessoas sem-abrigo, torna-se importante problematizar esta noção de

espaço, seja enquanto “espaço público”, seja como espaço do comum (cf. Pattaroni

2016), seja enquanto espaço onde se vai inserir e desenvolver o indivíduo.

Esta ideia surge explícita quando Pattaroni (2016) nos diz que podemos refletir

sobre o espaço através de dois eixos, ou seja, “através da experiência e dos

fundamentos antropológicos do agir, por um lado, e através da instituição do comum e

dos fundamentos políticos de viver em conjunto, por outro lado.” (Pattaroni 2016, 1,

tradução minha31), sugerindo ainda uma outra abordagem que passa por uma “leitura

plural” deste espaço que é político, tem vários formatos e temem si uma relação com as

pessoas numa formulação daquilo que vai ser o comum. 31 «vers l’expérience et les fondements anthropologiques de l’agir d’une part et vers l’institution du

commun et les fondements politiques du vivre ensemble d’autre part.» (Pattaroni 2016, 1)

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Aqui o espaço de que falamos é mais do que um simples local onde acontecem

os processos sociais, é antes um fator bastante importante na estrutura sociedade e

desses mesmos processos e fenómenos (cf. Pattaroni 2016), na medida em que se vai

desenvolver uma relação entre os atores sociais e o espaço por eles habitado,

apropriado, em que um irá influenciar a experiência do outro, que por sua vez vai

marcar (cf. Veschambre 2004 e a ideia de marcação do espaço), alterando, assim, esse

espaço. Falamos, pois, de “uma conceção de espaço que o liga, por sua vez, à questão

da experiência situada das pessoas – a questão do agir – e à questão da instituição do

comum – a questão das estruturas.” (Pattaroni 2016, 2, tradução minha32), sendo estas

duas questões interligadas na forma como é percecionado o espaço na Sociologia

Pragmática e no trabalho apresentado.

Somos confrontados com uma noção de prática espacial que se vai associar à

ideia de um código (cf. Pattaroni 2016), que já acima mencionei querer compreender, ou

seja, quero entender como é que as pessoas que vou analisar desenvolvem uma prática

espacial com os seus códigos próprios, uma vez que possuem muito poucas coisas que

delimitem determinado lugar como seu, como alvo das suas práticas e em relação com

as suas experiências, operando este código que procuro ao nível de “relacionar a

experiência individual e a constituição do comum necessária para dar à questão

espacial toda a sua importância social. Ou por outras palavras, ela contém uma teoria

da ação que permite ter em conta a interação entre a espacialidade de uma situação e

as formas de relação das pessoas.” (Pattaroni 2016, 9, tradução minha33).

Olhamos o papel do espaço na estrutura do social, na esteira de Pattaroni (2016),

na medida em que analisamos “a maneira como a produção do espaço se realiza

através de uma delimitação das modalidades da experiência e das qualidades do

comum.” (Pattaroni 2016, 16, tradução minha34), numa ideia de pensar não só a

32 «d’une conception de l’espace qui le lie à la fois à la question de l’expérience située des personne – la

question de l’agir – et à la question de l’institution du commun – la question des structures.» (Pattaroni

2016, 2)

33 «la mise en relation entre l’expérience individuelle et la constitution du commun nécessaire pour

donner à la question spatiale toute son importance sociale. En d’autres termes, elle contient une théorie

de l’action permettant de rendre compte de l’interaction entre la spatialité d’une situation et les formes

d’engagement des personnes.» (Pattaroni 2016, 9)

34 «la manière dont la production de l’espace se réalise au travers d’une délimitation des modalités de

l’expérience et des qualités du commun.» (Pattaroni 2016, 16)

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experiência do “eu” em determinado local como também a importância d comum na

modelação desse mesmo espaço.

Encaramos, aqui, o espaço como desempenhando um conjunto de papéis tais

como o de estruturação da experiência, numa ideia de uma trama sociológica do espaço

onde os seus papéis múltiplos acabam por surgir interrelacionados num agregado entre,

por um lado, a experiência do indivíduo e, por outro, a estrutura e a instituição,

orientadas para uma produção do comum (cf. Pattaroni 2016).

Abordando agora a população sem-abrigo na sua relação com a cidade somos

confrontados com uma realidade pautada pela movimentação, pela errância, quase por

uma demarcação de percursos, na medida em que o quotidiano destas pessoas acaba por

ser semelhante ao passar do tempo, os sítios aos quais se recorre vão sendo os mesmos,

os trajetos acabam por definir todo um estilo de vida, bem como as experiências que lhe

vão ser adjacentes.

Deste modo, apoiamo-nos na esteira de Michel de Certeau (1998), de forma a

olharmos precisamente as vidas caracterizadas pela errância, pelo caminhar que se torna

a forma de “habitar” a cidade mantida pelas pessoas sem-abrigo numa relação dialética

onde “cidade” aparece concetualizada como algo associado àquele que percorre o

espaço que lhe é inerente.

Se nos cingirmos a um caminhar das pessoas sem-abrigo, ou seja, das pessoas

que não têm uma casa própria, que não habitam um lugar de familiaridade, que vivem

num trajeto permanente e sem retorno a um ponto base, se analisarmos as problemáticas

levantadas por este duplo movimento entre cidade e pessoa sem-abrigo, moldando-se

entre si numa relação dialética, então, temos que “Caminhar é ter falta de lugar. É o

processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância

multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social de privação

de lugar – uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e

ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas relações e os cruzamentos

desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob o signo do que

deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a Cidade.” (Certeau 1998, 183; cf.

Breviglieri e Stavo-Debauge 2007).

Também a identidade das pessoas por mim analisadas vai estar intrinsecamente

relacionada com esta apropriação do espaço-cidade que se transporta num quotidiano de

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caminhos e percursos, o que nos leva a refletir sobre como “a identidade fornecida por

esse lugar [a cidade] é tanto mais simbólica (nomeada) quanto, malgrado a

desigualdade dos títulos e das rendas entre habitantes da cidade, existe somente um

pulular de passantes, uma rede de estradas tomadas de empréstimo por uma

circulação, uma agitação através das aparências do próprio, um universo de locações

frequentadas por um não-lugar ou por lugares sonhados.” (Certeau 1998, 183).

Será, ainda, através de Certeau (1998) que podemos pensar a questão da

memória associada a um passado que imprime a atualidade tal como ela é, moldando-a

através das experiências já vividas num conjunto de realidades que irão orientar um

conjunto de expectativas para um futuro desconhecido hoje. Em relação à população

sem-abrigo, nomeadamente àqueles que são migrantes, somos levados a transpor a ideia

de memória um pouco mais além, juntando-a ao conceito de nostalgia e de que “o

memorável é aquilo que se pode sonhar a respeito do lugar.” (Certeau 1998, 190), e é

precisamente esta memória que vamos encontrar ao falar das experiências e da história

de vida dos nossos interlocutores.

O que significa, então, “habitar” junto de um conjunto de pessoas que, por

definição oficial e operacional, não tem um abrigo, uma casa, um espaço associado à

intimidade, proteção, privacidade? Como é que podemos olhar as formas de

“habitabilidade” (cf. Breviglieri 2006) destes indivíduos na cidade? Existe uma

apropriação de um espaço na cidade? Será que ao demarcarem um percurso, tornando-o

algo do quotidiano, não se apropriam – momentaneamente – de um lugar na cidade?

Como pensam estas pessoas o “meu”, o “teu”, o “nosso”, o “público”, o “privado”?

Quais as noções e definições que pautam a sua vida diária?

Marc Breviglieri (2006) diz que “habitar faz com que nos apeguemos”

(Breviglieri 2006, tradução minha), continuando com a ideia de que “os seres e as

coisas que nos habitam inscrevem, no centro da nossa personalidade, um fundo de

história partilhada que é sentida na dimensão afetiva do apego” (Breviglieri 2006, 9,

tradução minha35), o que me leva a questionar as formas de apego em vigor no grupo

que estudei.

35 «les êtres et les choses qui nos habitent inscrivent, au cœur de notre personnalité, un fond d’histoire

partagée qui est ressenti sous la dimension affective de l’attachement.» (Breviglieri 2006, 9)

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Isto é, como é que se vai tornar possível falar de termos como “habitar” e, por

sua vez, “apegar” a algo, com uma população que por princípio não terá nada de seu? A

decisão que tomei na estruturação de tópicos de conversa a manter com as pessoas sem-

abrigo foi de contornar, de modo a que fossem os próprios a mencionar essa temática.

Perguntei acerca de objetos, de espaços, de locais, para no fim ser construído um

discurso de “habitabilidade” com o consequente apego e, de facto, foi o que encontrei,

na medida em que estas pessoas vão optar por um mesmo sítio de pernoita, por um

mesmo espaço para viver o quotidiano, por um traçar de uma rotina, de um conjunto de

regras e imposições com vista a “ocupar/passar o tempo” (cf. entrevistas a todos os

interlocutores).

Esta questão do “habitar” coloca-se de forma pertinente quando estudamos a

população sem-abrigo, principalmente se pensada na esteira de Breviglieri (2006), na

medida em que este autor vai dicotomizar de um lado as facilidades associadas a ter um

local que se “habita” com os respetivos laços afetivos e apego, e de outro lado a ideia de

que o ser humano persegue desde os primórdios da sua existência um conceito de

liberdade por oposição à “rotina, uma rotina capaz de tiranizar o habitante nos seus

ritmos de vida e de o deixar incapaz de rever a sua existência, alienada e renunciada.”

(Breviglieri 2006, 10, tradução minha36).

Outra ideia interessante de se associar ao conceito de “habitar” é a questão do

futuro e de uma certa estabilidade que lhe está incutida na sociedade em que nos

inserimos, na medida em que, ao ter um local onde habita, a pessoa sabe onde se vai

manter no futuro, o que não a impede de mudar de local de habitação mas dá uma certa

estabilidade, ou seja, acaba por estabelecer um laço de confiança e responsabilidade em

relação àquele que habita e tem onde habitar (cf. Breviglieri 2002; 2006).

“Habitar”, quando quem é questionado é uma pessoa que não tem onde “habitar”

ou que saiu do país que outrora “habitou”, torna-se um tema sensível e de abordagem

complexa por estar associado a uma nostalgia desse país que se “habitou” e não “habita”

mais, dessa casa, dessa segurança, dessa familiaridade que levou ao apego a um espaço

e a quem pertencia à comunidade envolvente desse espaço, ou seja, a pessoa acaba por

36 «la routine, une routine capable de tyranniser l’habitant dans ses rythmes de vie et de le rendre

incapable de réviser son existence, aliénée et démissionnaire.» (Breviglieri 2006, 10)

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produzir um discurso de perda nostálgica associado ao conceito de “habitar” (cf.

Breviglieri 2002; 2006).

Relacionar, confiar, apegar: um olhar para o afeto nas pessoas sem-abrigo

Na estrutura deste trabalho há alguns conceitos aos quais não podemos escapar,

visto estarmos a analisar a população sem-abrigo de Lisboa, como é o caso, por

exemplo, das ideias associadas à pobreza e à exclusão social, seja no que cada uma tem

de específico face à população por mim estudada, seja aquilo em que se juntam para dar

um contexto de vulnerabilidade às histórias de vida que vamos ouvindo.

Assim, recorremos a Lavinas (2002) para concetualizar de forma sistemática este

panorama de pobreza urbana e exclusão social, falando-se do surgimento da primeira

com o desenvolvimento das grandes cidades e de uma preocupação com um restauro da

ordem social face à precariedade das populações provenientes do campo, sendo, pois,

marcadamente um fenómeno urbano – “A pobreza é urbana porque cada vez mais as

formas de regulação de pobreza são medidas por compromissos instituídos no processo

de construção da cidadania urbana.” (Lavinas 2002, 27).

Já em relação à exclusão social somos colocados perante um conceito “mais

amplo que o da carência ou do deficit de renda para informar o debate da pobreza. É

transitar do universo restrito do não atendimento das necessidades básicas e vitais

para o espaço da equidade, da emancipação e do pertencimento.” (Lavinas 2002, 27),

logo algo que também encontramos nos discursos dos nossos interlocutores quando os

questionamos acerca do modo como os outros interagem consigo e como pensam eles

que são vistos e percecionados pelo cidadão que tem a sua casa, o seu trabalho, a sua

família (cf. entrevistas a todos os interlocutores).

Se vamos falar da população sem-abrigo um dos pressupostos que temos de ter

em mente é o contexto (cf. Goffman 1986 e o conceito de frame) em que vivem e o

facto de este ser pautado por um conjunto de ausências (ausência de abrigo, de trabalho,

de família, de afeto, de proximidade, de auxílio, de segurança, de intimidade) que

acabam por moldar as experiências destas pessoas nas quais nos debruçamos neste

trabalho.

Pizzio e Veronese (2008) auxiliam-nos a pensar esta Sociologia das Ausências

em contextos pautados pela desqualificação social, o que podemos facilmente

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transportar para o nosso campo de observação, na medida em que não só olhamos

contextos e vivências de ausências (como explicado acima), mas também nos

deparamos com pessoas que são pensadas através de um ponto de vista desqualificante,

como um conjunto que não acrescenta valor à sociedade, logo acaba por ser

“descartável” (cf. Mendes 2010), como um todo tomado por incapaz, por culpado da

situação em que vive, por estando condenado a um modo de vida de dificuldades e

ausências.

A noção de “desqualificação social” surge, então, como sendo sinónimo de

“abordar questões relativas à situação de pobreza vinculadas aos processos de

exclusão do mercado de trabalho. Trata-se de (…) estudar a diversidade dos status que

definem as identidades pessoais, ou seja, os sentimentos subjetivos acerca da própria

situação que esses indivíduos experimentam no decorrer de diversas experiências

sociais e, enfim, as relações sociais que mantêm entre si e com o outro” (Paugam 2003,

p. 47 in Pizzio e Veronese 2008, 52).

Tal acaba por ser reportado no meu trabalho na medida em que não só me

deparei com uma população pobre como igualmente excluída do mercado de trabalho,

situação essa que vai obrigatoriamente afetar a forma como se percecionam e auto-

categorizam, revelando uma autoestima extremamente baixa face às experiências que

vivenciam e às (escassas) relações que mantêm com o “outro” (cf. entrevistas a todos os

interlocutores).

Esta ideia de desqualificação social surge no nosso panorama de estudo como

estando intimamente associada a uma pobreza que desqualifica por si só contribuindo

para a primeira noção, uma vez que “alude a condições precárias de vida vistas como

ameaça à coesão social. Em outras palavras, fala-se aqui de uma precariedade

económica e social que revela a existência de um contingente de indivíduos

economicamente desnecessários e supérfluos, ao mesmo tempo que supostamente

exporiam um modo de vida caracterizado pela instabilidade conjugal, pelo baixo nível

de participação nas atividades sociais e por uma vida familiar «inadequada».” (Pizzio

e Veronese 2008, 52). Trata-se de um conceito utilizado no presente trabalho não só por

ser retirado dos discursos mantidos pelos meus interlocutores quando em situação de

entrevista, como também dos discursos escutados no Refeitório entre conversas dos

utentes e conversas da equipa de voluntários, que vão perpassar esta noção de

precariedade e instabilidade.

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Neste olhar focado na “desqualificação social” torna-se interessante pensar “um

processo percebido através de uma trajetória de vida (visto de forma longitudinal), na

qual experiências e situações estigmatizantes são vivenciadas e interiorizadas, com

efeitos negativos sobre as condições sociopolíticas e sobre a autoestima.” (Pizzio e

Veronese 2008, 58; cf. Breviglieri e Stavo-Debauge (1999) e a questão de uma análise

com base num “duplo horizonte temporal”; Heinich (2014) e a ideia de análise com

base numa “reconstrução histórica”), tal como eu tentei fazer no decurso das entrevistas

e observações que foram sendo realizadas junto dos utentes do Refeitório, numa análise

que procura desmistificar essa “desqualificação” e virar-se antes para uma

potencialização das capacidades do indivíduo e da experiência do mesmo como algo

que acrescenta um valor incalculável ao trabalho de quem procura saber o como e o

porquê desta população sem-abrigo.

É, então, a Pizzio (2009) que recorremos para obter esta visão mais positiva do

nosso panorama de análise através da noção de “qualificação social”, sendo esta

pensada enquanto “o processo em que os indivíduos alicerçados em práticas e valores

experimentam um desenvolvimento em âmbito económico, político e social, que serve

de base para que vivifiquem os laços sociais, contribuindo para a satisfação de

objetivos comuns, no exercício da cidadania e da capacidade de se fazer representar na

esfera pública, adquirindo, assim, maior autonomia como sujeitos.” (Pizzio 2009, 227).

Eis aqui aquele que deveria e deve ser o objetivo do auxílio prestado às

populações mais vulneráveis, esta qualificação do “eu” que passa a ser visto não como

alguém com algo em falta, com uma ausência de algum tipo ou estilo, mas antes como

alguém que tem capacidades e um potencial para ser responsabilizado, autonomizado e

individualizado no exercício da cidadania, de um papel no espaço público, de ser uma

pessoa capaz, um sujeito autónomo no mundo em que vivemos.

Temos, então, que as pessoas sem-abrigo podem ter na sua concetualização uma

relação estabelecida com a ausência. Ora, Mendes (2010) vai levar-nos a pensar numa

ausência de direitos associada a uma não produção de valor e a uma ideia de

invisibilidade (ou ausência de visibilidade (cf. Aldeia 2011 e as questões de visibilidade

das pessoas sem-abrigo)) por serem parte de um grupo instável que, ao não produzir

valor numa sociedade orientada para esse tipo de produção acaba por ser abarcado pelo

conceito de “grupos descartáveis” (cf. Mendes 2010).

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É precisamente essa invisibilidade e essa ideia de “ser descartável” que quero

evitar e contornar através deste trabalho, ou seja, quero dar voz a quem por norma não

tem momentos para ser ouvido, para se explicar, justificar, criticar, para falar das suas

experiências e da sua realidade, de modo a que, ao invés de “descartável” numa

sociedade onde a produção é valorizada, seja potenciado e humanizado num trabalho de

recuperação face às ausências com que se depara.

Pensando nos dispositivos de auxílio a esta população, no cuidado a ser tido e

mantido para com estas pessoas sem-abrigo vulneráveis e com as suas problemáticas e

ausências que de um modo ou de outro se vai procurar colmatar, assim, abordamos “o

cuidado, numa perspetiva sociológica,” como uma ação que “permite a definição de

problemas morais e os modos para enfrentar os mesmos” (Mendes 2010, 453).

Outra abordagem interessante de se perspetivar com base em Mendes (2010) é a

importância do corpo na pessoa sem-abrigo, ou seja, “o corpo, constituído como um

fenómeno social na esfera pública, é e não é meu. E é a vulnerabilidade de um corpo

singular, de vários corpos, de grupos e de comunidades que deve ser reconhecida para

que a atenção que lhes é dispensada seja potenciadora de um encontro ético. A

vulnerabilidade depende das regras existentes de reconhecimento” (Butler, 2004, p. 43

in Mendes 2010, 453-454; cf. Waskul e Vannini (2006) e o “corpo social”) – procuro,

assim, pensar estes corpos sociais da pessoa sem-abrigo com a vulnerabilidade que lhes

é adjacente ao não serem possuidores de um abrigo que os conforte e mantenha seguros

face às intromissões exteriores.

Estando a trabalhar sobre uma população que, à partida, tem um quotidiano

pautado pela ausência de regras, de ordem, de rotinas, torna-se interessante observar

como, ao frequentarem o Refeitório todo um conjunto de regras de convivência lhes

passa a ser imposto, ou seja, para um bem-estar geral estas pessoas, muitas vezes

caracterizadas pela ausência de regras, princípios e valores que vão de acordo com

aqueles perspetivados na sociedade, acabam por ser “corpos dóceis” porque

“docilizados” através de um exercício de disciplina por parte da instituição a que

recorrem (cf. Foucault [1975] 2013).

Ora, para melhor analisarmos estes corpos que passam de indomáveis, não

regrados e sem ordem, a um conjunto que coexiste (mesmo que só no período de

almoço) num mesmo espaço, abarcado pelas mesmas regras e princípios, passíveis de

consequências caso entrem em incumprimento, devemos reportar-nos a Foucault

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([1975] 2013), quando este refere que a disciplina “dissocia o poder do corpo; faz dele,

por um lado, uma «aptidão», uma «capacidade» que procura aumentar; e, por outro,

inverta a energia, a força que daí poderia resultar, e faz dele uma relação de sujeição

estrita. Se a exploração económica separa a força e o produto do trabalho, pode dizer-

se que a coerção disciplinar estabelece no corpo o laço coercivo entre uma aptidão

aumentada e um domínio acrescido.” (Foucault [1975] 2013, 160).

O eixo da minha investigação que procuro abordar neste subcapítulo é

precisamente aquele que passa pela problematização dos modos de relação que as

pessoas sem-abrigo desenvolvem com o “outro” sendo esse “outro” uma multiplicidade

de personagens (aquele que é também sem-abrigo, aquele que é um cidadão com posses

e uma vida organizada e estável e que passa e prossegue com a sua vida, aquele que é

voluntário e a quem se recorre quando é sentida a necessidade de auxílio).

Para obter algum suporte teórico para esta problematização das relações que as

pessoas sem-abrigo vão mantendo independentemente ou precisamente por causa da

situação de carência em que se encontram, recorri ao trabalho de Rosa e Guadalupe

(2015), pois, será com esse mesmo trabalho que nos vamos permitir “através dos

discursos de pessoas que experienciam a situação de sem-abrigo, compreender como

são vivenciadas as ruturas com os laços sociais e como são equacionados os laços

sociais.” (Rosa e Guadalupe 2015, 157), partindo do princípio de que surge como sendo

inerente ao ser humano (diferenciando-o do ser animal) a ideia de manter laços com o

“outro”, uma relação de confiança e apego com outrem e que varia ao nível da

proximidade e do tipo de relação a ser estabelecida.

Rosa e Guadalupe (2015) levaram-me também a ponderar uma situação que

acabou por influenciar a forma como abordei o terreno de estudo, isto é, há um alerta de

que a população que queria estudar vive numa situação onde “a confiança também é

afetada, pela forma como se vive a situação de rutura, pelo que a reconstituição deste

tipo de laço ou a criação de novos vínculos eletivos significativos podem demorar

algum tempo.” (Rosa e Guadalupe 2015, 165). Isto levou-me a entender que para

melhor chegar a diálogo com a minha população de estudo seria necessário optar por

uma abordagem que me pusesse em contacto permanente com estas pessoas algum

tempo antes de poder começar a fazer perguntas sobre os seus modos de vida e as suas

experiências, numa procura daquilo que seria a sua verdade face às questões colocadas.

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Assim sendo, pensamos esta confiança como base das relações sociais, ou seja,

como na esteira de Soulet (in Balsa 2006), “A confiança está na base das relações

sociais (…). Neste sentido, a confiança é um pré-requisito essencial para se agir em

sociedade, para se iniciar uma ação significativamente orientada para o Outro.”

(Soulet in Balsa 2006, 1), sendo tal deveras importante ao considerar a relação

estabelecida, ou a estabelecer, entre investigador e investigado(s), uma vez que me

encontrava a recolher dados acerca dos modos de vida e experiências destas pessoas

que, ao serem vulneráveis, acabam por ter um cuidado especial com as relações que

optam por manter e com as pessoas em quem confiam ou não (cf. Lundȧsen (2002) e as

definições de “confiança”; entrevista a Marcelo; entrevista ao senhor Mário).

No eixo das relações com o outro e tendo em conta o que nos é transmitido por

Pereira, Vala e Leyens (2009), podemos questionar a forma mais ou menos humana

como determinados grupos de pessoas são tratados pela sociedade. Esta problemática é

algo que me acompanhou desde que foi delimitado o tema e o campo de estudo.

Assim, desde o início que os modos de tratamento e o conjunto de atitudes

demonstrado por parte do cidadão “normal” para com a população sem-abrigo, aquele

olhar que passa mas não olhar, juntamente com o tratamento predominantemente

estatístico (cf. Aldeia 2011) da situação experienciada por esta população, levantou

diversas inquietações em relação ao que podemos apelidar, tendo em conta Pereira, Vala

e Leyens (2009), de infra-humanização (“a forma pela qual os membros exteriores ao

grupo são privados de uma humanidade completa através da atribuição de menos

características unicamente humanas, tais como emoções secundárias (i.e., amor,

desprezo) do que aquelas do grupo de pertença (…).”37 (Pereira, Vala e Leyens 2009,

336, tradução minha)), levando-nos a procurar um olhar mais cuidado (cf. Breviglieri e

Stavo-Debauge 2007 e a importância do olhar), mais sensibilizado, mais preocupado

que torne estas pessoas, bem como as suas experiências e modos de vida, num conjunto

populacional humanizado, dotado de uma voz, de características, táticas, problemas e

soluções.

Nesta relação com o “outro” podemos olhar o texto de Balsa (2014) num

questionamento da ação desenvolvida junto da população sem-abrigo ao nível das

37 “the way in which outgroup members are deprived of complete humanness by attributing them fewer

uniquely human characteristics, such as secondary emotions (i. e., love, contempt) than to ingroup

members (…).” (Pereira, Vala e Leyens 2009, 336)

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Políticas Públicas a serem implantadas, na medida em que nos ajuda a pensar a nível

estratégico o papel que não só o Estado, como também outros vários atores a serem

mobilizados, podem ter na tentativa de encontrar soluções adaptáveis à minha

população de estudo, agindo em prol de uma potenciação das capacidades destes

indivíduos seja ao nível laboral ou habitacional.

Marc Breviglieri (2005) é interessante de ser analisado também tendo em conta

as Políticas Públicas, nomeadamente o trabalho social desenvolvido junto das

populações mais vulneráveis, num percurso evolutivo que “não se contenta mais em

situar o seu paciente numa classe beneficiária, mas procura conduzir, com ele, uma

ação conjunta e personalizada. (…) Sobre a frente da intervenção social, os

trabalhadores sociais, ocupados com o desafio de uma responsabilização dos pacientes

tendo em conta o seu futuro, utilizaram duas ferramentas (…): o contrato e o projeto

individual.” (Breviglieri 2005, 220, tradução minha38).

Aqui também olhamos esta proximidade como algo positivo que pode comportar

em si algo negativo, isto é, pode dar lugar a uma emancipação do indivíduo, tendo em

conta a ação social realizada em prol de uma autonomização das pessoas a quem vai ser

aplicada, devendo, no entanto, ser mantido o alerta em relação a um excesso de

assistencialismo paternalista que “emite uma poderosa desqualificação de laços

paternalistas ou clientelistas que podem jogar-se nestes modelos de bondade fundados

sobre o próximo”39 (Doidy 2005 in Breviglieri 2005, 221, tradução minha).

Breviglieri (2005) menciona no seu texto algo que também eu fui conseguindo

observar ao longo do trabalho de campo que realizei no Refeitório junto da população

sem-abrigo, nomeadamente quando somos levados a pensar a fragilidade ou

vulnerabilidade dos utentes deste dispositivo de auxílio perante um julgamento que vem

sido tecido por parte dos elementos integrantes da sociedade, o que mais cedo ou mais

tarde acaba por ter repercussões na forma como estes indivíduos se categorizam,

percecionam e auto-etiquetam.

38 «il ne se contente plus de situer son patient dans une classe bénéficiaire, mais prétend conduire avec

lui une action conjointe et personnalisée. (…) Sur le front de l’intervention sociale, les travailleurs

sociaux, occupés par l’enjeu d’une responsabilisation des patients en vue de leur futur, ont pu jouer

essentiellement de deux outils (…) : le contrat et le projet individuel.» (Breviglieri 2005, 220)

39 «émet une puissante disqualification des liens paternalistes ou clientélistes qui peuvent se jouer dans

ces modèles de bienveillance fondés sur le proche» (Doidy, 2005 in Breviglieri 2005, 221)

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Devemos, ainda, debruçar-nos na ideia de “confiança na justiça da instituição”

por parte dos utentes, representada, neste caso, nas pessoas que atuam no Refeitório (os

voluntários, a psicóloga e as assistentes sociais), que não será uma confiança no

próximo, no “outro”, ou uma confiança em si mesmo e nas suas capacidades, mas antes

uma confiança que algo irá contribuir para a resolução das suas problemáticas

individuais na situação de sem-abrigo em que se encontra com base no tipo de auxílio

prestado pela instituição (cf. Breviglieri 2005).

Esta relação entre quem cuida e quem recebe o cuidado é concebida de forma

interessante se utilizarmos como base o texto de Vicente Faleiros (2013), pois: 1) faz

parte do nosso terreno de investigação essa relação entre quem auxilia e quem é

auxiliado, sendo assim importante problematizar a mesma; 2) ajuda-nos a pensar a

questão da autonomia numa população vulnerável, recursando a visão de um

assistencialismo em detrimento de uma visão onde se procura, através do consentimento

informado e do projeto individual, uma potencialização das capacidades dos indivíduos

auxiliados (cf. Faleiros 2013).

Tendo em conta as entrevistas realizadas com a equipa de voluntários do

Refeitório retivemos uma ideia que também Faleiros (2013) nos apresenta em relação ao

papel de quem auxilia o outro que é vulnerável, ou seja, “o cuidado passa por um

processo de mediação de conflitos e negociação. Os conflitos do cuidar estão

articulados não só à desigualdade do poder como também às desigualdades

socioeconómicas e às desigualdades de relações e suportes institucionais (Faleiros,

2011c). O cuidado é a preocupação com o tempo da vida, com a expressão da vida e

com as condições de trabalho.” (Faleiros 2013, 86-87; cf. entrevista a Isabel).

Temos portanto como conclusão em relação à dinâmica entre voluntário e pessoa

sem-abrigo a ideia, que partilhamos com Faleiros (2013), de uma base assente na

solidariedade, em que ambos se relacionam compreendendo as fragilidades presentes

nessa dialética, tentando, através da interação e relação, obter uma possível solução para

as problemáticas do eixo mais vulnerável da relação acima mencionada.

A questão do cuidado (das politics of care ou politiques du care) deve ser

também analisada tendo em conta a perspetiva de Joan Tronto (2008), na medida em

que esta autora vai propor uma definição deste conceito de care – “Num nível mais

geral, nós sugerimos que o cuidado (care) seja considerado como uma atividade

genérica que compreende tudo o que fazemos para manter, perpetuar e reparar o nosso

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«mundo», de forma a podermos cá viver tão bem quanto possível. Este mundo

compreende os nossos corpos, nós mesmos e o nosso ambiente, todos elementos que nos

procuram ligar a uma rede complexa, apoiando a vida.” (Fisher e Tronto, 1991, p. 40

in Tronto 2008, 244, tradução minha40).

Além desta concetualização do cuidado, Tronto (2008) vai mais além e desperta-

nos para uma abordagem que deve ser prática deste tipo de ação, na medida em que será

apenas adotando esta vertente que se vão satisfazer as necessidades daqueles que

necessitam de cuidados, alertando-nos também para a ideia de que “o cuidado só pode

ser útil na condição de modificar o contexto no qual nós refletimos sobre ele” (Tronto

2008, 262, tradução minha41), devendo ser pensado como um conceito moral e político,

tal como Girault (2010) vai demonstrar – “o cuidado não é só uma atitude moral e um

trabalho: é um ideal político que desenha as qualidades dos cidadãos numa sociedade

realmente democrática” (Girault 2010, 8, tradução minha42).

É precisamente esta abordagem do cuidado que Bart van Leeuwen (2017) vai

privilegiar para falar dos cuidados a serem prestados tendo em conta as necessidades

apresentadas pelas pessoas sem-abrigo, na medida em que “Na maioria dos casos a

questão dos sem-abrigo não é nem uma identidade do grupo valorizada internamente

nem uma escolha autêntica, mas antes uma condição trágica que é o resultado de

causas diferentes, tanto estruturais (i.e. político-económicas) como individuais (i.e. a

adição, a doença mental, o desemprego, as histórias de vida traumáticas).” (Leeuwen

2017, 2, tradução minha43), devendo, assim, ser encontradas soluções que passem por

um cuidado com o indivíduo procurando resolver os seus problemas concretos, de modo

40 «Au niveau le plus générale, nous suggérons que le care soit considéré comme une activité générique

qui comprend tout ce que nous faisons pour maintenir, perpétuer et réparer notre «monde», en sorte que

nous puissions y vivre aussi bien que possible. Ce monde comprend nos corps, nous-mêmes et notre

environnement, tous éléments que nous cherchons à relier en réseau complexe, en soutien à la vie.»

(Fisher e Tronto, 1991, p. 40 in Tronto 2008, 244)

41 «le care ne peut être ainsi utile qu’à la condition de modifier le contexte dans lequel nous y

réfléchissons.» (Tronto 2008, 262)

42 «le care n’est pas seulement une attitude moral et un travail : c’est un idéal politique qui dessine les

qualités des citoyens pour une société réellement démocratique.» (Girault 2010, 8)

43 “In most cases homelessness is neither an internally valued group identity nor an authentic choice, but

instead a tragic condition that is the result of different causes, both structural (e.g., political-economical)

and individual (e.g., addiction, mental illness, unemployment, traumatic life histories).” (Leeuwen 2017,

2)

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a que não acabe por haver lugar para soluções intermédias que apenas perpetuam a

situação destas pessoas sem-abrigo.

Olhando para o Refeitório enquanto entidade que é posta ao serviço da

população sem-abrigo, fornecendo-lhes almoço, lanche e jantar em caixas para mais

tarde comerem, roupa e cuidados de higiene, procuramos que este nosso olhar para a

instituição não seja desprovido de uma problematização que desnaturaliza aquilo que à

partida seria dado como certo: há um problema, logo uma solução tem de surgir.

Breviglieri (2010) dá-nos algumas ferramentas de análise para pormos em

prática não só através da observação participante como, de igual modo, através das

entrevistas que foram sendo realizadas, nomeadamente, quando nos refere “as situações

limite que apontam a incapacidade relacional de certos utentes, a sua impossibilidade

de assumir um certo número de responsabilidades individuais e a manter uma “plena”

interação com os atores institucionais.” (Breviglieri 2010b, s. p., tradução minha44).

Somos também alertados para a importância da existência de um “consentimento

informado” no trabalho de auxílio social, ou seja, os utentes têm consciência do tipo de

auxílio que lhes será prestado numa relação dinâmica entre pessoa sem-abrigo e

instituição, neste caso, em que um toma conhecimento das motivações e ações o outro

planeia desenvolver perante si (por exemplo através das regras de acesso ao Refeitório

escritas na porta do mesmo), tal como explicitado em Breviglieri (2010b): “É nessa

condição que podemos compreender porque é que o trabalho social não define apenas

um conjunto de obrigações e responsabilidades que incumbem o utente, e devem ser

preferivelmente, ou mesmo necessariamente, consentidas por este.” (Breviglieri 2010b,

s. p., tradução minha45).

É importante reter que estamos em relação direta com um grupo de pessoas que

querem ser autónomas, independentes, capazes por si mesmas de tomar as suas escolhas

no que concerne o que têm de fazer, como têm de o fazer e qual o futuro tendo em conta

as suas ações.

44 «les situations limites où pointe l’incapacité relationnelle de certains usagers, leur impossibilité à

assumer un certain nombre de responsabilités individuelles et à soutenir une «pleine» interaction avec

les acteurs institutionnels.» (Breviglieri 2010b, s.p.)

45 «C’est à cette condition que l’on pourra comprendre pourquoi le travail social ne définit pas seulement

un ensemble de possibilités ou d’issues mais, à côté de cela, un ensemble d’obligations et de

responsabilités qui incombent à l’usager, et doivent être préférablement, ou même nécessairement,

consenties par lui.» (Breviglieri 2010b, s.p.)

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No entanto, uma vez que a dimensão situacional destas pessoas sem-abrigo

acaba por os levar a recorrer ao auxílio de alguém para atingir os fins e suster as

necessidades que vão nutrindo, acabam por se encontrar algo presos naquilo que uns

apelidam de “espiral de estar sem-abrigo” (cf. entrevista a Marcelo), outros de “rotina

diária” (cf. entrevista a Francisco), e que aqui, através de Breviglieri (2010b), nós

podemos chamar de “paradoxo autonomia-vulnerabilidade”. Este paradoxo é de uma

riqueza analítica tal que várias questões são levantadas só de pensar o conceito de

autonomia numa população que não dispõe sequer de uma casa.

Será em Pattaroni (2007) que vamos reforçar a ideia de autonomia no trabalho

social a ser tido para com o outro, evitando cair no lado mais negativo que a

proximidade ao outro pode ter (o excesso que leva a que a presença do outro que auxilia

se torne insuportável, intolerável quando pautada por atitudes de paternalismo,

assistencialismo e clausura (cf. Pattaroni 2007)), ou seja, quer-se uma ação social que

prepare o indivíduo para as provas que vai enfrentar aquando da sua inserção na

sociedade, salvaguardando-se aqui a ideia de que é precisamente uma preparação para a

autonomia e independência que procuramos, e não um estandardização ou padronização

homogeneizadora dos indivíduos a serem auxiliados (cf. Pattaroni 2007).

Procura-se, antes, não só uma autonomia como também uma responsabilização e

individualização da pessoa a ser auxiliada (cf. Pattaroni 2007) cujas capacidades vão ser

potenciadas num auxílio para que a sua situação seja menos vulnerável do que à partida,

num posicionamento das instituições nas “fronteiras das políticas públicas que dizem

respeito a uma subjetividade individual. Nas fronteiras, uma vez que se trata nesses

casos não tanto de apoiar a administração do poder público na subjetividade já dada

aos cidadãos mas mais de restituir aos mais fragilizados a subjetividade esperada dos

diferentes dispositivos de regulação da sociedade.” (Pattaroni 2007, 1, tradução

minha46).

Tendo em conta estas noções de Pattaroni (2007), questionamos o papel do

contrato e do equipamento jurídico que lhe é inerente num olhar para a autonomia

individual, na medida em que esse contrato e essa jurisdição vão dar um poder de

46 «frontières des politiques publiques respectueuses d’une subjectivité individuelle. Aux frontières, car il

s’agit dans ces cas moins d’appuyer l’administration du pouvoir public sur la subjectivité déjà donnée

des citoyens que de restituer aux plus démunis la subjectivité attendue des différents dispositifs de

régulations de la société.» (Pattaroni 2007, 1)

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escolha real à pessoa que vai ser auxiliada, responsabilizando a mesma (cf. Pattaroni

2007).

A noção de “consentimento informado” mantém-se através de Breviglieri

(2008a) e no trabalho que faz com populações sensíveis porque vulneráveis, como é o

caso das pessoas sem-abrigo com que trabalhei nesta investigação.

Vai ser, portanto, através da construção deste “consentimento informado” e de

um “projeto individualizado” para cada utente que se irá combater a exclusão de um

indivíduo que outrora era visto apenas como uma pessoa necessitada, pessoa incapaz,

pessoa vulnerável e que agora passa a ser dotado de uma autonomia e potencial que irá

alterar a forma como é percecionado não só de si para si como de si para a sociedade

(cf. Breviglieri 2008a).

Esta ação tida perante a pessoa que vai ser auxiliada tem na sua constituição a

junção, por um lado, da solicitude – portanto a disposição de quem vai auxiliar a, de

facto, criar um conjunto de soluções perante as problemáticas apresentadas por quem

vai ser auxiliado – e da solicitação – ou a ideia de um pedido de ajuda por parte de

quem vai ser ajudado, na medida em que o assistente social só pode ajudar alguém

quando esse pedido é formulado, gerindo-se deste modo dialético a questão da

proximidade e das possíveis consequências da mesma, que passam pelo clientelismo,

paternalismo e miserabilismo (no excesso), bem como pela indiferença (na falta de

proximidade) (cf. Breviglieri 2008a).

É interessante notar como este conceito de “consentimento informado” além de

dotar o indivíduo de um conjunto de características positivas que passam pela

autonomia e poder de escolha, incutem também em si a ideia de uma capacitação da

pessoa que está a ser auxiliada, capacitação essa que passa não apenas por poder avaliar

e enunciar os desejos e expectativas que tem de acordo com o plano a ser traçado no seu

auxílio, mas também na possibilidade de fazer dessas expectativas algo prático a ser

colocado em ação aquando de um percurso evolutivo de resolução das suas

problemáticas, demonstrando, assim, além de autonomia, também capacidade e

responsabilidade, pois, passa a ser pensado como digno de confiança (cf. Breviglieri

2008a; cf. Diário de Campo e momentos de receção de novos utentes).

Mantendo como um dos focos da minha análise da população sem-abrigo a ideia

desta relação que os indivíduos desenvolvem com o “outro” (surgindo este “outro” nos

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vários atores sociais com os quais se vão deparando no seu quotidiano), é interessante

continuar a linha de raciocínio acerca desta proximidade e da influência que tem quando

aplicado ao trabalho social, observável, neste caso, no Refeitório.

Breviglieri, Pattaroni e Stavo-Debauge (2003), vão iluminar este conceito de

proximidade através de uma relação entre os agentes do Estado e o seu público, ou

como referido pelos autores: "A questão da proximidade pensa, assim, através de

diversos títulos, o desenvolvimento de uma coordenação local entre os agentes do

Estado e o seu público. (…) A exclusão (…) retorna à necessidade de um auxílio social

capaz de autonomizar os excluídos e religá-los à sociedade para que eles possam sair

da sua situação precária.” (Breviglieri, Pattaroni e Stavo-Debauge 2003, 141, tradução

minha47).

Pensamos, assim, uma proximidade que vai procurar um ténue equilíbrio entre

estes indivíduos vulneráveis e uma tentativa de potenciar as suas capacidades para um

futuro autónomo. A instituição serve como mediador entre as várias problemáticas

apresentadas pelas várias pessoas sem-abrigo que usufruem do espaço em questão e os

ideais do Estado e da sociedade, sendo essa mediação feita, neste caso, através de um

conjunto de regras imposto aos utentes do Refeitório (cf. fotografia do Regulamento do

Refeitório nos Anexos), um conjunto de princípios para o usufruto daquele local, que

vão oferecer uma estabilidade a alguém que é errante, caminhante, instável.

É ainda em Breviglieri (2009) que se acaba por concretizar a ideia latente ao

falar de proximidade que passa pelos problemas trazidos pelo excesso da mesma no

contacto com populações vulneráveis (cf. Breviglieri, Pattaroni e Stavo-Debauge 2003;

Pattaroni 2007; Breviglieri 2008a).

Este autor fala-nos daquela situação em que o “outro” está tão próximo,

ultrapassa em tamanha medida os limites que o “eu” coloca perante o que lhe é exterior,

que a sua presença, através dessa proximidade sufocante, se torna insuportável,

intolerável, impossível de manter. Ora, uma vez que estamos a lidar com uma população

vulnerável, como o são as pessoas sem-abrigo, será que se aplica esta ideia de poder

47 «La question de la proximité entend ainsi, à divers titres, le développement d’une coordination locale

entre les agents de l’État et leur public. (…) L’exclusion (…) renvoie alors à la nécessité d’une aide

sociale capable d’autonomiser les exclus et de les rattacher à la société afin qu’ils puissent sortir de leur

situation précaire.» (Breviglieri, Pattaroni e Stavo-Debauge 2003, 141)

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dizer que o “outro” é insuportável no excesso de proximidade? Terá esta população voz

e audiência para produzir tais julgamentos, críticas, opiniões em relação ao “outro”?

A observação participante realizada no Refeitório revela que sim, uma vez

situados num espaço que faz deles o ser humano que de facto são, embora nem sempre

tal seja reconhecido pela sociedade em que se encontram, estes indivíduos expressam a

sua opinião, a sua crítica quando algo não vai ao encontro dos seus princípios e do que

seria expectável, tendo sido inclusive observado e ouvido algumas críticas face à

presença e ao discurso – por vezes situações sufocantes para os utentes – de alguns

voluntários.

Fala-se, então, de uma proximidade excessiva, de uma intromissão indesejada na

vida de cada utente, numa posição que lhes retira o pouco de autonomia que procuram

estabelecer apesar da vulnerabilidade inerente à sua situação atual, independentemente

de ser uma situação de um ano (como no caso de Marcelo) ou de 16 anos (como no caso

de Francisco) – o tempo aqui não atua como fator potenciador de mais ou menos

vulnerabilidade na medida em que ao ser ou estar pessoa sem-abrigo (conforme a

pessoa observe a situação como algo já fixo ou algo passageiro) um indivíduo já se vê

desprovido de uma casa, de um trabalho com as comodidades que tal comporta,

sentindo-se, assim, vulnerável perante a sociedade.

Paperman (2008) aparece no panorama do meu trabalho ao investigar as

questões de ética no cuidado do outro, ou seja, fala não só dos problemas associados à

proximidade e à distância, tendo em conta essa ética, como também dos métodos a

utilizar num tipo de auxílio que se quer potenciador, autonomizador, e não um gerador

de padrões numa tentativa de “normalização” do utente.

Ao utilizarmos o aporte teórico que este conceito de “ética no cuidado do outro”

comporta, conseguimos questionar a vulnerabilidade no seu todo e não apenas como

algo visível em alguns grupos populacionais em particular – “Na perspetiva do cuidado,

a vulnerabilidade é constitutiva das vidas humanas. (…) Nesse caso a ética do cuidado

propõe refletir sobre a vulnerabilidade naquilo que ela não é reservada a certas

categorias de pessoas nem a grupos particulares.” (Paperman 2010, 52, tradução

minha48) –, dotando, assim, este conceito de uma visão holista que me permitirá pôr em

48 «Dans la perspective du care, la vulnérabilité est constitutive des vies humaines. (…) En ce sens

l’éthique du care propose de réfléchir sur la vulnérabilité en ce qu’elle n’est pas réservée à certaines

catégories de personnes ni à des groupes particuliers.» (Paperman 2010, 52)

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relação esse todo que é vulnerável com o tipo de vulnerabilidade demonstrada pela

pessoa sem-abrigo.

Tal como me proponho dar voz às pessoas sem-abrigo com quem falei numa

tentativa de compreensão das suas histórias de vida, das suas experiências e

problemáticas inerentes à situação em que se encontram, também Paperman (2011) diz

acerca das “éticas do cuidado” que estas “procuram reconfigurar a conceção da justiça

numa tentativa de as incluir, ou pelo menos de tornar mais difícil ignorá-las. Dizendo

de outra forma, o sujeito das éticas do cuidado é um sujeito minoritário, «diferente»,

que pensa e age a partir de uma experiência concreta, materialmente estruturada por

uma atenção e pelas atividades realizadas por outrem. Um sujeito não aparecendo não

é tido em conta e, muito menos, como sujeito principal das éticas anteriores.”

(Paperman 2011, 190, tradução minha49).

É esta autora que nos vai mostrar também que, na “ética do cuidado”, “A

questão da distância, entendida na maioria das vezes como aquelas relações com os

indivíduos e os grupos que não fazem parte dos nossos grupos de pertença, é

regularmente invocada para apontar os limites da ética do cuidado.” (Paperman 2008,

267, tradução minha50), ou seja, é importante esta delimitação da proximidade quando

estamos a lidar com pessoas vulneráveis que procuramos, dentro das nossas

possibilidades, ajudar, pois só através da delimitação de uma distância é que se pode

manter um trabalho que não comporte em si os excessos que já Breviglieri (2009)

referia e que acabam por se tornar insuportáveis.

Somos levados a pensar mais além desta dicotomia proximidade/distância na

ética do cuidado de Paperman (2008, 2010, 2011), olhando o propósito comum do

cuidado do outro como passando por esta ideia de que “o cuidado e a atenção não

podem ser concebidos senão no quadro das relações diádicas.” (Paperman 2008, 269,

49 «visent à reconfigurer la conception de la justice en sorte de les inclure, ou du moins de rendre plus

difficile de les ignorer. Pour le dire en d’autres termes, le sujet des éthiques du care est un sujet

minoritaire, «différent», qui pense et agit à partir d’une expérience concrète matériellement structurée

par une attention et des activités réalisées pour autrui. Un sujet qui n’apparaissait pas, n’était pas pris

en compte et encore moins comme sujet principal dans les éthiques antérieures.» (Paperman 2011, 190)

50 «La question de la distance, entendue le plus souvent comme celle des relations avec les individus et

groupes qui ne font pas partie de nos groupes d’appartenance, est régulièrement invoquée pour pointer

les limites de l’éthique du care.» (Paperman 2008, 267)

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tradução minha51), logo as lentes do investigador devem ajustar-se com o propósito de

encontrar esses quadros onde vão ser concebidos o cuidado e a atenção para com o

outro na nossa população de estudo.

Assim, tendo em conta algumas conversas mantidas com alguns dos utentes do

Refeitório, tecemos como conclusões relativas a esta proximidade no que de

incomportável pela pessoa sem-abrigo pode ter o seu excesso, a ideia de um isolamento

relacional. Isto é, no seu discurso perpassa a ideia de que seja pela sua situação

vulnerável, seja pela pouca autonomia de que dispõem para lidar com as atitudes de

outrem que lhes sejam desagradáveis, estas pessoas acabam por se isolar apesar de

manterem um relacionamento continuado com outras pessoas.

Isto leva-nos a uma vivência afetiva pautada por um certo paradoxo, na medida

em que estas pessoas estão em contacto com o “outro”, com o voluntário, com aquele

com quem se partilha o quarto, a rua, o Refeitório, com o que passa na rua, com que

experiencia uma realidade semelhante ou alternativa à sua, mas tal não significa que se

permitam relacionar com estes vários “outros” a um nível mais profundo, afetivamente

falando. Pelo contrário, encontrámos mesmo discursos que revelam que enquanto o

“estar sem-abrigo” não ficar “resolvido” não tencionam relacionar-se com quem seja,

mantendo as relações anteriores a esse “estar” quase em “pausa”, prontas para serem

continuadas mal a situação de “estar sem-abrigo” acabe (cf. entrevista a Marcelo e

entrevista a Francisco).

Ao ter em conta a população sem-abrigo podemos questionar, então, tal como

Breviglieri (2013) “Teremos nós alguma coisa a aprender, de um ponto de vista

sociológico, com as relações múltiplas que acompanham a história de vida de cada

homem?” (Breviglieri 2013, 1, tradução minha52), isto é, se olharmos esta relação do

“eu” pessoa sem-abrigo com o outro conseguiremos extrair alguma informação

determinante acerca destas pessoas, da forma como experienciam, por um lado, a sua

situação e, por outro lado, se imbuem de capacidades para (sobre)viver, fazer frente às

várias problemáticas com que se deparam, encontrar as suas táticas, através de vários

processos que passam pela aprendizagem e imitação do que veem ser bem sucedido (cf.

51 «soins et attention ne se conçoivent que dans le cadre de relations dyadiques.» (Paperman 2008, 269)

52 «Avons-nous quelque chose à apprendre d’un point de vue sociologique des attachements multiples qui

accompagnent l’histoire de vie de chaque homme ?» (Breviglieri 2013, 1)

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entrevista a Francisco; entrevista ao Igor; entrevista ao Jallah), encontrar o seu modo de

vida específico na sociedade que os exclui, põe de parte desumanizando?

Marc Breviglieri (2013) associa esta ideia de “relação com” à identidade de cada

indivíduo, o que pode, já de si, sustentar este meu interesse em explorar esta área da

vida das pessoas sem-abrigo que procuro conhecer e cuja experiência está na base da

minha reflexão. Tendo em conta os modos de vida, as experiências, o passado que vai

moldar o presente e levantar questões sobre o futuro, como é que se torna possível ao

investigador falar deste grupo de pessoas pautado por tantas individualidades que

merecem uma desnaturalização que as problematize?

Atenção, aqui não falamos do porquê do conjunto, do como do conjunto, da taxa

de alfabetização, da taxa de desemprego, da taxa de consumos, não falamos de perfis, de

padrões, de estandardizações estatísticas de múltiplos “eus” com vista a formar um todo

homogéneo. Pelo contrário, queremos olhar densamente o “eu” (cf. Mota (2008) e a

análise densa, detalhada, dos gestos mais íntimos), a experiência, a história de vida, os

percursos, as escolhas, as críticas, as justificações, para, assim, conseguirmos falar, com

base na voz destas pessoas sem-abrigo, nas problemáticas que são vivenciadas e que vão

tentando ser superadas, nos obstáculos, nas interações, no que significa ser pessoa sem-

abrigo em Lisboa: vulnerável, porém capaz.

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Análise de Conteúdo

Acolher e Habitar: a Apropriação do Espaço por Parte das Pessoas Sem-Abrigo

1. Múltiplos espaços, múltiplos quotidianos

Tendo em conta os três eixos que orientaram todo este trabalho (acolher, habitar,

apegar) podemos desenvolver uma análise dos dados recolhidos junto da população

sem-abrigo que frequenta o Refeitório Rosália Rendu onde encontramos algumas

evidências de uma apropriação dos múltiplos espaços da cidade de Lisboa e arredores

no quotidiano destes indivíduos.

Para realizar esta análise recorremos à voz de alguns dos utentes do Refeitório

quando nos falam do seu dia-a-dia, do seu passado e de como vão ocupando o tempo de

forma característica tendo em conta a situação em que se encontram.

Torna-se, assim, possível utilizar os verbos acolher e habitar para no primeiro

caso pensar um momento inicial da situação de sem-abrigo destes indivíduos onde a

cidade de Lisboa com as suas instituições53 e as suas características acolhe ou não estas

pessoas.

No segundo caso para pensar como é que são desenvolvidos alguns mecanismos

para tornar os espaços da cidade habitáveis tendo em conta o aumento da duração da

permanência em situação de sem-abrigo.

Deste modo, irei traçar uma linha de raciocínio em torno desta apropriação do

espaço que se inicia nos locais onde as pessoas sem-abrigo (com quem falei nas

entrevistas que realizei) dormem, passando em seguida para os espaços da cidade por

onde caminham diariamente e terminando no Refeitório.

1.1 Albergues, casas e a rua

“Habitar supõe uma certa ancoragem fenomenal do corpo, alimentada por uma matriz

de experiências familiares, um conjunto de emoções tranquilizantes procuradas na

intimidade da casa, uma sutura afetiva que tem cada um como ligado aos que lhe são

53 Cf. Lista de instituições de auxílio às pessoas sem-abrigo presentes no Plano Cidade para a Pessoa

Sem-Abrigo (2009); na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo (2009-2015); e no

Programa Municipal para a Pessoa Sem-Abrigo (2015)

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próximos por um laço não-arbitrário (Breviglieri, 2002 in Breviglieri 2010a, 63,

tradução minha54).

Os espaços onde estes indivíduos dormem dividem-se essencialmente em três

categorias: albergues (com 2 casos registados), casas partilhadas (com 4 casos

registados), casas da Câmara Municipal de Lisboa (com 1 caso registado) e a rua (com 2

casos registados).

Em relação aos albergues é mencionada principalmente a Vitae (em Xabregas

onde vivem atualmente 2 dos indivíduos com quem falei, mas por onde já passou um

terceiro indivíduo que atualmente vive na rua) mas também é referida a passagem por

outros locais na Cruz dos Poiais, nas Amoreiras e, ainda, em Castanheira de Pera.

A experiência de pernoita nestes albergues raramente é mencionada sem que se

apontem algumas características negativas destes espaços, tal como é apresentado no

seguinte excerto da entrevista a Yassine: “M: Como é que poderias falar do sítio onde

vives? Da casa, do espaço onde vives? Y: Onde vivo é…um bocadinho complicado, tem

muitas pessoas, tás a ver? Não tens aquela liberdade…”.

Também o senhor Marcelo que vive atualmente na Vitae apresenta uma

descrição negativa não só desse albergue como daquele onde esteve anteriormente:

“Quando eu cheguei [ao primeiro albergue] era tudo precário, muito precário, inclusive

em termos de higiene e tudo, tá bem? (…) Bom, mas então agora me deparei mais uma

vez com essa realidade, não é? Lá na Vitae, não é? (…) o alojamento da Vitae parece

que não está adaptado para o abrigo da pessoa humana. É desprovido totalmente de

conforto (…).” (excertos da entrevista ao senhor Marcelo).

É ainda possível referir o caso do Jallah que tendo estado um ano a viver na

Vitae se encontra atualmente a dormir na rua não tendo sido percetível se esta mudança

foi causada pelas condições do albergue ou se foi imposta por algum outro motivo.

Por fim, podemos mencionar a experiência de Iury contada através de uma

voluntária da seguinte forma: “estava a viver num albergue em Xabregas com péssimas

54 «Habiter suppose un certain ancrage phénoménal du corps, nourri par une matrice d’expériences

familières, un foyer d’émotions sécurisantes procurées dans l’intimité du chez soi, une suture affective

qui tient chacun comme attaché aux proches par un lien non-arbitraire» (Breviglieri, 2002 in Breviglieri

2010a, 63)

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condições cujos utentes são tratados como animais e, como se recusava a tomar os

medicamentos (porque na Ucrânia era desportista, praticava kickbox) foi expulso do

albergue e passou a dormir na rua.” (Diário de Campo, dia 27.2.2017).

Em ambos os casos de pessoas que ainda dormem em albergues (o senhor

Marcelo e o Yassine) não foi possível no discurso dos interlocutores reter qualquer tipo

de apropriação destes espaços.

Foi, ao invés, notório um desligamento daquele local ao qual têm acesso apenas

para dormir, tal como referido pelo senhor Marcelo: “eu não tenho o hábito de andar

com mochila mas por causa do treino e por causa do acesso regrado, do acesso restrito

à casa de banho, ao quarto, só no final da noite (…)”, partilhando-o com múltiplos

indivíduos, tal como Yassine menciona.

Encontramos, assim, um tipo de acolhimento a estas pessoas, em situação de

vulnerabilidade, pautado pelas condições precárias, pelo excesso de utentes e pela

ausência de conforto, tal como descrito pelos dois indivíduos com quem falei e que

pernoitam em albergues.

Figura 1: Localização do primeiro albergue do Sr. Marcelo

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Figura 2: Localização da Vitae

Os indivíduos que vivem em casas e que, à partida, poderíamos pensar não se

enquadrarem neste trabalho acabam por ser parte da população de estudo com quem

falei, na medida em que, logo no início do trabalho de campo fui informada de que

“mesmo os que tinham casa nunca era sustentada por eles nem tinham as condições

mínimas.” (Diário de Campo, dia 19.12.2016), sendo parte integrante do conceito de

pessoa sem-abrigo já mencionado acima55.

Nesta situação encontramos três casos distintos: um indivíduo que vive numa

casa da Câmara Municipal de Lisboa, dois indivíduos que vivem em casas partilhadas

no Campo Pequeno e dois indivíduos que sendo casados vivem na casa dos pais/sogros

onde muitas das necessidades básicas lhes são recusadas.

A experiência de quem vive em casas tem em si mais momentos – pelo menos

ao nível do discurso dos interlocutores que se encontram nesta situação – de apropriação

do espaço, da casa, da minha casa onde tenho as minhas coisas e a minha privacidade.

No caso do senhor Mário que vive atualmente numa casa da Câmara Municipal

de Lisboa na Quinta dos Barros relata como antigamente quando morava numa outra

casa no Pote de Água dispunha de liberdade para fazer várias atividades e que, ao ter

sido forçado a mudar de local de residência, perdeu parte dessa mesma liberdade, tal

como se depreende do seguinte excerto da entrevista ao senhor Mário:

“M: Vocês é que tiveram que ir embora?

55 Cf. Conceito de Pessoa Sem-Abrigo apresentado no Plano Cidade para a Pessoa Sem-Abrigo (2009); na

Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo (2009-2015); e no Programa Municipal

para a Pessoa Sem-Abrigo (2015)

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Sr.M: Sim mas estou bastante arrependido.

M: Porquê?

Sr.M: Porque ali eu tinha mais liberdade em todo o sentido. Tinha casa rasteirinha,

pré-fabricada, quer dizer, o terreno não era nosso, era da Câmara. Mas eu tinha outra

liberdade que não tenho aqui.”

Torna-se possível referir um especial apego em relação ao espaço que outrora

habitou, que não sendo dele tinha em si alguns elementos que permitiam que se

apropriasse desse local.

É possível, neste caso, pensar numa apropriação que passava pela ideia de

liberdade associada ao espaço em questão e ao conjunto de atividades que se podia

realizar tendo em conta as características desse mesmo espaço:

“Sr. M: É totalmente diferente porque ali onde eu morava tinha a minha privacidade,

num certo sentido, que eu podia, uma hipótese, assar um peixe assim num, é uma

hipótese, que eu tinha um estacionamento para parquear, e nós, quem diz eu diz as

outras pessoas em si que moravam também, a gente assava o nosso peixe mas tinha

outra liberdade totalmente contrária, não tem nada a ver.” (excerto da entrevista ao

senhor Mário)

No caso de Nicolay e de Igor, que vivem ambos em casas no Campo Pequeno, a

sua relação com o espaço já varia, na medida em que, além do espaço ser partilhado

(“N: Comigo vivem eu não sei quantos…10 ou mais, por aí…” (excerto da entrevista a

Nicolay); “M: E dormes em alguma instituição? I: Na casa de um amigo.” (excerto de

entrevista ao Igor)) é também mantido por quem lá vive, não sendo da Câmara como no

caso do senhor Mário.

Assim, quando perguntei a Nicolay se no futuro gostaria de ter uma casa a

resposta foi imediata: “N: Uma casa? Minha? Eu tenho casa! Eu tenho casa grande

não aqui, lá [na Ucrânia]…” (excerto da entrevista a Nicolay), referindo várias vezes

que prefere estar em Portugal e que gosta da forma como vive (“N: Eu quero cá. Eu

gosto Portugal.” (excerto da entrevista a Nicolay)).

É visível no discurso de Nicolay uma escolha que se opera em torno de um

lugar. Ou seja, vivendo no Campo Pequeno, numa casa partilhada com 9 ou mais

pessoas, prefere olhar além dos possíveis elementos menos positivos (como a possível

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falta de privacidade e excesso de habitantes) e focar-se, ao longo do seu discurso, nas

características positivas da sua experiência em Portugal, observando-se, aqui, uma

demarcação do seu espaço, da sua casa e da forma de habitar a cidade que escolheu:

“M: E quando há problemas [com as pessoas com quem vive], vai cada um para seu

lado?

N: Não há problemas, está tudo bem, passo bem, corre bem, não há nenhum

problema…somos uma família.

(…)

N: Aqui está tudo bem, eu gosto de trabalhar, eu gosto da gente, quem trabalha, quem

não trabalha eu não gosto…e que mais?” (excertos da entrevista a Nicolay)

Igor, por sua vez, ao ter vindo da Ucrânia para Portugal à procura de uma vida

melhor diz que quando tiver dinheiro quer voltar para o seu país de origem. Já viveu no

Centro Pedro Arrupe usufruindo de alguma ajuda temporária (“I: Só no início [é que

ajudaram] e depois só ajudaram quem mora no Centro Pedro Arrupe eles também

ajudam mas já não…” (excerto de entrevista ao Igor)) e agora dorme na casa de um

amigo.

No discurso de Igor em relação ao local onde dorme encontram-se apenas alguns

detalhes que podemos utilizar para falar da apropriação desse espaço. Por um lado, diz

que vive em casa de um amigo, logo não é um espaço seu, pertence ao seu amigo.

Por outro lado, tendo já vivido noutro local (Centro Pedro Arrupe) acaba por ser

passível equacionar a escolha de viver atualmente naquela casa, num espaço que apesar

de não lhe pertencer acaba por ser partilhado por si, apropriado por si em relação a

outros espaços onde poderia pernoitar por opção ou obrigação das circunstâncias em

que se encontra.

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Figura 3: Campo Pequeno

Figura 4: Localização do Centro Pedro Arrupe

A experiência da Susana e do Paulo acaba por ser reveladora da ideia passada

pela Irmã que gere o Refeitório acerca do conceito de pessoa sem-abrigo ser também

aplicado a pessoas que vivem em casas, na medida em que, no caso deste casal apesar

de terem uma casa não possuem as condições mínimas de habitação, como é visível

quando o Paulo diz:

“P: Depois a minha sogra tem uma coisa que a gente não se dá muito bem, nega a luz,

nega a água, nega o gás, nega a própria comida e por isso é que é mesmo… Porque se

não fosse por causa disso ainda ia-me enrascando como eu tenho-me enrascado nos

tempos antigos mas quando aconteceu isso já tive que pedir mais ajuda de uma solução

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ao meu assistente social, o Dr. Hugo, ele arranjou-me para aqui.” (excerto de

entrevista ao Paulo)

Deste modo, têm um local onde dormir e onde viver, têm uma casa, mas que, ao

não ser sua, acaba por levar a uma situação de negação e inexistência dos bens mais

básicos para uma vida condigna, tais como a água, a luz, o gás e a comida.

Este casal tem, de facto, o seu espaço e a sua casa da qual se apropriam, sendo

sua, tendo a sua privacidade e os seus pertences. No entanto, nesta situação não é

possível falar de um “habitar” o espaço onde se vive, pois, ao não terem condições são

obrigados a recorrer a dispositivos exteriores à casa (por exemplo o Refeitório) para

suprirem as suas necessidades, tal como é visível no discurso do Paulo, acabando por

dormir apenas naquele espaço.

Por fim, em situação de rua encontramos dois indivíduos, dormindo um deles em

Sete Rios e outro tendo já dormido na Gare do Oriente atualmente pernoita numa

fábrica abandonada.

O primeiro indivíduo a que me refiro é o Jallah que tendo já pernoitado na Vitae

dorme agora em Sete Rios, descrevendo essa situação da seguinte forma: “J: Antes

abrigos, agora vivo…na rua. Antes Vitae, um ano Vitae. (…) é centro de Sete Rios

[onde dorme], pero sempre passear, sempre ter de passear dentro de… (…) um dia vai

para metros, outro dia vai para autocarros…” (excerto da entrevista a Jallah).

A forma como Jallah me descreve não só o seu quotidiano pautado pelo

caminhar como também o sítio onde dorme permite-me pensar na apropriação que faz

dos espaços do seu quotidiano.

Por um lado, dorme sempre no mesmo local – em Sete Rios – explorando as

possibilidades que o mesmo lhe traz para que consiga um mínimo de conforto nesse

espaço público, uma vez que em alguns momentos do trabalho de campo foi visível a

ausência de objetos potenciadores de conforto, chegando a não ter sapatos para calçar

(“Quando estava a ir embora depois das entrevistas vi o Jallah a dizer adeus aos

voluntários e reparei que estava descalço (…)” (Diário de Campo, dia 16.5.2017)).

Por outro lado, num quotidiano feito de caminhos e deambulações – com a

respetiva demarcação do espaço por onde se vai passando e caminhando (cf.

Veschambre 2004) –, a escolha de Sete Rios para local de pernoita é em si bastante

inteligente e representativa da lógica de quem não tendo posses ou uma casa tem de

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recorrer aos espaços da cidade para (sobre)viver: é um local público, com visitas de

turistas e uma boa rede de transportes em seu redor ficando relativamente perto do

centro da cidade.

O segundo caso que dorme na rua é o do Francisco que se encontra nessa

situação há 2 anos e 11 meses “mas em global tudo, geral, é 16 anos e 11 meses desta

vida sempre assim.” (excerto da entrevista a Francisco).

Quando falei com ele disse-me que dormia na Gare do Oriente, escolhendo os

locais mais resguardados para pernoitar: “F: há sempre um espaço que eu durmo ou

perto do Meo Arena ou ali ao pé do Oceanário, pronto, aqueles sítios que eu mais vejo

que estão resguardados, que me abrigue do frio é o mais essencial (…).” (excerto da

entrevista a Francisco).

Figura 5: Localização de três sítios de pernoita de Francisco: Oceanário, Meo Arena e Estação

do Oriente

Entretanto mudou de sítio para uma fábrica abandonada que partilha com um

“colega de quarto” e onde tem uma espécie de cama e uma janela que mostra em

fotografias do seu telefone:

“Conversa com Francisco sobre o novo sítio onde vive. Agora, em vez de viver na

estação do Oriente, vive numa fábrica abandonada com um “colega de quarto” –

Expressão interessante tendo em conta que uma fábrica abandonada e a continuidade

da situação de pessoa sem-abrigo não implicariam, à partida, a ideia de um “colega de

quarto”.” (Diário de Campo, dia 6.2.2017)

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A situação de pernoita de Francisco é igualmente interessante para pensar as

questões da apropriação do espaço, uma vez que além da escolha do local onde dormir

encontramos também um aproveitamento das características dos espaços escolhidos.

É possível pensar também a forma de apropriação através da marcação do

espaço, uma vez que no local onde dorme atualmente (a fábrica abandonada) tem uma

cama sua e uma janela sua, desenhando ele mesmo uma espécie de quarto num espaço

que é transformado por este indivíduo em algo mais do que seria à partida. Ou seja,

assistimos a uma modelação da fábrica abandonada que se vai tornar num quarto, numa

casa, num espaço privado e do Francisco.

É interessante notar, para terminar esta análise dos lugares apropriados por estas

pessoas sem-abrigo, que apesar de alguns dormirem em albergues, outros em casas com

poucas condições e outros ainda na rua, a maioria destes indivíduos tem uma casa sua

com condições para uma habitação condigna.

Esta ideia que praticamente todos os indivíduos com quem falei (à exceção do

Francisco, Susana e Paulo) mencionaram – de ter uma casa sua com boas condições –

vem sublinhar de forma bastante clara a mudança que se opera nas suas vidas.

Sendo na sua maioria motivados pela procura de uma vida melhor ou por ofertas

de trabalho que vão surgir nos percursos das suas vidas, estes indivíduos escolhem vir

viver para Portugal não querendo voltar para a realidade que outrora experienciavam

mesmo que tal regresso representasse uma vida com melhores condições e/ou com mais

apoio ao nível da família.

“Eu tenho 41 anos e já fui brasileiro, por algum acaso eu despedi-me para sempre de lá

[…]; É assim: eu tenho do lado de lá, do Brasil, a minha casa própria, está a minha

casa sem dever um cêntimo de nada […]; (…) porque da Europa eu não saio!”

(excertos da entrevista ao senhor Marcelo)

“Eu quero cá. Eu gosto Portugal. […] Eu tenho casa grande não aqui, lá…” (excertos

da entrevista ao Nicolay)

“M: E antes, em Marrocos, como é que era?

J: Família. Sempre com família.” (excerto de entrevista a Jallah)

“M: E no país de onde vieste, tinhas essa liberdade?

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Y: Claro que tinha! Tinha a minha casa, tinha os meus pais, tinha, tinha a minha

família à volta de mim (…)” (excerto de entrevista a Yassine)

1.2 Caminhos do quotidiano

“Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de

um próprio. A errância multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa

experiência social de privação de lugar – uma experiência, é verdade, esfarelada em

deportações inumeráveis e ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas

relações e os cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano,

e posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a

Cidade.” (Certeau 1998, 183)

Quando questionamos a apropriação que as pessoas sem-abrigo fazem do espaço

por onde passam torna-se interessante pensar como o fazem ao longo dos caminhos que

tomam no seu dia-a-dia.

Assim, ao falar com os utentes do Refeitório Rosália Rendu encontrei as mais

variadas formas de passar o tempo, de caminhar pela cidade, de escolha de sítios por

onde passar conforme as circunstâncias em que se encontram no momento.

O senhor Marcelo, por exemplo, passa diariamente o tempo em função da sua

doença (Transtorno Afetivo Bipolar, TAB), procurando espaços onde possa fazer

atividade física e cultivar o lado intelectual:

“Sr. M: O meu dia-a-dia tem sido o trabalho em prol da minha saúde, atividade física

exaustiva, sempre que posso, sempre mesmo que posso então vou até lá, gosto muito da

praia de Belém, gosto muito demais da praia de Belém para fazer atividade física. Tem

lá parques com aparelhos de ginástica e eu faço bom uso daquele local. Bom e após,

logo em seguida, eu continuo o trabalho da minha proteção de saúde, no sentido de

estar numa biblioteca, num ambiente que condiz com a minha vida pessoal, com a

minha personalidade. Então eu estou sempre ou numa loja de livros ou dentro de uma

biblioteca a escrever e a ler alguns livros também e a meditar e mesmo a matar o

tempo, matar o tempo porque envolver nessa espiral, nesse ciclo vicioso de sem-abrigo

é muito prejudicial para qualquer pessoa e para mim tem o agravante da doença, pode

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até ser fatal se eu deixar essa espiral tomar conta da minha vida, não é?” (excerto da

entrevista ao senhor Marcelo)

Torna-se possível ver como, tendo esta rotina, o senhor Marcelo acaba por

definir um conjunto de espaços dos quais usufrui diariamente não só para chegar aos

pontos da cidade onde tem de ir para suprir necessidades (como o Refeitório, por

exemplo) como também para praticar algumas atividades de lazer (desporto e leitura).

O relato do caminho que é percorrido a pé pelo senhor Marcelo permite-nos

perceber como os espaços da cidade são utilizados tendo em conta as suas

características, as suas potencialidades, sendo moldados por vezes para fazer face às

necessidades destes indivíduos em situações vulneráveis.

Figura 6: Percurso do Senhor Marcelo

Outro percurso que é possível analisar é o do Francisco que, dormindo no

Oriente aquando da entrevista, refere que tem vários mecanismos para “passar os

tempos livres”. Entre eles aponta a frequência de espaços públicos, tais como lojas de

produtos eletrónicos como a Fnac ou a Worten, bancos do jardim, estações de

transportes e bibliotecas:

“F: (…) usufruo mais ou menos assim dos meus tempos livres, ou quer uma estação,

quer uma biblioteca, quer um banco do jardim. (…). Eu geralmente durante o dia

frequento mais assim locais públicos para me distrair ou vou à Worten ou à Fnac,

pronto para estar entretido com um computador ou…passar os tempos livres (…)”

(excerto da entrevista ao Francisco)

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É interessante pensar aqui não só as distâncias percorridas a pé por este

indivíduo (Oriente-Refeitório passando pelas lojas, bibliotecas e jardins) como também

a escolha dos locais que frequenta.

Podemos, de igual modo, pensar na ideia transmitida por Francisco sobre estar

entretido como sinónimo de passar o tempo, passar os dias que se fazem caminhando,

indo a vários locais, experienciando os vários espaços da cidade até esgotar as horas do

dia, uma vez que, ao ser sem-abrigo, não dispõe de uma casa para onde ir ao fim do dia,

onde ter momentos de lazer, de privacidade, de repouso.

Ainda é possível equacionar a reação do cidadão “normal” na presença de uma

pessoa sem-abrigo nestes espaços públicos. Por um lado, essa reação não deve ser

excessivamente manifestada uma vez que Francisco continua a frequentar esses espaços

públicos. Por outro lado, essas reações existem e fazem-se notar, pois, em conversa no

Refeitório Francisco referiu várias vezes que sente que olham para ele com uma atitude

de julgamento: “Hoje o Francisco falou muito sobre a forma como as pessoas o julgam

com base no seu aspeto.” (Diário de Campo, dia 29.12.2016).

Figura 7: Percurso do Francisco

Nicolay gere o seu dia-a-dia de acordo com a existência ou não de trabalho, indo

do Campo Pequeno para o trabalho (que não indicou onde seria) ou para um escritório

(que também não disse a localização) ou para o Refeitório.

Os espaços utilizados por este indivíduo são potenciados para a sua

sobrevivência, principalmente a nível monetário, mencionando além desse facto que

também passa bastante tempo em cafés, a beber café, o que nos leva a associar o

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quotidiano de Nicolay não só ao trabalho como também a momentos de lazer, sempre

experienciados fora de casa:

“N: A manhã eu vou beber café [risos], depois, depois o que é que eu faço? Não sei o

que é que eu faço…depois, quando me liga patrão, vou trabalhar, quando me não liga

vou ajudar para escritório…e depois outra vez bebo café [risos] e depois vou dormir.”

(excerto de entrevista ao Nicolay)

Por sua vez, Igor que também vive numa casa no Campo Pequeno passa o dia a

deambular pela cidade dizendo que não vale a pena sequer tentar procurar trabalho

porque o custo que representaria para si trabalhar não compensa tendo em conta o

salário que recebe:

“I: E quando trabalhas ordenado…melhor não trabalhar… [risos] acho eu ou trabalhar

e ganhar normal. (…) Eu, último trabalho trabalhar um ano e não resultar, ou

trabalhas ou não trabalhas é igual, mais ou menos.” (excerto de entrevista ao Igor)

Refere também como vai vendo o tempo passar enquanto caminha pela cidade,

registando-se, aqui, mais uma vez a questão do tempo e do caminhar como ocupação

principal do quotidiano numa apropriação do espaço da cidade que se dá precisamente

para ver o dia ir passando, entre passeios e atividades de lazer e convívio com amigos

em caminhos e locais escolhidos para o efeito:

“I: Andar [risos] (…) Não faço nada…não muito procurar trabalho… (…) O tempo

passa…” (excerto de entrevista ao Igor)

Analisando o quotidiano do senhor Mário encontramos também a referência a

alguns espaços que usufrui para ir passando o tempo, uma vez que também não tem um

trabalho com que se ocupe.

Fala das distâncias percorridas e do convívio com vários “colegas” em locais

como as Galinheiras e a Ameixoeira, refere como se entretém em espaços públicos

como cafés, como vai até à farmácia e ao Pingo Doce e, tal como os outros utentes com

quem falei foca também a questão de passar o tempo:

“Sr. M: Aaaaah convivo com um colega assim, às vezes vou à Ameixoeira, outras vezes

vou às Galinheiras. Convivo, passo o dia-a-dia, ou entretenho-me num café ou…não,

bebidas alcoólicas não…não bebo, é muito difícil. Não quer dizer que às vezes não me

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junte com um amigo ou outro mas…passo o dia no café, assim a ver televisão, mais a

passar o tempo.” (excerto da entrevista ao senhor Mário)

Figura 8: Percurso do senhor Mário

Jallah caminha todos os dias de Sete Rios (onde dorme) até ao Refeitório e diz

que gosta de ir a bibliotecas para ler. Conseguimos ver no seu discurso que também

costuma frequentar estações de metro e de autocarros e que já esteve em outros

refeitórios antes, nomeadamente o Refeitório do Gerês e um outro no Cais do Sodré.

Neste quotidiano onde a deambulação por Lisboa está muito presente e onde,

neste caso, a dormida se faz na rua é possível encontrar uma apropriação dos vários

espaços por onde se passa para realizar as tarefas associadas à casa: no Refeitório toma

banho e come e nos caminhos que vai fazendo vai passando o dia:

“J: Nada, sim como sempre: vai passear um pouco, depois vem à Irmã e aqui come,

janto, depois vai passear e arrumar e um pouco, como sempre…” (excerto da entrevista

a Jallah)

Continuando esta análise que interliga os caminhos quotidianos das pessoas

sem-abrigo com a sua apropriação dos espaços da cidade numa relação de “habitar” a

cidade, deparo-me com o dia-a-dia de mais um utente que vive na Vitae – o Yassine.

Todos os dias faz, a pé, o caminho entre Xabregas e o Refeitório (Campo

Grande) passando sempre por um jardim e calculando sempre o tempo que demora a

percorrer essa distância, de modo a não chegar atrasado ao Refeitório e a poder

caminhar com calma:

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“Y: Venho a pé, saio lá de Xabregas, vou calmamente dar uma volta até ao jardim e

depois venho aqui a pé, devagarinho, quando chegar aqui é 11h30, 12h, já está.”

(excerto da entrevista a Yassine)

Yassine, ao manter uma rotina que o leva de um ponto da cidade ao outro

consecutivamente, diariamente, quotidianamente acaba por demarcar a cidade face às

suas necessidades, face à sua pessoa e ao caminho por si escolhido apropriando-se dos

vários espaços envolventes a esse caminhar do dia-a-dia.

É ainda salientado por Yassine a procura diária de trabalho, bem como a ideia de

que ao encontrar um trabalho e alguma estabilidade deixará de frequentar o Refeitório,

tal como já aconteceu anteriormente quando se encontrava empregado.

Figura 9: Percurso de Yassine

Torna-se, assim, possível constatar a forma como estas pessoas sem-abrigo

utilizam o espaço público para cumprir as funções que a casa teria. Encontramos

claramente um conjunto de atividades que normalmente seriam realizadas em casa e

que, ao não existir essa possibilidade, são realizadas nos espaços que a cidade dispõe e

dos quais estes indivíduos se apropriam, moldando-os tendo em conta as necessidades

que vão tendo e as atividades que vão desempenhando.

1.3 O Refeitório: observação da apropriação de um espaço

“O refeitório Rosália Rendu, sito no Campo Grande, constitui uma resposta social

prestada pelas Filhas da Caridade de S. Vicente Paulo à população imigrante em

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condições de grande precariedade, em especial, em situação de sem-abrigo e de

irregularidade.” (Relatório de Atividades do Refeitório Rosália Rendu 2011, 2)

O Refeitório, sendo uma “resposta social”, tem um público-alvo – imigrantes

sem-abrigo e em situação de irregularidade – e existe desde 2005 prestando apoio “a

utentes diretamente encaminhados pelo Gabinete de Apoio Social” (Relatório de

Atividades do Refeitório Rosália Rendu 2011, 2).

Tendo em conta os casos já apresentados neste trabalho é importante referir, em

relação ao público-alvo, que “embora prevaleçam os imigrantes sem-abrigo, existe um

número considerável de utentes que possui alojamento e ainda assim foram

encaminhados para o refeitório, especialmente, ao tratar-se de alojamento inseguro ou

alojamento inadequado ou em casos em que o rendimento auferido não permite a

supressão das despesas relativas à habitação e à alimentação.” (Relatório de

Atividades do Refeitório Rosália Rendu 2011, 7).

O serviço prestado por este espaço permite, então, aos seus utentes tratarem da

sua higiene, lavarem a sua roupa ou receberem peças de roupa que tenham em falta, e

ainda almoçar e levar comida para o jantar, bem como manterem um acompanhamento

junto de técnicos de serviço social (cf. Relatório de Atividades do Refeitório Rosália

Rendu 2011; 2015).

Deste modo, dada a observação realizada neste local também aí foi possível

encontrar momentos em que os seus utentes se apropriam do espaço em que se

encontram, seja através dos lugares em que se sentam, seja através dos objetos que têm

aí guardados, seja através da utilização ou não dos diferentes espaços (por exemplo, a

cozinha e o refeitório em si ou o balneário ou a lavandaria).

Desde o primeiro dia de trabalho de campo que foi possível observar uma clara

divisão espacial entre grupos de utentes do Refeitório, sendo notório que estes

indivíduos se sentavam de acordo com o seu país de origem, língua falada e algumas

relações que pareciam já estabelecidas.

“Pouco depois chegaram dois senhores que penso serem russos porque se sentaram

numa mesa separada (o senhor Stepan e um outro senhor). Ficaram os dois a conversar

apenas um com o outro, o que me levou a pensar na distinção que existe entre os

utentes do Refeitório, o facto de escolherem sentar-se ao pé das pessoas com quem

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partilham a etnia ou o país de origem, a separação física tão bem visível neste espaço

(…).” (Diário de Campo, dia 24.10.2016)

Torna-se possível, então, pensar a apropriação do espaço em função das relações

estabelecidas. Ou seja, os utentes do Refeitório escolhem os lugares onde se sentam e o

resultado final dessas escolhas individuais acaba por ser uma separação por mesas

conforme a lógica já referida.

“Desta vez notei também que o aumento de utentes veio trazer uma alteração na

disposição dos lugares, o que levou também a uma alteração na harmonia e na forma

de convívio do Refeitório com as personalidades e as características de cada um a

ganhar nova ênfase. O Francisco (…) agora tem ao seu lado não o Galvino e o senhor

Mário mas uma senhora (ucraniana ao que parece) que diz que ele é seu amigo, e as

outras duas senhoras novas que tenta enturmar, e o Dumitru mantém o seu lugar. A

mesa do canto varia entre os muçulmanos Omar e Jallah ou utentes novos como hoje

(dois senhores e uma jovem mãe com a filha de 5-6 anos, falava só inglês). A mesa do

meio mantém o senhor Ivan, o outro senhor Ivan, o senhor Stefan e hoje também o

Norberto (…). A mesa da porta mantém os senhores ucranianos (…). E a mesa da

frente com os novos utentes (…) este grupo (…) fica no Refeitório depois de almoçar a

conviver entre conversas, ver televisão e comer pão.” (Diário de Campo, dia

20.12.2016)

Esta separação por mesas e o episódio de alteração da norma descrito acima

permite-me equacionar as escolhas destas pessoas que se encontram em situação de

vulnerabilidade em relação ao espaço que escolhem para seu, sendo que, ao contrário

dos locais onde dormem, no Refeitório ganham uma nova liberdade para efetuar essa

escolha.

Assistimos a uma demarcação do espaço – das cadeiras e das mesas neste caso –

com os (poucos) objetos que transportam consigo (por exemplo, chapéus, telemóveis,

mochilas) tornando esse espaço ocupado por si e não por outro utente qualquer, é o seu

lugar.

De igual modo, as questões associadas ao espaço no Refeitório tornam a surgir

não só ao nível desta divisão de lugares à mesa como também na divisão dos próprios

espaços do Refeitório e, desta feita, a separação opera-se entre utentes e voluntários.

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A cozinha e o escritório são espaços onde os utentes não podem entrar, o

refeitório e o balneário são espaços onde podem estar e a lavandaria é um local onde só

podem ir na presença de um voluntário, sendo que a lavandaria e a cozinha têm, por

norma, a porta fechada à chave numa clara evidência de proibição à entrada de quem

não possua a chave (dos utentes, portanto).

No entanto, as características de alguns destes espaços e as relações utentes-

voluntários permitem uma certa permeabilidade à separação destas fronteiras espaciais.

“Hoje estive a falar com o Nicolay que já tem “autorização” para entrar dentro da

cozinha e já fica a ajudar com a loiça. – Penso que é sinal de que, de facto, as coisas

estão a começar a encaminhar-se, seja a nível de ter um trabalho fixo, seja a nível da

documentação e, provavelmente, tanto ele como o Iury em breve deixarão de ser

pensados como pessoas sem-abrigo ou sem teto; talvez sejam os dois primeiros casos

que acompanho ao longo deste percurso evolutivo.” (Diário de Campo, dia 17.2.2017)

É possível, assim, ver como na situação apresentada o utente em questão pôde

ultrapassar a fronteira entre o espaço dos utentes e o espaço dos voluntários, bem como

a associação entre esse trespassar de barreiras pré-existentes e a melhoria da sua

situação de vida.

A fronteira cozinha-refeitório tem também outra forma de ser ultrapassada tanto

pelos utentes como pelos voluntários. Entre os dois espaços além de existir uma porta

encontra-se também uma janela que serve para manter o refeitório como espaço privado

dos seus utentes face aos voluntários que se encontram na cozinha.

“Estive a falar com a Irmã Celeste sobre algumas histórias e o Francisco ia ouvindo

pela janela que às vezes fecha para nós não ouvirmos o que falam entre eles.” (Diário

de Campo, dia 13.2.2017)

Torna-se possível pensar numa breve apropriação do espaço do refeitório por

parte dos seus utentes quando se fecha a janela, na medida em que moldam aquele

espaço (através dessa ação de fechar a janela) para lhe conferir características privadas,

de forma a não serem ouvidos ou incomodados pelos voluntários que se encontram na

cozinha.

Por fim, em relação aos espaços e divisões espaciais do Refeitório refiro mais

um episódio em específico no qual essas divisões, ao serem trespassadas, causaram uma

reação junto de uma voluntária que fez questão de se exprimir:

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“Uma situação interessante de hoje foi a reação da Irmã e de uma das voluntárias ao

facto de o Francisco entrar pela “porta dos voluntários” quando vai buscar os sacos

com caixas de comida à entrada. A conversa que se seguiu foi a voluntária a perguntar

porque é que ele (o Francisco) entrava por aquela porta quando trazia os sacos com a

comida e a Irmã a dizer que não sabia porquê, mas que era assim; a voluntária riu-se e

disse que pronto nesse caso era assim, mas que ele deveria entrar pela “porta deles”.”

(Diário de Campo, dia 28.4.2017)

Nesta situação é através da reação à entrada de um utente pela “porta dos

voluntários” que vemos como há uma clara separação do espaço dentro do Refeitório,

nomeadamente nas entradas neste local.

Acaba por existir um conjunto de normas que não aparecem escritas nem são

explicadas a quem chega pela primeira vez ao Refeitório em relação à utilização

daquele espaço e às dinâmicas que lhe estão inerentes conforme se é utente ou parte da

equipa de voluntários, como foi possível ver nos episódios apresentados acima.

O tipo de apropriação do espaço que é passível de ser observado aqui passa pela

separação do meu lugar à mesa em relação a todos os outros lugares possíveis de

ocupar, seja através da marcação do espaço com objetos seja através da presença fixa

nesse lugar.

De igual forma encontramos a modelação do Refeitório que se vai transformar

num local de privacidade. Observa-se, ainda, uma forma que os utentes têm de dotar

este local de uma “habitabilidade” contrastante, por vezes, com os locais onde estes

indivíduos pernoitam e que se encontram desprovidos dessa característica.

Figura 10: Refeitório (1) Figura 11: Refeitório (2)

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Apegar: as Relações das Pessoas Sem-Abrigo

2. A Carência nos Afetos

Em relação ao terceiro e último eixo no qual se apoia este trabalho – as relações

e a forma como as pessoas sem-abrigo se apegam confiando no outro – houve uma

procura das características e dinâmicas inerentes ao modo como estes indivíduos, cuja

vida é pautada de carências e pela instabilidade, conseguem ou não manter relações e

ligações a outras pessoas.

Sendo caracterizados como indivíduos que não possuem meios de sustento a

nível económico não detendo abrigo ou teto, encontramos também uma outra forma de

pensar a realidade das pessoas sem-abrigo: “são apenas pessoas carentes de afetos

(pobres de afetos) que querem chamar a atenção mas que não fazem mal a ninguém.”

(Diário de Campo, dia 7.11.2016).

“I: (…) porque é aquilo que eu lhe dizia no outro dia: além das carências monetárias,

eles têm principalmente carências afetivas e eu penso que eles têm muita necessidade

de alguém que pare um bocadinho para os ouvir e que converse um bocadinho com

eles.” (excerto de entrevista a Isabel)

No entanto, através da observação realizada junto desta população em específico

– os utentes do Refeitório Rosália Rendu – esta ideia de “carência de afetos” foi sendo

desconstruída e foram sendo encontradas formas de se relacionarem com o “outro”

características de quem se encontra na situação de sem-abrigo.

Assim, o verbo apegar vai ser utilizado na análise dos dados recolhidos que

focam as relações destes indivíduos numa lógica que vai das relações estudadas e

visíveis dentro do Refeitório até às relações que estas pessoas mantêm fora desse

espaço.

2.1 As relações no Refeitório

“(…) tenho assistido a momentos de camaradagem, entreajuda, preocupação/cuidado

com o outro, animação, afetividade (incluindo os lugares em que se sentavam).”

(Diário de Campo, dia 17.10.2016)

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A questão do apego é visível no Refeitório não só nos comportamentos que os

seus utentes têm entre si e com os voluntários, como também pela própria disposição

das pessoas no espaço e pelo ambiente que se vive durante a hora de almoço naquele

local.

“A Irmã diz-me que eles (sem-abrigo) são simpáticos, conversadores, calmos, mas

muito exigentes seja com a comida seja com a vez de comer para que não lhes falte

alimento.” (Diário de Campo, dia 17.10.2016)

Encontramos, assim, um conjunto de indivíduos que convivem num mesmo

espaço durante determinado período dos seus quotidianos partilhando não só a refeição

como muitas vezes as experiências que vão vivendo tendo em conta várias

problemáticas com que se deparam, como é visível no seguinte episódio:

“(…) depois o Nicolay recebeu um telefonema do seu patrão a pedir que fosse

trabalhar hoje à 1 hora da manhã. Terminou o telefonema bastante revoltado. Diz que

recebe apenas 5€ à hora seja um trabalho durante o dia ou durante a noite, mas que

pagam cerca de 10/12€ ao seu patrão e que ele apenas dá 5€ aos seus empregados. A

Irmã perguntou a que horas acabava o trabalho e ele disse que não sabia, que acabava

quando acabasse e que se ele não fosse chamavam outro.” (Diário de Campo, dia

21.4.2017)

Além destes momentos em que os utentes sentem a necessidade de falar sobre os

vários problemas com que se deparam é possível ver também como vai aumentando a

proximidade dos utentes em relação aos voluntários, tendo em conta um maior número

de vezes que os segundos aparecem no Refeitório e o facto de demonstrarem

disponibilidade para ouvir e falar com estes indivíduos sem-abrigo:

“M: Essa confiança existe pela repetição de vezes que vêm cá? É através de… Como é

que se dá essa confiança que passa a haver?

I: É a repetição de vezes, é também eu acho que para eles é muito importante que nós

nos vamos aproximando devagar, que vamos esboçando um sorriso porque é aquilo que

eu lhe dizia no outro dia: além das carências monetárias, eles têm principalmente

carências afetivas e eu penso que eles têm muita necessidade de alguém que pare um

bocadinho para os ouvir e que converse um bocadinho com eles.” (excerto da entrevista

a Isabel)

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É visível no Refeitório uma certa distinção entre os vários utentes. Opera-se

quase uma humanização de cada um ao falar deles com base nas suas características,

nos seus gostos e preferências, e na sua personalidade.

“As voluntárias que já conhecem os utentes dizem “ah é o x, é normal” ou “ah lá vem

este ou aquele outra vez” – conversam entre si com um código de linguagem já criado

para falar de alguns utentes, dando-lhes alcunhas ou referindo-se a eles através de

características que estes tenham e que sobressaiam.” (Diário de Campo, dia

19.10.2016)

“Foram chegando os utentes e as caixas e os vários pedidos que cada um tem, seja em

relação aos lanches, seja em relação às caixas. É interessante ver como cada um deles

já sabe que a Irmã conhece os seus gostos e os seus vários pedidos quando dizem “a

Irmã já sabe o que é para pôr”.” (Diário de Campo, dia 18.11.2016)

Uma situação interessante de ser mencionada num capítulo onde se fala de

relações e interações é a dos novos utentes. A forma como são recebidos pelos

voluntários e pelos utentes habituais do Refeitório, a forma como aprendem através da

observação quais os comportamentos e a postura a adotar naquele espaço, a forma como

se mantêm junto daqueles que entram no Refeitório ao mesmo tempo que eles.

“Chegou um novo utente, um refugiado sírio (?) que só fala inglês e queria almoçar no

Refeitório. Foi interessante ver os olhares dos outros utentes para com o refugiado num

misto de desconfiança e curiosidade. À hora de almoço foi também interessante ver o

processo de aprendizagem da ordem e dos comportamentos no Refeitório durante o

almoço.” (Diário de Campo, dia 16.1.2017)

O “processo formal” – por ser repetido de todas as vezes que chega um novo

utente – de receção aos novos utentes por parte dos voluntários foi observado por três

vezes e nas três vezes teve a mesma ordem: entrega de um documento assinado pelas

assistentes sociais a comprovar que aquele indivíduo poderia usufruir dos serviços do

Refeitório; explicação do funcionamento do Refeitório; fotocópia do documento do

utente.

“Quando a Irmã estava para ir almoçar apareceram três senhores angolanos novos, o

que me permitiu assistir ao acolhimento destes novos utentes de perto: vinham com um

documento da JRS a sinalizar que poderiam ir ao Refeitório e foi-lhes dito que não

perdessem esse documento e que dessem os seus documentos de identificação (no caso

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os passaportes) para que fossem fotocopiados para depois serem devolvidos –

Pergunto-me que tipo de explicação/justificação terá aqui a JRS para que tenham dado

os seus documentos de identificação (uma das coisas mais importantes para as pessoas

sem-abrigo) assim tão prontamente a uma pessoa desconhecida… - De seguida, foi-lhes

explicado o horário do Refeitório, as refeições, as instalações e as possibilidades de

usufruto deste espaço acabando com, “mas vocês vêm da JRS já devem saber isto que

vos estou a dizer”.” (Diário de Campo, dia 27.2.2017)

Aqui observamos como estes seres vulneráveis por se encontrarem em situação

de sem-abrigo acabam por desenvolver alguma confiança não só em relação ao espaço

do Refeitório (“(…) veio ao Refeitório porque é o seu “lugar seguro” disse ele a uma

das voluntárias.” (Diário de Campo, dia 31.3.2017)), como também em relação ao

grupo de voluntários que os acolhe e auxilia durante o período de almoço.

Estas relações e este estar em contacto com, que encontramos no ambiente do

Refeitório, acabam por revelar que existindo uma possível “carência de afetos” nesta

população em específico, tal não significa que estas pessoas deixem de manter relações

quando têm oportunidade de o fazer.

Podem ser encontrados indícios destas relações, deste apegar através da

confiança, em pequenos gestos como a preocupação com o outro utente que tarda em

chegar, a tentativa de comunicação através de gestos e olhares, ou ainda as conversas

mantidas enquanto se espera pelo almoço.

Um aspeto interessante de reter aqui é também a questão dos conflitos existentes

ou passíveis de existir no Refeitório, uma vez que, ao falar de relações entre indivíduos,

podemos deter-nos em alguns momentos em que existiu uma certa tensão na população

que estudei.

“(…) regressámos ao Refeitório e os ânimos estavam exaltados: um dos utentes tinha

tentado agredir um outro utente por causa da ordem dos banhos e a Irmã teve de

intervir e chamar a segurança e deu ordens para que todas as portas ficassem

trancadas até ao seu regresso e que não se desse nada aos utentes, nem toalhas.”

(Diário de Campo, dia 17.4.2017)

“A Irmã esteve a contar-me que ontem houve uma grande confusão no Refeitório que

resultou na expulsão permanente de um dos utentes, o senhor Norberto. Contou-me que

ele e o senhor Luís se tinham pegado um com o outro incluindo cadeiras nesse ato de

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violência que decorreu no momento em que o Refeitório estava cheio com os almoços a

serem servidos.” (Diário de Campo, dia 21.4.2017)

E o que motiva estes conflitos? O que faz com que os utentes em questão

ponham em causa a continuidade da ida ao Refeitório? No primeiro caso foi a ordem

dos banhos que foi desrespeitada, no segundo caso foi a alimentação indevida do animal

de estimação de um por parte de outro.

Em ambas as situações apresentadas houve motivos que se tornaram mais

importantes no momento para estes indivíduos do que propriamente a continuidade das

idas ao Refeitório.

Tornou-se possível através da tensão gerada entender por um lado alguns dos

eixos que levaram as pessoas em questão ao conflito, por outro lado a importância que

determinados elementos têm para estas pessoas (num caso o respeito da ordem e do

utente que estaria primeiro, noutro caso o animal de estimação).

Outra questão levantada quer pelos utentes quer pelos voluntários em relação às

dinâmicas do Refeitório é a importância do respeito a ser tido não só entre utentes como

também entre utentes e voluntários:

“I: Eu acho que há um princípio básico que é o essencial…que é o respeito que eles têm

por nós voluntários e principalmente pela Irmã. Já assisti aqui a duas cenas menos

agradáveis, já tive que me pôr no meio de dois e sujeita a levar um murro ali, mas não,

quando eu levantei a voz e me pus no meio deles os dois cada um sentou-se na sua mesa

e penso que eles acabam por, podem não se respeitar uns aos outros, mas acabam por

respeitar os voluntários que estão, porque sabem que estão para os ajudar e

principalmente respeitam a Irmã porque sabem que ela está para lhes dar comida e

acho que isso é muito importante, o respeito.” (excerto da entrevista a Isabel)

“Sr. M: mas geralmente é com o Francisco que conversamos assim mais, mas é uma

coisa assim passageira, mas não é toda a gente, como é normal, mas como se diz o

outro não dou muita confiança porque eu já vai mais ou menos o que não se pode, eu

gosto muito do respeito.” (excerto da entrevista ao senhor Mário)

Por fim, é ainda interessante contrapor aquilo que os utentes do Refeitório me

disseram nas entrevistas acerca das relações que mantêm naquele espaço com aquilo

que é observado e com aquilo que dizem quando não estão focados na questão “Como

são as relações que mantém no Refeitório?”.

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As respostas a esta pergunta variaram entre “mais ou menos amigo, mas amigo,

amigo não tem” (excerto de entrevista ao Igor), “relações muito à superfície” (excerto

de entrevista ao senhor Mário), “só conhecidos, não é amigos, aqui não tem ninguém”

(excerto de entrevista ao Jallah), “tem amigos lá de casa, estão sempre juntos” e ainda

“aqui no Refeitório também tenho amigos” (excerto de entrevista ao Paulo).

No entanto, se formos olhar para a continuação do discurso destes indivíduos ou

mesmo para o seu comportamento durante o período do almoço no Refeitório

encontramos uma realidade diferente.

Igor menciona várias vezes os seus amigos ucranianos ao longo da entrevista e a

forma como estes o foram ajudando na sua adaptação à situação de sem-abrigo, indo

desde a pernoita em casa de um amigo (como visto no capítulo anterior) até à indicação

de locais onde se pode dirigir para comer:

“M: E como é que tiveste acesso à igreja e à comida da igreja?

I: Amigos, amigos ucranianos.” (excerto da entrevista ao Igor)

O senhor Mário não só revela preocupação com Francisco num dia em que este

não aparece às horas que costuma aparecer no Refeitório como também indica depois da

sua entrevista que eu poderia falar com os seus amigos Jallah e Yassine:

“O senhor Mário perguntava, preocupado, se a Irmã não saberia nada, se ele [o

Francisco] não se teria metido em alguma confusão. (…). Passado algum tempo fui

chamada como testemunha da preocupação do senhor Mário com o atraso do

Francisco – interessante como o zelo e a preocupação com o outro se tornam

importantes neste contexto de vulnerabilidade.” (Diário de Campo, dia 28.10.2016)

A contradição de Jallah acerca da forma como mantém as suas relações no

Refeitório surge poucos instantes depois de me ter dito que não tem amigos naquele

espaço, referindo que:

“Importante? Verdade como família, se dá comida para nós, é verdade, muita coisa,

por aí, dá muita coisa, coisa para a Irmã complica, porque sempre dá coisa, comida,

verdade, como Irmã, como todos mais sim, eu gosto é verdade tenho amigos aqui, um

dia não venho aqui sempre diz “ah como está amigo?”. Toda a gente é boa, a Irmã,

muito obrigado.” (excerto de entrevista a Jallah)

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Podemos analisar ainda uma posição que mantendo as contradições difere em

relação àquelas já apresentadas que é a do senhor Marcelo. Por um lado, diz que cortou

com qualquer tipo de relações (amizade, colegas, família), mas, refere de igual modo

como se sente como “um monitor à parte” (excerto da entrevista ao senhor Marcelo)

não deixando, no entanto, de “causar impacto” (excerto da entrevista ao senhor

Marcelo) junto dos restantes utentes daquele espaço.

2.2. As relações fora do Refeitório

“Teremos nós alguma coisa a aprender, de um ponto de vista sociológico, com as

relações múltiplas que acompanham a história de vida de cada homem?” (Breviglieri

2013, 1, tradução minha56)

Analisei a forma como as pessoas sem-abrigo que estudei interagem entre si e

com a equipa de voluntários tendo em conta o espaço do Refeitório, demonstrando que,

de facto, se vão desenvolvendo relações e formas de apego através da confiança que se

estabelece entre uns e outros.

É agora interessante procurar deslocar o olhar além do espaço do Refeitório e

ponderar acerca das relações que estes indivíduos mantêm além daquele lugar e da hora

de almoço.

Importa aqui recorrer não só ao passado e a uma realidade anterior à situação de

sem-abrigo com também ao presente e às formas de (con)viver com o outro

precisamente ao estar sem-abrigo. Ou seja, procuram-se as ligações, as interações, as

formas de relacionamento entre a especificidade da situação em que se encontram as

pessoas sem-abrigo e o outro que pode ser ou não sem-abrigo.

Desta forma, o senhor Marcelo menciona sobretudo três tipos de relações com

que se tem deparado desde que se encontra em situação de sem-abrigo: as relações de

tensão com outros utentes dos albergues onde pernoita e pernoitou; a relação à distância

com as filhas; todas as outras relações mantidas, nomeadamente com um colega

advogado.

56 «Avons-nous quelque chose à apprendre d’un point de vue sociologique des attachements multiples qui

accompagnent l’histoire de vie de chaque homme ?» (Breviglieri 2013, 1)

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Em relação aos albergues a descrição dos relacionamentos que vivenciou aí toca

em termos como “comportamento anárquico”, “castigo” ou ainda “desordem”, tal como

é referido no seguinte excerto da entrevista ao senhor Marcelo:

“Sr. M: Embora eu tenha a certeza absoluta que eles não têm a menor intenção, a

menor perceção, a menor consciência do que se trata, eles têm um comportamento

anárquico, no sentido da desordem, da ideia política mesmo de anarquia, da ideia de

sociabilidade desordenada, desorganizada, tá bem?”

“Sr. M: Então eles utilizam um método de criar situações, de montar cenas, para

castigar aquele que não é integrado, que não se consegue integrar bem no grupo. Ou

tem que estar adaptado ao grupo, ou tem que ser mais um, ou sofre o castigo.”

Depreende-se que as experiências relacionais que o senhor Marcelo teve

principalmente com os utentes do primeiro albergue onde ficou não foram de todo

positivas levando, inclusive, a que fosse apresentando queixas sucessivas para que o

colocassem noutro albergue.

No entanto, não deixa de ser interessante olhar a forma como os indivíduos que

pernoitam no primeiro albergue em que o senhor Marcelo esteve funcionam em grupo,

incluindo ou excluindo outros indivíduos desse grupo principal através de formas

curiosas de coerção e domínio de uns em relação aos outros numa realidade onde a

vulnerabilidade impera.

Passando para um tipo de relação mais privado e profundo o senhor Marcelo fala

das suas filhas: “E tem lá (…) as minhas filhas que nunca esqueço delas, não é? Uma

mais velha e duas gémeas iguais, uma de 11 anos e duas gémeas iguais de 8 anos.”

(excerto de entrevista ao senhor Marcelo).

Diz que não mantém contacto com as filhas por impedimento da mãe das

mesmas e que no futuro gostaria de viver com elas cá, na Europa, demonstrando algum

nervosismo nos gestos e no olhar ao falar dessa relação:

“(…) viu-se pela forma como as mãos tremiam, pelas pausas e pela expressão séria,

emocionada e quase de uma revolta impotente, que o tema “relações” no geral e “as

filhas” em particular o afetam bastante (…)” (Diário de Campo, dia 3.1.2017)

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Por fim, ao falar da sua amizade com um colega advogado, o senhor Marcelo

revela aquilo que sente e pensa acerca da estreita conexão entre a situação de sem-

abrigo e a necessidade de se afastar das outras pessoas para que não as prejudique:

“Sr. M: Tenho esse colega advogado (…). Ele gosta muito de mim e eu gosto muito dele

mas a gente não pode, não posso deixar um transtorno que está-me acometendo roubar

a energia dele, percebeu? Senão eu vou atrapalhar a vida dele. Porque me arrancou da

minha normalidade quotidiana, vai arrancar ele também.”

“De modo que, depois de ter acontecido isso cá em Portugal, eu cortei absolutamente

as minhas relações de tudo, de amizade, de colegas, de família, de tudo, porque eu acho

que é um peso demasiado para as pessoas carregarem, então eu nem me permito ter um

envolvimento emocional, nem profissional, enquanto eu não ultrapassar definitivamente

esse assunto, percebeu? Porque eu acho que é um preço muito alto para o colega, para

uma pessoa que a gente gosta pagar. Principalmente porque percebi que quando me

acham vulnerável eles vão então numa circunstância, numa coisa à minha volta que

possa me atingir, é o caso das minhas filhas, não é?” (excertos da entrevista ao senhor

Marcelo)

Estes excertos são úteis e importantes para pensar não só a posição que a

situação de sem-abrigo assume para este indivíduo e para as suas relações sociais como

também as defesas que são ativadas face à vulnerabilidade comportada por essa mesma

situação.

Isto é, o senhor Marcelo não só fala de um desligamento total como forma de

proteção daqueles que lhe são queridos procurando que a sua situação não os afete,

como utiliza esse desligamento como autodefesa pois cortando as relações sociais que o

envolviam antes de ser sem-abrigo acaba por ter menos um ponto frágil onde o

poderiam “atingir”.

Francisco refere formas de relacionamento com características diferentes, mas

com algumas semelhanças àquelas mencionadas pelo senhor Marcelo.

Por um lado, e à semelhança dos outros utentes dos albergues de que o senhor

Marcelo menciona, fala das pessoas que dormem nos mesmos espaços que ele.

Por outro lado, apresenta dois tipos de família: aquela família composta pelos

seus parentes e uma outra composta por pessoas que o foram ajudando conforme se ia

deparando com problemas.

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Em relação às pessoas que dormem no mesmo que espaço que ele, Francisco

fala de alguma instabilidade na presença desses indivíduos levando a momentos em que

se sente sozinho:

“F: De momento, pronto, existem lá assim alguns que dormem, outros dias não vão,

pronto, uma vez sinto-me sozinho (…)” (excerto da entrevista ao Francisco)

É interessante pensar aqui a noção já referida de “carência de afetos” – o

momento em que Francisco expressa uma falta de contacto com outras pessoas por se

encontrar numa situação instável de sem-abrigo, sente-se sozinho, sem companhia, sem

alguém com quem partilhar aquele espaço onde dorme e a quem esteja ligado, apegado,

relacionado.

Sobre o tópico da família Francisco divide no seu discurso dois tipos de pessoas

que considera família:

“F: Digamos, não aconteceu, mas foi um afastamento daquilo que eu

era…propriamente… eu educado até uma certa idade, digamos, dos 14 anos até aos 17

ainda consegui frequentar a ausência dos meus pais e acabando depois, envolvendo-se

etnias e grupos, fiquei sem a minha família e…afastando-me, lá está, afastando-me do

pouco ou muito que eu já levava e isso…digamos, obrigando-me a mim mesmo a

arrastar-me para a dita cidade de Lisboa e aí onde eu me aprofundei.” (excerto da

entrevista ao Francisco)

“Olhando neles, porque me adotaram em certas circunstâncias falando comigo,

sabendo o que é que eu sou, o que é que faço, o que é que não faço, eu adotei-as!”

(excerto da entrevista ao Francisco)

Vemos nestes excertos a forma como se dá o ligar e o afastar do outro no caso de

Francisco. Se por um lado este indivíduo diz que perdeu a sua família devido a um

conjunto de problemas. Por outro lado, foi também em situações em que estava em

circunstâncias complicadas que encontrou uma nova “família” que o ajudou, que o

ouviu, que passou a conhecê-lo.

Nicolay, por sua vez, divide também as suas relações principalmente ao nível

dos dois tipos de família que diz ter: de um lado aquela família com quem não mantém

contacto porque não quer (composta pelos seus pais, irmãos e filha) e, de outro lado, os

seus amigos e os indivíduos com quem partilha a casa.

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“N: (…) Pai, mãe [estão na Ucrânia], irmão está em Espanha, irmã Eslováquia, minha

filha não sei onde…

M: E falas com os teus pais? Tens algum tipo de relação com a tua família?

N: Eu não falo há muitos anos. Porque não quero.

M: Então consideras mais próximo quem vive contigo cá em Portugal?

N: Sim, claro, minhas amigas, meus amigos. A família não me interessa. (…) Já estou

há muitos anos longe. Eles não querem saber como estou eu e eu não quero saber como

estão eles. Pronto.” (excerto de entrevista ao Nicolay)

Não deixa de ser interessante pensar como se operou o corte na relação entre

Nicolay e a sua família e a forma como este indivíduo arranjou outras pessoas que o

ajudassem e com quem partilhar um quotidiano que, caso não tivesse existido o corte

prévio com a família, talvez fosse partilhado com os seus parentes.

As relações que Igor mantém fora do Refeitório cingem-se principalmente à sua

mãe, aos seus amigos ucranianos, expressando ainda como se sente mal em Portugal por

ser visto como imigrante e por ouvir todo um conjunto de ideias negativas associadas

aos imigrantes por parte de alguns portugueses.

Igor fala da sua mãe com bastante carinho (usando a palavra “Mamã”)

associando as saudades que tem do seu país de origem à pessoa da mãe com quem fala

com bastante regularidade. Refere ainda que no futuro gostava de ter dinheiro suficiente

para poder regressar à Ucrânia e ajudar a sua mãe.

“I: Minha família é só minha mãe.

M: E costumas falar com ela?

I: Sim, ela quer que eu todo o dia falar com ela. Mamã tem reforma…como estes

velhotes… Eu queria ajudar mamã, ela sozinha e eu também quero minha mãe como

cozinheira. (…) Só que ela como general, ela gosta de mandar, general “Faz isto, faz

aquilo, vai lá, vai ali” e eu não muito gosto…antes quando pequeno tudo bem, agora

não… [risos]” (excerto de entrevista ao Igor)

As amizades que mantém, segundo o próprio, são sobretudo com pessoas

ucranianas que o vão ajudando a descobrir lugares na cidade de Lisboa onde pode ir

para resolver algumas das suas necessidades, nomeadamente para encontrar comida:

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“M: E como é que tiveste acesso à igreja e à comida da igreja?

I: Amigos, amigos ucranianos.” (excerto da entrevista ao Igor)

Neste caso vemos como, por vezes, a questão de encontrar outras pessoas do

mesmo país de origem leva a um tipo de confiança e de relacionamento diferente, a uma

partilha de experiências e conhecimentos diferente, causada ou não por essa mesma

origem e que sendo referida fora do Refeitório também é observada dentro daquele

espaço.

Por fim, é ainda mencionado por Igor a forma como se sente mal em Portugal,

como sente que é visto enquanto estrangeiro e como esse ser estrangeiro acarreta um

conjunto de conotações negativas perpassadas por alguns cidadãos portugueses:

“I: Lá [na Ucrânia] a minha mãe e…eu gosto de sentir não como estrangeiro. Ucrânia é

minha casa e todas as pessoas não olhar para mim como imigrante, como estrangeiro,

como…eu sente em Ucrânia melhor do que aqui, aqui muitas vezes sente-se mal porque

eu é ucraniano e esse é problema para as pessoas, para os pretos, para os portugueses,

muitos portugueses dizem “vocês roubam nossos lugares de trabalho e vocês bebem

álcool e fazer mal e…”.” (excerto da entrevista ao Igor)

Ao falar com o senhor Mário sobre as relações que mantém fora do Refeitório é

possível reter, por um lado, que recentemente sofreu um grande impacto na sua rede de

relações sociais com a morte da sua mãe, por outro lado, registam-se outros cortes desta

vez associados à passagem para a situação de sem-abrigo e ao “abandono” por parte dos

seus amigos de outrora.

“M: Vive sozinho?

Sr. M: Sim, sim, sim, a minha mãe já… [pausa; o sr. M emociona-se ao falar da mãe e

demora algum tempo a conseguir continuar a falar] faleceu-me há…há uns oito meses…

[mudança no tom de voz que ficou mais baixo porque o sr. M ficou comovido]

atualmente vivo sozinho na casa da Câmara que arranjei. Tenho família, mas cada um

no seu canto.” (excerto da entrevista ao senhor Mário)

“Sr. M: E realmente quando eu comecei a entrar em decadência, derivado à minha vida

em si, nas vendas, quem eu pensava que era uma pessoa meu amigo ou minhas amigas

foi quem me abandonou.” (excerto da entrevista ao senhor Mário)

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Deste modo, é referido que não tem amigos apenas conhecidos, que vive sozinho

e que apesar de ter família não há uma grande proximidade para com os seus parentes.

Além disso conversa e convive diariamente com algumas pessoas que apelida de

“colegas”.

“Sr. M: Eu passo os dias realmente…às vezes encontro-me com um colega ou com

outro (…)” (excerto da entrevista ao senhor Mário)

“Sr. M: O amigo que eu tinha no bolso é que era o amigo deles, que eles me

consideravam como amigo. Então hoje eu não tenho amigos, tenho conhecidos.”

(excerto da entrevista ao senhor Mário)

Jallah tem vários amigos espalhados por três países principalmente: Marrocos,

Espanha e França. Além dos amigos que foi fazendo refere ainda a sua família

numerosa com quem vivia quando estava em Marrocos e com quem fala com alguma

regularidade enquanto está em Portugal.

É interessante pensar no caso deste indivíduo a importância que tem o contacto

que vai mantendo com a família que está em Marrocos, na medida em que, ao ser sem-

abrigo, não dispõe de muitos meios para contactar a família, mas, ainda assim, havendo

essa necessidade de dar notícias aos pais e irmãos, Jallah acaba por encontrar meios

para os contactar.

“M: Há bocado falaste que vivias em família, ainda manténs relação com eles? Falas

com eles?

J: Com família? Sim. É um dia se marca, se lhama, dois dias…quando ter dinheiro

fazer um recadito, mais a irmã como sentam…” (excerto da entrevista a Jallah)

“M: Além da família, tens outro tipo de relações? Amigos…cá em Lisboa?

J: Sim, tenho amigos aqui, em Espanha, França, Marrocos.” (excerto da entrevista a

Jallah)

No caso de Yassine são referidos dois grupos nas relações que mantém fora do

Refeitório: um composto pelos indivíduos que vivem no mesmo albergue que ele e o

outro composto pela sua família com quem vai mantendo contacto.

Ao contrário das experiências relatadas pelo senhor Marcelo que vive no mesmo

albergue que Yassine, este indivíduo demonstra como o facto de viverem no mesmo

local mantém o seu grupo de amigos junto fora do albergue, passando uma ideia de um

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grupo e uma experiência mais pacíficas do que aquelas vivenciadas pelo senhor Marcelo

no mesmo espaço.

“M: Há bocado falou da família. Costuma falar com eles…

Y: Sim. Costumo, eu não…eu tenho contacto sempre com eles, no Facebook, no

Whatsapp, no telefone… Não é diariamente, mas por exemplo uma vez por mês tem que

ou duas vezes por mês tem que saber notícias, principalmente a mãe, não é? A mãe é

que mais…”

Neste relato de Yassine são referidos os meios que costuma utilizar para se

manter em contacto com a família que vive em Marrocos. É interessante observar o uso

das novas tecnologias (Facebook e Whatsapp através da Internet) e a necessidade, tal

como já visto no caso de Jallah, de manter um contacto regular com os seus familiares.

Por fim, ao nível das relações mantidas fora do Refeitório encontramos o caso

do Paulo e da Susana que, sendo casados, têm o seu filho de 3 anos que veem com

alguma regularidade e esperam poder ter meios para o sustentar num futuro próximo.

“M: Muito bem, como é que pensas o futuro, ou seja, como é que gostarias de estar

daqui a cinco anos?

S: Com o meu trabalho, com a minha própria casa, com o meu próprio trabalho e…ter

uma família realizada, isto seja, com o meu esposo e com o meu filho.” (excerto de

entrevista a Susana)

Falam ambos também dos amigos que têm, seja no curso (no caso de Susana),

seja aqueles que foram sendo feitos ao longo da vida (no caso de Paulo). Paulo

menciona ainda a tensa relação com a sua sogra em casa de quem vive (já mencionado

acima).

“M: Além da família tens amigos, tens outro tipo de relações?

S: Sim, tenho amigos lá do curso, tenho.” (excerto de entrevista a Susana)

“P: Tenho, por acaso tenho muitos amigos. Nas minhas antigas escolas, onde eu passei

no meu curso, não completei o curso de carpintaria ali na Crinabel do Lumiar, nos

trabalhos do dia-a-dia, no próprio bairro, no dia-a-dia…” (excerto de entrevista ao

Paulo).

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Conclusões: As Pessoas Sem-Abrigo – Apropriações e Relações

Quando pensamos nas pessoas sem-abrigo da cidade de Lisboa podemos ser

levados a uma imagem de um conjunto de seres que deambulam pelas ruas da cidade,

que ocupam indevidamente os espaços que vão encontrando, que não têm relações com

outros seres humanos, que têm sobretudo problemas de falta de uma casa, falta de um

trabalho. Falta de vontade de querer mudar acabando por viver nessa situação de

carência manifesta, inexorável, a quem passa e olha para um destes indivíduos.

O intuito de todo este trabalho é, através de uma abordagem onde a pessoa sem-

abrigo é tida como sendo, de facto, um ser humano com as suas características próprias

e peculiaridades individuais, pensar além desta imagem de conjunto que homogeneíza

uma realidade pautada pela multiplicidade de realidades. Quero desenvolver um estudo

que, ao ir ao encontro destes seres vulneráveis pelas suas múltiplas problemáticas,

analise uma população através da sua relação com o espaço e com o outro.

Isto porque, uma vez chegada pela primeira vez ao Refeitório onde iria

desenvolver trabalho de campo, tornou-se evidente um conjunto de premissas: a) não é

possível falar das pessoas sem-abrigo como um todo uniforme e homogéneo uma vez

que cada um dos indivíduos com quem falei apresenta um enredo de experiências

vividas completamente diferente daquele mencionado pelo indivíduo seguinte; b) estava

perante uma realidade que implica uma desconstrução problematizante, na medida em

que quase me impelia a ir além do que já era conhecido acerca das pessoas sem-abrigo

(por exemplo, questionando a aplicação do conceito oficial de pessoa sem-abrigo)

procurando a especificidade inerente aos modos de vida daqueles indivíduos em

concreto; c) é possível conceber um envolvimento característico dos indivíduos em

situação de sem-abrigo com os vários outros com que se vão cruzando e tal

envolvimento deve ser analisado com o maior interesse; d) não existe nada de óbvio na

forma como estas pessoas falam do espaço, da cidade, dos mecanismos que vão

encontrando para (sobre)viver ao não terem uma casa.

Deste modo, e tendo em conta este conjunto de ideias obtido não só numa leitura

prévia do estado da questão correspondente ao fenómeno das pessoas sem-abrigo, como

também através de um primeiro contacto com o terreno e com a população que iria

estudar, torna-se interessante e fundamental aprofundar principalmente duas áreas da

realidade das pessoas sem-abrigo: a relação mantida com o espaço e o apego e

envolvimento com o “outro”.

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Em relação ao espaço posso dizer que se desenvolveu uma aproximação em dois

tempos. Inicialmente as questões tocam o acolhimento que é feito a esta população por

parte de um espaço público que poderia até já ser conhecido mas nunca antes através da

lente de quem se vê em situação de sem-abrigo. Numa sequência temporal onde os

indivíduos já estão em situação de sem-abrigo há mais tempo acaba por se tornar

imperativo questionar a habitabilidade que os vários locais do espaço público acabam

por ganhar.

Assim, tendo observado os dados recolhidos torna-se possível estabelecer um

conjunto de ideias conclusivas no que concerne o fenómeno que passei a poder apelidar

de “apropriação” do espaço por parte das pessoas sem-abrigo.

Por um lado, torna-se evidente como há diferentes graus de apropriação dos

diferentes espaços por onde o dia-a-dia destas pessoas os vai levando. Encontramos,

desta forma, três tipos de apropriação correspondentes a três momentos diários

analisados neste trabalho: uma apropriação do espaço onde dormem; uma apropriação

dos caminhos que percorrem; e uma apropriação dos espaços do Refeitório onde

comem, tratam da sua higiene e têm momentos de lazer.

Em relação ao espaço onde dormem acaba por ser importante lembrar a noção de

“habitar” na esteira de Breviglieri (2010) - “Habitar supõe uma certa ancoragem

fenomenal do corpo, alimentada por uma matriz de experiências familiares, um

conjunto de emoções tranquilizantes procuradas na intimidade da casa, uma sutura

afetiva que tem cada um como ligado aos que lhe são próximos por um laço não-

arbitrário” (Breviglieri, 2002 in Breviglieri 2010a, 63, tradução minha57) – para melhor

podermos compreender que nem sempre encontramos uma apropriação efetiva do

espaço onde pernoitam, uma vez que em alguns dos casos por mim analisados até pode

existir uma casa onde dormem mas tal não implica que seja um espaço apropriado pelos

indivíduos que aí permanecem.

O que quero transmitir com a associação do conceito de “habitar” com o

conceito de “apropriar” é que acaba por ser necessário a existência de um para se

constatar a realidade de outro. Se um indivíduo tem uma casa sua mas não tem

57 «Habiter suppose un certain ancrage phénoménal du corps, nourri par une matrice d’expériences

familières, un foyer d’émotions sécurisantes procurées dans l’intimité du chez soi, une suture affective

qui tient chacun comme attaché aux proches par un lien non-arbitraire.» (Breviglieri, 2002 in Breviglieri

2010a, 63)

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condições de “habitar” esse espaço, limitando-se a dormir aí e nada mais, então talvez

possamos mais depressa falar de uma apropriação do espaço da rua por quem aí dorme

repetidas vezes e aí tem um conjunto de dispositivos que vão fazer daquele recanto um

local “habitável”, do que do espaço de uma casa onde não se tem qualquer tipo de

possibilidade de aí viver, de “habitar” esse espaço apropriando-se do mesmo.

A apropriação do espaço onde as pessoas sem-abrigo junto das quais realizo o

meu trabalho dormem acaba por ser diferente entre si consoante o tipo de espaço em

questão.

De um lado temos aqueles indivíduos que dormem em albergues cujas regras de

funcionamento apenas permitem a sua presença nesses locais durante o período da noite

registando-se uma ideia contrária à apropriação daquele espaço: estes indivíduos vão ali

apenas para dormir partilhando esse espaço com outros vários utentes, não se apropriam

do espaço porque não têm tempo de estadia ali que leve a uma identificação de que

aquele local é meu porque tem objetos meus ou mesmo a minha presença ou ainda uma

modelação desse espaço tendo em conta a minha pessoa.

Os indivíduos com quem falei que dormem em albergues realizam toda e

qualquer tarefa que vá além de dormir fora daquele lugar levando a um tipo de

apropriação muito mais evidente no exterior dos albergues. A apropriação do espaço

que as pessoas sem-abrigo que dormem em albergues têm é encontrada nos caminhos

que percorrem e na sua capacidade de ir assegurando a resposta às suas necessidades ao

longo desse caminhar, ao longo dos espaços que vão descobrindo na cidade e que até

podem ser públicos mas para estes indivíduos acabam por ter características privadas

porque passa a ser o sítio onde fazem exercício (como é o caso da Praia de Belém para o

senhor Marcelo), onde descansam do caminho (como é o caso dos jardins que vários

interlocutores referem), onde se educam através da leitura (nas bibliotecas), onde têm

inclusive a privacidade para trocar de roupa.

Por sua vez, as pessoas sem-abrigo que dormem em casas partilhadas têm

também evidente nas suas experiências esta questão entre o habitar e o apropriar tal

como vista em relação aos albergues com a ligeira diferença de que, ao contrário dos

albergues, nas casas estes indivíduos acabam por ter um espaço seu mesmo quando a

própria casa é partilhada. Ou seja, embora ainda não possa falar de uma

“habitabilidade” do espaço porque quem dorme em casas acaba por viver fora dessas

casas, é possível falar de um maior grau de apropriação do que nos casos que pernoitam

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em albergues na medida em que as casas são espaços seus onde têm os seus pertences e

onde podem à partida realizar mais tarefas quotidianas do que nos albergues uma vez

que não há horário de fecho das casas.

No entanto, é através das experiências de quem dorme na rua que encontramos

uma clara observação de como estes indivíduos se apropriam do espaço urbano, das

suas características, das suas propriedades, das suas possibilidades para conseguirem

um mínimo de conforto que lhes permita dormir no local por eles escolhido.

Aqui vamos além da relação entre habitar e apropriar um espaço, uma vez que,

muito mais do que essa relação, é visível nos casos apresentados que dormem na rua

uma modelação do espaço público e das suas características e potencialidades para

imbuir esse local público de características privadas, de conforto, de semelhança a uma

cama onde se pode dormir. Estes indivíduos vivem na rua. Não tendo uma casa ou um

local protegido onde possam dirigir-se para dormir acabam por desenvolver um

conjunto de mecanismos e dinâmicas de modo a garantirem essa proteção e esse

recolhimento associados à casa mas experienciados nos espaços da cidade.

Trata-se de uma apropriação que além de moldar o espaço, habitar o espaço,

experienciar o espaço também permite analisar as questões do acolhimento das

características da cidade em relação às pessoas sem-abrigo. É nesta situação extrema

onde pouco ou nada se tem que encontramos uma nova lente para focar a estação de

comboios, o edifício onde decorrem espetáculos mas que possui recantos que abrigam

os indivíduos sem-abrigo do frio da noite, o local público onde se vai para admirar as

suas características e para ter momentos de lazer e diversão mas que serve também para

garantir uma noite tranquila e protegida, tal como as pessoas sem-abrigo que

acompanhei referem.

É este o olhar das pessoas sem-abrigo que dormem na rua em relação às

características dos locais com que se deparam numa procura de soluções para as suas

várias necessidades. Se precisam de arranjar dinheiro têm um local com turistas a quem

o podem pedir; se precisam de comer têm um local destinado a esse efeito onde, pela

experiência própria ou alheia, sabem que encontram comida; se precisam simplesmente

de passar as horas do dia conhecem vários percursos a fazer e vários locais aos quais o

acesso não é interdito e aos quais podem recorrer; se precisam de repousar, de descansar

de mais um dia de caminho então conhecem espaços de que se podem apropriar para,

nesse momento, serem a sua cama, a sua casa.

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Os percursos tomados ao longo do dia têm aqui um interesse acrescido ao serem,

em alguns casos, referidos quase ao nível de uma rotina que é criada nos quotidianos

destas pessoas sem-abrigo. Quando referem que todos os dias fazem exercício em

determinado local, quando referem que todos os dias caminham a pé do seu local de

pernoita até ao Refeitório, quando referem que todos os dias caminham pela cidade de

Lisboa procurando trabalho, quando referem que passeiam, andam, caminham por aí

usando os espaços da cidade para ver o tempo passar, quando referem que se deslocam a

locais específicos para conviver.

Esta rotina de caminhos pela cidade acaba por revelar uma apropriação de

múltiplos espaços enquanto se anda pela cidade. Tendo um destino definido ou não,

estes indivíduos ao não terem uma casa para onde ir nos vários momentos do dia é na

rua e nos locais com acesso ao público que passam os seus dias. Esses locais por si

escolhidos – operando uma decisão e uma escolha entre o caminho a) e o caminho b)

que os vai levar ao local c) ou ao local d) – tomam proporções interessantes se os

contrapusermos com o dia-a-dia do cidadão “normal” que por sua escolha pode estar ou

não na sua casa. A escolha experienciada pelas pessoas sem-abrigo não inclui o regresso

a casa, repartindo esse conceito por vários outros espaços aos quais regressam na sua

rotina diária, apropriando-se dos mesmos.

E como se dá esta apropriação do espaço no nosso locus de observação? Será

possível falar de uma apropriação do espaço do Refeitório? Os comportamentos, os

gestos e as dinâmicas observadas apontam que sim que também naquele espaço as

pessoas sem-abrigo desenvolvem uma apropriação dos vários lugares mas desta vez

recorrendo a meios diferentes e tratando-se de uma apropriação diferente mas não

menos importante para pensar a relação destes indivíduos com os múltiplos espaços por

onde passam nos seus quotidianos.

Por um lado, encontramos uma apropriação do lugar à mesa e da mesa em si em

detrimento de outro lugar ou de outra mesa. Esta apropriação é feita através da presença

destes indivíduos no seu lugar durante todo o período de tempo em que se encontram no

Refeitório ou, caso circulem pelo espaço, através de mochilas ou pequenos objetos

como bonés ou telemóveis. Desta forma, encontramos alguns mecanismos que impedem

que o seu espaço seja utilizado por outro utente e seja reconhecidamente pertencente à

pessoa a) ou à pessoa b).

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Outra forma de observar os modos como estes indivíduos se apropriam do

espaço no Refeitório é através da criação de barreiras deles em relação ao grupo de

voluntários que também circula naquele espaço. Estas barreiras podem ser portas ou

mesmo janelas que são fechadas ou abertas consoante se quer manter o espaço do

refeitório público e com acesso a todos ou privado impedindo que os voluntários ouçam

o que é discutido e falado na zona reservada aos utentes através desse fecho da barreira

física representada pela porta ou pela janela.

Uma vez mais encontramos aqui uma apropriação que não deixa de se prender

com as ideias associadas ao conceito de casa, nomeadamente em relação à privacidade

que se poderia ter nesse local e que ao não se deter uma casa e havendo essa

necessidade de manter algumas conversas mais privadas se opta por criar barreiras e

definir, mesmo que momentaneamente, um espaço que não deve ser partilhado com o

outro grupo.

As diversas formas de apropriação do espaço visíveis na relação das pessoas

sem-abrigo com os lugares que pautam o seu dia-a-dia são interessantes de ser

analisadas na medida em que vão contra a ideia de que estes seres se encontram num

espaço por simples acaso, de que estes seres se limitam a vaguear pela cidade num dia-

a-dia sem destino e sem utilidade, perpassado pelo senso comum.

As evidências encontradas através dos discursos analisados ou da observação

realizada demonstram como há, de facto, uma relação que é estabelecida nas múltiplas

formas como estes indivíduos se apropriam dos múltiplos espaços para fazer face às

necessidades com que se deparam nos seus quotidianos, como moldam os lugares da

cidade para aí encontrarem uma forma de realizar as tarefas que normalmente seriam

desempenhadas dentro de quatro paredes numa casa mas que, na ausência de casa, são

mantidas numa separação espacial ao longo da cidade e dos seus caminhos.

Se deslocarmos o olhar para as questões que se prendem com as dinâmicas e

comportamentos inerentes às relações que as pessoas sem-abrigo mantêm então além de

encontrarmos situações interessantes, tais como as contradições apresentadas pelos

dados recolhidos, observamos de igual modo formas de estar com e de se apegar a

bastante semelhantes àquelas que o cidadão “normal” mantém.

A ideia neste último eixo de análise das pessoas sem-abrigo que estudo passava

pela conceção de que, apesar das circunstâncias em que se encontram (estar sem-

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abrigo), estes indivíduos não deixam de manter contacto, de criar formas de

(re)ligamento através da confiança que vão depositando no outro, de criar relações

sociais e de operar também o corte com aquelas relações que já não lhes são proveitosas

ou cujos elementos acabaram por falhar na retribuição do afeto demonstrado.

Torna-se possível através dos dados recolhidos contradizer a possível associação

das pessoas sem-abrigo com a desvinculação, os cortes radicais de relações, o

desligamento da sociedade, a ausência do campo afetivo nos modos de vida destas

pessoas.

Para pensar as dinâmicas das relações mantidas pelas pessoas sem-abrigo

observo não só os seus comportamentos durante os momentos que partilham no

Refeitório como também ouço os seus discursos e o conjunto de ideias que transmitem

quando o tópico “relações” surge na conversa.

Interessa-me saber o que pensam sobre os relacionamentos que são anteriores à

sua situação de sem-abrigo, na medida em que se ouvimos falar de cortes radicais nas

relações e de “desvinculação” na vida relacional destas pessoas importa pensar como

era no passado e como é atualmente esse campo em particular de forma a

comprovarmos ou contradizermos essas ideias. Importa saber se, existindo cortes, foi a

situação de sem-abrigo que os provocou ou se já vinham a ser perspetivados antes de se

encontrarem em situação de sem-abrigo.

Outra questão que procuro problematizar foi a forma como além de

(sobre)viverem em situação de sem-abrigo também acabam por criar momentos de

convívio por se encontrarem precisamente nessa mesma situação, recorrendo aqui a uma

ideia que João Aldeia (2011) transmite na sua tese e que me levou a querer tentar aplicá-

la junto da população que estudei: “A vida na rua elimina laços, mas também os cria.”

(Aldeia 2011, 77).

Assim, desenvolvo uma análise das relações dos indivíduos sem-abrigo que

equaciona as dinâmicas existentes tanto no Refeitório como fora deste espaço, indo da

família às pessoas com quem se partilha o local onde se pernoita e chegando ainda aos

colegas de trabalho e amigos vários.

Ao nível do Refeitório é notório um conjunto de comportamentos e de gestos

que revelam a preocupação e o cuidado com o outro bem como uma proximidade que é

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mantida com base em alguns aspetos tais como a partilha do mesmo idioma ou a

partilha de experiências já em situação de sem-abrigo.

Outro aspeto interessante para pensar as formas de relacionamento das pessoas

sem-abrigo passa pelos momentos de entreajuda e aprendizagem onde para cada

obstáculo é encontrada uma solução, nomeadamente ao nível da compreensão que

quando não se concretiza através das palavras passa a ser efetuada pelo uso do gesto e

do olhar.

Os comportamentos observados no Refeitório indicam claramente que, tal como

acontece com o “cidadão normal”, também as pessoas sem-abrigo têm uma necessidade

de manter um contacto com o outro, de confiar, de se apegar, demonstrando essa

necessidade das mais variadas formas mas não deixando de ser evidente que as relações

sociais são tão importantes junto desta população como junto de outra população

humana qualquer.

O ser humano é um ser social independentemente da situação em que se

encontre. Podemos utilizar os diálogos dos utentes do Refeitório uns com os outros ou

mesmo as dinâmicas presentes na aproximação destes em relação à equipa de

voluntários para comprovarmos que existindo uma “carência de afetos” nesta

população, quando se encontram num local onde podem expressar também essa

necessidade (além de todas as outras já evidenciadas) então aproveitam e criam,

mantêm e desenvolvem os mais variados tipos de laços sociais. Observa-se um apegar a

quem demonstra constância ao nível da presença assídua no espaço do Refeitório que

acaba por funcionar para estes indivíduos vulneráveis como uma manifestação de que

podem, de facto, confiar em quem aparece, levando à formação de uma relação.

No entanto, não deixa de ser curioso como também estes indivíduos acabam por

ser imbuídos das ideias perpassadas pela sociedade de que existe um corte que faz deles

seres desligados e desvinculados sem qualquer tipo de relações sociais.

Tal é visível nos seus discursos e na forma como as ações, gestos e

comportamentos contradizem as suas palavras quando a questão colocada é a das

relações mantidas.

O que quero dar conta aqui é que todos os indivíduos que observo e com quem

falo referem ter amigos e manter relações. Alguns dizem que, no seu quotidiano os

momentos de lazer são inclusive passados na companhia desses amigos e colegas. No

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entanto, se perguntarmos diretamente se têm amigos, por exemplo dentro do Refeitório,

a maioria responde que não, que são apenas conhecidos.

Essa resposta leva-me a analisar os gestos e comportamentos que observo nesse

espaço e que revelam o contrário: uma preocupação, um cuidado, uma amizade, um

companheirismo e afetividade em relação ao outro que partilha aquele espaço enquanto

utente. Igualmente relevantes são os discursos de quem ia dizendo não ter amigos e

minutos depois falava dos seus amigos com quem estava no Refeitório.

Talvez se trate de uma negação daquelas relações ou de um conjunto de relações

e de proximidades que passam quase despercebidas aos próprios intervenientes mas

estas contradições ao nível dos discursos e das ações não deixam de ser curiosas de

salientar.

Assim, no Refeitório há uma clara divisão espacial em função das relações

mantidas. Seja por mesas, seja por lugares, estes indivíduos mantêm uma dinâmica

relacional e uma escolha que é livremente feita sobre junto de quem vão passar aquelas

horas aquando da ida ao Refeitório. Há conflitos, há conversas, há demonstrações de

afeto neste espaço entre os utentes e da parte dos utentes para com a equipa de

voluntários.

Esta visibilidade que o relacionar-se com e o apegar-se a, nas suas múltiplas

dinâmicas, assume acaba por ir ao encontro da minha tentativa de estudar como as

pessoas sem-abrigo não deixam de ser seres sociais e de necessitar de afeto só por

estarem em situação de sem-abrigo. Muito pelo contrário, por vezes é precisamente por

se encontrarem em situação de ausências várias que vão revelar uma maior necessidade

de conversar, de partilhar momentos, de estar com o outro, necessidade essa que toma

uma maior evidência nos momentos partilhados no espaço do Refeitório.

Por fim, sou levada a questionar as relações que as pessoas sem-abrigo mantêm

fora do locus de observação por mim escolhido – o Refeitório. Procuro saber se têm

família, se têm amigos, como gerem as proximidades e as distâncias e como se operam

os cortes e os (re)ligamentos por parte de quem vive em situação de sem-abrigo.

As realidades com que me deparo nos discursos destes indivíduos vão ao

encontro daquilo que penso serem as semelhanças entre as relações das pessoas com

abrigo e as relações das pessoas sem abrigo.

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São relatadas histórias de famílias que se separaram há alguns anos e cujo

contacto dos seus elementos foi efetivamente quebrado de ambos os lados, cenário

também possível de encontrar junto de um cidadão com abrigo. São relatadas histórias

de amigos que se separam apenas ao nível geográfico mas que mantêm contacto e ainda

detêm o nome de “amigo”, tal como acontece normalmente quando alguém muda de

país. São relatadas histórias de auxílio face a problemas que vão surgindo e em relação

aos quais se procura uma solução junto de quem é mais próximo destes indivíduos, tal

como acontece quando se procura um conselho junto de um amigo.

O que procuro analisar aqui com este paralelismo entre as dinâmicas das

relações das pessoas sem-abrigo e aquelas experienciadas pelas pessoas com abrigo é

que, de facto, não são visíveis cortes radicais em relação aos “outros” que estavam

presentes na vida destes indivíduos antes de estarem em situação de sem-abrigo e, ao

mesmo tempo, como as relações vão sendo inovadas à medida que também a situação

vai mudando.

Estas pessoas revelam a necessidade de ter companhia mesmo tendo um dia-a-

dia instável e, quando não têm um qualquer “outro” ser humano com quem partilhar

momentos, histórias, conversas, falam da solidão. Estas pessoas criam formas de manter

as suas relações com aqueles que lhes são mais próximos através de chamadas

telefónicas ou das novas tecnologias. Estas pessoas cultivam novas relações quando têm

necessidades que têm de ser supridas, olhando os gestos e os comportamentos dos

outros de forma a aprenderem os mecanismos que devem usar para (sobre)viver no

espaço público. Estas pessoas confiam nos seus amigos com quem partilham o espaço

onde dormem, a quem ligam para irem passear e ver o tempo passar, com quem

convivem seja no café seja no Refeitório seja ao longo dos caminhos da cidade.

Assim, em forma de conclusão, as ideias que penso que são de salientar tendo

em conta os dados que recolhi neste trabalho são as de que: a) as pessoas sem-abrigo,

apesar de não terem uma casa para onde regressar, onde realizar várias tarefas no dia-a-

dia e onde manter a sua privacidade e o seu refúgio em relação ao que é público, adotam

uma relação com os espaços da cidade onde pernoitam apropriando-se destes,

habitando-os em alguns casos e moldando-os às suas necessidades para que se tornem

algo semelhante ao conceito de casa que detêm; b) as pessoas sem-abrigo aprendem e

mantêm caminhos diários ao longo da cidade que vão percorrendo e que vão sendo parte

de uma rotina que criam para dar conta das suas necessidades e das tarefas que têm de

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107

realizar diariamente apropriando-se de determinados locais em função das tarefas que

procuram ver cumpridas; c) as pessoas sem-abrigo criam, desenvolvem e mantêm

relações sociais através das quais se apegam ao outro em dinâmicas que têm algumas

semelhanças àquelas mantidas pelos cidadãos com abrigo e que têm por base a ideia de

confiança no outro.

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ANEXOS

Anexo 1:

Figura 12: Regulamento do Refeitório Rosália Rendu

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Anexo 2: Excertos da entrevista ao senhor Marcelo

Mariana: Eu queria começar por perguntar a sua idade, nacionalidade e local onde vive.

Sr. M: Tá bem. Eu estou a viver nesse instante num albergue, numa casa de regras. Eu

tenho 41 anos e já fui brasileiro, por algum acaso eu despedi-me para sempre de lá

exilado político voluntário. Um alto exílio, um refrigério pessoal autorizado pela

instabilidade inédita e pelas crises gravíssimas e não menos inéditas de lá. Ao não

compactuar com aquele mal de lá, eu me permiti o refrigério do alto exílio político

voluntário, tá bem? O meu nome é Marcelo Metzner.

M: Que profissão teve ou qual foi o último trabalho que teve?

Sr. M: Tem, tenho a profissão de advogado de lá e de advogado de cá, inscrito na

Ordem dos Advogados do Brasil, de Brasília, da capital do Brasil e, também, na Ordem

dos Advogados de Lisboa, do distrito de Lisboa. Então, estou a exercer advocacia na

praça lusa e também mantenho alguns clientes brasileiros mas é assim, por

circunstâncias que me tiraram das minhas atividades quotidianas, estou a viver numa

casa de regras que se chama albergue, não é? Fui acolhido pela Santa Casa em uma casa

de regras.

Bom a profissão é, então, advogado. Tenho outras habilidades profissionais:

professor de karaté, treinei karaté desde os cinco anos de idade e treino até hoje,

cinturão preto aos 16 anos, foi a minha primeira profissão, dentro outras de ser

professor de línguas e tal, até que tive a minha primeira profissão pública de policial de

trânsito, polícia de trânsito. Depois enveredei para a justiça, fiquei na justiça muito

muito tempo, uma década e tal, duas décadas, por volta disso. E depois de ser acometido

de uma doença grave que é o TAB – está autorizada a divulgar no seu relatório –

Transtorno Afetivo Bipolar, num diagnóstico muito complicado, muito delicado, a

doença tem evoluído para um nível gravíssimo na época, então eu também sou inativo

do serviço público do Brasil, do Tribunal Superior Eleitorado, sou servidor público

inativo de lá, reformado. Tenho de lá a minha aposentadoria por invalidez, tá bem?

M: Muito bem, continue, se quiser.

Sr. M: Bom, eu estou a exercer advocacia. Nesse instante eu não estou no escritório

porque condições externas, circunstâncias externas me retiraram das minhas atividades

habituais mas a minha profissão é de advogado e o exercício da advocacia é a minha

atividade presente, tá bem?

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M: Seria possível descrever-me como é o seu dia-a-dia atualmente?

Sr. M: Olha o dia-a-dia atualmente é chatíssimo, eu tento matar o tempo da maneira que

mais me convém no sentido de também de preservar a minha saúde, porque tenho essa

circunstância do TAB, não é? Então eu aprendi que tenho de ter uma responsabilidade a

mais com isso, com a minha saúde e aprendi da época que esse diagnóstico aconteceu

até à data de hoje que algumas coisas me ajudam a manter a saúde mental, não é? Bom,

então, primeira coisa que eu tenho que trabalhar e muito é um esgotamento físico, uma

atividade física constante e exaustiva, porque, por alguma circunstância ou outra que eu

não sei explicar – alguma colega da área de Medicina talvez possa te ajudar –, eu tenho

uma energia física inexplicável, eu tenho, em estado de euforia, eu tenho uma energia

que não é comum nas pessoas, é uma energia diferente. Então eu sou hiperativo, não é?

Quando estou em estado de euforia, o que acontece o contrário quando estou em estado

depressivo mais quietinho, mais reservado, não é? Tá bem.

O meu dia-a-dia tem sido o trabalho em prol da minha saúde, atividade física

exaustiva, sempre que posso, sempre mesmo que posso então vou até lá, gosto muito da

praia de Belém, gosto muito demais da praia de Belém para fazer atividade física. Tem

lá parques com aparelhos de ginástica e eu faço bom uso daquele local. Bom e após,

logo em seguida, eu continuo o trabalho da minha proteção de saúde, no sentido de estar

numa biblioteca, num ambiente que condiz com a minha vida pessoal, com a minha

personalidade. Então eu estou sempre ou numa loja de livros ou dentro de uma

biblioteca a escrever e a ler alguns livros também e a meditar e mesmo a matar o tempo,

matar o tempo porque envolver nessa espiral, nesse ciclo vicioso de sem-abrigo é muito

prejudicial para qualquer pessoa e para mim tem o agravante da doença, pode ser até

fatal se eu deixar essa espiral tomar conta da minha vida, não é? Então tenho que ter o

controlo da vida, tá bem?

M: Muito bem, disse que ia à praia de Belém, que ia à biblioteca e depois como é que

continua o dia-a-dia?

Sr. M: Bom, então eu passo todo o restante do dia a ler e também entro na Internet para

fazer algumas publicações no meu perfil social, no meu perfil do Facebook que era um

perfil profissional – era, por algum acaso, é uma história bem longa que se um dia

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quiser eu conto os pormenores mas que deixou de ser um perfil que eu posso usar

dentro da normalidade (…).

M: Depois vem cá ao Refeitório todos os dias?

Sr. M: Eu, por algum acaso, nunca aconteceu faltar um dia, eu tenho vindo todos os dias

mas tenho comigo que nalgum ou outro dia eu tenho tido uma dificuldade é capaz que

eu não venha todos os dias mas eu tenho vindo todos os dias mas eu tenho comigo que

nalgum momento de dificuldade posso falhar alguma ou outra vez. Estou disposto de

aqui permanecer até quando resgatar dessa situação, dessa situação precária, não é? Que

me deixa vulnerável, estou vulnerável, tá bem?

M: Em relação ao albergue onde vive como é que poderia falar um bocadinho do espaço

e das regras e como é que pensa o sítio onde vive?

Sr. M: Olhe, aquilo deve ser mesmo pensado. Aquilo deve ser mesmo pensado. E deve

ser pensado com a seriedade jurídica, sociológica, psicológica, psiquiátrica e tudo, tá

bem?

Por um lado, é um mérito muito grande do seguro social de Portugal conseguir

desenvolver esse trabalho, que a gente sabe que é dificílimo, de acolhimento dos sem

moradas, de acolhimento dos sem teto, dos, lá no Brasil chamaria mendigos, não é?

Então é louvável e é digno de nota e de elogio.

Agora, por outro lado, as condições ainda precisam, em se tratando de estar

fazendo, as condições precisam ser pensadas. Por exemplo, não há lá extintores de

incêndio, eu não percebi que há extintores de incêndio com validade; não há lá uma

caixinha de primeiros socorros; as instalações a gente pode perceber que… (pausa para

se benzer com o toque do sino da igreja), as instalações a gente pode perceber, pelo que

os colegas conversam, que elas não têm um conforto para pessoa humana, não é? Eles

dizem que aquilo lá foi, no passado, um abatedouro de animais.

Bom, eu estive num primeiro albergue, numa primeira casa de regras, e passei

para a segunda. A primeira casa de regras que eu estive, que me acolheu ela tinha essas

deficiências, essas carências todas, durante o período que eu fiquei lá ela mudou

completamente, eu entrei num ambiente e deixei a primeira casa de regras num outro

ambiente, ela estava mesmo transformada, era outro espaço, tinha melhorado muito,

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parecia até um hotel ali de duas estrelas, três estrelas, tá bem? Parecia mesmo uma

pensãozinha três estrelas, estava bem arrumada quando a deixei. Mas uma situação toda

contrária de quando eu cheguei. Quando eu cheguei era tudo precário, muito precário,

inclusive em termos de higiene e tudo, tá bem?

Bom, mas então agora me deparei uma vez mais com essa realidade, não é? Lá

na Vitae, não é? Bom mas o que eu percebo é que já começa um processo de

transformação lá. O que não ajuda é mesmo o prédio, a disposição predial, o alojamento

da Vitae parece que não está adaptado para o abrigo da pessoa humana. É desprovido

totalmente de conforto e parece que lá funcionava um, e a ideia que passa para uma

pessoa humana é que lá funcionava mesmo um abatedouro de animais como dizem, não

é? Bom, a questão da higiene tem melhorado mas quando eu cheguei era mesmo um

caso de vigilância sanitária, era um caso de preocupação sanitária gravíssimo, tá bem? E

o trato dos funcionários com as pessoas é relativamente bom, agora entre os utentes é

que tem fenómenos engraçados, quer dizer nada engraçados. Existem fenómenos de

atenção sociológica entre os utentes tanto de lá da primeira casa de regras, como da

segunda, da Vitae.

Embora eu tenha a certeza absoluta que eles não têm a menor intenção, a menor

perceção, a menor consciência do que se trata, eles têm um comportamento anárquico,

no sentido da desordem, da ideia política mesmo de anarquia, da ideia de sociabilidade

desordenada, desorganizada, tá bem? E ao mesmo tempo eles utilizam aquele

mutualismo anárquico, que nada tem que ver com socialismo, nada tem que ver com

comunitarismo. Aquele mutualismo, eles transformam aquilo em tribos ou em gangs, tá

a ver bem? Bom e aí eles têm comportamentos impregnados de fascismo. Então esse já

é um raio-x que eu pude verificar muito claramente do ponto de vista sociológico: há

um comportamento anarquista impregnado de fascismo. Fascismo no sentido de por

uma liderança carismática, não é? Uma pessoa que eles gostam, eles serem utilizados

como figurantes de um jogo imaginário para criar situações ou montar cenas feitas,

preparadas para castigar pessoas contrárias ao grupo, contrárias à ideologia deles, aos

pensamentos ou aos interesses ou às vontades. Então eles querem mesmo submeter as

pessoas com um castigo que não é um castigo autorizado pela lei, não é o castigo legal,

não é por meio da polícia, não é por meio do Ministério Público, não é por meio da

justiça de um magistrado, é mesmo por alto defeso, é mesmo por exercício arbitrário das

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próprias razões, é mesmo por dominação, é mesmo por violentação do outro, é mesmo

para subjugar o outro.

Então eles utilizam um método de criar situações, de montar cenas, para castigar

aquele que não é integrado, que não se consegue integrar bem no grupo. Ou tem que

estar adaptado ao grupo, ou tem que ser mais um, ou sofre o castigo. (…)

M: Falou que tinha estado, antes de estar nesta casa, que tinha estado noutra, porque é

que teve de mudar?

Sr. M: Então foi exatamente isso, um ataque desses grupa, tribal, não é, é um ataque de

mutualismo não é, de um comportamento anárquico impregnado de fascismo. Bom,

entrou lá um senhor sem a menor consciência do que estou a dizer. Bom mas ele entrou

disposto a ter um combate corporal comigo, um combate real, corporal, de corpo, não é?

Bom, então, ele não podia chegar e como dizia ele “partir a minha fuça com um

chapadão”, ele não podia entrar e “partir a minha fuça com um chapadão”, ele precisava

de um motivo. Bom, então ele entrou buscando um motivo, ele entrou procurando um

motivo e assim foi. Então ele ficava todo o tempo a me espetar e aquela turma que

montou aquilo – porque eu tenho comigo que ele não foi parar lá por acaso, é eu tenho

comigo que não. Bom mas aí então é leviano eu afirmar que isso é verídico porque isso

já é uma impressão que eu tive, tá bem?

Tá mas então, o facto é que isso não importa, o que importa é que ele estava lá e

que aquela se arrodeou no tornou daquela circunstância, daquela situação e alimentou

aquela situação, aquela circunstância, montando cena, criando situações no sentido de

ver ali uma bela rinha de gente, não é? Não era rinha de galos nem rinha de cães nem

rinha de animais, era uma rinha de gente. Bom, então ficou aquela torcida, não é? “Dá

um chapadão nele, dá um chapadão nele, dá um chapadão nele”. Eu pensei comigo “não

convém dar um chapadão nele, não é?”. Não convém porque é o tipo de coisa que a

gente sabe como começa, nunca sabe como termina, não é? Tá bom. Então não convém

mesmo dar um chapadão nele.

Então acontece que eu reclamei uma vez, duas vezes, três, quatro, cinco, seis,

sete, fui até à oitava, nona, décima vez reclamando. Subindo de reclamação, primeiro

com o porteiro, depois com a assistente social, depois fui na Santa Casa. Mas quando eu

fui na Santa Casa, a assistente social da Santa Casa entendeu a situação, eu disse “olhe,

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eu nem consigo para lá voltar hoje, está vendo? Então, se não tiver uma solução hoje eu

já fico mesmo já na rua, eu prefiro ficar na rua que me enrascar com um momento de

estouro, um momento se ele me estressou acima do meu limite eu nem imaginei que

conseguia passar o final de semana e chegar até essa data”. Bom então já pedi, a solução

era simples: ou me tirava do quarto ou tirava ele, tem muitos quartos, não tinha nada

que estar os dois metidos juntos, alimentando aquela rinha de gente, não é? Bom, então

eu fiquei perplexo com a falta da solução mas o caso é esse, não é?

Então a minha assistente social me falou “olhe eu vou te mandar um email no

final da tarde para onde vocês vai, eu vou tentar achar uma vaga porque eu percebi a

gravidade, percebi a urgência mas foi assim tu me falou agora, não é, e precisa para

agora, não é?”. Eu falei “eu não volto mais lá, pode ser que não ache a vaga mas já fica

sabendo que eu estou fora, não consigo conviver num ambiente assim” – porque o

ambiente está preparado para o confronto, não é, está sim faltando vender ingresso

[risos]. Então não convém. Aí ela falou “Tá bem”.

Bom, quando foi no final da tarde chegou o email do encaminhamento para o

segundo, para a Vitae, e foi assim que eu fui transferido de uma casa para a outra. Mas o

que eu percebi é que eles tentaram esse tipo de manobra estratégica comigo várias vezes

e em vários locais: nos Anjos isso aconteceu muito, no Refeitório dos Anjos, por isso

até que eu estou a fazer as refeições aqui, nos Anjos isso era estimulado lá pelos

monitores, nos Anjos, no primeiro albergue lá de Cruz dos Poiais, no segundo albergue

aconteceu e acontece mas assim numa escala muito menor de intensidade. Então como

eu já passei o antes eu criei um pouco de resistência, eu aprendi a me defender bem, até

por conta do conhecimento sociológico que me salvou, eu aprendi a intervenção correta

que não é a intervenção corporal, não é a intervenção física, não é a intervenção jurídica

absolutamente eles não têm muita noção de regras quanto mais de direito, não é, a

intervenção para se salvar, para escapar numa ocasião dessas é mesmo a intervenção

sociológica, é o impacto de conhecimento que ofusca já a visão deles, percebeu, e meio

que “olha eu sei o que vocês estão fazendo, eu estou olhando por trás do picadeiro, eu

estou vendo vocês nos bastidores”. (…)

M: Outra questão: diariamente, que objetos é que transporta consigo que são os seus

objetos, que tenham uma importância especial para si?

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Sr. M: Olha, basicamente são os documentos, não é? São os documentos, essa

mochila…eu não tenho o hábito de andar com mochila mas por causa do treino e por

causa do acesso regrado, do acesso restrito à casa de banho, ao quarto, só no final da

noite, então eu costumo ter sempre aqui algum fato de treino, então tenho aqui alguma

camiseta, por conta de um suor, de uma coisa, então eu faço a troca onde eu estiver, a

troca de roupa, então tem aqui alguma camiseta, algum material mesmo de treino, é

mesmo o material que eu costumo ter como meu assim do dia-a-dia, de transporte, é

mesmo isto, tenho a necessaire, tenho aqui algum material para atividade física e é só

isso. É como se fosse uma mochila para ir ao ginásio, está a ver? É mesmo isso e os

documentos pessoais.

M: O local onde está agora a viver é relativamente perto dos sítios por onde caminha

diariamente ou por onde passa diariamente ou é uma grande distância que tem que estar

sempre a fazer?

Sr. M: Olha, eu não vou ser falso modesto, é uma grande distância mas que eu acho

bom porque eu tenho que caminhar até lá, então caminhada já é o meu aquecimento,

quando eu chego às máquinas já estou aquecido, então eu não perco tempo com o

aquecimento corporal. Ali eu já parto direto para um trabalho de flexibilidade ou de

alongamento, não é? (…)

Lá na praia de Belém eu tenho feito muito menos [treinos de artes marciais].

Alguma coisa ainda não me deixa à vontade, no sentido de estar demonstrando técnicas

para pessoas que eu não sei quem é que está olhando, percebeu? É como se uma criança

ou um irresponsável visse e quisesse tentar reproduzir aquilo e se prejudicasse ou

prejudicasse alguém e se eu soubesse que foi porque me viu eu ia ficar…é muito uma

questão ética, é pessoal.

M: Vê a sua situação atual como sendo uma pessoa sem-abrigo, considera-se a si

mesmo uma pessoa sem-abrigo?

Sr. M: Olha, isso é um paradoxo que quem conseguir responder primeiro conta para o

outro, tá bem? É assim: eu tenho do lado de lá, do Brasil, a minha casa própria, está lá a

minha casa sem dever um cêntimo de nada, está lá a casa que eu estou tentando vender

já faz dois anos e tal e nunca consigo concretizar a venda; tenho a renda da reforma do

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Tribunal Superior Eleitoral, do TSE, é o pagamento de aproveito de aposentadoria, que

suspenderam o pagamento (…).

Eu podia muito bem estar pagando um quarto com a renda que eu tenho da

reforma, tá bem? Então isso não é exigível, se eu tivesse a renda eu não iria [para o

Brasil] porque nada justifica com o Consolado aqui no Chiado, bem pertinho, onde eu

passo na porta todo o dia, nada justificaria eu pagar uma passagem de avião, ir até

Brasília (…) para me sujeitar a uma perícia médica de 15 minutos, 10 minutos, para

uma burocracia que eu já sei qual vai ser o resultado porque a minha doença,

infelizmente, ela é grave e incurável, isso já está reconhecido pela Organização Mundial

de Saúde.

Bom, tem lá a herança do pai falecido que por algum acaso o irmão acha na

cabeça dele, eu não sei se é leviano eu dizer o que é que passa na cabeça dele, o que eu

sei é que ele não pagou a minha parte com burla, com algum tipo de burla que ele tenta

justificar para as pessoas, não é?

E tem lá, essa parte já foge da resposta mas, tem lá as minhas filhas que nunca

esqueço delas, não é? Uma mais velha e duas gémeas iguais, uma de 11 anos e duas

gémeas iguais de 8 anos.

Mas com a renda, com o valor do imóvel, com a renda da reforma de

aposentadoria do tribunal, com a herança do pai falecido eu não me considero um sem-

abrigo, eu estou na situação, eu fui lançado, contra minha vontade, nessa situação de

sem-abrigo. Eu fui tirado de dentro do escritório, com esse tipo de comportamento que

eu te disse, eu estava a exercer, fui tirado de dentro das universidades, estava como

explicador das miúdas da universidade a 300€ o trabalho, quando era uma coisa simples

60€ o trabalho, do escritório era 800€ à hora, fui tirado com esse tipo de comportamento

(…), tem lá essa situação patrimonial, então eu não me considero um sem-abrigo, um

sem teto, um sem morada. Eu estou lançado numa situação de emergência social

propositadamente.

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M: Quanto ao futuro, como é que pensa, por exemplo, que vai ser daqui a 5 anos? Tem

alguma ideia do que é que gostaria que mudasse?

Sr. M: É assim, depois do que aconteceu comigo e do que eu vi acontecer no Brasil com

os meus olhos, eu penso que a única certeza que uma pessoa que respira tem é que um

dia vai parar de respirar, o resto tudo na vida é incerto – depois essa experiência esse é o

meu pensamento.

Mas acoplado a esse pensamento, graças a Deus, tem a minha escolha cristã

católica e eu penso que eu tenho sim algumas esperanças presentes do futuro próximo.

Então o que eu tenho em mente é ultrapassar esses assuntos primeiro, primeiro

ultrapassar os assuntos do Brasil, depois de estar com autorização de residência ou

nacionalidade já conquistada na Europa – porque da Europa eu não saio! – e, se Deus

quiser e muito me ajudar, já com as filhas do lado de cá, no sentido de proteção mas não

é de uma proteção no sentido pejorativo de que eu seja um racista ou de que eu seja um

preconceituoso ou de que eu seja um contrário ao Brasil, é no sentido de ter a seleção de

comportamento, percebeu? É no sentido, olha aqui tem essa realidade mas a realidade

do Petismo lá é muito pior.

M: Mantém contacto com, neste caso, as suas filhas?

Sr. M: Não, o contacto já vinha sendo tirado por alienação parental antes do primeiro

ataque que eu tive (pausa para se benzer com o toque da igreja a dar as horas)…no

Brasil, essa é uma história longa (…).

A mãe das crianças, essas três filhas são da mesma mãe, ela já impedia o meu

contacto com as filhas. Então tinha na justiça uma causa e ela durante o processo na

justiça, com muito custo porque eu já sentia ali um empreendimento político, eu já

sentia ali uma interferência política. Bom mas durante o curso do processo ela

conseguiu mesmo algum apoio político, no sentido de alguém se aproveitar disso para

me neutralizar de alguma forma.

Eles levaram isso até às últimas consequências, no sentido de tirar toda a

comunicação entre o pai e as filhas. As filhas que tanto me amam como eu as amo. O

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nosso amor é uma coisa que está fora dessa questão. Está acima disso de tão bonito, de

tão forte.

M: E cá em Lisboa, tem amigos, tem familiares, tem colegas de trabalho?

Sr. M: Tenho esse colega advogado (…). Ele gosta muito de mim e eu gosto muito dele

mas a gente não pode, não posso deixar um transtorno que está me acometendo roubar a

energia dele, percebeu? Senão eu vou atrapalhar a vida dele. Porque me arrancou da

minha normalidade quotidiana, vai arrancar ele também. (…)

De modo que, depois de ter acontecido isso cá em Portugal, eu cortei

absolutamente as minhas relações de tudo, de amizade, de colegas, de família, de tudo,

porque eu acho que é um peso demasiado para as pessoas carregarem, então eu nem me

permito ter um envolvimento emocional, nem profissional, enquanto eu não ultrapassar

definitivamente esse assunto, percebeu? Porque eu acho que é um preço muito alto para

o colega, para uma pessoa que a gente gosta pagar. Principalmente porque percebi que

quando me acham vulnerável eles vão então numa circunstância, numa coisa à minha

volta que possa me atingir, é o caso das filhas, não é? (…)

M: E em relação, por exemplo, aos outros utentes do Refeitório: que tipo de relação é

que podemos falar que existe ou pensamento em relação…

Sr. M: A relação que existe é mesmo de, eu funciono ali, dentro do limite que posso,

como um monitor à parte, porque para preservar a minha segurança, o meu bem-estar, a

minha saúde, eu todo o tempo estou a fazer intervenção sociológica com eles, eu todo o

tempo estou a causar impacto. Então na comunicação, na linguagem deles, na mais

acessível que eu perceber, eu transformo uma teoria num conto de alguma coisa, numa

historinha, numa piada que seja, à maneira do entendimento de cada qual.

Bom, a partir do momento em que eu percebo que ele bebeu, eu já vou

acompanhando o desenrolar daquilo no comportamento e deduzindo o que se passou na

cabeça deles. Isso tenho visto resultados fantásticos, fenomenais. Tem pessoas que eu

conheço hoje que nem são mais as mesmas pessoas que eu conheci quando eu cheguei

lá, já são toda outra, nem sem pode dizer “ah é a mesma pessoa”, não, já é uma outra

pessoa toda diferente.

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M: Qual é que é a importância que o Refeitório, como instituição onde pode ir para

comer, tomar banho, ter roupa e ter lá os voluntários, tem para si?

Sr. M: Olha, esse em particular tem toda a importância porque ele está ligado com a

minha crença religiosa, com a minha escolha de fé, de profissão de fé. Então ele tem um

sentido de refrigério, eu faço aqui o meu alimento, o meu alimento corporal e o meu

alimento holístico, espiritual, a minha espiritualidade é muito trabalhada nesse lugar.

Então ele tem aqui uma função essencial, fundamental para mim. Esse refeitório de cá,

o outro de lá foi, de tão prejudicial que estava, aí aquele de lá estava mais brasileiro que

o Brasil. (…) Bom, mas esse aqui é todo outro, é um ambiente de paz, de boa

consciência, de trabalhar a consciência, é um refrigério para alma esse.

M: Queria só perguntar se há algum tipo de outras instituições ou serviços a que recorra

além do Refeitório?

Sr. M: Eu vou recorrer pela primeira vez a uma instituição chamada Cáritas. Bom, diz lá

que tem algumas roupas para trabalho. Se, por algum acaso tiver mesmo eu perplexo de

não ter ultrapassado os meus assuntos por mais de um ano, por um ano e tal, então já

assim mesmo espantado, tomei conhecimento e vou até lá tentar conseguir algum fato

para avaliar se tenho condições de retomar os trabalhos, não é? Tanto nas universidades

como no escritório, porque tem a questão da saúde, tem a questão emocional, tem a

questão de vulnerabilidade e tem a questão de responsabilidade que está acima de toda

as outras. Não posso ficar abrindo assuntos de clientes sem conseguir fechar os meus

próprios porque uma vez aberto o assunto, a relação do cliente, eu tenho que devolver

para ele aquela situação fechada, ultrapassado, o assunto resolvido, então ali eu não

enxergo o processo como um amontoado de papéis, ali são interesses de pessoas,

interesses de pessoas são vida, não é?

Bom, mas então eu vou até à Cáritas e que eu me lembre agora vai ser a primeira

vez e é só essa mesmo.

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Anexo 3: Excertos da entrevista ao Francisco

Mariana: Pronto, o meu trabalho é sobre populações, por assim dizer, mais

vulneráveis…

Francisco: Em que quê? Estilo assim se eu me relaciono, como é que eu…

[…]

M: Queria primeiro perguntar a idade, nacionalidade e local onde vives.

F: A idade tenho 42 anos e…agora estou…a viver na rua…e é assim que eu me

desenvolvo ao longo dos anos e mesmo sem veres o, e é bom que chegues a isso, até

podes um dia ser uma assistente social. Bom, já estou muito galardoado com isso e já te

acompanhei nesse sentido, tu daqui para a frente vês que eu tenho sido uma pessoa que

ao longo dos anos eu tenho-me desenvolvido, pronto um pouco dificultadamente, já

chegar aqui já levo um certo tempo e, pá, o meu objetivo é querer mudar de vida mas

não é, ainda não alcancei bem esse objetivo, para subir onde eu pretendo alcançar e

assim olha, Deus deu mais, ao longo dos meus anos eu tenho vindo questionadamente a

pouco e pouco e olha ver o que é que isto me vai dar.

M: Qual é que é a tua profissão ou último trabalho que tiveste?

F: A minha profissão é carpinteiro, pronto, e tive cerca de dois anos e meio, já me

faltava praí pouco tempo para eu…atingir o escalão fixo, ou seja, efetivo e coisa que

pronto, conforme os contratos eu não, não alcancei esse método e agora sinto-me

desempregado, a ver o que é que isto vai-me dar.

M: Queria perguntar-te se conseguias, mais ou menos, descrever o teu dia-a-dia.

F: Bom digamos o meu dia-a-dia é passar assim…não me envolvendo com certas e

determinadas ocorrências ou digamos pessoas que eu…me junte ou venha-me a

envolver com elas, eu antes prefiro mais, não o aparto mas estar presente mas ver um

pouco de cada situação e assim, ao longo da minha…deslocada vida que levo, pronto, é

ter um…sei lá só quem sabe, Deus é que…há de haver uma porta que um dia se abra

para mim e ali eu seguirei em frente.

M: Costumas andar durante o dia, vens até aqui…?

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F: Sim venho, usufruo mais ou menos assim os meus tempos livres, ou quer uma

estação, quer uma biblioteca, quer um banco de jardim. Viver um pouco de…digamos

dia-a-dia daquilo que eu já vivo e é assim que eu levo…

M: Tu disseste que vives na rua, certo?

F: Sim.

M: Antes vivias em alguma casa, outro sítio, mudaste ou estás no mesmo sítio?

F: Tinha um centro de acolhimento, pronto, e nesse centro de acolhimento

eu…pronto…há situações e eu…tive de abandonar esse local onde eu…onde eu estive,

pelo menos…várias…várias vezes…e agora fiquei sem…fiquei sem nada, agora

fiquei…na rua e onde periodicamente eu durmo e tenho as minhas regalias e é assim

que eu, pronto…

M: E contigo, ou seja, diariamente, tens contigo algum tipo de objeto, algumas coisas

que possas dizer que são tuas e que ajudam a fazer do espaço da rua mais…confortável,

dentro do possível?

F: Sim, um pouco mais dentro do possível que seja capaz de usufruir, não digamos um

saco cama, não digamos um metro para me resguardar seja onde for, pronto, vou

passando a maior parte do tempo, quer dormindo em sítios que…teoricamente não é

meu ao usufruir logo o espaço que encontro, é só mais para passar a noite e assim

sucessivamente eu levo…

M: Vais mudando de sítio onde dormes?

F: Sim, sim.

M: Há algum sítio que tu identifiques como casa?

[silêncio enquanto Francisco pensava]

F: Bom, propriamente o sítio que eu…conheça como casa hoje em dia não…daquilo

que eu já passei, onde fui dormindo, foi-me fisionominando a…a memória e fui

tomando aquilo como digamos, dá um começo para mim mas ao fim ao cabo tudo foi

passageiro, eu dormia e depois queria ter a minha pontualidade, ter a minha usufruência,

a minha, digamos, autoestima – coisa que nunca consegui e espero bem que olha não sei

se para o ano eu continuarei e oxalá que não venha a acontecer isso, se vier a acontecer

olha, o demais tenho eu que dizer. Por mim mesmo eu aguentar dia após dia esse é o

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melhor, digamos: se acreditamos nalguma coisa que nos muda, primeiro que ela nos

mude, temos que nós mudarmos, e é esse o meu pretendido.

M: Vives, ou seja, dormes num sítio em que estás sozinho ou há mais pessoas no

mesmo espaço?

F: De momento, pronto, existem lá assim alguns que dormem, outros dias não vão,

pronto, uma vez sinto-me sozinho e até agora não tenho tido agora a aparência de nada,

ontem deparei-me assim com tudo remexido mas é provavelmente o que não é nosso,

pronto, só geralmente o que é meu é o que transporto e agora ter uma coisa fixa, que

seja minha, não me considero como isso, pronto, remexem e tudo mais.

M: Nada é teu…o que transportas contigo é a mochila?

F: Só a mochila com os utensílios de roupa e nada mais.

M: O sítio onde dormes atualmente é perto dos sítios onde vais durante o dia?

F: Neste momento, agora, é na Gare do Oriente, onde eu me envolvo. Aquilo fica ali,

pronto, abrange em todo o redor da Gare do Oriente há sempre um espaço que eu durmo

ou perto do Meo Arena ou ali ao pé do Oceanário, pronto, aqueles sítios que eu mais

vejo que estão resguardados, que me abrigue do frio é o mais essencial, mas isso para

mim não é vida, eu, ao longo dos anos, eu vejo que isto não é vida para mim.

M: E durante o dia costumas andar por onde? Ir para longe? Aqui?

F: Eu geralmente durante o dia frequento mais assim locais públicos para me distrair ou

vou à Worten ou à Fnac, pronto para estar entretido com um computador ou…passar os

tempos livres, ou um órgão para, enfim, eu pretendo hoje em dia continuar, não sei o

que é que isto, qual será o meu objetivo de hoje para amanhã.

M: Tendo em conta a situação, podemos dizer de vulnerabilidade, que soluções é que te

foram sendo apresentadas?

F: Digamos, a respeito de tentar mudar foi muitas soluções que me privilegiaram, tens

aquele privilégio das pessoas, não que elas deixassem de fazer o trabalho que elas já

deixaram de fazer, eu que me ocupe desses mesmos trabalhos que elas fizeram.

Digamos, ajudá-las nas tarefas de casa ou…uma outra coisa do género, e as pessoas

como hoje em dia no mundo se vê, elas, pronto…é… digamos…elas precisam de

alguém que lhes alcance o objetivo que elas deixaram – lavar uma casa, fazer uma tarefa

qualquer. Compartilha-se com o mesmo trabalho que se está a fazer que a pessoa goste,

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auxiliá-la, digamos mais o…o notável que é a pessoa tentar ser ajudada e ela sente-se

bem porque é uma coisa que deixou de fazer já há muito tempo e surpreende-se que

alguém lhe, do nada, lhe apareça e lhe faça as tarefas, é o mesmo que eu assim faço.

M: Como é que tu pensas o futuro? Como é que te vês daqui a, por exemplo, cinco

anos?

F: Bem, como é que eu vejo daqui a cinco anos? Não me hei de se calhar ver no mesmo

mas…eu olhando para mim com os olhos que consiga ver as minhas mãos, assim, olhar

para mim, vejo-me o mesmo, sinto-me o mesmo como tenho vindo-me arrastando ao

longo de certos anos e assim ver o meu futuro, de hoje a amanhã, gostaria eu de ver-me

numa situação um pouco melhor mas digamos eu alcançar logo aquilo mas quando é

que isso há de ser? Quando, há de haver alguém que pense, agora sim, mesmo que as

pessoas me digam isso, eu não levo em conta o que as pessoas digam, é bom é que a

pessoa se mantenha com aquilo que tem, ser responsável daquilo que tem, não é? Um

sem-abrigo, não me considero um sem-abrigo com montes de coisas, considero-me sim,

tenho um abrigo mas o abrigo que tenho tido sempre ao longo dos anos é uma casa aqui,

outra ali, espalhadas e assim conforme eu me vou prolongando ao longo da minha

carreira de andar, olha é assim como eu geri…

M: E como é que tu vês, por exemplo, as pessoas com casa, o cidadão que anda por aí,

que tem um trabalho, tem uma casa, tem posses, por assim dizer? Como é que tu pensas

essas pessoas?

F: Digamos eu já…já estive nessa situação, já tive casa, já tive eu como titular, já tive

residência, pronto, tudo, ocupava-me eu das minhas tarefas e sendo assim eu

periodicamente, ao ter o meu espaço que, digamos, eu vinha a ver que era…pago ou

fosse por conta bancária ou…por transferência bancária, ou um género qualquer, e tinha

aquele método, quando eu já começar a ter uma certa conduta em mim para…as pessoas

já verem que já tinham um certo relacionamento e já se envolviam comigo e tudo mais,

só que como hoje em dia no mundo nós, entre aspas, não se ligam as pessoas assim,

poucamente a pessoa que tem esse perfil pela frente e que apanham uma casa e que

queira mudar de vida, leva sempre uma…um acompanhamento de inveja, perseguido e

o meu caso é veem-me o que é que eu sou, o que é que eu faço, quem eu sou.

M: Sentes-te observado pelos outros?

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F: Sim, digamos, eu não é considerado um patinho feio mas é mais olham-me o que eu

sou, mesmo que uma pessoa nunca pode dizer que esteja bem na vida. Tem uma tarefa

qualquer e ocupam-se sempre “ai o que é que faz, o que é que não faz, qual é o

desempenho dele” e tentam sempre, digamos, se a pessoa está bem escorraçá-la, afastá-

la do sítio de onde está, não querem, antes preferem ver-me, ou sentem-se melhor ver

uma pessoa anda aí ao abandono, anda aí sem vida na…não é estorvo nenhum.

M: Claro. Outra questão: tens família?

F: Tenho mas é como não ter porque o causador fui eu porque, digamos, há uma palavra

muito conhecida no dizer que a pessoa diz: um desenrasca. Eu isso, utilizei isso para

quando vim para Lisboa vim em 2002, cheguei eu a Lisboa e foi logo à, logo assim à

aparência, Lisboa, Terreiro do Paço, aqui vou-me orientar, há isto por aqui, há por ali e

eu todo operacionante, “ah agora vou, a primeira situação que apanhar é logo aí um

trabalho, pronto, eu queria-me lançar aquela consecutiva, mas erradamente olha acabei

por mesmo, senti-me mesmo cortado sem força nenhuma e depois ao longo de isto tudo

eu fui-me desenvolvendo, mas com dificuldades.

M: E cortaste os laços com a tua família?

F: Não, mas eu não estou a dizer que não diga cortar, digamos é que a minha família

toda que me conhece todos que estavam envolvidos comigo e continuam envolvidos

comigo eles, mesmo que eu esteja numa aflição eles são capazes de me ajudar, agora,

num sentido, ajudam-me em eu tendo prosperidade e boas condutas para compartilhar

com eles, a falar, o diálogo, ou seja, o meu diálogo tem que ser positivo, sempre

positivo com o diálogo deles, não é eles dizem-me “A” e eu não vou dizer “B”, se eles

dizem “B” eu não vou dizer “B”, agora tem que se coincidir os diálogos. Agora, eu

falhando, eles sabem logo “a falha é dele, nós apertamos, mas estamos sempre em

observação com ele e ele está sempre em… nunca se aparta uma família”, hoje em

dia…

M: Então vocês mantêm o contacto?

F: [F fica reticente] Contacto…telefónico e contacto pessoal não propriamente, mas

assim contacto de notícia “Olha vi o seu sobrinho, o seu afilhado” isso acaba sempre

por chegar.

M: Que outras relações é que manténs atualmente? Tens amigos, colegas de trabalho?

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F: É muito, hoje em dia, pronto, não é às vezes a questão de querer fazer os amigos

porque muitas próprias das vezes, aqui já eu tentei fazer e já houve assim boatos,

pronto, de acompanhamentos com este ou com aquele, eu envolvo-me pouco, mais

propriamente é às vezes procuram-me e eu sempre digo para os demais que me

procuram, que eu a maior parte das vezes tenho tido sempre exortações bíblicas que é o

que eu trabalho, não é que seja um dom, eu hei de ter um dom, com aquilo com que

nasci é com aquilo que hei-de viver até ao fim, portanto, digamos, eu, alcanço um dia

um futuro oxalá que sim, não sei.

M: Então quer dizer que não tens, por exemplo, amigos, são só conhecidos?

F: Tenho uma parte de amigos e levo-os em conta e mesmo que seja alguém que me

conheça “Ai mas com que autorização isto e aquilo” e eu, o bom já é eu deslocar-me

com quem eu ando, apanhar com a primeira, a segunda, são duas, os nomes e outros, a

outra moça.

M: A Catarina?

F: Não, a outra Mariana.

M: Sim.

F: Pronto, conheço-as e nem importa o que digam: “ah isto e aquilo” desde que sejam

amigos que eu compartilhe. Porque o que tenho, tenho eu e anda por aí à deriva mas um

dia costuma-se a dizer “Aquilo que te marcou, um dia virá a ti” é isso que eu espero,

não é que eu agora ande a saltar “ eu amo-te, faz isto e aquilo, não sei quê” isso é…

M: Dos filmes.

F: Porque é tudo, tu podes ver que é isso, hoje em dia tu vês…

M: Aqui no Refeitório tens amigos ou só conhecidos?

F: Olha tenho os demais que me servem, é o mais importante.

M: As pessoas que vêm cá também?

F: Às vezes não é o conveniente. Às vezes, pá, não digo que de hoje a amanhã, aqueles

que me conheçam, que propriamente peguem em mim, e digo, o outro qualquer “Ah, eu

conheço-o e agora vou ter uma razão, ouvi falar disto, ouvi falar daquilo, e agora”

depois cabe-me a mim, a minha casa, quero lá saber, olha é a mesma coisa que os

Flintstones, mete o “Ai Mariana, que é isto? Estás louca?”, louco? Louco era se eu se

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não tivesse um cantinho onde dormir e escolhesse alguém com capacidade “Ah mas isso

é o pior gajo”, isso é o que vocês dizem, quem diz que diz, assume, agora quem não tem

coragem para dizer…

M: Qual é a importância deste Refeitório para ti?

F: Não levo em conta isso. São coisas que, para mim é um refeitório, é um sítio onde me

alimento e vou, olha oxalá que…era bom viesse eu a ter um cargo onde me encontro

porque o que eu tenho passado seja Refeitório, seja dormir em casa de alguém, seja ter

uma higiene. Olho para mim e digo: “olha podia ter isto, mas tinha que me esforçar, ou

fosse uma coisa qualquer do género e eu aí”…mas não, vejo as coisas, quem me dera a

mim estar nisto ou quem me dera ter uma possibilidade de ter o meu compartimento, ter

a minha coisa pessoal e hoje em dia até casa, a expressão casa…para as pessoas

estarem, que pode estar num sítio qualquer e quando chega tem a casa arrombada,

pronto, há situações sempre, uma pessoa nunca diga que está bem, se estiver bem é em

si mesmo porque demais é passativo.

M: Então se calhar se não viesses aqui a este refeitório irias a outro sítio?

F: Sim, por exemplo, se terminasse este refeitório e houvesse outro, deslocar-me-ia, ou

aqui podia ser numa cantina onde…ali na avenida de Berna e a Calouste Gulbenkian,

que é aquela principal, as duas transversais. Houvesse ali naquela faculdade, houvesse

um refeitório, há lá um refeitório, para os sem-abrigo, epá eu deslocava-me lá, depois

quem me conhece também já lá ia outras vezes fazer auxílio, “Olha o gajo está aqui e

não sei quê” – não, o importante é chegar lá comer e o demais…

M: Em relação aos voluntários e ao trabalho que eles fazem aqui, tens alguma coisa a

dizer, o que é que pensas em relação a isso?

F: Aos voluntários olha, que eles propriamente tenham um pouco melhor daquilo que

eles sejam, que eles não se, digamos, disponibilizem mais…abertamente a ajudarem,

eles em si próprios eles já manifestam alguma coisa, já se demonstram que são alguém,

só o meu apelo que eu tenho a dizer aos demais, para quem quer que seja, é que nunca

desistam, sigam sempre em frente, desfalecer qualquer um desfalece, não é? [risos]

M: Como é que tu tomaste conhecimento e vieste parar a este refeitório?

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F: Vendo os outros, seguindo os demais, vendo para onde eles iam, porque é assim que

eu faço, há uma carrinha com comida, eu vou, há uma coisa qualquer com comida, eu,

não é que me digam “olha há ali e ali”, onde vejo as pessoas.

[…]

M: Então se calhar foi observando o que os outros faziam e vendo o que é que faziam de

positivo e que sucediam bem…

F: Sim, a maior parte… digamos…

M: E que foste fazendo porque tinhas que te aguentar.

F: Pois… digamos assim, eu envolvi-me por demais que aconteceu diariamente e

acontece, as ocupações de tempo livre e se há uns amigos e às vezes, pronto venho por

aquelas faculdades e vejo a usufruência das pessoas, o desempenho que elas têm, “Ah

fazer isto ou fazer aquilo, ou A ou B ou C”, querem-se desenvolver e eu digo assim:

“num mundo onde a humanidade, se encontra, haja sempre galardoantes ou, salvo

aquele que se considere que seja salvo, a humanidade toda ela é salva, certo? Segundo é

aquele ter a noção daquilo de fazer e de ter fé, porque eu mais exorto aqueles que estão

comigo e aqueles que vier a ter por companhia.

M: Então acaba sempre por haver uma relação mais que não seja de ver se corre bem, se

corre bem, bora?

F: Sim, ao longo dos anos tem acontecido coisas boas, umas assim pouco positivas mas

isso…não olhando a isso.

M: Tens algum tipo de outra instituição ou serviços a que recorras?

F: De momento agora não, agora estou em stand-by, em lista de espera. Penso eu agora,

qualquer coisa que seja para renovar a documentação e como eu agora tenho a

residência, o mais que me possam fazer é a antiga residência que eu tinha, não sei se

eles renovam isso se não e continuar assim, mas eu esperava que não fosse este o meu

futuro daqui para a frente, igual como agora em 2017, eu entrei sendo igual como os

outros anos e eu esperava bem que, digamos, com 42 anos, quase com 43, não chegar

mesmo àquela consecutiva de…às vezes não é eu dizer que não sou capaz, eu sou

capaz, o que é naquela dificultância “ah agora vou, não vou”, não dou lugar àquilo

porque é fácil, as coisas surgirem, a pessoa é que, é preciso é a pessoa querer logo na

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hora e dizer “olha eu agora sou capaz, vou conseguir!” e no momento que eu coiso,

olha, pode ter a honestidade de não acertar. […]

M: Há quanto tempo mais ou menos é que estás nesta situação de não ter uma casa, por

assim dizer?

F: Digamos mas de tudo em geral, de anos? Bom, já levo disto…16 anos e 11 meses,

praticamente, de vida de rua 2 anos e 11 meses de vida de rua, mas em global tudo,

geral, é 16 anos e 11 meses desta vida sempre assim.

[…]

M: E o que é que falta para conseguires?

F: É não dar lugar à…ao que conheço, Deus e, pronto, tenho-me aguentado assim o

resto da minha vida e olha oxalá que não venha a ter um futuro pior, digamos, mais pior

ainda que aquele que tenho levado.

[…]

M: Antes desses 16 anos e 11 meses aconteceu alguma coisa que fizesse com que

deixasses de ter…

F: Digamos, não aconteceu mas foi um afastamento daquilo que eu

era…propriamente…eu educado até uma certa idade, digamos dos 14 anos até aos 17

ainda consegui frequentar a ausência dos meus pais e acabando depois, envolvendo-se

etnias e grupos, fiquei sem a minha família e…afastando-me, lá está, afastando-me do

pouco ou muito que eu já levava e isso…digamos, obrigando-me a mim mesmo a

arrastar-me para a dita cidade de Lisboa e aí onde eu me aprofundei.

M: Então foi um processo, não foi…

F: Digamos é…aqui foi uma coisa que pensava que nunca me dominava, dizer um

desenrasca e logo isso dominou-me total e para quem me veja “o gajo não mudou, não

consegue mudar”, mas envolvo-me nelas, mas sou capaz de sair, saio porque eu antes de

entrar nelas digo assim “há alguém que existe, há alguém que é acima de mim, haja o

que acontecer em suas mãos eu deitar-me-ei”, venha lá quem vier “ai és um badagomax

que andas aí, és um salame que não tens por onde cair” epá dá-me vontade é de dar

nisto e naquilo, quando é altura não conseguem ou se conseguirem depois arrependem-

se.

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M: Se houvesse, por exemplo, agora algum tipo de ação social que te desse uma casa

mas nessa casa tivesses de estar de acordo com algumas regras, aceitavas?

F: Sim, eu propriamente já ouvi falar, não sei se é verdade se não, ouve-se tanta coisa…

[…]

M: Então neste caso se houvesse casa e trabalho o teu problema ficava resolvido?

F: Um pouco sim, não era perto dos 100 mas mantinha-se. Viria aqui todos os dias, sim,

agora a mínima, que eu se não tenho rendimento foi por culpa minha, só não comprei

um carro e uma casa porque não me dava, dava, dava, mas o que é que eu não saber

bem…alargar mais e elas aí viram logo “ai o senhor Caldeira anda com uma gravatinha

e tal e não sei quê”, em 2000 e tal cortamos-lhe o rendimento, chegando em 2005, outro,

e agora…

M: Então seria casa, trabalho e mais alguma coisa?

F: Neste momento só casa e trabalho compensava-me, depois o resto mais ia-se

fazendo. Porque num quarto já eu me coloquei numa situação dessas e digo pronto para

os demais não tenho consideração em culpá-los mas para mim não é aquela questão de

sentir bem, “ai e agora o vizinho é coiso e isto e aquilo”, há sempre aquelas coisas e

envolve-se sempre, mas quem me dera a mim hoje em dia digamos ter uma ocupação,

que eu por acaso já tive um género comparado com uma faculdade, que é a instituição

da AJAF que fiz trabalhos comunitários, fiz trabalhos, digamos, não é bem trabalho

comunitário, mas fiz trabalhos de ir de sítio em sítio, domiciliários e eu ia a certos

trabalhos e fazia as tarefas, reparar uma coisa qualquer, um eletrodoméstico, fosse o que

fosse e eu trabalhava por conta própria para a Junta de Freguesia de Nossa Senhora de

Fátima.

[…]

Só que claro, eu apanhando-me com dinheiro exijo-me logo ser eu logo o líder e isso

traz consequências. [F fica pensativo e suspira]

M: Tu atualmente tens algum tipo de rotina, alguma coisa que faças sempre?

F: Propriamente a rotina, olha, eu antes preferia mais, e digo mesmo sincero, mesmo de

interior meu: todas aquelas pessoas que comigo andaram, que me rejeitaram, que me

conhecem, oxalá eu seja capaz de dar um pulo enorme na minha vida, eu não tenho

medo de agarrar as pessoas com quem me envolvo e perante a Humanidade que já me

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conhece dizer assim “é isto aqui, aquelas pessoas com quem eu me envolvi e estão aqui

à vossa frente”.

[…]

Olhando neles, porque me adotaram em certas circunstâncias falando comigo, sabendo

o que é que eu sou, o que é que faço, o que é que não faço, eu adotei-as! Apesar de

adoção, por mim, chegar ao sítio de onde eu consegui e se forem a ver, não tenho

vergonha nenhuma de dizer “ai você vive do quê? Criar hamsters”.

[…]

M: Quando tu estavas a falar de pessoas que te adotaram o que é que tu queres dizer

com isso? Pessoas que estiveram contigo? Do teu lado?

F: E sempre estarão comigo.

[…]

Os demais aqui que me envolvem querem saber o que é que eu sou. Epa eu não me sinto

perfeito.

[…]

M: Como é que achas que as pessoas, por exemplo quando vais na rua, por exemplo

quando passas na Gulbenkian como disseste no outro dia, como é que achas que as

pessoas te veem?

F: É muito raro passar, porque lá está, as pessoas ao passarem por mim na rua elas

sabem que ao conhecerem-me, porque muitas delas viam-me sempre por ali, era o

menino privilegiado na carrinha e cinto de segurança e com a malinha e muitas vezes ia

com a farda.

[…]

M: E os outros estavas a dizer que te viam como privilegiado e agora?

F: Veem-me como um demais fazendo as tarefas que eles porventura fizeram ou que

pretendem fazer e não conseguem e dizem “ai mas com que autoridade é que aquele

consegue e eu não consigo?” […]

M: Tendo em conta o sítio onde dormes há algum tipo de estratégia que adotes para

teres uma noite segura, uma noite tranquila?

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F: Até agora sempre foram seguras porque digamos as noites que tenho tido umas vezes

é embriagado, outras vezes é medicinais, outras vezes é incompreensíveis de momentos

que eu não tive bem um dia-a-dia anterior prosperado e aquela coisa toda de

pensamentos e agora vem e não aparece e agora aparece, pronto há sempre uma coisa

que me envolva, nunca digamos tenhamos sempre com pensamentos ou deixemos de

pensar.

M: Então é graças a essas coisas que tu sentes que estás seguro, estás calmo, estás bem?

F: Propriamente agora como vais vendo ao longo da tua, desenvolvimento de vida e

dizes “olha gostei de falar com esta pessoa”.

[…]

Pessoas que trazem-me o bloco com tudo o que eu deva aceitar, eu recuso, dão para

outro.

M: Porque é que recusas?

F: Às vezes não é questão de…digamos, pronto, é bom que as pessoas quando falam

umas com as outras e usufruadamente se identifiquem.

[…]

M: Obrigada.

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Anexo 4: Excertos da entrevista a Isabel (voluntária)

Mariana: Primeiro queria perguntar há quanto tempo é voluntária aqui no Refeitório.

Isabel: Sou voluntária há dois anos, fez em dezembro dois anos que estou aqui.

M: E o que é que motivou, por assim dizer, esta decisão de começar a fazer voluntariado

aqui? Houve alguma…

I: Eu sempre tive muita vontade de fazer voluntariado. Eu não trabalho e estava em casa

a tomar conta do meu filho, até que chegou a altura em que ele já não precisava tanto de

mim e então comecei a procurar um sítio para fazer voluntariado. Não fazia ideia que

isto existia aqui, vim a primeira vez com a minha irmã para experimentar e estou cá há

dois anos. E a vontade de ajudar as pessoas que precisam é muito grande.

M: Em relação aos utentes do Refeitório como é que se realiza uma aproximação com

estas pessoas mais vulneráveis, por assim dizer?

I: Penso que cada pessoa é uma pessoa completamente diferente da outra, não é? E há

pessoas em que nós nos aproximamos e que se dão logo e que falam logo connosco, há

outras que têm primeiro que ganhar a nossa confiança e, a partir daí, a partir do

momento que vão ganhando a nossa confiança vão desabafando, vão esboçando um

sorriso e, pronto, e cada vez vão estando mais à vontade e vão falando mais.

M: Essa confiança existe pela repetição de vezes que veem cá? É através de… Como é

que se dá essa confiança que passa a haver?

I: É a repetição de vezes, é também eu acho que para eles é muito importante que nós

nos vamos aproximando devagar, que vamos esboçando um sorriso porque é aquilo que

eu lhe dizia no outro dia: além das carências monetárias, eles têm principalmente

carências afetivas e eu penso que eles têm muita necessidade de alguém que pare um

bocadinho para os ouvir e que converse um bocadinho com eles.

M: Como é que nós podemos pensar este auxílio da pessoa vulnerável aqui do

Refeitório, de modo a que não corte a autonomia, ou seja, de modo a que não seja

excessivo, como é que podemos separar o excesso da proximidade…

I: Isso eu penso que se vai aprendendo com o tempo, a lidar com eles. Eu cheguei cá e

era uma pessoa extremamente sentimentalista e os primeiros dias que tive cá dei por

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mim a sair daqui e ir para o Colombo fazer compras para trazer no dia a seguir, tipo, por

exemplo, um que apareceu com os sapatos rotos em pleno inverno, porque eu comecei

aqui em dezembro, e eu a seguir fui ao Colombo comprar uns sapatos; apareceu uma

mãe com um bebé a chorar porque não tinha leite para o bebé e eu saí daqui e fui ali ao

supermercado comprar leite, mas depois vamos aprendendo a lidar com isso e vamos

aprendendo a lidar com eles, aqueles que podemos dar mais confiança e os que temos

que travar um bocadinho e vamos aprendendo a lidar também com os nossos

sentimentos.

M: Criar uma espécie de uma barreira para não ser…

I: Exatamente.

M: Que tipo de ação, por assim dizer, dá-se o almoço mas que tipo de ação é

desenvolvida com estas pessoas? De encaminhamento, de ordem…

I: É assim, eu neste momento não estou propriamente nessa parte de encaminhamento

além das refeições, por enquanto, temos as assistentes sociais que, muito sinceramente,

não me parece que façam grande trabalho e portanto nós neste momento estamos a

juntar, nós voluntárias, para começar a fazer um bocadinho isso também. Até junto das

assistentes sociais para se começar a chamar à atenção para é preciso isto, é preciso

aquilo.

Eles precisam de se deslocar a alguns sítios que não conseguem, que alguns,

como a Mariana sabe, não falam português, que têm imensa dificuldade e portanto nós

estamos a começar a ter reuniões para começarmos a juntar a nível de voluntários para

começar a fazer também um bocadinho esse trabalho exterior com eles.

M: Nesse caso falta basicamente uma mediação entre a pessoa que precisa e o serviço

ao qual vai ter de recorrer?

I: É exatamente porque isso era a função das assistentes sociais mas nós voluntários

estamos a chegar à conclusão que elas andam aqui um bocadinho…alheias ao que se

passa à volta delas. Não sabemos, portanto não queremos culpar ninguém porque não

sabemos se são elas que funcionam mesmo assim ou se não têm mesmo meios para…

M: Fazer essa mediação.

I: Fazer essa mediação e portanto como não queremos culpar ninguém, queremos nós

começar a entrar em campo para perceber o que é que está a falhar aqui. Porque temos

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aí pessoas que…algumas que merecem uma segunda oportunidade e que nós achamos

isso e que não estão a conseguir fazer nada.

M: Sim, há pessoas que é só mesmo um bocadinho e fica resolvido o problema.

I: Nós neste momento estamos a tentar trabalhar com o Iury e portanto as reuniões que

vamos ter agora é para tentar…lançar o Iury e depois se conseguirmos é óbvio que

vamos partir para outros, não é?

M: Será então uma tentativa de…reinserir as pessoas na sociedade? Dando trabalho e…

I: Exatamente, este neste caso é inserir, não é? Porque é o início dele, apesar de ele já

estar cá, o Iury já está cá penso que há um ano e tal e…como fala mal português não se

está a conseguir desenrascar, ninguém está a trabalhar com ele e…não está a ter a

oportunidade que se calhar merecia ter.

M: Que tipo de problemáticas é que surgem assim mais nestas pessoas que vêm ao

Refeitório?

I: [silêncio] Isso é difícil responder porque eu penso que cada um tem os seus

problemas, não é? E…

M: Ou seja, cada pessoa tem um conjunto de problemas…

I: Seus e alguns desabafam connosco outros nem por isso, guardam para eles, têm a

história das necessidades básicas que não têm, que dormem na rua, os que não dormem

na rua também eu penso que há muitos aqui que têm casa mas que depois não têm nem

água nem luz lá dentro porque não têm como pagar isso, e eu penso que isto aqui há

muitos problemas e muito diferentes, há alguns que nós sabemos e outros que nós nem

fazemos ideia.

M: Então, uma ação, assim, que fosse melhor do que aquela que está a ser tida de

momento seria a nível individual tentar analisar quais é que são os problemas de cada

um…

I: Exatamente, isto cada caso é um caso, não é?

M: E assim arranjar-se-ia soluções para os problemas.

I: Sim. Sim, apesar que, como a Mariana sabe e caindo na realidade, é quase impossível,

não é? Mas pode-se tentar fazer com que, ir fazendo devagar. Porque isto não

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conseguimos mudar o mundo de um dia para o outro, não é? [risos] Temos de fazer

devagarinho.

M: Nesse caso aqui o papel dos voluntários acaba por ser um papel que tem muitos

papéis lá dentro, ou seja, é aquele que ouve, é aquele que ajuda, o que é que é ser um

voluntário aqui no Refeitório?

I: Mais uma vez digo: cada caso é um caso e cada voluntário é um voluntário. Eu penso

que temos aqui, eu também não conheço os voluntários todos, mas penso que temos

aqui voluntários que vêm, que ajudam e que não passa disso, portanto fazem

simplesmente o seu trabalho; temos outros voluntários que tentam conversar com eles;

temos outros voluntários que tentam, tipo a Isabel Simões, a Isabel Antunes, peço

desculpa, que é uma voluntária que tenta ir mais ao fundo e que tenta fazer muito, aliás

esta história das reuniões agora foi ela que me telefonou e que me pediu se eu estava

disponível para ajudar e portanto penso que, mais uma vez: cada caso é um caso e temos

todo o tipo de voluntários aqui. Mas é das tais coisas, todos são precisos. [risos]

M: Como é que se mantém a ordem junto de uma população que, em princípio, não tem

assim propriamente muitas regras, muitas rotinas, muito… Que princípios é que há aqui

no Refeitório para manter a ordem?

I: Eu acho que há um princípio básico que é o essencial…que é o respeito que eles têm

por nós voluntários e principalmente pela Irmã. Já assisti aqui a duas cenas menos

agradáveis, já tive que me pôr no meio de dois e sujeita a levar um murro ali mas não,

quando eu levantei a voz e me pus no meio deles os dois cada um sentou-se na sua mesa

e penso que eles acabam por, podem não se respeitar uns aos outros, mas acabam por

respeitar os voluntários que estão, porque sabem que estão para os ajudar e

principalmente respeitam a Irmã porque sabem que ela está para lhes dar comida e acho

que isso é muito importante, o respeito.

M: Têm também regras?

I: Têm, têm regras, que é, que nem todos cumprem, que é manter o Refeitório e

nomeadamente os balneários minimamente limpos, que não cumprem, e, por exemplo,

almoçam, levantar a louça suja da mesa, a deles, que como viu há bocado também não

cumprem, alguns. Temos muitos que ajudam e que não tomam a iniciativa para ajudar

mas se forem chamados que ajudam de boa vontade e…e pronto e há regras que nem

todos cumprem mas isso como nós sabemos grande parte vive na rua e também não têm

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uma vida com regras, portanto depois também lhes é difícil incutir qualquer tipo de

regras aqui, não é? [risos]

M: O acesso ao Refeitório pode ser feito por qualquer pessoa sem-abrigo ou há um

conjunto de condições?

I: Não, eu não estou a par dessa parte e essa parte, esse papel é feito pela assistente

social daqui do Colégio, pela Carla. Mas eles têm que vir referenciados, como diz a

Irmã Celeste aqui não se recusa comida a ninguém, portanto a primeira vez que vêm se

não vierem referenciados dá-se comida obviamente mas depois têm que trazer um

documento ou da Segurança Social ou de uma Junta de Freguesia, têm de trazer um

documento em que indique que realmente eles necessitam de comida, que têm carências

monetárias e depois tudo isso é estudado pela assistente social em que abre um processo

e que vai tentando trabalhar com eles, não sei a que nível, mas têm que ser todos

referenciados.

M: Já houve alguns casos desde que começou a vir cá que tenham conseguido sair da

rua, arranjar um trabalho e…

I: Sim. E é isso que nos dá alento para continuar. Temos casos, eu já apanhei dois:

tivemos um nigeriano que era uma pessoa fantástica que não falava português, só falava

francês e que era uma pessoa que acabava de comer e que agarrava no pano e limpava

tudo, era…com um sorriso sempre, ele era muito escuro, sempre com um sorriso

enorme e tentava comunicar connosco – eu também não falo francês – e ele tentava

comunicar connosco, era um miúdo fantástico. Estava a tirar um curso de mecânica cá

em Portugal e…praí há um ano veio-nos visitar e dizer que já tinha emprego e que

estava com a vida dele já normalizada.

Temos o Manel também, não sei se a Mariana conheceu, ele esteve cá antes do

Natal, que também tirou um curso de jardinagem e que também nos veio visitar antes do

Natal a desejar boas festas que está a trabalhar na Junta de Freguesia de Alcântara.

E eu acho que são estes que nos dão alento para continuar aqui.

M: Mostram que é possível.

I: Exatamente. E provavelmente há mais casos que eu não conheço, não é? Eu conheço

estes dois mas provavelmente há mais casos porque nós temos alguns que vêm durante

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uns tempos e depois desaparecem, pode não ser pelas melhores razões mas também

pode ser pelas melhores razões [risos].

M: Além das voluntárias e da Irmã e das assistentes sociais há mais alguma instituição,

algum papel que apareça aqui no Refeitório?

I: Sim nós temos o Banco Alimentar que nos fornece algumas coisas, basicamente

lanches, fruta e iogurtes, cereais e depois temos ao fim-de-semana vem comida da

Refood. Depois temos as voluntárias e os pais dos meninos aqui da escola que vão

trazendo comida e roupas e todas essas coisas, ainda agora no Natal acho que a Mariana

se apercebeu que funcionou lindamente e conseguimos atingir os nossos objetivos,

conseguimos tudo o que queríamos.

[…]

Temos muitos que infelizmente se acomodaram à situação e que acham que

estão bem assim, portanto não querem sair da situação em que estão.

M: E eles próprios dizem isso?

I: Não dizem mas demonstram porque eu penso que se eles querem, apesar de que eu sei

que estamos numa altura de crise, que estamos numa altura que é difícil arranjar

emprego mas temos exemplo daqueles que conseguiram, não é? E portanto eu acho que

se eles lutarem um bocadinho que acabam por conseguir e temos aqui alguns que não…

M: Não mostram essa vontade.

I: Não, não se vê que…

M: E o que é que se pode fazer nesses casos?

I: Eu penso que é difícil porque quando eles próprios, quando eles desistem deles

próprios acho que isto é um bocadinho como um toxicodependente, não é? Tem de ter

força de vontade para sair da droga senão as pessoas que estão à volta, sozinhas, sem a

força de vontade da pessoa não conseguem e eles aqui é um bocadinho isso também, se

não têm eles vontade para sair da rua como é que nós vamos ajudá-los?

M: Só se ajuda quem quer ser ajudado.

I: É exatamente. Eles têm que ter vontade de ser ajudados senão para nós é impossível.

[risos]

M: Ok, obrigada.

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I: De nada Mariana, se precisares de mais alguma coisa.

Anexo 5: Excertos da entrevista ao Nicolay

Mariana: A primeira coisa que eu queria perguntar era a tua idade? (…)

N: Eu tenho 44 [anos], vou ter.

M: Nacionalidade.

N: Ucrânia.

M: O sítio onde vives aqui em Lisboa?

N: Albergue!

M: Profissão?

N: Minha? Construção.

M: Quando é que vieste para Portugal?

N: Para Portugal…2010.

M: Porque é que vieste para cá?

N: Eu? (…) Eu estou em Espanha, trabalhar em Espanha, depois meu amigo estava aqui

trabalhar, ligou para mim e disse “vamos para Portugal, vamos trabalhar, eu venho aqui

para trabalhar”. Então nós trabalhamos os dois. Depois, trabalho termina e acabou estou

aqui.

Construção com palcos, trabalhando com Tony Carreira, 3 anos, muita vez,

muitos palcos.

M: A chegada a Portugal foi tranquila então? Foi com uma proposta de trabalho?

N: Sim.

M: E sentes saudades da Ucrânia?

[N não entende a palavra saudade por isso a pergunta foi reformulada várias vezes]

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N: Eu quero cá. Eu gosto Portugal.

M: Como é que costuma ser o teu dia-a-dia?

N: Dia-a-dia de quê?

M: Por exemplo de manhã se tens alguma rotina, algum conjunto de coisas que faças de

manhã, à tarde depois vens ao Refeitório, a seguir ao Refeitório, quando é que

trabalhas…

N: A manhã eu vou beber café [risos], depois, depois o que é que eu faço? Não sei o que

é que eu faço…depois, quando me liga patrão, vou trabalhar, quando me não liga vou

ajudar para escritório…e depois outra vez bebo café [risos] e depois vou dormir.

M: Atualmente, o albergue onde estás é perto dos sítios onde costumas ir durante o dia

ou tens de andar muito durante o dia?

N: Não, está perto, não ando muito.

M: Então é mais ou menos aonde em Lisboa?

N: Campo Pequeno…

M: Que objetos é que tens contigo que consideres importantes?

N: A mim? Que é importante? Que vou-te dizer? Importante…eu não sei… (…) Minha

mochila? Minha mochila não me importa. (…) A mim importante…eu vou-te dizer uma

coisa: a mim importante é vida, trabalho e outras coisas…casa…e não me interessa

outras coisas…

M: No albergue onde estás, estás sozinho ou partilhas o espaço com mais pessoas?

N: Está mais pessoas… [olha à volta e faz shiu como se tivesse medo de estar a ser

ouvido]

M: E que tipo de relação tens com essas pessoas?

N: Está amigos e conhecidos…

M: Dás-te bem com eles?

N: Às vezes. [risos]

M: E quando há problemas, vai cada um para seu lado?

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N: Não há problemas, está tudo bem, passo bem, corre bem, não há nenhum

problema…somos uma família.

M: Consideras as pessoas que vivem contigo como família?

N: Comigo vivem eu não sei quantos…10 ou mais, por aí… [volta a olhar à volta a ver

se não está ninguém a ouvir e a fazer shiu]

M: Como é que tu pensas o futuro? Por exemplo, daqui a 5 anos onde é que tu te vês?

N: Daqui a 5 anos? Eu não sei o que vai passar agora, amanhã, 5 anos…

M: Sim mas o que é que tu gostavas que mudasse?

N: Eu gosto muito mas não há nada.

M: Estabilidade? Uma casa? Tua?

N: Uma casa? Minha? Eu tenho casa! Eu tenho casa grande não aqui, lá…

Aqui está tudo bem, eu gosto de trabalhar, eu gosto da gente, quem trabalha,

quem não trabalha eu não gosto…e que mais?

M: Na Ucrânia tens família?

N: Sim. (…) Pai, mãe [estão na Ucrânia], irmão está em Espanha, irmã Eslováquia,

minha filha não sei onde…

M: E falas com os teus pais? Tens algum tipo de relação com a tua família?

N: Eu não falo há muitos anos. Porque não quero.

M: Então consideras mais próximo quem vive contigo cá em Portugal?

N: Sim, claro, minhas amigas, meus amigos. A família não me interessa. (…) Já estou

há muitos anos longe. Eles não querem saber como estou eu e eu não quero saber como

estão eles. Pronto.

M: Em relação às outras pessoas do Refeitório, aos outros utentes, como é que tu os

vês?

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N: Estão minhas amigos todos. Estão muito boa gente. Ajuda-me também e eu ajudo

para eles.

M: Então acabam por ser amigos?

N: [falando mais alto] Estamos como uma família! Trabalhamos juntos.

M: E como é que tu tiveste acesso ao Refeitório, a primeira vez que lá foste, como é que

descobriste que existia o Refeitório?

N: Desculpa lá que eu não lembro… (…) Não me disse ninguém nada que eu estava

bêbedo [risos].

M: E há quanto tempo foste para o Refeitório?

N: Há uns dois anos.

M: E vais todos os dias?

N: Não.

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Anexo 6: Excertos da entrevista ao Igor

Mariana: Queria começar por perguntar a idade?

I: A idade, 40.

M: A nacionalidade?

I: Ucrânia.

M: Muito bem, o sítio onde vives?

I: Lisboa.

M: E dormes em alguma instituição?

I: Na casa de um amigo.

M: Ok. E profissão?

I: Tem muitas profissões.

M: Quais?

I: Cantor, pintor, filósofo.

M: A sério?

I: [Acenou com a cabeça e sorriu]

M: Então tens muitas profissões?

I: Oito, mais ou menos. […]

Eu pintar quadros também. A construção, pintar quadros e cantor.

M: Muito bem, de que tipo de música?

I: Música tradicional da Ucrânia.

M: Há quanto tempo é que estás em Portugal?

I: Hum…17 anos.

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M: E como é que vieste para cá? Porquê?

I: Porque a Ucrânia naquela altura era uma República nova, dinheiro novo, Presidente

novo, deputados novos, tudo novo. Tudo malucos, tudo bandidos e eu ganhar 180€ por

mês. E eu querer muito, ganhar muito.

M: Então vieste para Portugal à procura de…

I: O meu amigo ele mora aldeia, ele é da aldeia, tem vacas, tem relvinhas, tem muito, e

lá muito pior, naquele sítio pior. Ele emigrar para Portugal e depois ele tratar

documentos em Kiev, eu moro em Kiev e como Lisboa, capital, e para tratar dos

documentos ele vai a minha casa e depois quando ele emigrar para Portugal eu telefonar

e perguntar “então como é lá português?”. Ele disse “ah normal, não muitos problemas”

e ele falar com patrão “o Igor – eu –, ele quer também trabalhar emigrar”. E eu, depois

de um mês, quando chegar cá os patrões já esperarem por mim. Só que este patrão é

hum…pagar pouco, mas naquela altura para mim é mais do que na Ucrânia, não muito

mas melhor do que na Ucrânia e ver outras terras, tipo turista [risos].

M: E então a tua chegada a Portugal foi tranquila? Não houve problemas de

documentos…

I: Não, foi depois 2001 na Europa vários países fazer legalização, Portugal, Espanha,

Holanda, aí eu fiz aqui em 2001 fiz legalização. Agora pagar multas porque Estado

inventar lei para ganhar dinheiro. É business. [risos]

M: Mas são multas elevadas?

I: [acenou a cabeça que sim]

M: E porque é que há essas multas?

I: Porque tem limites de residência: um ano, dois anos tem que renovar e depois quando

acaba tem meio ano para renovar e quando passa meio ano e não renovar, e até antes,

anulam e pagar, ter que pagar multas e tudo.

M: Para ganhar dinheiro o Estado?

I: [acenou a cabeça que sim] Eles querem também comer. [risos]

M: Tens saudades do teu país?

I: Sim, muitas. Quero voltar com dinheiro. A Ucrânia eu quero viver lá e comprar muito

terra. Lá a vida melhor do que aqui.

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M: Mas vieste cá na altura porque cá era melhor?

I: Não sei… Eu acho que melhor do que a Ucrânia, quando eu falar com telefone com

amigo ele disse ordenado maior e pessoas não piratas [risos].

Mas depois quando passou meio ano não muito gostar de Portugal porque eu

conheço países melhores: Alemanha, França, Austrália.

M: E porque é que acabaste por vir para Portugal e não para esses países?

I: Porque para ir para outros países é preciso dinheiro e…cá ordenado de 500€, lá uma

semana a pessoa ganhar 500€ e estes 500€ tem que pagar isto e aquilo e não dá para

juntar porque eu fumar, eu passear e não consigo juntar dinheiro para eu desaparecer

muito rápido daqui e agora há outro problema: acabou a residência, tenho que pagar

500€ multa e depois que eu posso fugir porque sem residência na fronteira como não

tem residência fronteiras podem fazer deportar e depois 5 anos tenho que comprar um

novo passaporte, mas isso sistema na Ucrânia compra-se.

[pausa porque tocou o telemóvel do Igor]

M: Como é que é o teu dia-a-dia?

I: Hã? [risos]

M: Por norma, qual é que é a tua rotina, o que é que tu costumas fazer no dia-a-dia?

Vens ao Refeitório e mais?

I: Andar [risos]

M: Costumas andar?

I: [acenou que sim com a cabeça] Não faço nada…não muito procurar trabalho…

M: Vais passando o tempo?

I: Humhum [acenou que sim com a cabeça]. O tempo passa… [risos]

M: O sítio onde vives agora é muito longe do Refeitório, por exemplo? Tens de andar

muito?

I: Não.

M: É pertinho?

I: Mais ou menos…não muito longe…

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M: E como é que tu costumas andar por Lisboa? Tens passe de metro, autocarro?

I: Passe eu um mês não carregar passe e depois [risos] aqueles controladores eu disse

que se calhar ele partiu [risos] ele disse “não é o chip, isto ele não tem saldo, não

carregar, a máquina diz tu não carregar, ele vazio, o chip funciona bem”, eu disse “não

sei, eu carregar” [risos]. E depois ele ficou com ele, com passe e eu foi embora, tive que

fugir.

Mas e depois noutro dia andar comboio e o homem escrever multa e eu não

consigo fazer passe porque tem multas.

E quando trabalhas ordenado…melhor não trabalhar… [risos] acho eu ou

trabalhar e ganhar normal.

M: Que tipo de objetos é que tens contigo que consideres importantes?

I: Importantes?

M: Por exemplo, documentos…

I: Documentos.

M: São os mais importantes. Tens algum tipo de lembranças de casa? Fotografias, por

exemplo?

I: Não.

M: Os documentos é o mais importante?

I: Para Portugal sim, para mim documentos não…

M: Vives sozinho?

I: Sim…

M: Ou com amigos ou com família…

I: Na casa de um amigo.

M: Sim mas esse teu amigo também vive lá?

I: Sim. (…) Eu solteiro, sultão, ele não casado [risos].

M: Como é que pensas o futuro? Onde é que tu gostavas de te ver daqui a cinco anos?

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I: Eu quero muito poder emigrar à Austrália…tem cangurus [risos]. Austrália eu ganhar

dinheiro, depois voltar à Ucrânia, na Ucrânia comprar casa e depois eu morar lá na casa.

M: Ficas na Ucrânia. Tens família na Ucrânia?

I: Minha família é só minha mãe.

M: E costumas falar com ela?

I: Sim, ela quer que eu todo o dia falar com ela. Mamã tem reforma…como estes

velhotes… Eu queria ajudar mamã, ela é sozinha e eu também quero minha mãe como

cozinheira. Quando era pequeno “Mamã faz isto.” E ela faz. Só que ela como general,

ela gosta de mandar, general “Faz isto, faz aquilo, vai lá, vai ali” e eu não muito

gosto…antes quando pequeno tudo bem, agora não… [risos]

M: Além da tua mãe, por exemplo outras relações que mantenhas, por exemplo, aqui no

Refeitório, por exemplo, tens amigos? Ou só pessoas que pronto conheces?

I: Conheço…

M: Mas amigos não?

I: Amigos…acho que não.

M: Só pessoas com quem, pronto, falas um bocadinho…

I: Hmhm [acenou que sim com a cabeça]

M: Partilhas o almoço quando estão ali e pronto.

I: Mais ou menos como amigo mas amigo amigo acho que não tenho. (…) Eu quero

uma amiga. [risos]

M: Como é que tu sentes que os portugueses e as pessoas que andam aí na cidade se

relacionam contigo? São simpáticos? Sentiste-te bem acolhido quando chegaste cá?

I: Hum…sim, tudo normal…hum…simpáticos…mentirosos, simpáticos e mentirosos

[risos]

M: Mas porquê mentirosos?

I: Porque eu descobrir muitas mentiras, muito falso…

M: Mas são…pensas que são pessoas que acolhem bem neste espaço?

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[pausa porque tocou o telefone]

I: Eu, último trabalho trabalhar um ano e não resultar, ou trabalhas ou não trabalhas é

igual, mais ou menos.

M: Mas porquê?

I: Porque… [pausa]… Porque melhor não trabalhar ou trabalhar depois para ganhar para

comprar isto ou aquilo…e trabalhar não…

M: Não ganhas o suficiente, por isso não vale a pena, é isso? É principalmente isso?

I: Humhum [acenou que sim com a cabeça]

M: Como é que tiveste acesso ao Refeitório?

I: Já foi quatro anos atrás mais ou menos. Quatro ou cinco…ah eu lembro! Meu amigo

ele disse tem jesuítas e eles podem arranjar um trabalho. Eu foi lá falar com eles e

depois eles dizem nós ter refeitório, nós tem um centro e depois eu viver lá no Centro

Pedro Arrupe…um amigo, vocês conhece esse amigo, ele às vezes vem aqui o Igor

Medveno (?), assim um grande, gordo e este amigo ele mostrou-me primeira vez as

jesuítas, que ele morar Caldas da Rainha, depois imigrar para Lisboa e Lisboa encontrar

eles. Ele viver metro Rato, albergue ou assim, e eu lá em cima pensão Amoreiras.

E depois jesuítas dizer que nós podemos comer aqui e lá primeiros meses

ajudaram pagar passe também, depois eles dizem que não têm finanças, não tem

dinheiro, não há finanças.

Só no início [é que ajudaram] e depois só ajudaram quem mora no Centro Pedro

Arrupe eles também ajudam mas já não…só ajudar um pouco.

A minha problema é que eu percebo bem, a falar…eu não gosto…só gosto da

minha língua. Não preciso de pensar para falar, para falar assim… (…) Em línguas

estrangeiras tem que pensar como falar mas… (…)

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Não é Irmã Celeste e eu roubar comer no Lidl [risos]. (…) Se não Irmã Celeste

onde é que nós arranjar comer? Roubar, trabalhar não há ou não… Eu acho que bom a

Irmã Celeste arranjar comer.

Eu à noite às vezes vou a uma igreja à Campo Pequeno…é uma branca, essa

igreja à noite, depois das dez mais comida. Tem muita…eles trazem dos restaurantes,

dos cafés e dão saco bolos, saco salgados, sopa, muita coisa e se eu trago uma caixa que

eles lá não têm muito caixas vazias, eles pedem pessoas trazer caixa vazia para eles

meterem comida. Mas…para mim salgados e bolos já chega.

M: Como é que tiveste acesso à igreja e à comida da igreja?

I: Amigos, amigos ucranianos.

M: Tens algum tipo de experiência que tenha sido mais importante cá em Portugal?

I: Humhum [acenou que sim com a cabeça]. Uma grande experiência que passar 17

anos e Portugal não tem seguro, não, segurança social não tem…e polícias, polícias

falar e pensar mal: a polícia quando chegar ao pé de mim eles fazem cara mal, voz mal e

eu sei que eles pensar mal e eu não muito gostar. E médicos também, médicos, médico

em Portugal corta perna, braços e ainda ganha medalhas…médicos, polícia fazem o que

quiseres aqui em Portugal… Tem três problemas em Portugal que é a pobreza, é polícia

e médicos.

As coisas positivas…é o resto é tudo positivo (…), pessoas… (…) boas pessoas

[risos].

M: Achas que a cidade de Lisboa é de fácil acesso, ou seja, consegues descobrir

facilmente onde é que estão as coisas…?

I: Sim, não difícil. Primeiro meses eu desorientado, pessoas falar vai ali e eu um pouco

desorientado, depois passou dois, três meses e é fácil.

M: Tu já sabias falar português quando vieste para cá?

I: Niene. [risos] (…) Eu aprender com patrões quando falar e português patrões

ensinaram a falar. O primeiro patrão, ele é um pouco mafioso bandido [risos], ele disse

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“eu vou-te pagar pouco porque tu não falas português e eu digo “ok eu quando falar

português, ordenado um milhão” [risos]. E na escola também não gostar línguas. (…)

Lá [Ucrânia] não todos os sítios com problemas tem sítios onde poucas pessoas e

só montanhas e eu quero…antes eu queria viver à Crimeia, agora Crimeia já é russa mas

agora se eu vou à Embaixada da Rússia eu posso ter passaporte da Rússia, os russos dão

passaportes para ucranianos. (…) E ao contrário não, se um russo quer um passaporte

ucraniano não, caput.

SEF…acho que fácil [acesso], acho que não muito [complicado], mas pessoas

que trabalham lá no SEF um pouco… [fez gesto sinónimo de malucas] (…) porque

muitos trabalham, muitos estrangeiros, muitos moldavos, ucranianos, russos, africanos,

tudo… e foi uma moldava, uma mulher moldava um pouco estragar a legalização:

aquela altura eu foi SEF com dinheiro, com contrato de trabalho, com minha mãe,

minha mãe estava cá e eu poder fazer residência só que não fiz porque ela disse que não

posso fazer por faltar um papel simples e…não sei…com amigos é outra coisa, para

mim tudo por lei, tudo…

Lá [na Ucrânia] a minha mãe e…eu gosto de sentir não como estrangeiro.

Ucrânia é minha casa e todas as pessoas não olhar para mim como imigrante, como

estrangeiro, como…eu sente em Ucrânia melhor do que aqui, aqui muitas vezes sente-se

mal porque eu é ucraniano e esse é problema para as pessoas, para os pretos, para os

portugueses, muitos portugueses dizem “vocês roubam nossos lugares de trabalho e

vocês bebem álcool e fazer mal e…”

E uma coisa: Portugal não é… [pausa à procura da expressão] pessoas não

ganham bem e depois muito pessoas zangados, tipo Brasil tudo bandidos [risos] ladrões.

Mas aqui não, aqui pouca mas aquele nível da… [pausa à procura da expressão]

financeiro é faz mal aos imigrantes também, muitos stresses.

Sinto como imigrante.

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Para mim bom é viver na Ucrânia, não chatear ninguém… (…) e Ucrânia, eu

gosto da Ucrânia, tem pessoas boas (…) e pessoas más.

Anexo 7: Excertos da entrevista ao senhor Mário

Mariana: Então primeiro queria saber idade, nacionalidade e local onde vive.

Senhor Mário: Tenho 59 anos, moro na Quinta dos Barros, pertenço ao Campo Grande,

Lisboa.

M: Profissão ou última profissão que teve?

Sr. M: Eu era vendedor. Fazia feiras e mercados. Só que depois isto está muito mau, eu

deixei por completo.

M: Então agora…

Sr. M: Atualmente não estou a trabalhar mas já fui várias vezes à procura e está mesmo

difícil sobre o trabalho.

M: Como é que poderias descrever o teu dia-a-dia?

Sr. M: Eu passo os dias realmente…às vezes encontro-me com um colega ou com outro

eu sou assim uma pessoa muito reservada nesse aspeto, convivo com as pessoas mas

estou assim um bocado…sou um bocado meio reservado, é já de…

M: Sim, personalidade mesmo.

Sr. M: Sim, sou uma pessoa muito fechada. Fechada, isto é: eu custo fazer amizade, mas

quando mantenho uma amizade é pura e é sadia.

M: E fica.

Sr. M: E fica, só que às vezes eu fico dececionado.

M: Então não tens nenhum tipo de rotina, ou seja, antes de vires ao Refeitório como é

que é, depois de vires ao Refeitório vais para onde, fazer o quê?

Sr. M: Aaaaah convivo com um colega assim, às vezes vou à Ameixoeira, outras vezes

vou às Galinheiras. Convivo, passo o dia-a-dia, ou entretenho-me num café ou…não,

bebidas alcoólicas não…não bebo, é muito difícil. Não quer dizer que às vezes não me

junte com um amigo ou outro mas…passo o dia no café, assim a ver televisão, mais a

passar o tempo.

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M: Antes de viveres onde estás agora aonde é que vivias?

Sr. M: Eu vivia no Pote de Água no Campo Grande, na parte de Alvalade, era no Pote

de Água. Mas depois como surgiu a Câmara Municipal de Lisboa que o bairro ia abaixo

então muitas pessoas saíram de lá, incluindo eu e outras mais, e fomos morar ali para a

Quinta dos Barros. Mas o bairro ainda continua lá…

M: Vocês é que tiveram que ir embora?

Sr. M: Sim mas estou bastante arrependido.

M: Porquê?

Sr. M: Porque ali eu tinha mais liberdade em todo o sentido. Tinha casa rasteirinha, pré-

fabricada, quer dizer, o terreno não era nosso, era da Câmara. Mas eu tinha outra

liberdade que não tenho aqui. Mas enfim…mas não sou só eu que estou arrependido,

muita gente que saiu.

M: Também por causa disso da liberdade?

Sr. M: Liberdade e a gente, uma hipótese, ali nós não podemos assar como…um peixe

assim à porta ou descemos cá abaixo, acho que já incomoda a vizinha do outro lado,

incomoda o outro. É totalmente diferente porque ali onde eu morava eu tinha a minha

privacidade, num certo sentido, que eu podia, uma hipótese, assar um peixe assim num,

é uma hipótese, que eu tinha um estacionamento para parquar, e nós, quem diz eu diz as

outras pessoas em si que moravam também, a gente assava o nosso peixe mas tinha

outra liberdade totalmente contrária, não tem nada a ver.

M: Diariamente, que objetos tem consigo que diga que são seus e importantes para si?

Sr. M: Olha…isso é uma coisa que…eu use, assim uma hipótese, talvez venha cá

noutra…olha os meus objetos que me faz falta é haver lume, que eu fumo, então isto é

assim, e outra coisa não me…mais nada, a sério.

M: Vive sozinho?

Sr. M: Sim, sim, sim, a minha mãe já…[pausa; o sr. M emociona-se ao falar da mãe e

demora algum tempo a conseguir continuar a falar] faleceu-me há…há uns oito

meses…[mudança no tom de voz que ficou mais baixo porque o sr. M ficou comovido]

atualmente vivo sozinho na casa da Câmara que arranjei. Tenho família mas cada um no

seu canto.

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M: Vocês não falam?

Sr. M: Aaah…falamos mas é uma coisa muito…um bocado distante…e eu também sou

uma pessoa que eu tenho, tenho…sou orgulhoso, sou, não vou dizer que não. Sou

orgulhoso e eu não gosto…eu gosto que as pessoas me tratem…como eu realmente

mereço, porque eu sou uma pessoa muito boa, mas às vezes eu fico dececionado, é

como eu lhe digo que eu…eu sou uma pessoa que eu entrego muito o meu coração, até

às pessoas que nem merecem, é verdade, são da minha família mas eu ter família ou não

ter para mim é-me igual.

M: Sempre foi assim?

Sr. M: Não. Desde que a minha mãe faleceu mas assim eu lido com toda a gente mas eu

sou assim uma pessoa um bocado fechada, não vou dizer que não mas eu não sou

desconfiado. Eu sou uma pessoa que quando eu crio uma amizade com uma pessoa eu é

puro, eu é puro e entrego-me muito àquela pessoa. E…às vezes eu saio dececionado.

Mas nem todas as pessoas são iguais, não é?

M: O local onde vives fica relativamente perto dos locais onde vais diariamente? Ou

tens de andar muito?

Sr. M: Olha, principalmente para vir aqui, é um bocado distante. Muitas vezes vou lá a

um cafezinho ou coisa assim, as farmácias também são perto, o Pingo Doce é um

bocado mais distante, um bocadinho mais distante mas enfim…

M: E fazes o caminho a andar, de transportes?

Sr. M: A andar. Eu quando venho para aqui venho a andar. Sim, até me faz bem, não é?

Porque eu gosto de andar um bocadinho também.

M: Como é que pensa o futuro? Ou seja, daqui a 5 anos, o que é que queria que

mudasse, que permanecesse?

Sr. M: Eu queria era sim que uma das coisas que eu queria era que eu conseguisse

arranjar trabalho. Era a coisa que eu mais desejava. Porque…era uma coisa que eu

preciso porque dependendo de um rendimento mínimo que eu ainda não tenho, eu estive

a falar com a assistente social e eu preferia ter um trabalho do que estar a pôr esses

papéis para o rendimento mínimo e essas coisas eu não, não gosto disso porque eu isso

um dia mais tarde acaba e o trabalho eu realmente para a minha idade isto está um

bocado muito difícil…do que eu gostava mais era o trabalho, principalmente na área

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que eu mais ou menos entendo, não é? Porque a minha vida era feirante, de vendas,

comprar e vender, porque eu trabalhava para mim próprio. Pronto, eu trabalhava para

mim próprio. Só que…é como eu lhe digo, eu gostaria que isto, que o dia-a-dia se fosse

melhorando mas não tenho muita esperança. Conforme eu vejo, eu não tenho, quer dizer

e a mais eu estou-me a referir à minha idade, não sei, para muitos mais jovens há uma

esperança, não é? Pronto, eu vejo pessoas com estudos, com estudos mesmo, já

formados e não conseguem arranjar realmente aquilo que eles são, ou tentam conseguir

e isto está muito difícil, está muito difícil. Eu converso com muitas pessoas, pessoas

com formação já e não conseguem arranjar nada, porque isto está muito…e não sei se o

dia de amanhã melhora, mas eu não acredito muito, eu não acredito muito.

M: Que outras relações mantém? Ou seja, amigos, conhecidos? Aqui no Refeitório tem

amigos, são só conhecidos?

Sr. M: Mariana, eu amigos não tenho, tenho conhecidos, porque quem mais eu confiava,

quer dizer, confiava, isto é, quem eu mais pensava que eram meus amigos quando eu

andava nas feiras e tinha dinheiro, para beber um copo com um amigo ou outro e haver

um convívio e eu pensei que eram meus amigos e não eram… O amigo que eu tinha no

bolso é que era o amigo deles, que eles me consideravam como amigo. Então hoje eu

não tenho amigos, tenho conhecidos. Sempre há aqueles conhecidos que a gente tem

uma certa…mas amigo mesmo amigo não tenho. Porque a vida me fez ser assim,

porque eu tive tantas experiências na vida que os meus amigos de antes tinham, não me

largavam de noite e de dia… […]

E realmente quando eu comecei a entrar em decadência, derivado à minha vida

em si, nas vendas, quem eu pensava que era uma pessoa meu amigo ou minhas amigas

foi quem me abandonou. […]

M: E aqui no Refeitório como é que são as relações mantidas?

Sr. M: Muito à superfície, converso mais ou menos assim, brincadeira mas uma

brincadeira saudável, uma brincadeira com respeito mais com o Francisco, o pessoal,

mas geralmente é com o Francisco que conversamos assim mais, mas é uma coisa assim

passageira mas não é toda a gente, como é normal, mas como se diz o outro não dou

muita confiança porque eu já vi mais ou menos que não se pode, eu gosto muito do

respeito.

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M: Qual é a importância do Refeitório para si? Ou seja, haver aqui este espaço que dá

almoço, que acolhe…

Sr. M: Sim, sim, sim, eu acho muito importante isso, para mim foi muito bom.

M: Como é que vieste cá parar?

Sr. M: Foi intermente a assistente social, foi quando faleceu a minha mãe, porque eu

malamente sei cozinhar, sei fazer uma salada, os outros comeres eu não sei, não quer

dizer que não esteja família minha que me convidasse para eu ir almoçar e jantar mas

eu…é como eu lhe disse, eu sou muito orgulhoso. Prefiro comer fora porque ao dia de

amanhã podem-me jogar na cara e aqui nunca me jogam na cara. Eu sou assim, eu

penso assim, não sei. […]

Porque aqui, eu venho aqui comer mas geralmente é só almoço, o jantar eu

assim à noite sempre faço qualquer coisa, pronto. E eu aqui sinto-me à vontade, tratam-

me bem, com respeito, sem racismo – que isso foi uma das coisas que eu já reparei, eu

conforme entrei aqui para mim fui tratado como toda a gente ou negro ou preto, seja lá

quem for, ou branco, foi uma das coisas que eu reparei, são todos tratados de igual, aqui

não há distinção e isso para mim foi, eu sinto-me bem aqui, a sério, sinto-me. E nas

pessoas que realmente, as assistentes e as moças que ajudam aqui, também é

sensacional. […] Das pessoas que realmente vêm aqui ajudar só tenho bem a dizer. São

pessoas sensacionais, que nos servem com um sorriso na cara e isso é importante,

podem ter os seus problemas do dia-a-dia como normal, qualquer pessoa tem, mas

quando chegam aqui tratam toda a gente. […]

M: A que outras instituições ou serviços é que recorre?

Sr. M: Só aqui.

M: […] Muito bem, agradeço desde já.

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Anexo 8: Excertos da entrevista a Yassine

Mariana: Queria perguntar a idade, nacionalidade e o sítio onde vive.

Yassine: Idade tenho 31 anos, sou de nacionalidade marroquina, vivo na rua Gualdim

Pais, no centro.

M: Profissão.

Y: A minha profissão lá em Marrocos é reparação de eletrodomésticos e refrigeração, ar

condicionado. E cá é teto falso, fazer gesso.

M: Muito bem. Quando e como é que veio para Portugal?

Y: Venho 2005.

M: E porquê?

Y: Vim para procurar outra vida.

M: Que lá estava difícil?

Y: Não, eu queria sair mesmo de lá, não é estar difícil, é o que tinha lá, tinha lá trabalho,

tinha lá a minha oficina mais o meu primo, tás a ver? Só que eu queria sair de lá, pronto,

já estou farto de estar lá.

M: Mas porquê?

Y: Queria ver outros países, para saber o que é que é a Europa, tás a ver?

M: E quando chegaste cá já tinhas trabalho ou tiveste que arranjar e começar tudo do

início?

Y: Não…eu tive cá…eu tive cá numa situação difícil… [baixou o tom de voz]

M: Então?

Y: Quando vim para aqui não venho, venho num camião, ilegalmente, tás a ver? Sem

pagar sem… Depois fiquei aqui cinco anos sem documentos sem nada. Tive apoio de

uma instituição que me ajudou a tratar dos documentos e ajudou-me também a ficar lá

num centro de formação profissional de carpintaria.

M: E que instituição foi essa?

Y: Foi uma instituição em Castanheira de Pera, perto de Pombal, Leiria.

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M: E eles ajudaram-te então com os documentos, com o trabalho…

Y: Sim, sim, sim, sim, sim, ajudou-me muito, a assistente social chamada doutora Carla

ela que me ajudou muito, agradeço muito a ela.

M: Como é o seu dia-a-dia?

Y: O meu dia-a-dia é procurar trabalho, acho que neste momento já tenho trabalho no

final do mês, a empresa é portuguesa só que vai abrir fora, vou trabalhar fora de

Portugal, estrangeiro.

M: Mas então já tens trabalho?

Y: Vamos ver! [risos] Eles disseram que quando sair documento – porque renovei, fiz a

renovação – quando sair vem cá e nós vamos ver se tu vais lá para França, agora ainda

não está a 100%, ainda só está 70%.

M: Ok, é esperar então.

Y: É esperar até ao final do mês.

M: E depois vens cá ao Refeitório e a seguir?

Y: Não, agora quando começar a trabalhar já não vem, porque eu, antigamente, eu vinha

para aqui, só que comecei a trabalhar prontos […].

M: Como é que poderias falar do sítio onde vives? Da casa, do espaço onde vives?

Y: Onde que vivo é…um bocadinho complicado, tem muitas pessoas, tás a ver? Não

tens aquela liberdade…

M: E no país de onde vieste, tinhas essa liberdade?

Y: Claro que tinha! Tinha a minha casa, tinha os meus pais, tinha, tinha família à volta

de mim se precisava alguma coisa eles ajudavam, tás a perceber? Aqui…aqui também

ajudam pessoas [risos] estão a ajudar também.

M: Vives sozinho cá?

Y: Sim, sou solteiro.

M: E o sítio onde vives é perto dos sítios onde tens de ir diariamente?

Y: Não, é muito longe, é Xabregas.

M: Ok e vais aos outros sítios de transportes? A pé?

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Y: Venho a pé, saio lá de Xabregas, vou calmamente dar uma volta ao jardim e depois

venho aqui a pé, devagarinho, quando chegar aqui é 11h30, 12h, já está.

M: Muito bem. Como é que pensa o futuro? Como é que gostava de estar daqui a 5

anos, por exemplo?

Y: Daqui a cinco anos gostava de ter filhos e uma casinha e um trabalho, não é? E uma

mulher também. Isso é que eu gostava de ter mesmo daqui a cinco anos. [risos]

M: Há bocado falou da família. Costuma falar com eles…

Y: Sim. Costumo, eu não… eu tenho contacto sempre com eles, no Facebook, no

Whatsapp, no telefone… Não é diariamente mas por exemplo uma vez por mês tem que

ou duas vezes por mês tem que saber notícias, principalmente a mãe, não é? A mãe é

que é mais…

M: Que outras relações mantém? Tem amigos, conhecidos cá…

Y: Sim, sim tem. Tem muitos amigos cá também, amigos, conhecidos.

M: E aqui no Refeitório, as pessoas são suas amigas, são conhecidas, tem…

Y: Não tenho queixa de ninguém.

M: E tem amigos cá?

Y: Tenho lá de minha casa, sempre estamos juntos.

M: Como é que teve acesso ao Refeitório? Como é que descobriu o Refeitório?

Y: O Refeitório foi através do Mohamed (Jallah), Mohamed é que me mostrou, depois

foi à doutora, lá ela me escreveu uma carta para a Irmã, poder vir cá.

M: É importante que exista este espaço aqui? Onde pode almoçar, tomar banho…

Y: Sim, existe para mim como existe para todas as pessoas, porque não se sabe o que

vai acontecer no dia de amanhã, não é? Pode…como eu que estava a trabalhar e depois

de repente acabou e já está. Se não for isso…

M: E a chegada a Portugal, a habituação à língua e tudo o mais, foi fácil?

Y: Sim, para mim foi fácil, sabe porquê? Porque eu estive num meio pequeno, numa

aldeia, numa vila, tás a perceber? E eu lá tive sempre ouvi portugueses, nunca falei

árabe com ninguém, nunca falei francês com ninguém, sempre só português. Por isso

que eu adaptei mais rápido. E aprendi também. E aprendi lá, aprendi na formação

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profissional que eu estava a fazer que a doutora integrou num centro de aprendizagem

para nós e de carpintaria. Eu estive lá cinco anos, até quando tive documentos,

depois…fui embora. Eles depois arranjaram trabalho, arranjaram trabalho durante um

ano e meio e foi-se embora. Deixei caducar a residência, três anos e eu nunca soube.

Não sabia como é que se tratava, tás a ver? Porque não fui eu que tratei, tás a ver? Eu

descobri quando vim para aqui, quando vim para aqui para Lisboa é que depois comecei

a saber como é que as coisas funcionam, porque quando entrei aqui vi outro mundo.

Porque nunca vivi aqui em Lisboa, sempre vivi lá.

[…]

Era mais simples, ajudam-se uns aos outros, tás a perceber? Se precisares de alguma

coisa peço.

M: Em Lisboa estavas sozinho [risos]

Y: Estava, estava, quando entrei aqui foi…

M: E é fácil descobrir onde é que são os sítios em Lisboa onde tens de ir tratar dos

documentos e essas coisas?

Y: Agora sim, agora sim, agora já tenho tudo.

M: Consegues orientar-te bem em Lisboa?

Y: Sim, agora sim. Primeiro mês e segundo mês já deu.

M: Há alguma outra instituição a que recorras?

Y: Não, se não for esta é a Santa Casa.

M: E também foi assim porque descobriste?

Y: Sim, através, tudo que descobri, através do SEF, porque senão já vou para o meu

país...Quando vivi quase dois meses, quando falei para ele depois começou a mostrar

essas coisas.

M: E pronto é isto, muito obrigada.

Y: Nada, nada.

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Anexo 9: Excertos da entrevista a Jallah

Mariana: Então, queria primeiro saber a idade, a nacionalidade e o sítio onde vives.

Jallah: Idade (…) 44.

M: 44?

J: Sim, 44.

M: Nacionalidade?

J: Marrocos [risos].

M: Muito bem e onde é que vives atualmente?

J: Antes abrigos, agora vivo…na rua. Antes Vitae, um ano Vitae.

M: Profissão?

J: Prédios, obras… (…)

M: Ok, quando é que vieste para Portugal? Há quanto tempo?

J: Há quanto tempo? Em outubro de 2015 entrei aqui.

M: 2015?

J: Sim, 2015, outubro, Vitae.

M: Ok. E porque é que vieste para cá?

J: É para cambiar a vida, trabalhar, porque em Marrocos menos um

pouco…complicado…tem trabalho lá pero não ganhar… Cambiar a vida mesmo…

M: E foi fácil chegar a Portugal?

J: É complicado, não é fácil. Pessoa toda que está em Marroco quer chegar aqui é

complicado.

M: Sim, não é propriamente fácil.

J: Se paga dinheiro, se não paga pode vir com camiões e é complicado…

M: Quando chegaste cá já tinhas trabalho?

J: Hum não, trabalho publicidade…

M: Depois acabou?

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J: Sim.

M: Como é que é o teu dia-a-dia?

[Jallah faz cara de quem não entendeu a pergunta]

M: Como é que é a tua rotina, o que é que fazes durante o dia? De manhã…

J: Nada, sim como sempre: vai passear um pouco, depois vem à Irmã e aqui come,

janto, depois vai passear e arrumar e um pouco, como sempre…

M: Vais passeando.

J: Sim, em toda pessoa é igual [risos] é complicado… [pausa] Um dia vai às bibliotecas,

um dia…cambiando…

M: Gostas de ir à biblioteca?

J: Sim.

M: Gostas de ler?

J: Sim. Entendo tudo: entendo francês, espanhol, posso ler tudo.

M: Vives sozinho?

J: Sim, passar sozinho, com amigos um dia.

M: Depende.

J: Sim depende.

M: E antes, em Marrocos, como é que era?

J: Família. Sempre com família.

M: O sítio onde estás agora a dormir é perto dos outros onde tens de andar durante o

dia, onde vais passeando, do Refeitório, ou não? Tens de andar muito ou é perto?

J: Não, não, […] é centro de Sete Rios, pero sempre passear, sempre ter de passear

dentro de…

M: Então estás em Sete Rios?

J: Sim.

M: E vens daí por aí adiante, vais andando…

J: Andando, vou passeando, um dia vai para metros, outro dia vai para autocarros…

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M: Como é que tu pensas o futuro? Como é que gostavas que fosse daqui a 5 anos, por

exemplo?

J: Que pensava…Pensa que trabalhar, casado, cambiado e muita coisa…

M: Em Lisboa?

J: Sim, me gusta aqui, é melhor. Aqui Lisboa é bonito e melhor.

M: Então casado, com trabalho, uma casinha.

J: Sim, como toda pessoa. [risos] Pensando casa, trabalho e vá um pouco para Deus

grande. Pouco, pouco. Quando eu tiver um trabalho pode fazer tudo isso. Sem trabalho

é complicado.

M: Há bocado falaste que vivias em família, ainda manténs relação com eles? Falas com

eles?

J: Com família? Sim. É um dia se marca, se lhama, dois dias…quando ter dinheiro fazer

um recadito, mais a irmã como sentam…

M: São uma família grande?

J: Sim, somos 5 [risos], quatro irmãos, não duas irmãs e três irmãos. Sou o segundo, um

irmão mais grande.

M: O segundo dos mais velhos?

J: Sim, segundo.

M: Além da família, tens outro tipo de relações? Amigos…cá em Lisboa?

J: Sim, tenho amigos aqui, em Espanha, França, Marrocos.

M: Já estiveste em Espanha e em França também?

J: Sim.

M: A sério? Quanto tempo?

J: Espanha dois anos, um, dois anos. França dois anos e meio, três anos.

M: E foste para lá porquê?

J: Procura mais trabalho. Espanha onde trabalhar, pero depois já tem amigos lá, ligam

para mim não pode trabalho. Trabalho em Toulouse anos, depois torno a Marrocos e

depois vem a Portugal.

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M: Então foste de Marrocos para Espanha e França e depois voltaste para Marrocos e

depois vieste para cá.

J: […] é complicado para trabalhar, tem muitos marroquinos lá pero é complicado para

trabalhar lá…

M: E aqui no Refeitório, tens amigos ou só conhecidos?

J: Só conhecidos, não é amigos, aqui não tenho ninguém. Quando cheguei aqui não

sabia nada depois começo a conhecer um aqui, um aqui, quando chegar em França tens

amigos e em Marrocos também tenho família, aqui não…

M: Ainda não, ainda podes ter? Podes conhecer amigos?

J: Sim, sim, sim tem sempre a ver com a nossa imagem e com o nosso exemplo, quando

está fora conhecer sempre alguém, portugueses, franceses é igual, não tenho problemas.

M: Tu percebes tudo?

J: Percebo. Como aqui, não tenho problemas, gosto de todos e uma pessoa boa, gosto de

todos e falo com todos.

M: Muito bem. Como é que tiveste acesso ao Refeitório? Como é que descobriste que

havia aqui este Refeitório?

J: Em Vitae, quando estava em Vitae a dormir, aí doutora e mandar-me para aqui,

doutora Francisca, ela é que mandar.

M: E há quanto tempo é que vens cá?

J: Desde quando entrar em Portugal, um ano, seis meses. Segunda vez quando voltar de

Vitae mandar vir aqui e depois sempre com mesmo dia como aqui. Que 2015, final

2015 sempre aqui.

M: É importante que exista o Refeitório? É importante que haja este espaço?

J: Importante? Verdade como família, se dá comida para nós, é verdade, muita coisa,

por aí, dá muita coisa, coisa para a Irmã complica, porque sempre dá coisa, comida,

verdade, como Irmã, como todos mais sim, eu gosto é verdade tenho amigos aqui, um

dia não venho aqui sempre diz “ah como está amigo?”. Toda a gente é boa, a Irmã,

muito obrigado.

M: Há alguma outra instituição onde tu vás? Outra instituição, outro sítio em que te

ajudem, outros serviços?

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J: Que me ajuda não, não. Eu fui um dia, Gerês, sim eu fui dois meses lá, depois lá para

escola e dizer vais esperar porque está muitas pessoas lá, não fui mais. Um dia Santa

Casa, em baixo, Cais Sodré lá, só um mês, dois meses…

M: Não gostaste dos outros sítios? [Jallah acenou que não] Preferes aqui?

J: É, gostar aqui, vir para comer, sentar com amigos, […] noutros sítios não…

M: Não é bom ambiente? [Jallah acenou que não]

...

M: Está abafado?

J: Tenho três roupas.

M: Para aguentar o frio à noite?

J: Não, está bom, está num sítio bom.

M: É onde?

J: Sete Rios.

M: Sim mas…

J: Um pouco, cinco minutos, está em centro, sim, tranquilo [risos].

M: Ok, muito obrigada.

J: Nada.

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Anexo 10: Excertos da entrevista à Susana

Mariana: Então eu queria começar por perguntar a idade, a nacionalidade e o local onde

vive.

Susana: Então tenho 23 anos, sou de Lisboa e moro em Alvalade.

M: Profissão ou última profissão?

S: Estou a tirar um curso de assistente administrativa.

M: Como é o teu dia-a-dia?

S: O meu dia-a-dia é: saio de casa para o curso, para o curso para aqui e depois tenho o

ginásio também à tarde e depois para casa.

M: Sempre viveste em Alvalade?

S: Não.

M: Antes era onde?

S: Antes era em Moscavide.

M: E mudaste por algum motivo especial?

S: Mudei porque a casa onde eu estavam em Moscavide com os meus pais foi para

obras, então viemos morar para Alvalade.

M: Muito bem. Vives sozinha?

S: Não, vivo com o meu esposo e com os meus pais.

M: O sítio onde vives fica perto do curso e daqui do Refeitório?

S: Fica.

M: Então não tens de andar assim muito.

S: Não, para o curso apanho o autocarro e para o Refeitório venho a pé.

M: Além do Refeitório recorres a mais algum tipo de instituição ou de apoio?

S: Não.

M: Só aqui. Estás cá há quanto tempo?

S: Aqui? Não me lembro…

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M: Há anos?

S: Não.

M: Meses?

S: Meses. Comecei este ano.

M: E como é que descobriste que havia aqui este espaço?

S: Foi através de uma assistente social. […] Porque eu e o meu esposo estávamos a

passar por uma situação em casa da minha mãe, então a gente fomos falar com o

assistente social e o assistente social falou com a Dra. Carla e a Dra. Carla…

M: Encaminhou-vos para aqui. Muito bem, como é que pensas o futuro, ou seja, como é

que gostarias de estar daqui a cinco anos?

S: Com o meu trabalho, com a minha própria casa, com o meu próprio trabalho e…ter

uma família realizada, isto seja, com o meu esposo e com o meu filho.

M: Já tens filhos?

S: Já.

M: Quantos?

S: [a sorrir] tenho um.

M: Com que idade?

S: [a sorrir] três aninhos.

M: Além dos teus pais tens mais família?

S: Tenho. Tenho dois irmãos, tenho os meus tios, primos.

M: E costumas falar com eles diariamente ou de vez em quando?

S: Com os meus irmãos sim mas com os meus primos somos primos afastados.

M: Além da família tens amigos, tens outro tipo de relações?

S: Sim tenho amigos lá no curso tenho.

M: Ok, então é um pouco à base de, o teu dia-a-dia e tudo isso, é um pouco à base de o

curso e os amigos do curso, o ginásio, aqui no Refeitório tens…

S: E o meu esposo. Ah tirando as visitas do menino! Estar com o meu filho também!

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M: Qual é a importância que este refeitório tem para ti?

S: Eish… [risos] Então importância ao nível de quê?

M: Ou seja, se encerrasse o Refeitório?

S: Ah pois tipo acho que ia fazer muita falta porque o Refeitório ajuda muitas pessoas,

as pessoas que estão a passar dificuldades.

M: Penso que é tudo, obrigada!

S: De nada.

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Anexo 11: Excertos da entrevista ao Paulo

Mariana: Queria saber idade, nacionalidade e sítio onde vive.

Paulo: E o nome não é preciso?

M: Não. […]

P: Idade tenho 24 anos, moro em Lisboa, zona de Alvalade.

M: Nacionalidade?

P: Portuguesa.

M: Profissão?

P: Desempregado mas a depender de biscates, o que aparece às vezes, por exemplo:

mudanças, quintais, tenho também o biscate da NOS que é até ajudar, ir acompanhando

as carrinhas, ajudar a montar os aparelhos em casa a casa, cafés. Tenho só à base de

biscates, não, mas profissão mesmo é desempregado.

M: E antes desse tipo de trabalhos tinhas algum…já tiveste algum tipo de trabalho fixo?

P: Trabalhador nas obras e numa empresa de mudanças, só nesses.

M: Como é que é o teu dia-a-dia?

P: O meu dia-a-dia… O meu dia-a-dia é, além de vir aqui ao Refeitório normal almoçar,

depois tenho as visitas ao final da tarde e depois quando tenho os trabalhos part-time

tenho as horas para fazer os trabalhos part-time, quando não tenho vou resolver

assuntos ou vou à procura de trabalho e depois há dias que também fico em casa, por

isso é que…nunca é certo, nunca é certo.

M: E tu disseste agora que vais, por exemplo, à procura de trabalho durante o dia, como

é que fazes isso? Vais, andas por aí à procura de anúncios?

P: Vou logo de manhã, vou logo, eu prefiro sempre ir da parte da manhã para não ir à

tarde, porque é sempre o que o ditado diz “é de manhã que começa o dia” é de manhã

que tem de se começar.

M: Exato. E costumas ir, por exemplo, a lojas, a cafés…

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P: Eu vou mais é aos centros comerciais, que os centros comerciais é que costumam

ter…e também vejo no Correio da Manhã e na net, na parte do OLX, na parte dos

empregos, nessa parte assim.

M: Antes de viveres aqui em Alvalade onde é que vivias?

P: Vivia com o meu padrasto e com a minha mãe, na zona de Telheiras, que é onde está

o meu filho agora.

M: E mudaste para cá porquê?

P: Porque juntei com a minha esposa e fiz a vida com a minha esposa e agora estou

aqui.

M: Vou voltar a perguntar, também perguntei a ti [apontei para a Susana que estava

sentada ao lado do Paulo a ouvir a entrevista]: vives então com a tua esposa e com…

P: Com os meus sogros.

M: O local onde vives fica perto dos sítios onde vais à procura de trabalho, por

exemplo, por onde andas durante o dia…

P: Fica mais ou menos um bocado longe, como é aqui em Alvalade e eu vou ao

Colombo, outras vezes vou ao Oriente, só o Campo Pequeno é que fica mais perto mas

o Colombo e o Oriente ainda tenho que apanhar metro e autocarro.

M: E vais então de transportes?

P: Sim.

M: Além do Refeitório, recorres a algum tipo de outra instituição, de apoio, de…

P: Não, só quando preciso de falar com o Dr. Hugo mas isso é para tratar de coisas

normais, tirando isso não tenho outro tipo de apoios.

M: Como é que descobriste que existia aqui o Refeitório?

P: Foi através do meu assistente social, o Dr. Hugo.

M: Estás cá há muito tempo?

P: Ahhh estou mais ou menos mas não sei se já completou um ano ou se ainda não fez

um ano. Eu já estou aqui desde 2016, desde o ano passado, por isso é que eu não sei

se…cheguei perto da altura do verão, não sei se…

M: Estamos a chegar ao verão.

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P: Pois deve estar perto, por isso é que eu não sei de cor.

M: O que é que pensas do futuro? Como é que tu te vês daqui a 5 anos, por exemplo?

P: Com uma vida melhor, que já possa ter a minha própria casa – ainda estou à espera

de uma casa da Câmara Municipal de Lisboa, ter já tenho, só me falta a entrega da

chave.

M: Como é que se deu esse processo?

P: Isso tive que ser eu a tratar sozinho e com a ajuda também do meu assistente social.

M: Mas falaram com a Câmara?

P: Não, tivemos que ir lá falar com a Câmara, preencher, normal como outras famílias

fazem. Eu agora não sei explicar assim por alto porque também já foi há algum tempo

mas…

M: Então está quase, só falta a chave?

P: Sim, só falta mesmo a entrega da chave. Repetindo aquilo que eu ia acabar: ter a

minha própria casa, ter as minhas próprias coisas, trazer o meu filho ao pé de mim, ter já

um emprego fixo e já ter uma vida melhor – é o que eu espero ainda antes dos cinco

anos que não quero esperar, o mais rápido possível melhor.

M: Muito bem. Então ter o vosso filho com vocês é…

P: É importante.

Susana: É muito importante.

P: E ter um emprego também fixo, também já é outra coisa.

M: Para estabilizar?

P: Já é melhor que andar em part-times.

M: Além do teu padrasto e da tua mãe tens família?

P: Tenho, tenho, a minha família é muito grande, se eu vou falar um por um…mas

tenho família grande.

M: Era para saber se costumas manter contacto com eles, se é tudo tranquilo…

P: Sim, mais com o meu padrasto e com a minha mãe porque estão a tomar conta do

meu filho e com os meus avós da parte do meu pai e com os meus avós da parte da

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minha mãe. Já o meu pai já não posso dizer que não tenho muitos contactos com o meu

pai, nem com a minha madrasta e com os meus irmãos da parte do meu pai. E com

outras pessoas de família metade também tenho contacto, outra metade não tenho.

M: Em relação a outro tipo de relações, por exemplo, amizades e tudo mais, tens amigos

por aí?

P: Tenho, por acaso tenho muitos amigos. Nas minhas antigas escolas, onde eu passei

no meu curso, não completei o curso de carpintaria ali na Crinabel do Lumiar, nos

trabalhos do dia-a-dia, no próprio bairro, no dia-a-dia…

M: Vais conhecendo pessoas, dão-se todos bem…

P: Vou conhecendo pessoas novas. Aqui no Refeitório também tenho amigos…

M: Sim?

P: Sim.

M: Essas relações são fáceis?

P: Mais ou menos, é preciso é…é ir com calma, é conhecer bem a pessoa.

M: Verdade… Qual é que é a importância deste espaço do Refeitório para si?

P: Para mim é…é importante por causa das dificuldades que eu estou a passar…na casa

dos meus sogros por causa de falta de comida, falta de…de tudo o que é do dia-a-dia,

que coiso, é importante para mim. Depois a minha sogra tem uma coisa que a gente não

se dá muito bem, nega a luz, nega a água, nega o gás, nega a própria comida e por isso é

que…é mesmo… Porque eu se não fosse por causa disso ainda ia-me enrascando como

eu tenho-me enrascado nos tempos antigos mas quando aconteceu isso já tive que pedir

mais ajuda de uma solução ao meu assistente social, o Dr. Hugo, ele arranjou-me para

aqui.

M: E foi simples o processo? Foi só falar com o assistente social…

P: Foi, foi simples, ele depois falou com a Dra. Carla e a entrada foi de imediato, até

viemos logo no primeiro dia. Nós por causa dessas dificuldades é que viemos mais para

aqui.

M: Essas dificuldades não fazem com que vocês precisem de outro tipo de apoio? Só o

Refeitório basta?

P: Claro, o outro apoio é a gente esperar pela entrega da chave da nossa casa nova.

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M: E aí já são vocês a tomar conta da casa, a gerir tudo.

P: Já as coisas são melhores e também estamos à procura é de um apoio que também

ajude a, mas isso é quando a gente depois tiver a nossa casa nova, para ajudar a equipar

a casa com eletrodomésticos e móveis, isso já temos o apoio daqui e procurar onde há,

para poder ajudar melhor.

M: Sim para ver se agora quando tiverem a casa conseguem de facto ficar

independentes com o vosso trabalho, com a vossa casa.

P: Sim.

M: Muito bem, obrigada!

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Anexo 12: Diário de Campo

Dia 17.10.2016 – 1ª ida ao voluntariado da Irmã Celeste

Chegada ao terreno às 9:50h, 10 minutos antes da hora combinada. Estava no

refeitório a Irmã Celeste que estava a fazer um refogado e uma sopa; à sua frente tinha

um grande recipiente de macarrão com carne que iria ser aquecido juntamente com o

refogado para “dar mais gosto à massa que não tem sabor nenhum”.

Foi-me explicado pela Irmã onde era a casa de banho que “nós” (pessoas não

sem-abrigo) deveríamos utilizar, bem como a existência de comida de que me podia

servir porque “se vais sair daqui só por volta das 14 horas não queremos que te dê uma

fraqueza”.

A Irmã estava ocupada entre a função de preparar tudo para o almoço (mexer a

sopa, mexer o refogado, cortar melão, cortar pão) e a lavagem dos tupperwares (“Aqui

usa-se muitos tupperwares porque temos de conservar a comida porque não se pode

desperdiçar comida”).

Um dos temas que foi logo abordado foi a ordem inerente a todo o esquema de

funcionamento do Refeitório: num quadro estava afixada uma folha que mostrava os

voluntários responsáveis por cada dia da semana e por cada fim-de-semana do mês. A

ordem existe também nas tarefas que cada pessoa sem-abrigo desempenha em torno do

almoço: quem põe a mesa, quem põe os pratos direitos, quem atende o telefone.

Ao ver a Irmã tão atarefada perguntei se podia ajudar em algo e fiquei

encarregue da lavagem e secagem dos tupperwares. Eram muitos tupperwares…muitas

máquinas foram feitas…no silêncio.

De notar: há almoços especiais para os muçulmanos que apesar de não exigirem

tal coisa não comem carne quando a refeição é carne, de nenhum animal, pois, mesmo

sendo carne de frango, por exemplo, eles pensam que os estão a enganar e a querer fazer

com que comam carne de porco “disfarçada”.

Para quebrar esse silêncio, a Irmã perguntou-me em que área estava a fazer a

minha tese. Disse-lhe que a minha licenciatura tinha sido em Antropologia mas o

mestrado agora era em Sociologia. A Irmã respondeu que só poderia ser algo

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relacionado com Antropologia, Sociologia ou a sociedade/o social, tendo em conta a

investigação das pessoas sem-abrigo.

Quase uma hora tinha passado e o Refeitório mantinha-se calmo, ainda sem

nenhum utilizador.

A tarefa seguinte de que me ocupei foi a separação e embalagem de lanches para

as pessoas sem-abrigo: croissants, pães-de-Deus, tranças, pastéis de nata. Também aqui

havia ordem – “o croissant e os bolos maiores vão sozinhos; os mais pequenos

acompanhados”.

Aparentemente tudo tem de estar “a postos” antes dos utentes do Refeitório

chegarem.

Depois dos lanches ajudei a Irmã a pôr o recipiente da comida no forno (“que é

uma coisa boa porque antes era tudo no micro-ondas”), a colocar a sopa em tupperwares

para as famílias carenciadas, e a estender as várias máquinas de roupa que entretanto

fizemos com toalhas, calças, meias, camisolas, cuecas, casacos, tudo. A lavandaria tem

sempre roupa a lavar ou a secar ou por dobrar ou por estender. É o stock onde não só é

deixada a roupa de cada pessoa sem-abrigo para que seja lavada, como também o stock

de peças que possam vir a fazer falta a cada indivíduo.

Por volta das 11:20h chegou o primeiro utente ao Refeitório, um senhor de

origem dos países de Leste que foi tomar banho logo que chegou.

Poucos minutos depois chegou outro senhor que começou a pôr a mesa.

À medida que chegavam tinham de assinar a folha de presenças.

Pouco depois chegou uma senhora para ir buscar comida para a sua família; e

um senhor também para ir buscar comida para a família.

O indivíduo seguinte era o Francisco, responsável por atender o telefone e

manter os pratos direitos. Indivíduo nos seus 30-40 anos, de etnia cigana e muito

conversador; cantava, dizia piadas, fazia imitações de personalidades famosas, falava

mal da publicidade de suplementos alimentares; tem uma considerável cultura geral e

sabe algumas curiosidades científicas/sobre o corpo humano. Interage facilmente

comigo ele e o outro senhor cujo nome penso começar por J e pôs a mesa – Francisco

fala, J ri.

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Falámos de música; fui apresentada como “uma menina nova para ajudar”.

Houve silêncios, risos e senti que estavam a observar ao pormenor, com algum

desconfiança mas sempre simpáticos, sorridentes, quase acolhedores mesmo… A

pessoa sem-abrigo não é uma pessoa que corte relações e se desvincule. Pelo

contrário, penso ter assistido a momentos de camaradagem, entreajuda,

preocupação/cuidado com o outro, animação, afetividade (incluindo os lugares em

que se sentavam). Foi também notório algumas reações de separação entre o “nós”

(sem-abrigo portugueses) e o “eles”/os “outros” (indivíduos imigrantes), seja a nível

da linguagem (“Isso devem ter sido lá os moldavos), seja a nível espacial (o indivíduo

estrangeiro sentado noutra mesa).

O J tinha fome. Demos-lhe um pouco de pão enquanto não se serviam os

almoços. Francisco gosta de mel e os “moldavos” também (“Comem aquilo como se

fosse chantilly” diz Francisco).

Pouco antes de ir embora chegam mais dois indivíduos. A Irmã fala-me do

relatório de atividades do ano passado. É-me interessante e pergunto se mo pode

fornecer. Vamos para o escritório imprimir o relatório. A Irmã diz-me que eles (sem-

abrigo) são simpáticos, conversadores, calmos, mas muito exigentes seja com a

comida seja com a vez de comer para que não lhes falte o alimento.

É meio-dia, vou embora.

Dia 19.10.2016 – 2ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei à instituição às 11h25. Já lá estava a Irmã Celeste e três noviços –

o Frei Bernardo, o Frei Isaac e o Frei Gustavo. Apresentei-me aos noviços, disse quem

era e o que estava a fazer na instituição não só como voluntária mas também como

investigadora. Conversámos durante bastante tempo sobre vários temas; conhecemo-nos

uns aos outros, quase como se se construísse um elo entre os quatro por estarmos ali

com objetivos semelhantes.

A Irmã disse-me que o “serviço” já estava despachado (portanto a preparação de

tudo antes dos “utentes” chegarem; nova palavra para as pessoas sem-abrigo que

utilizam o Refeitório…) e que me calhava tratar do pão, das caixas e da fruta. Agora

era esperar que chegassem os “utentes” e depois eu poderia fazer a minha “missão” –

penso que esta conversa da minha missão seria numa tentativa de dar um objetivo

à minha presença naquele local.

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Os primeiros a chegar foram 3 russos: Nicolay e mais dois senhores, sendo que

um não falava português nem inglês e o outro era surdo há 5-6 anos, o que tornou a

comunicação mais difícil.

Nicolay diz-nos que nasceu em 1974 e ri quando percebe que somos todos

“muito novos”.

Durante algum tempo criou-se um compasso de espera pois os senhores russos

estavam entretidos a ver vídeos nos telemóveis deles – É interessante como todos os

“utentes” têm telemóvel, alguns mesmo telemóveis caros.

Enquanto esperávamos apareceu um senhor com cerca de 30-40 anos a pedir

para levar almoço. A Irmã à partida estava reticente mas acabou por dar uma caixa com

almoço. Depois contou-nos que aquele senhor era ucraniano e que tinha pertencido a

uma quadrilha de tráfico de seres humanos e que era uma pessoa má mesmo – Um juízo

de valor um pouco precipitado e demasiado radical para um indivíduo que

aparentemente tentava mudar.

Com o passar do tempo foi chegando o Francisco (com muito boa disposição), o

Mário (que é da etnia do Francisco e que diz que ele canta muito bem; falámos de

música e do gosto por cantar), o António, o Júlio, o Dimutru, o Alex, o Alex, o Igor, o

Catamara, o Issam… Muitos, muitos “utentes” prontos para almoçar mal chegassem as

13horas.

Por volta do meio-dia a Irmã deixou-nos sozinhos para ir almoçar. A nossa

função era manter a ordem, o que não foi muito complicado apesar de irem chegando

cada vez mais “utentes”.

Hoje o almoço é peixe com arroz e a Irmã alertou-nos logo à partida que era um

prato que não tinha muitos adeptos, o que me pareceu estranho e me deixou a questionar

algumas coisas sobre estas pessoas que recorrem ao Refeitório… - Como é que a

pessoa sem-abrigo, mesmo encontrando-se numa situação vulnerável, mantém a

possibilidade de dizer que não gosta ou de pedir um prato especial ou de

simplesmente se recusar a almoçar o que é servido? Como é que inclusive chega a

haver um indivíduo que diz que só foi ali perder tempo, uma vez que a comida não

lhe agradava?

A Irmã avisa-nos que também fará parte da nossa função ter uma resposta firme

se é não é não porque ceder à vontade de um poder levar aos seguintes cenários: a) os

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restantes também querem que se abra uma exceção e caso não aconteça começa um

conflito; b) alegam ser um ato de racismo; c) alegam ser um ato discriminatório por

causa da sua religião – Sendo de salientar aqui os eixos que alimentam os conflitos no

nosso contexto de estudo.

Quando a Irmã regressou estávamos a ouvir o Francisco cantar em italiano com

uma letra um pouco diferente e a ser incentivado a continuar pelo Mário e o António.

A hora de almoço estava perto. Os olhares estavam no relógio da parede. A

ansiedade era muita.

13horas: a equipa de voluntários aumenta com a chegada das “avós” (a

Margarida e a outra senhora) cada um se prepara para assumir a sua função e a sopa sai

para o Refeitório.

É pedido que os utentes permaneçam nos seus lugares indo nós levar o prato

com sopa à mesa. De início funcionava mas rapidamente a desordem começa: os utentes

apressados levantam-se com os seus pratos nas mãos para serem servidos antes dos

outros. A fome, a pressa e a necessidade de evitar ficarem sem comida faz com que a

confusão comece muito depressa. Eram cerca de 20 homens a tentar chegar à panela da

sopa.

Após ter sido servida a sopa começam os pedidos: pão e piri-piri. Apresso-me a

distribuir o pão, tarefa nada fácil, pois, estando já o prato do pão cheio, continuam a

pedir que ponha mais, tendo eu de permanecer firme no não apesar das suas várias

justificações para receberem mais um pedaço de pão.

O almoço prossegue. Depois da sopa entregam os pratos para serem lavados e

aguardam pelo segundo prato. Com o segundo prato vêm os burburinhos e algumas

caras desapontadas com o menu. No entanto, a ordem mantém-se: comem, falam, riem.

À medida que o tempo passa rapidamente os 20 homens se transformam em 30,

40 homens. Os almoços continuam a sair; a louça a ser lavada; as caixas a serem

lavadas, enchidas e entregues; as conversas, a televisão, os telemóveis – quase nos

perdemos com tanta coisa ao mesmo tempo.

As voluntárias que já conhecem os utentes dizem “ah é o x, é normal” ou “ah lá

vem este ou aquele outra vez” – conversam entre si com um código de linguagem já

criado para falar de alguns utentes.

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Chega o momento de repor o stock de pão. Lá vou com a caixa do pão de mesa

em mesa e começo a notar olhares, cotoveladas, risos e conversas sobre “a menina” que

“gostou de ti” ou dedos a apontar e segredos e risos. Senti como se fosse eu que estava a

ser estudada, analisada, observada, quase como sendo uma espécie diferente… Se calhar

por não ser freira ou um dos noviços…

Continuámos a servir almoços até por volta das 14h30 quando já não havia o

“prato do dia” e começaram a sair salsichas com arroz que foram sendo rejeitadas por

não ser comida de jeito. Foi já quase no fim que um dos utentes enganou os voluntários

dizendo que ainda não tinha almoçado e acabando por comer a dobrar. Outra situação

interessante foi o facto de um dos utentes fazer questão de dizer “até amanhã” a cada

pessoa da equipa de voluntários. Ainda o facto de ao repetirem trocarem o prato sujo

por um lavado, atitude que foi repreendida pela Irmã; a resposta da Irmã a quem se

queixava das salsichas ser “viesses mais cedo”; um senhor ter mencionado que o pão

preto era para pretos e o pão branco para brancos; haver utentes com uma imagem

muito bem cuidada; ter aparecido um senhor ao qual a Irmã disse que só pode ir ao

Refeitório quem aparece sempre, ou seja, a ideia de ordem mais uma vez; e ainda ter

sido dito, quase num tom de ordem maternal, para um dos utentes ir tomar banho.

Acabando os seus almoços os utentes foram indo embora; aparentemente não

podiam perder tempo. As conversas foram diminuindo ficando apenas cerca de três

utentes que, segundo a Irmã, ficam para arrumar tudo.

14h40 sou dispensada.

Dia 24.10.2016 – 3ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei à instituição às 11h30 e estava lá apenas a Irmã Celeste e um dos

utentes. Comecei por preparar os lanches enquanto a Irmã tratava dos últimos

preparativos para o almoço (tortilha com esparguete) e o utente punha a mesa.

Conhecei o senhor X logo no primeiro dia em que fui à instituição e, uma

semana depois, ainda se lembrava de mim. Soube que se lembrava por causa do sorriso

com que me recebeu; parecia estar feliz por me ver ali.

Um pouco depois chegou o senhor Mário. Vinha a queixar-se de um dente

inflamado e das dores que tinha e parou para me dizer bom dia; mais uma vez parecia

contente de me ver ali tendo vindo falar comigo enquanto eu despachava as minhas

tarefas. Falámos sobre anti-inflamatórios e como deviam ser tomados. Falei-lhe do

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programa The Voice de ontem porque cantaram a música que o Francisco tinha cantado

na quarta-feira, o que me fez lembrar dele. Ele disse-me que ia pôr o Francisco a cantar

só para mim hoje.

Pouco depois chegaram dois senhores que penso serem russos porque se

sentaram numa mesa separada (o senhor Stepan e um outro senhor). Ficaram os dois a

conversas apenas um com o outro, o que me levou a pensar na distinção que existe entre

os utentes do Refeitório, o facto de escolherem sentar-se ao pé das pessoas com quem

partilham a etnia ou o país de origem, a separação física tão bem visível neste espaço

intriga-me. Será que se dá a apropriação de um dado lugar naquele refeitório por

cada uma daquelas pessoas? O que aconteceria se lhes trocássemos os lugares?

Será aquele lugar naquela mesa, ao pé daquela e daquela pessoa, uma forma de

afirmação não possível noutro sítio além do refeitório? Como pensar a situação de

vulnerabilidade-autonomia na escolha de um lugar à mesa? Como associar esta

clara marcação do espaço à identidade dos utentes do refeitório?

Quando o Francisco chegou dirigiu-se logo à “sua” mesa para falar com o senhor

X e só depois notou que eu estava no Refeitório a cortar pão. Mal me viu foi falar

comigo. Primeiro disse-me bom dia a sorrir, depois ficou a olhar para o comando da

televisão muito pensativo. Passado um pouco disse algo como “Eu é que devia ter um

comando para me apagar as memórias todas…não podiam ser tiradas com água porque

depois ia tudo atrás mas devia haver um comando para me apagar as memórias…” Ao

que eu respondi: “Mas assim não te lembravas de nada, nem do teu nome” e ele pensou

e acabou por dizer que também não fazia mal. Passámos deste tema mais filosófico para

os dias em que eu ia à instituição (“Tu vens só às segundas, não é?”) e o meu propósito

para ir lá. Ele contou-me as suas táticas para cabular quando andava na Escola nº. 1 da

Baixa da Banheira (entre o Barreiro e Setúbal), escola essa onde ele se “desenvolveu”

(termo interessante). Falou-me das cábulas que fazia para os colegas, da forma como

tinha acesso aos enunciados das provas, como enganava as contínuas… E, de repente, já

estávamos a falar de álbuns de família, de como estava fisicamente muito diferente que

ninguém na terra dele o reconhecia, do cigano que lhe tinha roubado tudo até a pulseira

e o colar que tinha desde bebé…

O senhor Mário chegou e ficámos os três a conversar sobre o programa The

Voice e da forma como me tinha lembrado do Francisco com a música, ao que o senhor

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Mário disse logo “lembras-te dele mas não te lembras de mim”. Pouco depois eles

foram sentar-se e cantaram; hoje cantaram muito.

Por volta do meio-dia, a Irmã foi almoçar e deixou-me sozinha. Fui ter com os

utentes e fiquei a saber que o senhor Mário viveu 14 anos no Brasil (“Conheço melhor o

Brasil que este Portugal e já cá estou há 20 anos”), que gosta de música brasileira. Tanto

ele como o Francisco contam histórias que demonstram o desligamento e o egoísmo das

pessoas atualmente que não param para ajudar alguém que cai na rua.

Começam a chegar mais utentes e uma das voluntárias da segunda-feira também

chega.

Por volta das 12h45 chega a Irmã e começa a preparar tudo para servir primeiro

as sopas, depois o segundo prato.

Sou encarregue de ir à lavandaria dar uma toalha a um utente que queria ir tomar

banho e entregar a roupa a outro utente. Quando cheguei lá, além de entregar a toalha o

senhor queria champô que eu não sabia onde estava e aí o utente, que falava mais inglês

que português, começou a apontar para as prateleiras que a Irmã me tinha dado ordem

específica para só eu mexer. Não via champô nenhum e o utente já impaciente chegou à

prateleira e começou a remexer um saco. Percebi que era ali que estavam os champôs e

logo o afastei para cumprir as ordens da Irmã. Dei-lhe um champô e uma lâmina de

barbear.

Lá dentro estava também um outro utente à procura das suas calças no meio da

grande quantidade de calças aparentemente todas iguais… Mas o senhor sabia

exatamente quais eram as suas calças, pelo que pegava, olhava, media usando os seus

braços, tudo até encontrar “as” calças. Depois procurou o seu casaco verde e pediu uma

lâmina de barbear e espuma que lhe dei logo.

Enquanto ainda estava lá dentro algures na altura em que o senhor via as várias

calças à procura das suas calças, apareceu o senhor Mário – estava preocupado comigo

e foi só ver se estava tudo bem porque eu já tinha ido para a lavandaria há algum tempo,

disse-me depois de me pedir desculpa por ter ido à lavandaria – Mais um sinal dos

laços de confiança estabelecidos em apenas três dias que vem corroborar a ideia de

que estas pessoas não são isoladas da sociedade em geral, nem desvinculadas, mas

sim pessoas bastante educadas, simpáticas, agradecidas, preocupadas com o outro.

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Começámos a servir os almoços; primeiro as sopas, o pão, a todos os utentes que

estavam no refeitório.

Um dos utentes estava à espera das assistentes sociais – três novas personagens

que deviam ter chegado às 13horas para ajudar os utentes com os vários problemas, mas

só apareceram no fim dos almoços quando já quase ninguém estava no Refeitório, para

grande descontentamento não só da Irmã como dos utentes que tinham ido lá para

almoçar e falar com as assistentes, que num dos casos tinham dado as informações

erradas ao utente.

Uma vez mais houve muitos pedidos por mais pão e um dos utentes quis comer

apenas massa sem tortilha.

Ao fazer o lanche de outro utente, o Jallah, fui avisada de que se tratava de uma

pessoa de “muito alimento” – Curioso como se faz estas pequenas distinções entre

tantas pessoas que vão àquele refeitório.

Hoje foi também a segunda pessoa do sexo feminino: primeiro tinha sido uma

senhora, hoje foi uma rapariga com os seus 20-30 anos.

Por volta das 13h30 já tinham acabado praticamente todos os almoços, chegaram

as assistentes sociais e a Irmã disse que eu podia ir andando para almoçar.

Dia 28.10.2016 – 4ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei à instituição por volta das 11h45 e lá estava o senhor X, que vim a

descobrir que se chama Galvino, sempre sorridente. Além dele estava um dos senhores

russos, um senhor à espera e a Irmã Celeste. Fui deixar as minhas coisas e procurar a

Irmã. Encontrei-a na lavandaria com um utente, dos que fala pouco português; estavam

a tratar da roupa que tinha acabado de lavar. A Irmã disse logo que achava que eu já não

ia (por causa do meu atraso). Perguntei o que podia fazer e fiquei encarregue de

estender a roupa lavada.

Pouco depois fui ter com a Irmã à cozinha onde reparei que ela não parecia estar

muito bem fisicamente. Perguntei o que se passava e disse-me que andava mal com uma

virose há cerca de dois dias mas que hoje estava um pouco melhor, embora ainda não se

sentisse completamente bem.

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Fiquei encarregue de dar as toalhas, encher os garrafões de água, cortar o pão e

tratar dos tupperwares antes de darmos o almoço, que hoje era um aproveitamento de

alguma carne, batatas e grão.

Entretanto chegou o senhor Mário que quis mais uma vez pedir desculpa por no

outro dia ter ido ver se estava tudo bem na lavandaria. Disse-me também que qualquer

favor que eu alguma vez precisasse na minha vida que podia ir ao bairro dele e

perguntar por ele, o Mário cigano (“Não me importo que digas mesmo cigano, porque

Mários há muitos mas cigano sou só eu”).

Estava lá também o Nicolay, o Stepan e outros senhores russos.

Dei algumas toalhas aos utentes para tomarem banho e lâminas de barbear.

Quando a Irmã saiu para ir almoçar fiquei a falar com o senhor Mário, o

Galvino, o Camara e um senhor que conheci hoje: o Camara 2 (para distinguir do

Camara que já conheço). Este senhor Camara 2 falou comigo em francês: perguntou

como é que me chamava, falou da ligação à igreja (“J’adore l’eglise”), perguntou a

minha idade, se era casada, se tinha filhos; como respondi que não às duas últimas

perguntas o senhor ficou feliz dizendo que eram boas notícias para ele.

Começaram a chegar mais utentes mas, mesmo assim, eram muito poucos a

comparar com os outros dias e havia muito mais utentes a quererem tomar banho do que

nos outros dias, talvez por ser sexta-feira…

Falámos sobre as notícias acerca da violência nas escolas entre pessoas novas

(13-15 anos) e foram percetíveis alguns discursos de incredulidade, de como é que é

possível crianças fazerem assim mal às outras, falámos dos pais e do excesso de

trabalho e falta de atenção para as crianças.

Com o passar do tempo tanto os outros utentes como o senhor Mário, o Galvino

e eu começámos a ficar preocupados com a ausência de Francisco que, segundo o

senhor Mário, nunca se atrasa. O senhor Mário dizia, preocupado, se a Irmã não saberia

nada, se ele não se teria metido em alguma confusão. O Galvino para aliviar o ambiente

disse que ele estava atrasado por ter passado a noite a cantar.

Com a ausência do Francisco o Refeitório estava calmo e silencioso.

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Por volta das 12h50 chegou a Irmã e as outras voluntárias, a Isabel e a Fátima. A

Irmã estava pior pelo que ficou sentada apenas a dar indicações de como deviam ser

feitas as coisas.

Começámos a servir as sopas e a fila com os pratos nas mãos começou, bem

como a distribuição de pão e os vários pedidos: uma caixa para levar, lanche para não

me esquecer, pão, um par de calças novo, fruta.

Já o segundo prato estava a ser servido quando o Francisco chegou: vinha

apressado e sem o bom humor habitual.

Passado algum tempo fui chamada como testemunha da preocupação de Mário

com o atraso do Francisco – interessante como o zelo e a preocupação com o outro se

tornam importantes neste contexto de vulnerabilidade – Será possível articular as

pessoas em situação vulnerável do Refeitório com as pessoas sem-abrigo da João13

que abre em Janeiro?

Continuei a servir almoços e a distribuir pão; muito pão para a mesa dos

senhores russos fez com que “ganhasse” a simpatia do grupo com quem é mais difícil

comunicar.

Fui chamada novamente à mesa do Francisco, do senhor Mário e do Galvino.

Desta vez era o Francisco que queria saber se eu tinha ficado mesmo preocupada com a

ausência dele. Disse-lhe que sim e ele respondeu que não era preciso, a sorrir, e que já

tinha lá em casa uma assim como eu mas com a cara chapada dele, com os mesmos

olhos que ele. Calculei que falasse da filha. ( Mas não era a filha porque ele não tem

filhos Informação a posteriori)

Ao ouvir uma conversa juntamente com outra conversa que tive com o Francisco

consegui entender que ele vive num quarto alugado à noite na Ameixoeira. Ouvi-o falar

de algo relacionado com ter outras pessoas no seu quarto antes de ir para lá ele (tenho

de averiguar esta informação!)

Quando já era altura de lavar a loiça porque os almoços já estavam quase a

acabar chegaram as assistentes sociais; ficaram a lavar a loiça.

Por volta das 13h40 disse à Irmã que tinha de ir embora.

Dia 7.11.2016 – 7ª ida ao voluntariado

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* Nota prévia: Nas duas últimas idas ao voluntariado não escrevi diário de

campo porque o meu trabalho foi, de certa forma, perturbado pelos utentes do

Refeitório. Criou-se uma proximidade excessiva, muito perto do intolerável (cf. Marc

Breviglieri) que fez com que estas pessoas em situação de vulnerabilidade se apegassem

em demasia e me tratassem com termos que não me deixavam à vontade e capaz de

prosseguir o meu trabalho quer como investigadora quer como voluntária. Cheguei

mesmo a ter companhia indesejada até ao meu local de estudo (FCSH) e toda essa

situação fez com que quisesse, de facto, abandonar não só a instituição como a própria

ideia de estudar estas pessoas em situação de vulnerabilidade. No entanto, depois de ter

falado com a Irmã Celeste sobre o que se estava a passar e de ter deixado de falar com

os utentes mais “complicados” as coisas acalmaram e penso poder manter-me na

instituição com o tema que quero estudar.

Hoje cheguei à instituição por volta das 11h30 e estava lá a Irmã Celeste e a

Isabel. De utentes estava o Galvino, o Francisco e o Nicolay.

Quando cheguei a Irmã disse-me que faltava só tratar do pão e para eu fazer isso

enquanto ela ia tratar de um trabalho com a Isabel. Disse-lhe que ia só deixar as minhas

coisas e ia tratar do pão. Quando fui pôr as coisas aproveitei para contar à Irmã que o

Francisco tinha voltado a ir comigo de metro e que isso me deixava muito

desconfortável e a Irmã disse que se isso se repetisse hoje ela falava com ele para o pôr

na ordem mas que eu não ficasse assustada porque são apenas pessoas carentes de

afetos (pobres de afetos) que querem chamar a atenção mas que não fazem mal a

ninguém. – Termos e situação interessante para pensar os laços de confiança e o

apego neste trabalho, neste caso através da relação pessoa vulnerável-voluntário.

Depois fui cortar o pão e o Francisco e o Galvino vieram falar comigo – um veio

dizer parvoíces que ignorei e o outro veio dizer olá.

Continuei a cortar pão enquanto os utentes falavam entre si. Quando acabei fui

ter com a Irmã e a Isabel de forma a evitar mais conversas com os utentes numa

tentativa de distanciamento da minha população de estudo.

Entretanto tratei de distribuir toalhas, sabão, lâminas de barbear a quem pedia e

notei uma situação nova: um dos utentes tinha na lavandaria uma mala grande. Quando

me pediu para lá ir buscar umas roupas pensei que seria como das outras vezes: chegar,

entregar uma toalha, um sabão e fechar a porta. Mas desta vez não. O senhor Eudízio

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tirou dos bolsos uma chave minúscula, agarrou uma mala azul que estava escondida na

lavandaria e abriu o seu cadeado. Lá dentro estavam roupas bem dobradas, sapatos,

roupa interior… Abriu a mala que trazia consigo e tirou da mala azul algumas coisas

colocando-as na mala que tinha consigo. Depois começou a justificar-se de toda aquela

situação; disse-me para dizer à Irmã que ainda não ia conseguir tirar as suas coisas dali

porque ainda não tinha conseguido encontrar um “sítio” e só quando conseguisse é que

podia levar as coisas dali para fora. Parecia preocupado com a necessidade de tirar as

coisas dali. Aquela mala era importante para ele: além de ter um cadeado estava num

espaço que ele considerava seguro: o que é interessante quando pensamos as relações

destas pessoas com o espaço em que se encontram; a ideia de confiança e

segurança associada ao Refeitório.

Algum tempo depois fui novamente cortar pão, tratar das caixas e fiquei a saber

que a Irmã ia ficar oito dias fora, o que me preocupou por ficar sem a “proteção” dela

enquanto figura de autoridade…

Entretanto chegou o senhor Mário, o Jallah, o Camara e mais alguns utentes. O

senhor Mário disse-me que estava bonita e perguntou-me se tinha namorado – Mais

uma vez tive de me distanciar porque a linha entre o meu “eu” e os outros estava a

ser pisada mas, de certo modo, consegui através desta conversa afastar-me de

todas as conversas e provocações que até então começaram a ser cada vez mais

frequentes.

Os almoços hoje foram caóticos. Apareceu muita gente ao mesmo tempo. Pela

primeira vez desde que lá estou faltaram lugares e pratos para toda a gente. Houve uma

grande necessidade de afirmar a ordem, seja através de pedidos para que os utentes

ficassem no lugar, seja mesmo através de um reforço das ordens com a consequência de

não comerem.

Houve muitos utentes descontentes hoje, ou por ainda não terem comido ou por

não haver pão nas mesas ou por terem pressa de receber as caixas.

Mais para o fim a Irmã teve de pedir a alguns utentes que ficassem a ajudar a

lavar os pratos e a arrumar tudo porque estava mesmo muito caótico. – Interessante

quando a Irmã pede que ajudem eles mesmo tendo coisas para fazer ficam lá a

ajudar – dar, receber, reciprocar?

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Ainda fiquei a distribuir caixas e a preparar lanches algum tempo e depois por

volta das 13h30 fui embora.

Dia 18.11.2016 – 9ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei à instituição por volta das 11h20. Estava lá já a Irmã Celeste e a

senhora Ermelinda. Estavam a conversar. A Irmã perguntou como tinha corrido a

semana passada, uma vez que tinha estado fora em retiro.

Fiquei encarregue de fazer os lanches e separar as peras de uma caixa para outra.

Hoje o almoço era “comida vegetariana”, apesar de ter frango e salsichas na

receita.

Depois de preparar os lanches fui com a Irmã para a lavandaria tratar da roupa.

A Irmã estava um pouco chateada porque na sua ausência tinham deixado as coisas

arrumadas numa ordem diferente – Mais uma vez a questão da ordem como algo

importante para o bom funcionamento do Refeitório.

Quando estávamos a tratar da roupa apareceu o Jallah a pedir umas meias. A

Irmã deu-lhe umas quentes e ele devolveu-lhas porque tinham borbotos – Esta situação

de alguma tensão levou-me a formular alguns juízos de valor e a questionar o

papel do utente na dicotomia necessidade-autonomia, por serem pessoas

vulneráveis e com necessidades mas que recusam a ajuda por não corresponder

aos seus “padrões de qualidade”.

Fomos para a cozinha acabar de tratar do almoço e depois conhecemos a

situação de um novo utente que estava à espera de um rim há quatro meses enquanto faz

hemodiálise.

Entretanto a Irmã foi almoçar e encarregou-me de aquecer comida no micro-

ondas e tratar das caixas. Fiquei sozinha no Refeitório, situação que não me tem deixado

confortável ultimamente porque fico um pouco vulnerável.

Foram chegando os utentes e as caixas e os vários pedidos que cada um tem, seja

em relação aos lanches, seja em relação às caixas. É interessante ver como cada um

deles já sabe que a Irmã conhece os seus gostos e os seus vários pedidos quando

dizem “a Irmã já sabe o que é para pôr” – De certa forma cria-se ali uma

separação entre a figura da Irmã Celeste que está todos os dias no Refeitório desde

que o espaço abriu, por isso já conhece as pessoas e as histórias de cada utente,

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tendo já criado e consolidado um laço de confiança; e, por outro lado, a figura

das/os várias/os voluntárias/os que vão apenas alguns dias por semana e com quem

a postura adotada pelos utentes já varia em alguns detalhes tais como a forma de

tratamento e a seriedade com que aceitam os pedidos ou ordens.

Quando chegou a Irmã começámos a servir os almoços com a seguinte ordem:

primeiro os pratos “especiais” (peixe para os muçulmanos e arroz em vez de massa para

um utente que estava a fazer hemodiálise) e depois o “prato do dia”. Logo que

começámos a distribuir o “prato do dia” começaram as reclamações: ou queriam peixe,

ou queriam arroz, ou queriam só massa. Esta situação causou alguma instabilidade e

incómodo, uma vez que eu, ao ser a pessoa que estava a entregar os pratos, também tive

de ser a pessoa a manter o não firme face às reclamações. – Os papéis que

desempenho na instituição entraram novamente em conflito, na medida em que se,

por um lado, estas várias reclamações, críticas e pedidos são algo de muito

interesse para contrapor com a teoria da Sociologia Pragmática, nomeadamente

com as ideias presentes e defendidas em De la justification; por outro lado, o papel

de voluntária, de pessoa que tira tempo do seu tempo para ajudar o outro, este tipo

de reações por parte dos utentes faz com que se reconsidere afinal o que estamos lá

a fazer ou como se ajuda quem não quer ser ajudado, na medida em que se parte

do princípio (talvez errado) de que quem tem fome aceita a comida que se lhe dá,

independentemente de ser a que mais lhe agrade ou não. Ora aqui neste Refeitório

tivemos a prova de que não é bem assim, que as pessoas vulneráveis continuam a

ter a capacidade e o “poder” de formular uma crítica, uma justificação pública dos

seus atos através da recusa em comer por não lhes agradar a comida.

Distribuí as caixas, os lanches e a fruta e às 13h20 fui embora.

Dia 25.11.2016 – 10ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei à instituição por volta das 11h15. Estava lá a Irmã Celeste e alguns

utentes. Quando cheguei perguntei onde podia ajudar e a Irmã disse-me para ir tratar de

secar os tupperwares e o Francisco veio logo falar comigo e ajudar-me a secar os

tupperwares. A Irmã percebeu que a situação não estava a ir lá muito bem e disse para o

Francisco se ir sentar e me deixar em paz. Depois fui com a Irmã para a lavandaria

arrumar as calças e as toalhas da máquina que tinha acabado de lavar.

O almoço hoje era massa com carne picada e peixe para os muçulmanos.

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Enquanto a Irmã foi almoçar fiquei encarregue de tratar de aquecer o peixe e de

arrumaras caixas. O tempo demorou a passar porque não havia grande coisa para fazer.

Entretanto chegou a Fátima e estivemos a falar um pouco antes de ser hora de servir os

almoços. Quando a hora chegou estavam muito poucos utentes ainda e por isso fomos

esperando. Às 13h10 começámos a servir os almoços e às 13h20 fui embora.

Dia 19.12.2016 – 13ª ida ao voluntariado

Cheguei por volta das 11h30 e já estavam muitos utentes no Refeitório: o

Francisco, o senhor Mário, o Nicolay, o senhor João, o senhor novo, a Irmã Celeste, a

Isabel e uma outra senhora.

Como está perto da época do Natal começa a ser percetível por um lado um

maior número de utentes e, por outro lado, um maior número de voluntários.

Foi também interessante ver como, por exemplo, o Francisco aproveitou para

desejar logo que o próximo ano me corra bem e melhor que este ano.

Inicialmente fui com a Irmã tratar de preparar os cabazes para as famílias e, em

seguida, regressámos para o Refeitório. Fiquei a dobrar sacos enquanto a Irmã ia

almoçar e o Refeitório ia enchendo.

Quando chegou a hora de servir os almoços o Refeitório já estava cheio, o que

tornava tudo numa situação caótica. A passagem para as mesas estava complicada, os

pedidos de pão, de comida especial, de lanches especiais, de um serviço mais rápido

porque tinham pressa, tudo isto acontecia hoje ao mesmo tempo.

Houve algumas reclamações em relação aos lanches e ao almoço. Chegou

mesmo a haver quem tivesse de esperar pelo almoço em pé por não haver lugar sentado.

Os utentes mais recentes já se integraram relativamente bem e mantêm-se

sempre sentados juntos.

Foi interessante ver como os próprios utentes se apercebem dos dias mais

conflituosos e complicados, nomeadamente quando, por exemplo, o Camara 2

perguntou se hoje o trabalho tinha sido mais complicado.

Hoje apareceram duas novas senhoras como utentes. Ambas de origem africana.

Disse à Irmã que brevemente iria ter de começar a fazer as entrevistas e ela

indicou-me o nome do senhor Ivan, do senhor Stepan e mencionou que haveria

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algumas pessoas com quem seria mais fácil falar. Perguntei se as pessoas que

indicou eram todas sem-abrigo, tendo em conta o tema do meu trabalho e ela disse

que sim, mesmo os que tinham casa nunca era sustentada por eles nem tinha as

condições mínimas (cf. definição de sem-abrigo da ETHOS).

Dia 20.12.2016 – 14ª ida ao voluntariado

Hoje fui apenas à hora de servir os almoços. Cheguei eram 13horas. Mais uma

vez notei que tanto o número de utentes como o número de voluntários aumentou. Desta

vez notei também que o aumento de utentes veio trazer uma alteração na disposição dos

lugares, o que levou também a uma alteração na harmonia e na forma de convívio do

Refeitório com as personalidades e características de cada um a ganhar nova ênfase. O

Francisco diz que está afónico mas quando me vê canta; agora tem ao seu lado não o

Galvino e o senhor Mário mas uma senhora (ucraniana ao que parece a Jennifer

informação a posteriori) que diz que ele é o seu amigo, e as outras duas senhoras novas

que tenta enturmar, e o Dumitru que mantém o seu lugar. A mesa do canto varia entre

os muçulmanos Omar e Jallah, ou utentes novos como hoje (dois senhores e uma jovem

mãe com a filha de 5-6 anos, falava só inglês). A mesa do meio mantém o senhor Ivan,

o outro senhor Ivan, o senhor Stefan e hoje também o Norberto (que tem sempre muita

pressa). A mesa da porta mantém os senhores ucranianos (o Alexandre, o Valery, o Igor,

o Nicolay, o Iury). E a mesa da frente com os novos utentes que continuam a tentar

impor a sua própria ordem através de vários pequenos pedidos e chamadas de atenção;

penso que se trata de uma forma de adaptação às regras pré-estabelecidas pelo

Refeitório; este grupo repete muitas vezes a comida, pede um certo tipo de lanche, pede

mais pão e fica no Refeitório depois de almoçar a conviver entre conversas, ver

televisão e comer pão.

Hoje foi interessante a resposta de um dos utentes quando a Irmã perguntou

como ele estava. Disse que estava bem, que o único problema era não ter trabalho, que

só faltava arranjar trabalho e que agora ia ficar cada vez mais difícil.

Também fiquei a saber que o Dimutru tem um filho com 20 e tal anos e a

senhora nova ucraniana tem um filho de 25 anos – Importância da família talvez por

ser a época do Natal; conversa nostálgica sobre os filhos e características dos

mesmos.

Dia 27.12.2016 – 16ª ida ao voluntariado

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Hoje foi um dia relativamente calmo. Só apareceram certa de 30-35 utentes.

Todos perguntaram como tinha sido o Natal.

Éramos cerca de 6 voluntários para os poucos utentes que apareceram pelo que

por volta das 13h15 já tínhamos servido os almoços todos.

Dia 28.12.2016 – 17ª ida ao voluntariado

Hoje tornaram a aparecer poucos utentes. Aparentemente, de acordo com o que a

Irmã disse, é por ter sido Natal há pouco tempo e ainda têm sobras da comida do Natal e

nesta época andam mais “perdidos” e “metidos no álcool”, por isso vão menos ao

Refeitório.

Outra questão curiosa foi a Irmã ter dito que “eles” têm o “nosso” Natal e

depois, noutro dia diferente, têm o “Natal deles” – Aparentemente podemos pensar

esta afirmação como relevante da perceção que a Irmã tem dos códigos e da ordem

das pessoas sem-abrigo surgindo aqui como diferente/separada daquela que é a

norma do cidadão “normal”, ou seja, trata-se de um exemplo prático de que estas

pessoas têm a sua própria ordem, o seu ritmo, a sua forma de criar uma norma

através e no desvio em que vivem.

Tal como aconteceu ontem notou-se um aumento na exigência de alguns utentes

em relação à comida: uns perguntando se não havia outra coisa para comer, outros

recusando-se a comer, outros queixando-se de ser pouca comida no prato – Em relação

aos dois primeiros casos não posso deixar de pensar, por um lado, na existência de

uma crítica que surge como passível de ser formulada naquele contexto, apesar de

serem pessoas vulneráveis quem formula estas críticas e queixas, levando-me, por

outro lado, a pensar que para estas críticas serem formuladas neste contexto em

específico tal deve significar que ali sentem uma pertença, um estatuto, uma forma

de serem pensados e tratados, levando a uma auto-caracterização enquanto

pessoas, seres humanos, possuidores de dignidade e poder de crítica/julgamento,

que não deve ser, penso eu, algo muito presente nas suas vidas quotidianas.

Hoje como eram poucos utentes os almoços tornaram a acabar cedo. Aproveitei

para falar com a Irmã Celeste sobre qual seria a melhor abordagem na fase seguinte do

trabalho – as entrevistas – e ela disse-me que era capaz de ser mais fácil conseguir falar

com eles se fosse depois de almoço, porque a hora de almoço é sempre muito agitada;

também me aconselhou a não utilizar o termo “pessoas sem-abrigo” por ser muito

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carregado de conotações, devendo substituí-lo por “pessoas em condições de habitação

carenciadas”; disse, por fim, que em princípio haveriam de colaborar comigo sem

qualquer problema porque já me conheciam – Ideia da “confiança” como base dos

laços sociais – Sem ter estabelecido este laço de confiança prévio com as várias idas

ao Refeitório no papel de voluntária, não seria possível entrar no “mundo” deles,

pedir-lhes que falem comigo e me contem a sua história.

Dia 29.12.2016 – 18ª ida ao voluntariado

Hoje estavam novamente poucos utentes – facto que mais uma vez foi referido

pelos voluntários.

Apareceu o Camara que já não via há algum tempo e ficou contente de me ver.

Perguntou como eu estava e como estava a faculdade.

Falou-se sobre a passagem de ano.

Tive uma pequena conversa com o senhor João que me dizia que eu sou

obediente mas que não devíamos obedecer cegamente,

Falei com um dos Alexs que me perguntava pela faculdade com algum interesse

e ficou surpreendido ao saber que eu já estava no 5º ano de faculdade e ainda ia fazer

mais quatro anos.

Hoje o Francisco falou muito sobre a forma como as pessoas o julgam com base

no seu aspeto. Contou-nos uma história de quando apanhou ladrões na Gulbenkian e as

pessoas que tinham sido assaltadas julgaram que ele também era um ladrão pelo que

quando apareceu a polícia ele foi julgado tal como os verdadeiros ladrões, tendo de

explicar que não tinha roubado nada mas apenas tentado ajudar as pessoas que estavam

a ser assaltadas. O Francisco contou algumas histórias semelhantes.

Um ponto interessante foi as várias reações ao aviso na porta que dizia que no

domingo, dia 1 de janeiro, o Refeitório iria estar fechado. Houve vários utentes

surpreendidos, vários preocupados por não saberem onde ir comer e alguns revoltados e

chateados porque o Refeitório não podia fechar assim. – Podemos aqui ver a forma

como aparece a crítica e a justificação nesta população vulnerável cuja rotina, ao

ser quebrada, quebrando assim a ordem instituída já há alguns anos, leva a um

despoletar de várias sensações e reações reveladoras da importância não só do

Refeitório como da ordem, da rotina, das regras na vida destas pessoas que, à

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partida, vivem à margem da sociedade em várias formas, nomeadamente no que

concerne a rotina dentro de uma ordem com imposição de regras, princípios e

valores.

Dia 2.1.2017 – 19ª ida ao voluntariado

Hoje como estava frio e chuva estavam logo muitos utentes de manhã quando

cheguei – mudança muito significativa em relação à semana passada com dias mais

amenos e menos utentes.

Todos fizeram questão de deseja bom ano novo e as conversas entre os utentes

eram sobre como tinha sido a passagem de ano (entre álcool e boa comida e quem

passasse a meia-noite a dormir).

À hora de almoço o Refeitório já tinha um número considerável de utentes e

notava-se um nervosismo e tensão muito grandes na Irmã Celeste e nos voluntários que

tentavam alimentar toda a gente.

Hoje apareceu, como já tem vindo a aparecer, a primeira criança que vejo como

utente do Refeitório: uma menina com cerca de cinco anos, a Natália, neta do senhor

Septan. – É interessante ver como fala com os senhores russos, como se senta e

come junto deles e é quase “protegida” de forma carinhosa pelos senhores russos

em relação aos restantes utentes e à confusão que pode existir no Refeitório.

Dia 3.1.2017 – 20ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei intencionalmente depois do almoço (13h30) com o objetivo de

realizar a primeira entrevista.

O ambiente estava muito animado; os noviços tinham levado “Champomy” por

ser ano novo e os utentes estavam contentes de poderem beber “champanhe” à refeição.

Fiquei algum tempo a ajudar a tratar da loiça e depois perguntei à Irmã Celeste

se me podia indicar alguém que fosse ficar ainda um bocadinho no Refeitório e que não

se importasse de falar comigo. A Irmã indicou-me o Marcelo, foi ter com ele e

perguntou se ele me podia ajudar num trabalho para a faculdade respondendo a algumas

questões, ao que ele disse que claro que teria todo o gosto em ajudar.

Para fazer a entrevista fomos lá para fora para uns banquinhos (espaço sugerido

por Marcelo) e enquanto caminhávamos fui explicando o tema do trabalho e o porquê

de querer falar com ele; disse também que o mestrado era na área da Sociologia.

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Respondeu que já tinha ouvido algumas em conversas que eu estaria na faculdade mas

que tinha achado melhor não se pronunciar, disse que tinha muito interesse na área da

Sociologia, embora só soubesse um pouco que aprendeu no início do curso de Direito.

Durante a entrevista não manteve qualquer tipo de contacto visual; olhava

apenas para a Igreja que estava à nossa frente ou para o vazio; sempre que tocava o sino

para dar as horas Marcelo parava de falar e benzia-se; quando o questionei acerca dos

objetos que trazia consigo no dia-a-dia falou da mochila que tinha nas mãos e fez

questão de abrir a mochila e mostrar o que tinha no seu conteúdo; viu-se pela forma

como as mãos tremiam, pelas pausas e pela expressão séria, emocionada e quase de uma

revolta impotente, que o tema “relações” no geral e “as filhas” em particular o afetam

bastante, tal como quando fala dos albergues em que vive/já viveu e na situação social e

política vivida no Brasil.

Dia 4.1.2017 – 21ª ida ao voluntariado

Entrevista a Francisco. Levou a ideia de entrevista muito a sério não deixando

ninguém falar perto dele para que não perturbasse a gravação. A entrevista decorreu no

Refeitório na mesa onde se senta habitualmente. Ficou claramente afetado ao falar de

temas como as relações, a família, o futuro e a sua situação de pessoa sem-abrigo.

Houve momentos de silêncio, de inquietação, de não resposta às questões. Depois da

entrevista ficou nervoso, a pensar alto.

Dia 6.1.2017 – 23ª ida ao voluntariado

O senhor João refere-se a si e à sua irmã como sendo um casal à medida que

relata algumas histórias como a frequência de um colégio de freiras e a partilha de casa

já em idade adulta. Fala da irmã com algum ressentimento misturado com orgulho.

Dia 10.1.2017 – 25ª ida ao voluntariado

Entrevista a Isabel S. realizada no escritório do Refeitório.

Dia 12.1.2017 – 27ª ida ao voluntariado

Há um grande aumento do número de utentes a irem, de facto, ao Refeitório.

Como o tempo arrefeceu chegam mais cedo do que antes. Tentei falar com o senhor

João mas ele não quis dizendo que iria ser apenas estar a repetir histórias que eu já tinha

ouvido e que a história dele não tem interesse para mim.

Dia 13.1.2017 – 28ª ida ao voluntariado

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Situação interessante: o senhor Marcelo ia a uma entrevista (de trabalho?) e

estava a reunir um conjunto de roupa mais formal para que fosse “levado a sério” e

fosse apresentável, pelo que estava de blazer a ensinar ao senhor Lincoln e restantes

utentes a fazer os diferentes nós de gravata que conhece.

Os utentes pensam que sou advogada, psicóloga, assistente social, sem que

eu nunca lhes tenha dito tal coisa, o que leva a pensar nas questões da

aprendizagem, sendo o que um diz repetido e alterado para os outros, passando,

assim, uma mensagem que, apesar de ser errada, se propagou.

Dia 16.1.2017 – 29ª ida ao voluntariado

Hoje a Irmã Celeste já não estava no Refeitório, foi para França para uma

conferência sobre refugiados.

Chegou um novo utente, um refugiado sírio (?) que só fala inglês e queria

almoçar no Refeitório. Foi interessante ver os olhares dos outros utentes para com o

refugiado num misto de desconfiança e curiosidade. À hora de almoço foi também ver o

processo de aprendizagem da ordem e dos comportamentos do Refeitório durante o

almoço.

Dia 20.1.2017 – 30ª ida ao voluntariado

Hoje foi um dia muito caótico. Foram muitos utentes, os voluntários estavam

pouco agilizados e os utentes estavam particularmente agitados/carentes. O senhor

Nicolay estava um pouco alterado, chegando a abraçar-me. O senhor Dumitru dizia que

uma das voluntárias era minha mãe e estava muito chateada com ele, tendo repetido isto

o almoço inteiro, chamado por mim e agarrado o meu braço até eu ter de me chatear

com ele para que parasse.

Temos um novo utente nepalês.

Dia 23.1.2017 – 31ª ida ao voluntariado

Hoje foi um dia igualmente caótico. Muitos utentes, voluntários pouco

agilizados e grande confusão na entrega das caixas e dos lanches. Muitos pedidos

especiais e reclamações de não gostarem da comida ou do que ia na caixa.

Dia 6.2.2017 – 34ª ida ao voluntariado

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Conversa com Francisco sobre o novo sítio onde vive. Agora, em vez de viver

na estação do Oriente, vive numa fábrica abandonada com um “colega de quarto” –

Expressão interessante tendo em conta que uma fábrica abandonada e a

continuidade da situação de pessoa sem-abrigo não implicariam à partida a ideia

de um “colega de quarto”.

Dia 10.2.2017 – 35ª ida ao voluntariado

Hoje estive algum tempo a conversar com dois rapazes nepaleses que

começaram a ir ao Refeitório há pouco tempo. Falámos em inglês porque, apesar de já

estarem em Portugal há 2 anos, dizem que a língua é muito diferente, é como se eu

tentasse aprender chinês… A conversa começou com eles a mostrarem a bíblia em

nepali (a língua que falam), falaram das reuniões que têm numa escola primária nos

Anjos para rezarem a missa em nepali porque nos outros sítios não percebem nada do

que é dito. Falámos também acerca das diferenças entre as várias culturas, falaram-me

da cultura na religião, na língua, na comida, no ensino. Disseram-me que estiveram em

Copenhaga, um deles fez Economia e Gestão com boas notas e gostava de continuar a

estudar na faculdade de Marketing mas como não é da Europa ficava muito caro, que

nós europeus temos muita sorte porque a nossa educação é barata e temos muitos

apoios.

Este rapaz estava muito contente e com muita energia a falar sobre a educação e

de como tinha gostado de estudar. No fim da conversa disseram que tinha sido uma boa

conversa.

Dia 13.2.2017 – 36ª ida ao voluntariado

Hoje quando cheguei o Nicolay estava muito feliz, abraçou-me e pela primeira

vez deu-me um beijo na cara o que, estranhamente, não me fez impressão ou confusão.

Aparentemente, com a ajuda das voluntárias, a situação dele está a resolver-se: já

trabalha, está a fazer os seus documentos e tudo parece estar a melhorar para ele e para

o Iury que também anda mais tranquilo e feliz.

Um dos rapazes nepaleses hoje estava com muitas dores de dentes e lá lhe

arranjei um comprimido para tomar depois de reforçar que tinha de comer primeiro.

O senhor Marcelo leu-me uma oração que escreveu depois de um pesadelo que o

deixou em sobressalto e contou-me que tinha encontrado um comprador para a sua casa

no Brasil.

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Estive a falar com a Irmã Celeste sobre algumas histórias e o Francisco ia

ouvindo pela janela que às vezes fecha para nós não ouvirmos o que falam entre eles.

Servimos o almoço tendo em conta os vários pedidos de cada um, situação que

me deixa sempre desconfortável.

Dia 17.2.2017 – 37ª ida ao voluntariado

Hoje estive a falar com o Nicolay que já tem “autorização” para entrar dentro da

cozinha e já fica a ajudar com a loiça – Penso que é sinal de que, de facto, as coisas

estão a começar a encaminhar-se, seja a nível de ter um trabalho fixo, seja a nível

da documentação e, provavelmente, tanto ele como o Iury em breve deixarão de

ser pensados como pessoas sem-abrigo ou sem teto; talvez sejam os dois primeiros

casos que acompanho ao longo deste percurso evolutivo.

Falei, então, com o Nicolay sobre o seu trabalho à noite, sobre a dificuldade que

tem em dormir de manhã e sobre os prejuízos da falta de sono; ele parecia cansado mas

bem por ter um trabalho.

Também falei com o senhor Casimiro enquanto apanhava sol, queria saber se

moro sozinha, onde moro, se estudo e, como me tenho vindo a aperceber que se não lhe

responder é pior, acabei por inventar as respostas às perguntas que me foi fazendo.

Hoje foi um dia com muita gente e, como estava calor, para sobremesa havia

fruta e gelado o que gerou alegria e algumas tentativas de ficar com dois gelados.

Durante o almoço continuaram os pedidos especiais seja de pão branco como do tipo de

comida.

Hoje veio um senhor novo romeno que, como não foi logo servido, disse que

éramos racistas adotando uma postura claramente defensiva.

Dia 20.2.2017 – 38ª ida ao voluntariado

Hoje estive novamente a falar com o Nicolay que estava claramente muito

cansado do trabalho que tem à noite. Falei também com uma das Irmãs do Colégio e

com uma das voluntárias que muitas vezes têm o papel de me manter na realidade em

relação ao que os utentes me vão contando, o que me deixa numa posição um pouco

ambígua entre o acreditar no que os utentes me dizem e as chamadas de atenção sobre

nem tudo o que me dizem ser “verdade” porque alguns dos utentes ou por vergonha ou

por problemas mentais vão alterando a sua história.

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Também apareceu lá o senhor Dumitru com o seu cão – um pastor alemão com

cerca de um ano extremamente bem tratado –, foi apenas buscar água para o cão e

apresentá-lo.

Hoje à hora de servir almoço houve muito mais contacto físico da parte dos

utentes comigo: uns agarravam-me os ombros a dizer olá, outros o braço, outros davam-

me abraços, hi5’s, fist bumps, mais do que normalmente acontece hoje estavam muito

dados aos afetos e muito sorridentes e brincalhões.

Dia 24.2.2017 – 39ª ida ao voluntariado

Hoje quando cheguei não estava quase ninguém de utentes no Refeitório, talvez

por estar bom tempo, talvez por ser época do Carnaval…

Falei com o Nicolay e pedi-lhe ajuda para o meu trabalho perguntando se lhe

podia fazer algumas questões simples, nada de mais, para depois pôr no meu trabalho

para a faculdade. Ao início estava apreensivo por não saber o que lhe poderia querer

perguntar para o meu trabalho, depois aceitou mas encarou como sendo uma brincadeira

e foi só quando fiquei séria e lhe disse que era importante para o meu trabalho final do

mestrado e que também já tinha falado com o Francisco e o senhor Marcelo é que ele

disse que então ia dar “respostas a sério” e claro que podia contar com ele. Ficou para

terça-feira depois do almoço.

A Irmã pediu-me para ir limpar os tupperwares e o Nicolay veio imediatamente

ajudar-me insistindo como sempre faz que eu devia era estar na escola e não ali.

Acabados os tupperwares a Irmã foi almoçar e começaram a chegar mais utentes

e fiquei a falar com o Francisco que estava muito feliz porque tinha recuperado a

namorada (20 anos mais nova que ele) e além de ter contado detalhadamente a forma

como ela lhe apareceu a meio da noite dentro dos seus lençóis e como fizeram as pazes

e ela passou a ser sua e a estar “marcada” por si, acrescentou algo que já há algum

tempo me tem vindo a dizer mas nunca de forma tão explícita: disse-me que tudo só

tinha sido possível pela forma como eu o ajudei com a nossa conversa, a importância

que teve para ele o facto de eu calmamente lhe ter perguntado se podíamos falar, de eu

lhe ter feito questões sobre a sua vida e o seu percurso, de eu o ter ouvido e sem ter dito

muito o ter deixado a pensar e a querer mudar e ser melhor pessoa. Disse que foi como

se Deus tivesse agido através de mim para o ajudar a mudar e que o resultado de tudo

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isso era ele agora estar tão feliz e com a sua namorada – Questão da importância do

olhar, da atenção e do afeto/afetar.

Hoje houve muitos pedidos especiais, quase podia dizer que houve um prato

diferente para cada utente, situação que pode gerar o mau hábito de pedirem sempre

comida especial…

O Nicolay e o Iury ficaram a ajudar a servir a comida e a lavar a loiça comendo

só no fim.

Veio muita gente almoçar, foi muito caótico porque havia poucos voluntários.

Dia 27.2.2017 – 40ª ida ao voluntariado

Hoje quando cheguei já lá estavam alguns utentes mas não falámos muito

porque fiquei a dobrar sacos de plástico conforme foi pedido pela Irmã.

Entretanto falei com o Iury e o Nicolay que tinham de se despachar porque iam

trabalhar depois do almoço.

Quando a Irmã estava a ir almoçar apareceram três senhores angolanos novos, o

que me permitiu assistir ao acolhimento destes novos utentes de perto: vinham com um

documento da JRS a sinalizar que poderiam ir ao Refeitório e foi-lhes dito que não

perdessem esse papel e dessem os seus documentos de identificação (no caso os

passaportes) para que fossem fotocopiados para depois serem devolvidos – Pergunto-

me que tipo de explicação/justificação terá aqui a JRS para que tenham dado os

documentos de identificação (uma das coisas mais importantes das pessoas sem-

abrigo) assim tão prontamente a uma pessoa desconhecida… - De seguida, foi-lhes

explicado o horário do Refeitório, as refeições, as instalações e as possibilidades de

usufruto deste espaço acabando com “mas como vocês vêm da JRS já devem saber isto

que vos estou a dizer”.

A Irmã foi almoçar e fiquei a falar com uma das voluntárias sobre o Carnaval e

os próximos passos do meu trabalho, nomeadamente quem é que eu pretendia

entrevistar para o trabalho. Quando disse que gostava de falar com o Iury a resposta foi

a de que irá ser algo muito complicado porque a história dele é muito triste e ele

raramente se abre com alguém porque tem vergonha da sua história…

Houve uma pausa de silêncio e a voluntária contou-me a história do Iury: tem 30

anos, vivia com a sua mulher na Ucrânia de forma estável economicamente e vendeu

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tudo o que tinha para vir para Portugal com a mulher, tendo entrado legalmente no país.

Estando cá há apenas duas horas sofreu um acidente no qual partiu a coluna; teve de ser

operado de urgência e este um mês em recuperação. Quando saiu do hospital descobriu

que a mulher se tinha casado com um português e iniciou-se uma grande revolta: estava

a viver num albergue em Xabregas com péssimas condições cujos utentes são tratados

como animais e, como se recusava a tomar os medicamentos (porque na Ucrânia era

desportista, praticava kickbox), foi expulso do albergue e passou a dormir na rua.

Quando chegou a primeira vez ao Refeitório ainda tinha pontos nas costas e não falava

com ninguém nem em português nem em inglês, o que foi bastante complicado ao

início. Agora, segundo esta voluntária que o acompanha nas consultas, já está mais

calmo apesar de ter descoberto que tem hepatite C – o que na altura acordou a revolta

contra a ex-mulher. No entanto, tem muita vergonha da sua história por isso raramente

fala disso. Esta voluntária contou-me ainda que o Iury lhe tinha dito que nunca passava

fome uma vez que em caso de fome havia muitos pombos no sítio onde dormia podendo

matá-los e alimentar-se deles…

A Irmã chegou e servimos os almoços. Hoje chegou ainda mais um senhor novo,

o David, amigo do Vladimir. Hoje houve Pepsi ao almoço, uma garrafa para cada um, o

que os deixou felizes e fez com que nenhum quisesse ficar sem aquilo que lhe era

devido, exigindo a sua Pepsi. Hoje não houve reclamações da comida ou pedidos

especiais.

Dia 28.2.2017 – Entrevista a Nicolay

A entrevista realizou-se num café na estação de metro do Campo Grande.

Nicolay insistiu que não queria falar no espaço do Colégio e que me queria pagar um

café. Durante a entrevista sempre que falávamos do espaço onde vivia fazia “shiu”

depois de responder, o que me deixou a pensar que não haveria de ser propriamente a

forma mais legal de habitação. Depois da entrevista insistiu em pagar-me ainda mais um

café e contou-me que por dia consome cerca de 17-18 cafés e que não dorme há 3 dias

por causa do trabalho. Quando terminámos o café disse que ia trabalhar agora às

15horas e só saía às 6horas da manhã.

Dia 31.3.2017 – 41ª ida ao voluntariado

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Depois de um mês sem ir ao Refeitório por motivos académicos (Doutoramento)

voltei a ir mas para recomeçar fui só à hora de almoço para servir os almoços e lavar a

loiça.

Notei algumas diferenças no ambiente do Refeitório: estavam mais utentes e

alguns utentes novos, um senhor Nuno, um senhor Dodi; alguns utentes estavam

diferentes ou porque tinham cortado o cabelo ou porque estavam mais alegres ou porque

não estavam bem mentalmente, como o caso do senhor Luís.

O senhor Ivan, o Marcelo e o Francisco ficaram contentes de me verem e

perguntaram como é que eu estava.

Servi os almoços e chegou o Iury. Vinha ajudar, não queria almoçar, veio ao

Refeitório porque é o seu “lugar seguro” disse ele a uma das voluntárias. Está feliz

aparentemente e a dormir num centro de recuperação/reinserção – Ideia: falar com ele

por já ter sido sem-abrigo e agora estar em processo de recuperação.

Fiquei a lavar a loiça e depois fui embora.

Dia 3.4.2017 – 42ª ida ao voluntariado

Quando cheguei ao voluntariado estava lá o Francisco e o Marcelo; um pouco

depois chegou o Jallah e foi pôr a mesa. O Marcelo contou-me que a sua situação com o

Brasil não tinha melhorado, ia ter de ir lá para uma reunião de 5-10 minutos para não ser

dado como tendo abandonado o seu trabalho. Falou-me da dificuldade de ter perdido a

sua brasilidade porque tem sido melhor acolhido e ajudado por Portugal do que pelo seu

país de origem e de como tem sido um processo muito lento e complicado.

O Francisco falou-me de como estavam as coisas com a sua namorada e com a

sua vida no geral.

Quando chegou o senhor Ivan pediu-me que o ajudasse a preencher os papéis do

passe porque ele não percebia bem aquilo que era pedido.

Entretanto a Irmã foi almoçar e os utentes foram chegando.

Servimos os almoços, distribuí as caixas e depois fui embora.

Fiquei a saber que o Iury, o Nicolay e um dos senhores nepaleses estão todos no

centro de reinserção/recuperação.

Dia 10.4.2017 – 43ª ida ao voluntariado

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Hoje quando cheguei ao Refeitório já estava a maioria das coisas feita e tive um

desentendimento com a Irmã Celeste.

Esperei pela hora do almoço enquanto falava com o Marcelo e o Francisco e

depois servi os almoços e entreguei as caixas.

Hoje veio uma senhora nova para passar a usufruir dos serviços do Refeitório e

pude observar como é a receção aos novos utentes. A senhora vinha com um papel da

JRS assinado por uma das assistentes sociais que comprovava que poderia ter acesso ao

Refeitório e a Irmã perguntou se na JRS já lhe tinham explicado todo o funcionamento

do Refeitório e as regras, ao que a senhora respondeu que sim, tinham-lhe dito que o

almoço era às 13horas. A Irmã acrescentou que domingo estava fechado, que sábado só

abria das 10horas às 11/11h30 e que poderia levar no sábado algo que precisasse para

domingo e que no Refeitório também poderia tomar banho e ter acesso a roupa lavada.

Também foi interessante hoje conversar com dois rapazes novos, angolanos, o

Calisto e o outro que não cheguei a saber o nome e que me falaram sobre a sua procura

de emprego, nomeadamente sobre como funciona a JRS e o seu apoio nessa área, que se

pode resumir, nas palavras de um deles, do seguinte modo: “Aquilo abre às 10horas, tu

chegas cedo e ficas à espera que te chamem durante muito tempo. Depois dão-te uma

lista, um telefone e dizem «Tens a lista, o telefone, agora liga» e tu ficas a ligar até

conseguires." Dizem ser uma perda de tempo. Procuram trabalho na área da restauração

para terem um contrato ou uma promessa de contrato e assim conseguirem os

documentos. É um ciclo em que muitos dos utentes se encontram e em relação ao qual

alguns já nada fazem. Estes dois rapazes, agora que já têm passe de metro, têm andado

por Lisboa toda à procura de trabalho.

Dia 14.4.2017 – 44ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei mais cedo do que o habitual e fiquei a conversar com a Irmã

enquanto ela fazia o almoço. Tratei de separar as bananas e pôr a loiça na máquina.

Quando cheguei estavam só lá o Nicolay e o Iury, sendo que o Nicolay não

almoçou porque tinha de ir trabalhar mas tivemos tempo para falar. Disse que já não me

via há algum tempo, perguntou onde é que eu tinha estado e eu respondi-lhe que tive de

me ausentar por um mês por causa da preparação para o Doutoramento. Ele ficou

espantado e disse que eu estudo muito e que devia começar a pensar em trabalhar.

Perguntou-me depois se eu já tinha falado com toda a gente que precisava para o meu

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trabalho (colocando o braço em cima dos meus ombros num gesto de afetividade). Eu

disse-lhe que não, que estava a ser difícil falar com as pessoas e ele chamou um dos

seus amigos, o Igor, e disse-lhe para falar comigo e disse-me para explicar ao Igor o que

eu precisava. Assim o fiz e marcámos uma entrevista para terça-feira que terá de ser

mantida numa linguagem muito simples porque o Igor não fala muito português.

Fui preparar a caixa com o almoço do Nicolay e entreguei-lha. Ele agradeceu e

riu-se um pouco com uma piada que tem em relação a mim. Antes de ir embora disse

que quando não tivesse trabalho aparecia no Refeitório para conversar mais um

bocadinho comigo porque gostava de conversar comigo e deu-me um abraço e um

beijinho na cabeça como sinal de afeto.

Voltei a ajudar a Irmã, a outra Irmã e a Viviana (que é uma utente mas hoje

estava como voluntária a ajudar a tratar do almoço). Fui tratar da loiça e entretanto

chegaram os dois rapazes angolanos que ficaram a falar com a Irmã e a Viviana sobre a

barba e a sua pele. Seguiram da pele para a diferença entre a pele dos homens e das

mulheres, dos pretos, dos “latons” (mulatos) e dos brancos, para as questões do racismo

ser mais forte nos “latons”, para mostrarem fotografias da família e falarem das

semelhanças e da cor da pele.

Fui tratar do pão e quando voltei à conversa estavam a falar do Trump e da III

Guerra Mundial. Disse-lhes que esperava que não acontecesse pois seria chamada para

combater e eles ficaram espantados porque na Angola só os homens é que iam à tropa e

combatiam em guerras. Começaram os três a falar do seu país e a imagem que passaram

foi bastante negativa. Falaram da obrigatoriedade de ir à tropa, tendo um deles ido e o

outro sendo considerado “faltoso” por não ter ido, sendo que acabou por “fugir” para cá;

falaram das mortes que há lá, da pobreza, dos preços excessivos de bens básicos como o

leite face ao álcool que é muitíssimo barato, o que resulta bem em tempo de eleições,

segundo eles, porque é um “povo de bebedeiras”; falaram das tentativas de

manifestações para mudar as coisas mas que rapidamente dispersam devido à força

policial. Falaram ainda das questões climatéricas e ainda teriam falado mais das más

condições do seu país de origem se não tivesse chegado a hora de servir os almoços.

Perto do momento de servir os almoços chegou o senhor Agostinho que me

perguntou pela Isabel porque lhe tinha dado o seu currículo na esperança de arranjar

trabalho na área da metalúrgica que era a sua especialidade. Disse-lhe que a Isabel não

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estava. Chegou também o senhor Casimiro que perguntou por mim e chegou ainda o

Francisco.

Servimos os almoços, entreguei as caixas e os lanches e fui embora.

Dia 17.4.2017 – 45ª ida ao voluntariado

Quando cheguei hoje ao Refeitório estavam lá a Viviana e o Nicolay a ajudarem

a Irmã a descascar alhos e cebolas. Fui ajudá-los enquanto o Francisco assistia ao

trabalho dos outros – motivo para a Irmã dizer ao Nicolay que ele é o “único que se

aproveita dali”, ele e o Iury, por isso é que ela lhes pede ajuda. O Nicolay perguntou

pelo meu trabalho e pela Páscoa e eu retribui as perguntas, disse-me que passou a

Páscoa a trabalhar.

Enquanto a Viviana e o Nicolay acabavam de descascar as cebolas apareceu um

senhor novo, o senhor António. Trazia um “papel da técnica” que apesar de ter data de

março ele insistiu que a técnica tinha dito que ele podia entregar na mesma. Aproveitei

para perguntar à Irmã como funciona a autorização/admissão de novos utentes e ela

explicou-me que eles em princípio devem vir sempre acompanhados de um papel

preenchido pela JRS, no caso de serem estrangeiros, ou por uma técnica, caso sejam

portugueses. Diz que muitos invertem o processo e que aparecem primeiro no Refeitório

e só depois é que são encaminhados para as técnicas que devem descrever

resumidamente cada situação de cada utente nessa declaração que emitem

demonstrando a necessidade do utente usufruir do Refeitório. A Irmã diz também que é

uma questão de segurança e organização para se saber que o utente está a ser

acompanhado. Perguntei-lhe, ainda, se o regulamento do Refeitório era o conjunto de

regras que estava colado na parede. Disse que sim e tirei uma fotografia a esse

regulamento.

Depois das tarefas feitas o Nicolay agarrou-me num braço e levou-me até ao

café no fim da rua, apesar de dizer e demonstrar que não queria ir nem queria café.

Insistiu e levou-me por um braço com ele dizendo que eu devia beber um “suminho” e

comer um “bolinho”. Aproveitei para lhe perguntar pelo trabalho e pela questão dos

documentos. Disse-me que lhe tinham roubado tudo e que está à espera que chegue o

passaporte. Já está à espera há 18 anos e diz que como esteve sem título de residência

tanto tempo vai ter de pagar uma multa de 900€. Diz que a culpa de tudo é do SEF e que

sempre que é apanhado pela polícia já tem um cartão com o nome e o número de

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telefone de dois agentes da polícia do Campo Grande – Penso que este café não foi só

um gesto ou uma tentativa de demonstração de afeto mas também uma forma de

continuar o discurso/conversa que tinha tido na entrevista que lhe fiz na terça-

feira de Carnaval. De certa forma, todos aqueles com quem falei para o trabalho

fazem questão de me ir mantendo a par da evolução das suas

situações/problemática com que se deparam: o Francisco fala-me da mudança do

sítio onde dorme (da estação do Oriente para uma fábrica abandonada, há já

quatro meses), bem como das suas relações de amizade e amor; o Marcelo fala-me

da dificuldade em vender a casa que tem no Brasil, bem como da obrigatoriedade

de se apresentar para uma avaliação médica no Brasil, situação que gerou uma

grande revolta chegando à negação da sua cidadania brasileira, preferindo e

querendo obter a cidadania portuguesa; o Nicolay fala-me da questão dos

documentos e do seu trabalho.

Acabado o café regressámos ao Refeitório e os ânimos estavam exaltados: um

dos utentes tinha tentado agredir um outro utente por causa da ordem dos banhos e a

Irmã teve de intervir e chamar a segurança e deu ordens para que todas as portas

ficassem trancadas até ao seu regresso e que não se desse nada aos utentes, nem toalhas.

O utente que queria agredir o outro utente regressou e depois de uma conversa com a

Irmã e a Isabel foi embora. Os ânimos acalmaram e servimos os almoços. Entreguei as

caixas e fui embora.

Dia 21.4.2017 – 46ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei um pouco mais tarde ao Refeitório e quando cheguei estava lá a

Irmã, uma rapariga com cerca de 10-12 anos e alguns utentes: o senhor Mário, o Jallah,

o Galvino (que regressou aparentemente ao Refeitório) e o Nicolay.

Quando cheguei, ainda não tinha entrado no Refeitório e o Nicolay já estava a

falar comigo e a querer saber de mim.

Estive a conversar com a Irmã sobre a forma como vai o trabalho e a arrumar as

caixas e depois o Nicolay recebeu um telefonema do seu “patrão” a pedir que fosse

trabalhar hoje à 1hora da manhã. Terminou o telefonema bastante revoltado. Diz que

recebe apenas 5€ à hora seja um trabalho durante o dia ou durante a noite mas que

pagam cerca de 10/12€ ao seu patrão por hora e que ele apenas dá 5€ aos seus

empregados. A Irmã perguntou a que horas acabava o trabalho e ele disse que não sabia,

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que acabava quando acabasse e que se ele não fosse chamavam outro. Ficámos os três a

discutir sobre essa questão de um enriquecimento de uns e do empobrecimento de

outros, bem como da forma desumana como estas pessoas empregadoras se

aproveitavam de quem está sem documentos e desesperado para arranjar trabalho

porque caso um não fosse trabalhar tinham muitos outros a quem chamar.

Depois desta revolta tentou novamente que eu fosse beber café com ele e eu

tornei a recusar, não é uma situação com que me sinta bem e achei melhor distanciar-me

apesar de toda a ajuda recebida em relação às entrevistas e esperando não ter causado

mau ambiente no futuro. Ele não aceitou que eu tivesse recusado e continuou a insistir

que íamos beber um “cafezinho” até que a Irmã interveio e disse que eu não podia

porque era comprometida, ao que ele respondeu “também não seria para casar…” e

depois deixou de insistir indo embora do Refeitório durante bastante tempo.

A Irmã esteve a contar-me que ontem houve uma grande confusão no Refeitório

que resultou na expulsão permanente de um dos utentes, o senhor Norberto. Contou-me

que ele e o senhor Luís se tinham pegado um com o outro incluindo cadeiras nesse ato

de violência que decorreu no momento em que o Refeitório estava cheio com os

almoços a serem servidos. Relatou-me tanto o conflito como o papel de cada

interveniente: uma das voluntárias levou imediatamente o carrinho com a comida para

dentro e recolheu todas as facas; um dos voluntários mais jovens recolheu-se no

escritório para fugir à confusão; os noviços tiveram de separar os dois utentes que

estavam numa luta aguerrida; a Irmã pôs um deles dentro da cozinha para separar os

dois, acabando esse utente que foi para a cozinha por pular a janela para voltar ao

conflito. No fim foi necessário chamar a polícia e os documentos do senhor Norberto

foram enviados “lá para baixo” (provavelmente para a entrada do Colégio como aviso

de não deixarem que entre nas imediações; ou então para as assistentes sociais para

tomarem conhecimento do sucedido), deixando ele de poder frequentar o Refeitório.

Aparentemente todo este conflito começou porque o senhor Luís tinha

alimentado o cão do senhor Norberto há uns dias, situação que causou grande confusão

ao senhor Norberto que estima muito o seu cão e só ele o pode alimentar, a partir daí

teria sempre havido um clima de tensão até que ontem terá sido a gota de água.

Perguntei à Irmã porque é que tinha sido só o senhor Norberto a ser expulso

quando estava também o senhor Luís no conflito. Disse-me que o senhor Luís é pobre

mesmo, enquanto o senhor Norberto se não for comer ali tem mais onde se alimentar.

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Também questionei o papel dos outros utentes no meio de tanta confusão. Diz que uns

ficaram quietos, o Iury interveio para separar os dois que lutavam e que no fim lhe

disseram que ela tinha sido muito forte e agido muito bem.

Entretanto a Irmã foi almoçar e chegou o senhor Ivan com o seu saquinho para

eu encher com pão e bolos e pediu-me uma caneta para apontar algo que não entendi o

que seria. Quando veio devolver a caneta disse spasibo, explicando que era como se

dizia obrigado em russo. Repeti a palavra e perguntei-lhe como se dizia “de nada” ou

“you’re welcome” ao que ele respondeu que não existe, não é preciso lá.

Ligaram da entrada a dizer que estavam a ver o Eudízio (o utente que tinha

causado confusão na segunda-feira por estar embriagado) a circundar os prédios ao pé

do Colégio com uma garrafa na mão e que parecia um pouco alterado, se o deviam

deixar entrar ou não. Disse ao senhor da entrada que a Irmã não estava porque tinha ido

almoçar e devia voltar daí a cerca de 20 minutos mas que se o Eudízio parecesse estar

bem que deixasse entrar mas se parecesse alterado que não permitisse a entrada no

Colégio. – Esta situação dos conflitos no Refeitório tem vindo a deixar uma

sensação de falta de segurança. Esta semana aconteceu por duas vezes momentos

de conflito - segunda-feira e quinta-feira – deixando tanto os utentes como os

voluntários em sobressalto. É intrigante o porquê de terem acontecido estes

conflitos só agora e o que os motivou e a forma como foram resolvidos os dois de

forma diferente. Revela um pouco o que é importante para estas pessoas sem-

abrigo ao ponto de porem em jogo a ida ao Refeitório – espaço onde podem contar

com alimentação, banho, roupa e relações sociais mantidas, bem como com algum

tipo de proteção associado ao acompanhamento por parte das técnicas e das

voluntárias.

Chegaram também o outro senhor Ivan, o Igor e mais um dos senhores

ucranianos que aparentemente conduz um carro (com bom aspeto e recente) e dá boleia

ao senhor Ivan por este ter mobilidade reduzida (anda sempre com uma muleta).

Hoje houve grande agitação com o grupo dos senhores ucranianos. Falavam

entre eles com caras muito zangadas e numa língua que não reconheci (presumo que

seja ucraniano), apontavam para papéis e para os telemóveis, liam sms’s uns aos outros,

sempre num tom de voz conflituoso…

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O Igor veio falar comigo. Foi uma situação nova. Ao início ele não sabia muito

bem o que me vinha dizer e parecia um pouco atrapalhado mas lá acabei por perguntar

como ele estava hoje, disse-me que mais ou menos e quando perguntei o motivo ele

limitou-se a encolher os ombros. Falámos do programa sobre animais da National

Geographic que estava a dar na televisão que ele disse ser “impróprio” para passar na

televisão por causa das crianças que poderiam assistir. Mostrou-se particularmente

preocupado com a rapariga pequena que tinha estado no Refeitório de manhã, se ela

tinha assistido ao programa, se não lhe faria mal ver aquelas imagens. Disse-lhe que a

rapariga já tinha ido embora e que não tinha assistido a nada mas que pelo menos cá em

Portugal aquele tipo de programas passava abertamente na televisão. Ficou descansado

e calado a olhar para mim enquanto acenava com a cabeça. Depois iniciou conversa

novamente mas desta vez a falar do conflito do dia anterior. Disse que eles eram os dois

malucos, que a culpa tinha sido do senhor Norberto, o “marquês”, que tinha tomado

“picada drunfada” (portanto presumo que estaria a dizer-me que o senhor Norberto

estava sob efeito de drogas) e que a Irmã tinha ficado muito chateada com eles porque

ninguém a ajudou e a tinham deixado sozinha. Diz que não foi bem assim e que às

vezes se chateia com a Irmã porque lhe pede sabão e ela tendo o sabão diz que não tem

e não lhe dá porque ele se “porta mal” – ele concorda com essa afirmação, diz que

quando se chateia com a Irmã também não fica lá muito bem, que não são só os dois

utentes do conflito do dia anterior que eram malucos, que ele também era às vezes,

quando se chateava e depois ia para as picadas. Disse que de facto às vezes ele também

não estava bem e se portava mal como a Irmã dizia. Ficou pensativo. Para o sossegar

disse-lhe que toda a gente às vezes se chateia e se porta menos bem mas o importante é

entender isso e passar a portar-se bem. Avisou-me que vinha aí a Irmã e perguntou se

ela fazia orações muitas vezes – Como o português dele ainda não é muito bom e a

pergunta foi tão espontânea ao início não entendi o que queria dizer mas é

interessante que este tipo de pensamentos lhe ocorram e que os partilhe comigo.

Mais uma vez noto a importância para estes utentes do Refeitório de haver alguém

que os ouça, que lhes pergunte pela sua vida, pelas suas ambições, pelo seu futuro,

pelo passado, que queira saber deles enquanto pessoas e não como um conjunto de

sem-abrigo, que disponha de tempo para ouvir o que os preocupa e o que escolhem

partilhar acerca das suas vidas. – Disse-lhe que sim, que a Irmã deve rezar muitas

vezes ao que ele me respondeu que ele não, só quando as coisas estão mal é que reza

dizia rindo-se.

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A Irmã chegou e servimos os almoços. Pediram muito pão, o que já era

expectável porque o almoço tinha muito molho. Pediram lanches especiais, quase como

quem me ensinava como escolher os lanches para cada um ou então como dando um

conselho ou fazendo um pedido “às escondidas” da Irmã.

Um momento interessante foi quando chegou o senhor Rogério que anda sempre

de phones a ouvir música. Chamei-o várias vezes para lhe perguntar onde devia colocar

o seu prato, qual seria o seu lugar. De todas as vezes não obtive resposta. Um dos

utentes que estava perto dele puxou-lhe a manga do casaco para informar que eu o

estava a chamar e ele respondeu: “Eu sei, eu ouvi”. Esta sua defesa de como está a ouvir

música à partida não nos ouve logo não tem de nos responder é interessante; o poder de

escolha de ignorar alguém apesar de ter ouvido as várias chamadas.

Entreguei as caixas e os lanches e fui embora. Encontrei o senhor Ivan e o outro

senhor Ivan lá fora que se despediram de mim a sorrir, dizendo também algo que não

entendi bem.

Dia 28.4.2017 – 47ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei novamente um pouco mais tarde ao Refeitório. Quando cheguei

estava lá uma senhora que costuma ir ajudar de manhã e a Irmã que me disse que iria

ficar a dobrar sacos. Já estavam alguns utentes: o senhor Mário, o Francisco, o Iury, o

Dody, o Galvino e o Paulo que estava a lavar a loiça enquanto os restantes viam um

programa sobre a vida animal na televisão.

Comecei a dobrar os sacos como a Irmã tinha pedido e, como eram muitos, a

Irmã chamou também o Iury para vir aprender como se dobra os sacos e ajudar-me. Foi

interessante ver a reação do Iury a esta situação de aprendizagem: como era um

processo um pouco complicado e com alguns passos fui explicando calmamente até que

ele me disse primeiro em inglês e depois em português que não era burro. Eu disse-lhe

que sabia que ele não era e que não tinha insinuado isso, estava apenas a ensinar-lhe

uma coisa nova.

Depois começou a enrolar os sacos e disse que pareciam “mortalhas”, brincando

como se estivesse a fumar o saco. Perguntou-me se eu sabia o que eram mortalhas e eu

disse que sim, o que o deixou espantado.

Já quase no fim de dobrarmos os sacos todos chegou um dos rapazes nepaleses e

o Iury chamou-o apenas com gestos dizendo para ele o observar e aprender como se

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dobram os sacos. Executou o processo e depois disse ao rapaz nepalês para fazer no

saco seguinte É interessante como estas pessoas que não falam a mesma língua

partilham o que aprendem uns com os outros sem terem de usar palavras; a língua

aqui não serve de impedimento da comunicação e da aprendizagem que se faz

observando e repetindo.

Uma situação interessante de hoje foi a reação da Irmã e de uma das voluntárias

ao facto de o Francisco entrar pela “porta dos voluntários” quando vai buscar os sacos

com caixas de comida à entrada. A conversa que se seguiu foi a voluntária a perguntar

porque é que ele (o Francisco) entrava por aquela porta quando trazia os sacos com a

comida e a Irmã a dizer que não sabia porquê mas que era assim; a voluntária riu-se e

disse que pronto nesse caso era assim mas que ele deveria entrar pela “porta deles”

Vemos aqui uma situação caricata de separação entre o “eles” pessoas sem-abrigo

utentes do Refeitório e o “nós” equipa de voluntários que se observa a nível físico

na distinção entre os dois tipos de entradas no Refeitório e levanta inquietações

quando um “deles” usa o “nosso” meio de entrada no Refeitório, algo que, à

partida não seria estranho, nunca antes tinha ouvido alguém a levar essa questão

ou a olhar essa situação como problemática mas neste caso vemos então como não

só houve um estranhamento como mesmo uma inquietação face a esta alteração da

ordem de entradas no Refeitório.

A Irmã foi almoçar e eu fiquei a ver um pouco de televisão com os utentes.

Entretanto também chegaram os dois senhores Ivans e mais alguns utentes.

Quando a Irmã e a Isabel chegaram aproveitei ser ainda cedo para começar a

servir os almoços para ir falar com o Galvino para lhe pedir ajuda para o meu trabalho.

Perguntei-lhe se se importaria de responder a algumas perguntas simples para me

ajudar, disse que não lhe tomaria muito tempo e perguntei que dia e hora lhe dariam

mais jeito para falarmos. Disse-me terça-feira depois do almoço, às 13h15 e que me

ajudava sim, embora tivesse ficado um pouco desconfiado e sem entender como poderia

ele ajudar-me no meu trabalho.

Servimos os almoços de forma calma pois estavam poucos utentes. A Irmã disse

que só estavam poucos porque faltavam muitos que estariam atrasados, o que a deixava

chateada É curioso como os almoços passaram de ser servidos pontualmente às

13horas para passarem a ser servidos muito mais cedo, por volta das 12h45 ou

mesmo antes, e, no entanto, a Irmã reage à falta de pontualidade dos utentes.

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Quando acabei de distribuir os almoços, os lanches e as caixas fui embora e vi

como iam chegando cada vez mais utentes e o Refeitório se ia tornando caótico.

Quando saí vi o Galvino e mais alguns utentes a falarem e ele perguntou-me

sobre o que seria a tal conversa para o meu trabalho. Expliquei-lhe sucintamente o meu

tema de estudo e os tópicos da conversa e ele não pareceu muito convencido mas disse

que nesse caso falávamos na terça-feira.

Dia 2.5.2017 – 48ª ida ao voluntariado

Hoje, tal como combinado previamente com o Galvino, apareci no Refeitório às

13h15. Perguntei por ele e expliquei à Irmã que tinha ficado de ir falar com ele para o

meu trabalho às 13h15. A Irmã disse-me que ele já tinha estado no Refeitório, se calhar

estava lá fora. Fui lá fora, procurei e não o encontrei. Regressei ao Refeitório e a Irmã

disse-me que nesse caso se deve ter ido embora.

Foi uma situação bastante desconfortável e frustrante esta perda de uma

entrevista numa fase já avançada do trabalho; levou-me a questionar a

responsabilidade e comprometimento do utente em questão, entre outras coisas;

não deixei de pensar um pouco naquelas definições de alguns autores acerca da

instabilidade das pessoas sem-abrigo, se bem que mesmo as pessoas que não são

sem-abrigo têm momentos de esquecimento e não posso à partida rotular este

utente só por não ter aparecido para a entrevista que tínhamos marcado há mais

de uma semana atrás.

Dia 5.5.2017 – 49ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei ao Refeitório por volta das 11h30. Estava lá a Irmã, a Mariama e a

Isabel, bem como o Francisco. Quando cheguei estive algum tempo a falar com a Irmã

sobre a evolução do trabalho e depois fui tratar de secar a louça com a ajuda do

Francisco que quando chegou disponibilizou-se logo para ajudar.

Ficando o Francisco a tratar da louça fui encarregue de espremer limões.

Enquanto fazia a minha tarefa fui falando com o Francisco que me contava algumas

histórias, cantava algumas músicas para mim ou limitava-se a ficar à janela a passar

tempo.

Quando chegou o senhor Mário chamou-me baixinho a pedir um saco dos

maiorzinhos para levar uns brinquedos que estavam lá fora para os seus netos. Disse-me

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que se fosse pedir à Irmã ela diria que não e por isso estava a falar comigo. Assim o fiz,

dei-lhe o saco e ele voltou com ele cheio de brinquedos Não deixam de ser

interessantes as formas que os utentes do Refeitório têm de escapar à figura

autoritária da Irmã, ou seja, recorrem muitas vezes a mim ou às outras voluntárias

para receberem ou mais comida ou sacos de plástico (que por norma são raros e

não devem ser dados aos utentes) ou lanches especiais (com mais bolos ou com um

tipo de comida que preferem) numa situação muito de interessante ao nível dos

dispositivos de que se servem para obterem um maior proveito da situação em que

se encontram.

Fiquei até à hora de servir o almoço a espremer limões mas aproveitei que

estavam poucos utentes para perguntar ao senhor Mário se poderia falar com ele na

próxima terça-feira por causa do meu trabalho para a faculdade. Ele disse que sim e

combinámos às 13h15 na terça-feira. Entretanto também me explicou que o Galvino

nesta terça-feira se tinha desencontrado de mim, ou seja, quando ele saiu estava eu a

chegar ao Refeitório.

Quando a Irmã chegou dispensou-me de continuar a espremer limões e fomos

servir os almoços. Quando estávamos a meio desse processo chegaram duas novas

voluntárias que distribuíram as caixas de forma atabalhoada por ainda não saberem o

nome dos utentes. Perguntei à Irmã se podia ir embora e fui embora.

Dia 9.5.2017 – 50ª ida ao voluntariado

Hoje fui até ao Refeitório às 13 horas com o objetivo de entrevistar o senhor Mário.

Tínhamos combinado às 13h15 mas para não haver desencontros cheguei mais cedo,

tendo de esperar um pouco que ele acabasse de almoçar.

Terminado o almoço o senhor Mário disse que estava pronto para falar comigo mas que

tinha alguma pressa, pelo que tentei ser breve na entrevista. Foi ele que escolheu o local

onde falar, acabando por ir para o mesmo sítio onde tinha falado com o Igor. Tendo em

conta uma vez anterior em que a televisão foi ao Refeitório para falar com alguns

utentes e fazer uma reportagem sobre o Refeitório e o senhor Mário disse

assertivamente que não queria aparecer na televisão para não ter problemas, fiz questão

de lhe pedir para gravar (tal como tenho pedido a todos os meus interlocutores) e de lhe

explicar que a gravação tem como única finalidade o trabalho da tese e que a sua

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identidade será protegida, pelo que não se saberá que foi ele que falou comigo. Ficou

mais descansado e falou comigo.

Notou-se claramente ao falar do tópico “relações e família” que o senhor Mário ficou

bastante comovido e perturbado, tendo ficado em silêncio e com as lágrimas nos olhos

ao falar da sua mãe.

Foi interessante também notar a forma como culpa a Câmara Municipal de Lisboa pelos

seus problemas de habitação e como fala de noções como “orgulho” e “desconfiança”.

No fim da entrevista perguntou-me se já tinha falado com muitas pessoas do Refeitório.

Disse-lhe que sim e que ainda me faltavam mais quatro pessoas. Ele falou logo com o

Jallah e o seu amigo para ver a disponibilidade deles de falarem comigo amanhã e se

falavam e compreendiam bem o português. Disseram que sim e combinámos amanhã às

13h15 no Refeitório para falar com cada um deles.

Dia 10.5.2017 – 51ª ida ao voluntariado

Hoje cheguei ao Refeitório às 13horas com o objetivo de entrevistar o Jallah e o

seu amigo Yassine. Uma vez mais cheguei cedo para evitar desencontros.

Quando cheguei eles os dois ainda estavam a almoçar pelo que fui ajudando

enquanto esperava. Tratei da loiça, de distribuir caixas e de entregar gelados.

O senhor Mário arranjou-me mais uma entrevista, com o Paulo na próxima

semana Parece ficar contente de me estar a ajudar no meu trabalho. Penso que

talvez seja porque no outro dia o ajudei, sem a Irmã saber, a levar um saco com

brinquedos para o seu neto. Na entrevista dizia-me que não se dá com a família

por ser demasiado orgulhoso e não querer que um dia lhe atirem à cara que

precisou da ajuda deles mas aparentemente as suas ações contradizem as suas

palavras (situação que tem vindo a ser recorrente entre os utentes com quem tenho

falado).

Na entrevista, foi interessante ver com o Yassine falava bem português e baixou

a voz para falar sobre a sua entrada clandestina em Portugal e como Jallah transpirava

imenso mas não tirava uma única peça de roupa…talvez só tenha aquelas e precise delas

para aguentar o frio da noite…

Dia 12.5.2017 – 52ª ida ao voluntariado

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Hoje quando cheguei ao Refeitório estava lá a Irmã Celeste, o Francisco e o

senhor Mário que encontrei a meio do caminho e que estava a olhar para imagem de São

Vicente como se estivesse a prestar adoração ao santo e depois veio a falar comigo

sobre as suas crenças.

Como foi o dia em que o Papa chegou a Fátima a televisão estava ligada na TVI

para a Irmã ir seguindo os acontecimentos. Falou-se dos vários perigos de grandes

multidões a assistir à vinda do Papa a Fátima e o Francisco disse várias vezes que “esses

malucos” se quisessem poderiam fazer tudo em situações como esta.

O Francisco mudou, a pedido do senhor Mário, de canal para a RTP2 para verem

o habitual programa sobre animais e a Irmã ficou muito chateada dizendo que hoje não

era para mudar de canal porque ela tinha dito especificamente que não se mudava e que

tem de haver respeito Interessante como a questão do respeito assume tantas

ideias no Refeitório, indo da forma como os utentes são tratados, como respeitam

as regras, como respeitam os voluntários e a Irmã, até à mudança de canal num

dia em que tal não deveria acontecer.

Quando cheguei fui tratar de arrumar a loiça e o Francisco veio ajudar, levando a

Irmã a dizer que tenho de ir eu tratar da loiça para ele ajudar com alguma coisa

Interessante a influência de uma pessoa num dos utentes do Refeitório. Estivemos a

conversar sobre vários temas desde Fátima até à confusão que vai ser à noite com a

procissão das velas, até aos riscos que há nesta ida do Papa a Fátima. Ele falou nas suas

crenças, disse que acreditava apenas “naquele que estava pregado na cruz” e que tudo o

resto era considerado um disparate.

Entretanto outros utentes foram chegando: o Jallah e o Yassine, o senhor

Osvaldo, alguns dos senhores russos, os senhores Ivan, e o tema de conversa era

mantido: as crenças de cada um, várias questões sobre Fátima e a ida a Fátima É

interessante ver como pessoas de religiões diferentes e alguns não crentes ficaram

um período de almoço inteiro a falar sobre aquele tema partilhando várias

opiniões sobre não só as suas crenças como também sobre o evento que estava a

acontecer.

Também foi interessante ver, mais uma vez, como as pessoas com quem vou

falando nas entrevista se tornam mais conversadoras comigo nas vezes seguintes,

cumprimentam-me de modo mais individual, fazem um bocadinho de conversa,

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quase como se ao ter falado com eles os tivesse separado do restante grupo dos

“utentes” e eles fizessem o mesmo comigo em relação ao restante grupo dos

“voluntários” numa dialética que se tem vindo a manter desde a primeira

entrevista que fiz até agora quando falei com o Jallah e o Yassine.

Entretanto a Irmã foi almoçar e eu fiquei a ver televisão com os utentes que

estavam no Refeitório. O senhor Luís falava muito, como costume, sozinho e

ininterruptamente. O senhor novo (Miguel?) fazia perguntas sobre o que estava a

acontecer e os restantes mantinham-se ou em conversas entre si ou estavam em silêncio

a ver televisão.

Falei com o Paulo para combinarmos o dia e a hora da nossa entrevista. Ficou

para terça-feira às 13h15. Mais uma vez falei com o senhor Mário sobre tentar

entrevistar o Galvino e ele respondeu o que ultimamente tem respondido, que ele ou

está bêbedo por aí ou em algum hospital em coma alcoólico.

Quando a Irmã regressou começámos a servir os almoços e depois apareceram

mais voluntárias e a Irmã disse que se eu quisesse podia ir indo e eu assim fiz.

Dia 16.5.2017 – 53ª ida ao voluntariado

Hoje fui ao Refeitório com o objetivo de falar com o Paulo, tal como combinado

na sexta-feira. Cheguei mais cedo e por isso fiquei a ajudar a distribuir os almoços e a

lavar e secar a loiça.

O senhor Mário perguntou-me quantas entrevistas me faltavam depois da do

Paulo e eu disse que faltaria apenas uma e ele mais tarde disse que a Susana podia falar

comigo mas que teria de ser rápido porque ela entrava às 14h30. Assim, falava primeiro

com a Susana e depois com o Paulo.

Falei com a Susana numa entrevista muito breve e depois falei com o Paulo,

sendo que a Susana teria ido embora e depois regressou e ficou a ouvir a entrevista do

Paulo.

Quando estava a ir embora depois das entrevistas vi o Jallah a dizer adeus aos

voluntários e reparei que estava descalço, o que em dias frios e tendo de caminhar muito

ainda até Sete Rios (local onde dorme) é muito mau.

Dia 19.5.2017 – 54ª ida ao voluntariado

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Hoje cheguei ao Refeitório um pouco mais tarde. Quando cheguei estava lá o

Francisco, um dos senhores russos, um senhor angolano, o Cris que estava na casa de

banho a rapar o cabelo e a Irmã que estava na lavandaria.

Fiquei a tratar de secar e arrumar a loiça e o Francisco ficou a ajudar enquanto

falava de um conjunto de histórias sem grande ligação entre elas e sem grande nexo.

O senhor Mário entretanto chegou e perguntou como estava o meu trabalho. Eu

disse que agora tinha apenas de o escrever porque já tinha a informação toda recolhida e

ele contou-me que tinha estado a falar com o Paulo sobre a entrevista que lhe fiz.

Entretanto chegou a Bibiana e como trazia um decote mais pronunciado causou

grande impacto e reação junto dos utentes e da Irmã que fez questão de lhe dizer para se

tapar e que não a deixava andar assim no Refeitório porque era demasiado provocadora

e depois “já se sabe como eles são”.

Pouco depois estava na cozinha a arrumar a loiça e chegou o Iury que tinha

passado a manhã no médico, no dentista e fez questão de nos explicar (a mim, à Irmã e à

Bibiana) todo o procedimento de tratamento do abcesso que tinha na boca em inglês,

pedindo-me para traduzir para português, e com um vídeo do youtube a acompanhar

caso nós não entendêssemos a explicação. É interessante ver como o Iury já fala um

pouco de português.

A Irmã foi almoçar e eu fiquei na cozinha à espera que regressasse.

Por volta das 12h30 o Francisco foi buscar os sacos e disse à Bibiana que queria

bater nos russos porque o estavam a chatear. A Bibiana depois de ele ir embora

confidenciou-me que é mais emocional do que de força física.

Quando a Irmã chegou houve alguma confusão entre o Francisco e os utentes

russos e a Irmã acabou por tomar o partido dos utentes russos dizendo aa Francisco para

se sentar e ficar sossegado, o que provocou alguma revolta nele e levou a Bibiana a falar

com a Irmã e a defendê-lo.

Foi interessante ver como a Isabel perguntou ao Iury como ele estava e ele disse

“normal”, o que levou a Isabel a dizer-lhe que ele estava bem para ele não inventar

porque agora estava bem por estar medicado para as dores.

Nos almoços houve alguma confusão por haver demasiados utentes e

demasiados pedidos especiais.

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Outra situação de notar foi quando o Eudízio falou mal com a Isabel e com os

restantes e esta voluntária disse que se recusa a servi-lo depois disso, fazendo com que

fosse Irmã servir-lhe o almoço e dizer que se ele não se porta bem deixa de lá ir.

Quando acabaram os almoços fui embora.