modelo formal de apresentação de teses e dissertações ... · dissertação apresentada para...
TRANSCRIPT
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em Sociologia realizada sob a orientação científica de Professor
Doutor José Manuel Vieira Soares de Resende
2
3
AGRADECIMENTOS
Todo o trabalho que apresento como fruto da investigação que realizei não teria sido
possível sem o apoio e o auxílio de um conjunto de pessoas de importância
incomensurável e para as quais um simples mas sincero obrigada nunca chegará. Este
não foi nunca um projeto só meu, um trabalho só meu ou uma conquista só minha; foi
nossa pois sem este conjunto de pessoas não teria passado da fase inicial com mais
dúvidas e mais problemas do que respostas e certezas.
Tenho, antes de mais, de agradecer ao Frei Filipe por me ter encaminhado para o
Refeitório Rosália Rendu onde fiz a minha investigação. Sem esse auxílio tão
importante esta investigação não tinha encontrado um terreno onde se desenvolver.
De igual modo, devo o meu mais sincero agradecimento à Irmã Celeste que me acolheu
no Refeitório, explicando-me pacientemente o funcionamento do espaço e das pessoas,
facilitando o diálogo em algumas situações e demonstrando um constante interesse na
evolução do meu trabalho.
No momento de agradecer acabo por sentir que não há palavras para exprimir quão
grata estou pela disponibilidade constante, o apoio, as orientações, o auxílio em
momentos em que duvidei das minhas capacidades, a compreensão quando os prazos
falhavam ou os capítulos eram extensos demais, a força para seguir com a tese adiante,
a transmissão de conhecimentos vários…tudo…um tanto tão extenso que o Professor
José Resende me proporcionou ao orientar-me ao longo desta investigação. Muito
obrigada!
Às pessoas sem-abrigo com quem tive o prazer de conviver e que tanto me ensinaram
sobre a vida, sobre eles, sobre mim. Com quem partilhei horas e momentos de alegria
sincera. Que me contaram as suas histórias, as suas vidas e me acolheram no seu
mundo. A estas pessoas um sincero obrigada, espero que as histórias continuem…
À minha família, aos meus pais e irmãs que só não estiveram comigo junto das pessoas
sem-abrigo e a ler as mais variadas obras porque não podíamos estar todos num espaço
pequeno como o Refeitório. Eles que foram o apoio, o ouvido, o ombro amigo, o/a
sociólogo/a por associação de tanto ouvirem as mesmas ideias em repetição. Sem vocês
nunca teria chegado a Antropologia, a Sociologia, a escrever uma tese. Não sei como
agradecer, sei que só a palavra obrigada não chega, é minúscula em relação ao que são
para mim.
4
5
As Pessoas Sem-Abrigo: Apropriações e Relações
Mariana da Silva Oliveira Dias
[RESUMO]
Para analisar a população sem-abrigo utente do Refeitório Rosália Rendu são utilizados
três eixos principais: acolher, habitar e apegar. Procura-se, partindo desses eixos
observar a relação que as pessoas sem-abrigo desenvolvem com o espaço público ao
apropriarem-se dele, moldando-o às necessidades que vão surgindo no seu dia-a-dia e
dando a notar um novo tipo de conhecimento que estes indivíduos passam a deter do
espaço público assente nas experiências diárias nesses mesmos espaços públicos.
Assim, a cidade vai acolher das mais variadas formas o cidadão que agora se encontra
em situação de sem-abrigo, sem uma casa onde pernoitar e onde realizar as tarefas que
outrora haviam sido realizadas dentro de quatro paredes. Com o efeito do tempo em
situação de sem-abrigo estes indivíduos desenvolvem um conjunto de mecanismos que
vão permitir falar de formas de habitar o espaço urbano numa tentativa de tornar
privado aquele local que é público, aprendendo como e onde se dirigir nos vários
recantos da cidade para obter uma solução para os seus problemas que podem ir da
necessidade de comer à necessidade de passar as horas que o dia contém. O terceiro
eixo vai ser utilizado para questionar as relações sociais que os indivíduos sem-abrigo
mantêm ao longo dos seus quotidianos que sendo pautados pelas ausências várias têm
também espaço para uma superação daquela que pode ser apelidada de “ausência de
afetos”. Ou seja, torna-se interessante descobrir de que modo estes indivíduos se vão
apegar e (re)ligar ao outro através da confiança depositada nesse outro, jogando aqui a
situação de sem-abrigo não só como consequência mas também como causa de um novo
tipo de relações que vão existir quando, além de se (sobre)viver na rua, também se
convive neste espaço, partilhando esta realidade.
PALAVRAS-CHAVE: Pessoas sem-abrigo, apropriações, relações sociais, quotidianos,
experiências
[ABSTRACT]
In order to analyze the homeless population of the Refeitório Rosália Rendu I will use
three main axis: to welcome, to inhabit and to relate to. With this axis I’ve tried to
perceive the relationship that the homeless people develop with the public space by the
appropriation of those spaces, by shaping them to the needs that they experience along
their everyday life and giving us the idea of a new kind of knowledge of the public
space that they have now because of those daily experiences. Thus, the city will
welcome, in many ways, the citizen that is now a homeless, without a home where to
sleep and where to do the tasks that used to be performed within the house. With the
6
effect of the time that they are living as homeless, these individuals will develop a set of
mechanisms that will allow us to use the term “to inhabit” the urban space by trying to
turn a public place into a private one, learning how and where to go in the city to solve
their problems that can range from the need to eat to the need to spend the hours of a
day. The third axis will be used to question the social relationships that the homeless
people keeps through their everyday life, that despite being based on absences have also
room to overcoming the so-called “absence of affections”. In other words, it is
interesting to discover how these individuals will relate and connect to the other through
the trust on the other person, being homeless here not only a consequence but also a
cause of a new kind of relationships that will exist when besides the survival on the
street they also live together in this space, sharing this reality.
KEYWORDS: Homeless, appropriations, social relationships, everyday life,
experiences
7
ÍNDICE
Introdução – As Pessoas Sem-Abrigo: Acolher, Habitar, Apegar……….9
Metodologia ...................................................................................................... 13
Observação etnográfica e Diário de Campo: registos de observações,
conversas e gestos na análise das pessoas sem-abrigo……………………...16
A Entrevista: relatos, histórias e momentos do “eu”…………………………19
Percurso metodológico: balanço e reflexão ..................................................... 23
Como pensar as Pessoas Sem-Abrigo: definições, vulnerabilidades,
experiências e problemáticas………………………………………...…... 25
As Pessoas Sem-Abrigo e o Espaço: Apropriar Habitando………..……….41
Relacionar, confiar, apegar: um olhar para o afeto nas
pessoas sem-abrigo…….…………………………………………………...46
Análise de Conteúdo
Acolher e Habitar: a Apropriação do Espaço por Parte das Pessoas Sem-Abrigo
1. Múltiplos espaços, múltiplos quotidianos………………………………..63
1.1 Albergues, casas e a rua………………………………………………...63
1.2 Caminhos do quotidiano ............................................................................. 73
1.3 O Refeitório: observação da apropriação de um espaço……………….78
Apegar: as Relações das Pessoas Sem-Abrigo
2. A Carência nos Afetos……………………………………………………83
2.1 As relações no Refeitório……………………………………………….83
2.2 As relações fora do Refeitório…………………………………………....89
Conclusões: As Pessoas Sem-Abrigo – Apropriações e Relações……….97
Referências Bibliográficas ............................................................................. 108
Anexos ............................................................................................................ 115
8
9
Introdução – As Pessoas Sem-Abrigo: Acolher, Habitar, Apegar
Olhando a população sem-abrigo de Lisboa enquanto objeto principal deste
trabalho, podemos utilizar três principais eixos para problematizar essa realidade:
acolher, habitar e apegar.
Estes três eixos são pensados ao longo de um trabalho que, observando a
realidade de alguns utentes sem-abrigo do Refeitório Rosália Rendu, vai tentar dar conta
das dinâmicas e experiências de quem, além de não ter uma casa própria, tem também
um conjunto de outros problemas que impedem a superação da situação vulnerável em
que se encontram.
Ao encarar outros problemas que surgem na vida das pessoas que estudo há uma
tentativa de ir além do conceito oficial de pessoa sem-abrigo1 que se reduz a questões
associadas à ausência de uma casa ou, nos casos que detêm uma casa, às condições
precárias da mesma.
As pessoas sem-abrigo que procuro analisar surgem como um conjunto de
indivíduos com as mais variadas problemáticas. Das dificuldades associadas à
documentação, à procura de trabalho, passando por problemas de saúde. A ideia é
sempre olhar além da associação entre pessoa sem-abrigo e falta de casa. Se o problema
é exclusivamente de habitação a solução poderia parecer simples: basta arranjar casas
ou albergues e estes indivíduos deixam de ser sem-abrigo.
Pelo contrário, trata-se de um processo mais moroso, trata-se de um exame que
vai além do que é visível à partida. O nosso olhar deve deslocar-se ao detalhe, à história
de cada indivíduo, ao que cada um apresenta como problema, como incapacidade, como
dificuldade.
Concretizando o que foi referido, as pessoas sem-abrigo com quem falo ganham
uma certa humanização que vai além da adoção de procedimentos estandardizados,
passíveis de serem observados por exemplo nos albergues. No Refeitório e no âmbito
deste trabalho, cada utente tem espaço e forma de expor os problemas com que se
depara tentando analisar-se caso a caso, problema a problema, pessoa a pessoa, numa
1 “A pessoa em situação de sem abrigo é aquela que, independentemente da sua nacionalidade, idade,
sexo, condição socioeconómica e condição de saúde física e mental, se encontra sem teto a viver no
espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário, ou sem casa,
encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito.” (in Programa Municipal para a
Pessoa Sem-Abrigo 2016/2018)
10
procura não só da solução dessas situações concretas como também da autonomia e
liberdade de escolha que cada utente passa a deter.
“É fulcral interagir com estes sujeitos, ouvir as suas palavras e aprender as suas visões
sobre si mesmos e sobre a sociedade.” (Aldeia 2011, 6)
“I: (…) eu penso que cada um tem os seus problemas, não é? (…) e alguns desabafam
connosco outros nem por isso, guardam para eles, têm a história das necessidades
básicas que não têm, que dormem na rua, os que não dormem na rua também eu penso
que há muitos aqui que têm casa mas depois não têm nem água nem luz lá dentro
porque não têm como pagar isso, e eu penso que isto aqui há muitos problemas e muito
diferentes, há alguns que nós sabemos e outros que nós nem fazemos ideia.” (excerto de
entrevista a Isabel)
Deste modo, torna-se importante neste estudo sobre as pessoas sem-abrigo um
questionamento sobre como é que a cidade (Lisboa neste caso) e os seus espaços e
dinâmicas acolhem a pessoa que se encontra em situação de sem-abrigo.
Que oportunidades é que a cidade, que passa a ser observada tendo em conta as
experiências da pessoa que agora é sem-abrigo, pode encerrar em si? Com que
hostilidades se deparam estas pessoas? Que espaços são descobertos? Como se
(sobre)vive e como se (con)vive ao ser um indivíduo sem-abrigo? O que pensam as
pessoas sem-abrigo dos espaços criados especificamente para os acolher,
nomeadamente os albergues onde alguns pernoitam?
Tendo em conta estas variadas formas de acolhimento da cidade face à pessoa
sem-abrigo sou levada a ir além deste momento inicial e desta relação inicial que os
indivíduos estabelecem com o espaço.
Assim, interessa-me pensar a passagem do tempo na situação de sem-abrigo e
como, através da experiência e do conhecimento que vai sendo adquirido, se redescobre
a cidade com uma nova lente que vai tornar os seus espaços habitáveis. Descobrindo os
seus caminhos, mecanismos e locais aos quais se pode recorrer para habitar a cidade
sem que se tenha uma casa onde se resguardar de tudo o que é público. Onde se
encontrar a privacidade, o íntimo, o meu, onde descansar, comer, estar e passar o tempo
do dia-a-dia.
Como, por não ter casa, determinado indivíduo ganha uma nova forma de olhar a
cidade e de potenciar as características dos seus espaços, moldando-os às necessidades
11
que possa ir tendo? Como falar de uma apropriação dos espaços múltiplos da cidade ao
longo do quotidiano de quem não tem casa onde desempenhar as tarefas simples como
tratar da higiene, da alimentação, mesmo repousar? A que instituições recorrer tendo em
conta as necessidades sentidas? Será que apesar dessa possível habitabilidade do espaço
público estes indivíduos pensam um futuro sem ser em situação de sem-abrigo?
No entanto, enquanto delineava os eixos desta pesquisa deparei-me com um
conjunto de inquietações que me levavam além desta análise da relação das pessoas
sem-abrigo com o espaço no duplo eixo acolher-habitar.
Em algumas das obras que fui lendo2, bem como através do senso comum
generalizado sobre a população sem-abrigo, as ideias perpassadas eram de que eu me
iria deparar com pessoas desligadas da sociedade, sem laços sociais, sem relações,
confiança ou qualquer forma de apego ao outro.
Todo este conhecimento a priori acaba por me deixar com especial interesse em
questionar a natureza das relações destes indivíduos, a proximidade, as dinâmicas
sociais que poderiam existir nas suas vidas, as experiências de convívio que têm, as
aprendizagens, a sua forma de se ligarem a alguém.
Como é que a pessoa sem-abrigo se relaciona com o outro? Será uma relação
pautada pela entreajuda e descoberta conjunta das possibilidades que a cidade oferece,
unindo a sobrevivência ao convívio e sociabilidade? Ou por outro lado, encontraremos
uma tensão permanente de quem procura o melhor local de pernoita, o melhor espaço, o
melhor caminho da cidade numa demarcação do espaço? Existirá de forma visível, de
facto, um paradoxo entre a autonomia que estes indivíduos procuram e a
vulnerabilidade da situação em que se encontram? Com quem escolhem passar o seu
dia-a-dia? Que comportamentos e gestos encontramos que evidenciem um querer saber,
um confiar em, um ligar-se a, junto da população sem-abrigo?
Procuro, assim, como principal objeto deste trabalho analisar as pessoas sem-
abrigo (utentes do Refeitório Rosália Rendu) nas suas relações e apropriações, apoiando
a minha análise nas dinâmicas presentes nos eixos acolher, habitar e apegar que irão ser
encontrados, ou não, nos quotidianos, nas experiências, nos modos de vida destes
indivíduos sem-abrigo.
2 Cf. Barreto 1998/2000; Plano Cidade 2009; Prates, Prates e Machado 2011; Tuller 2015
12
A abordagem utilizada para dar conta de possíveis respostas às inquietações que
o terreno ia levantando passa por uma investigação onde impera a observação
participante e a realização de entrevistas, indo ao encontro do que é perpassado por
Heinich (2014) ao falar da Sociologia Pragmática – área em que sustentei o meu
trabalho: “esta sociologia se apoia principalmente em pesquisas empíricas
fundamentadas na observação cuidadosa de ações no seu contexto atual.” (Heinich
2014, 373).
É importante neste caso dar conta da forma como as pessoas sem-abrigo olham a
sua realidade, as suas relações, o seu espaço, o seu quotidiano e as suas experiências,
procurando, assim, relatos na primeira pessoa em relação às questões por mim
colocadas.
Assim, procuro ir ao seu encontro, falar com estas pessoas, quer em conversas
informais enquanto voluntária do Refeitório, quer em entrevistas realizadas ao longo do
trabalho de campo. A ideia é sempre obter a “versão” das experiências, dos modos de
vida e dos quotidianos das pessoas sem-abrigo com quem falei tal como perspetivadas
pelas mesmas.
Por fim, outra questão que deve ser mencionada é a importância de realizar uma
observação etnográfica densa, com atenção ao detalhe, com uma base no contexto atual
destes indivíduos mas sem esquecer o seu passado, as suas experiências anteriores.
É através desta observação sociológica que os gestos e os comportamentos vão
ser encontrados durante os momentos vividos no Refeitório, ganhando uma importância
acrescida na medida em que, por várias vezes, foi através da observação que
descobrimos uma verdade paralela àquela contada pelas palavras.
Saliento, ainda, a tentativa de um olhar para esta população partindo do conceito
de frame, tal como pensado por Goffman (1986), ou seja, através do princípio de que
toda e qualquer situação na realidade social tem o seu enquadramento, sendo a análise
desse enquadramento essencial na compreensão do fenómeno em estudo.
13
Metodologia
Para pensar a vulnerabilidade das pessoas sem-abrigo que andam pela cidade de
Lisboa, e as formas como estas habitam os seus territórios e se apropriam dos espaços
que consideram mais acolhedores escolhi realizar um estudo de caso, nomeadamente
analisando as pessoas sem-abrigo que habitualmente almoçam no Refeitório Rosália
Rendu.
Assim, esta primeira escolha de realizar um estudo de caso é tomada indo ao
encontro daquilo que Yin (2001) apresenta como sendo, por um lado, as vantagens deste
tipo de investigação – “Em resumo, o estudo de caso permite uma investigação para se
preservar as características holísticas e significativas dos eventos da vida real” (Yin
2001, 19) ou “O estudo de caso é a estratégia escolhida ao se examinarem
acontecimentos contemporâneos, mas quando não se podem manipulas
comportamentos relevantes.” (Yin 2001, 27) – bem como a definição deste tipo de
abordagem ao terreno: “Um estudo de caso é uma investigação empírica que investiga
um fenómeno contemporâneo dentro do seu contexto da vida real, especialmente
quando os limites entre o fenómeno e o contexto não estão particularmente definidos.”
(Yin 2001, 32).
Ao optar por um estudo de caso, os atores sobre os quais recaem as minhas
questões levaram-me a escolher técnicas de observação sociológica que, tendo em conta
as suas características, tornaram possível acompanhar de perto os seus quotidianos e os
modos como confrontam os espaços urbanos por onde circulam diariamente.
Captar estes movimentos requer uma escolha de técnicas mais próximas de uma
Sociologia compreensiva. Assim, na tentativa de exercitar essa compreensão recorri a
técnicas habitualmente utilizadas em estudos qualitativos, realizando uma investigação
onde o método indutivo impera, uma vez que tal como Flick (2005) refere foi
importante criar uma abordagem que, tendo um conhecimento teórico prévio, fosse
buscar à empiria, ao objeto de estudo, ao terreno e às complexidades aí apresentadas o
ponto de partida para um questionamento e levantamento de hipóteses numa tentativa de
“descobrir teorias novas, empiricamente enraizadas” (Flick 2005, 5), dotando, desse
modo, a empiria de uma importância extrema para, juntamente com a teoria, investigar
as problemáticas que me propunha analisar e chegar às conclusões deste trabalho.
14
Foi importante, neste processo metodológico, uma delimitação não só do objeto
de estudo como também efetuar o recorte do terreno sobre o qual me iria debruçar –
momentos estes que se interligaram, influenciando-se mutuamente, com a metodologia
selecionada, numa tríade em constante construção com as consecutivas idas e vindas do
terreno consoante a informação que ia sendo recolhida.
Deste modo, o meu projeto começou com apenas uma população que despertava
o meu interesse pela sua presença pautada de ausências no quotidiano da cidade de
Lisboa – eram pessoas com as quais me cruzava diariamente nos seus diferentes rostos e
feições e sobre as quais nada sabia além de serem apelidadas de “pessoas sem-abrigo” e
que andavam pela cidade, dormiam na cidade, viviam na cidade, servindo-se do espaço
público de modo peculiar devido às ausências que marcam as suas vidas – encontrava
assim um locus e uma população que queria problematizar e refletir sociologicamente.
Bruyne, Herman e Schoutheete ([1977] 1982) são-nos úteis, aqui, para pensar a
importância de, por exemplo, “situar o lugar do campo da pesquisa”, isto é: o “lugar
efetivo do trabalho dos pesquisadores, é essencialmente o lugar dinâmico e dialético no
qual se elabora uma prática científica que constrói objetos de conhecimento
específicos, os quais impõem, por sua vez, a sua matriz particular de apreensão e
interpretação dos fenómenos.” (Bruyne, Herman e Schoutheete [1977] 1982, 28).
Ou seja, com estes autores e a sua obra conseguimos depreender a extrema
importância, antes de iniciar a investigação, que haja já uma delimitação do campo que
pretendemos estudar (delimitação essa que pode sofrer alterações com o decorrer do
trabalho de campo, como tentarei demonstrar neste capítulo metodológico), bem como
um conjunto de hipóteses problematizantes da realidade que procuramos olhar pela
lente da Sociologia.
Com a evolução deste projeto o afunilar necessário à linha problemática que fui
desenvolvendo apareceu com alguma clareza: o que mais me intrigava nesta população
que tanto caminha e cujos estudos realizados tanto apresentam conjuntos de solução de
cariz negativo e derrotista, era, precisamente, como é que não tendo as posses que o
“cidadão normal” tem, não tendo uma casa, não tendo um trabalho, como é que estas
pessoas se apropriam de um espaço que tem tudo para ser definido como público mas
que para elas é tornado familiar, na medida em que é nesse espaço que vão desenvolver
não só relações com outros indivíduos mas também uma relação com o espaço que será
equiparado a uma “casa” (cf. Entrevistas e Diário de Campo).
15
Esta questão das vivências que são mantidas na rua ou em abrigos ou em
espaços que não são destas pessoas sem-abrigo mas acabam por ser apropriadas por
estas num paradoxo incrível entre o público, o privado, o meu, o nosso, o vosso, imbuiu
a minha pesquisa de todo um conjunto de questões acerca do espaço, da cidade,
daqueles que caminham e marcam, assim, o espaço por onde andam. Apresentavam-se,
deste modo, os dois primeiros eixos da minha investigação: o modo como a cidade
acolhe as pessoas sem-abrigo e o modo como estas pessoas, com o passar do tempo na
situação de sem-abrigo, habitam a cidade e o seu espaço público através da apropriação
que fazem desse espaço.
Tendo a população de estudo e já dois eixos estruturantes para a minha
investigação comecei a realizar um conjunto de leituras de forma a preparar um projeto
que me permitisse entrar no terreno de estudo com uma ideia clara do que queria
questionar. No entanto, se há momento numa investigação que pode levantar mais
dúvidas, problemas e interrogações do que as que tínhamos à partida é, precisamente, o
confronto entre as ideias do investigador e as teorias formuladas em relação aos
elementos que o primeiro quer trabalhar.
Foi neste círculo de perguntar, ler em busca de respostas encontrando ainda mais
questões que surgiu o terceiro e último eixo basilar do meu trabalho: as relações que as
pessoas sem-abrigo mantêm com o “outro”. Esta população é percecionada em inúmeras
obras, artigos, capítulos como “desvinculada”, como tendo “cortado as relações”, como
sendo isolada da sociedade, como sendo egoísta, sozinha, estranha a uma norma social3.
Ora, tendo em conta as minhas inquietações face às pessoas sem-abrigo e a lente
que procurava utilizar para analisar as mesmas, não me era permitido manter esta visão
tão derrotista e, como tal, para contornar as conclusões tão assertivas já apresentadas
pelos mais variados autores que estudaram esta população antes de mim, coloquei como
objetivo da minha tese de Mestrado estudar as relações de quem é “desvinculado”,
“desafetado”, “desligado”, correndo o risco de acabar por concordar com quem debate o
tema antes de mim mas tendo a esperança de encontrar uma realidade diferente ao
chegar ao terreno.
3 Cf. Barreto 1998/2000; Plano Cidade 2009; Prates, Prates e Machado 2011; Tuller 2015
16
Observação etnográfica e Diário de Campo: registos de observações, conversas e
gestos na análise das pessoas sem-abrigo
Nesta fase que antecedia a entrada no terreno imperava descobrir qual iria ser,
concretamente, o meu terreno, ou seja, onde e como é que eu iria analisar as pessoas
sem-abrigo com base nos três eixos acima referidos. Assim, foi tomada uma outra
decisão que veio a revelar-se fulcral para a concretização da minha investigação: a
escolha de uma pesquisa com base na observação participante, o being there de
Malinowski ([1922] 1984), que se transportava neste trabalho para o papel de voluntária
no Refeitório Rosália Rendu que assumi desde outubro até à conclusão do trabalho de
campo.
Porquê optar pela observação participante vestindo o papel de voluntária
enquanto investigo esta população? Desde o delinear do tema e do problema que me fui
apercebendo que iria lidar com uma população que, dadas as circunstâncias em que
vivem, não iria ser de acesso fácil ou sequer óbvio.
Não podia limitar-me a seguir alguém que desconheço e me desconhece pela
rua, dizendo que sou investigadora e formulando um conjunto de perguntas sobre a sua
vida com a justificação de estar a fazer um trabalho para a minha tese de Mestrado. Não,
tal como Soulet (in Balsa 2006), também eu cheguei à conclusão de que para me
aproximar desta população que já de si é vulnerável não podia ter uma abordagem
invasiva e propiciadora de aumentar essa vulnerabilidade, mas antes deveria criar laços,
aparecendo como uma figura presente no quotidiano destas pessoas para que uma
relação de confiança pudesse surgir de modo a que me fosse permitido questioná-los
acerca das suas vidas e ouvir a sua verdade acerca da sua realidade.
A observação participante enquanto voluntária abria assim portas a uma
presença regular no dia-a-dia destas pessoas sem-abrigo que queria problematizar e,
através desta técnica de recolha de informação, consegui descobrir momentos, gestos,
olhares, palavras, desentendimentos, situações de aprendizagem, de camaradagem, de
alegria, de revolta, que caso não estivesse lá naquele instante não teria sido possível
recolher pois ninguém me teria contado com o mesmo detalhe aquilo que eu observei,
nem mesmo os próprios teriam reproduzido a ação tal qual como ela acontecera se me
fossem contar o que eu observei instantes antes.
17
Uma vez feita esta escolha metodológica foi necessário não ser absorvida nem
pelo terreno, nem pela população de estudo, nem pelas interrogações imparáveis com
que me fui deparando. Para evitar essa absorção – que acabou por acontecer em alguns
momentos da investigação – tinha de colocar balizas, frames, limites na minha
observação através da formulação de tópicos acerca desta população e tendo em conta
este terreno que queria ver esclarecidos de modo a não cair no erro de me perder na
abundância de informação com que me deparava.
O que observar e como observar foram questões da maior importância e
pertinência ao longo de todo o trabalho, na medida em que se, por um lado, tinha de
cimentar uma relação com as pessoas do Refeitório para que fosse mais fácil o acesso às
suas vidas, por outro lado, não podia esquecer as linhas orientadoras da minha
observação, o que tinha de registar, o que queria encontrar, as perguntas que tinha de ir
fazendo, as dinâmicas às quais tinha de estar atenta, os pormenores que tantas vezes
olhamos como “normais” e “desinteressantes” mas que neste trabalho assumiram uma
importância fulcral pois revelaram mais do que as palavras dos nossos interlocutores4.
Outra técnica de observação de grande importância foi o registo com algum
detalhe da informação que ia recolhendo aquando dos momentos no Refeitório, ou seja,
uma vez criados laços com as pessoas do Refeitório e definidas as balizas orientadoras
do meu olhar sociológico (Pais 2015) tinha de aproveitar os momentos essenciais de
contacto com a população que queria estudar para reter informação pertinente para o
meu trabalho – imperava manter o pormenor, o detalhe, a descrição densa, os factos
relatados em conversas, os gestos recolhidos no decorrer do quotidiano do Refeitório –
e para tal contei com o Diário de Campo como suporte em que registei dia a dia, ida a
ida ao Refeitório, tudo o que a minha memória transportava desse mesmo dia, todos os
detalhes que saltavam à vista, sempre com base nas questões acima explicitadas.
Com um trabalho de duração longa teria sido impossível recorrendo apenas à
memória descrever tudo o que foi sendo vivenciado com base na observação
participante e que tinha um papel deveras essencial no trabalho com uma população que
não confia facilmente, que conta os seus factos e as suas vidas servindo-se de histórias,
de relatos experienciados algures num tempo ausente porque incerto – foi assim que
4 Como exemplo explicativo desta questão apresento a entrada do Diário de Campo do dia 28.10.2016:
“Continuei a servir almoços e a distribuir pão; muito pão para a mesa dos senhores russos fez com que
“ganhasse” a simpatia do grupo com quem é mais difícil comunicar.”
18
obtive aquela que é a história de vida de algumas das pessoas sem-abrigo utentes do
Refeitório, ouvindo, estando atenta às feições quando falavam de determinados temas,
observando as interações que tinham e o que escolhiam dizer, quando e a quem.
O Diário de Campo surge, assim, como a base de todos os registos de momentos
informais mantidos quer com a equipa de voluntários quer com os vários utentes do
Refeitório e, como tal, não se trata de uma ferramenta rígida e constante. Pelo contrário,
demonstra, por um lado, como, de facto, estamos a lidar com pessoas vulneráveis neste
trabalho e não com seres afastados ou “desvinculados” da sociedade, com o
estranhamento que tal ideia pode comportar, e assim tudo o que é comportamentos e
conversas mantidas vão oscilando não apresentando uma linha única quer de uma forma
de estar calma ou agitada, quer de um discurso pautado pela veracidade ou
enviesamento.
Corri, através desta escolha metodológica, o risco de apresentar conclusões com
apoios instáveis, optando por ultrapassar esse risco ao adotar uma postura com a maior
objetividade científica possível quando se lida com pessoas, chegando a ter de recorrer a
um distanciamento em prol dessa mesma objetividade5 (cf. Gold 1958, 221).
O Diário de Campo que fui escrevendo ao longo da investigação contém em si
todas as observações, curiosidades, questões, conversas, momentos, gestos, olhares,
risos, ansiedades, revoltas, confissões e desabafos que ouvi e vi durante a minha ida ao
Refeitório Rosália Rendu enquanto voluntária e investigadora. É, pois, uma ferramenta
de extrema utilidade para que de lá retiremos algumas dinâmicas, especificidades e
contradições da população de sem-abrigo utentes desse espaço.
Este diário é, assim, um registo que se interliga com a observação participante
comungando desta forma das suas obrigações científicas ao nível dos frames e da
objetividade adotada, dos objetivos pelos quais recorri a este método e das conclusões
que pude ir retirando após uma análise do que fora sendo escrito nesse mesmo diário,
com o ponto positivo de ser não só detalhado como mantido num registo pessoal, o que
me permitiu escrever informação que por outra via não teria sido possível.
5 Como exemplo explicativo do distanciamento apresento a entrada do Diário de Campo de dia 7.11.2016:
“Nas duas últimas idas ao voluntariado não escrevi diário de campo porque o meu trabalho foi, de certa
forma, perturbado pelos utentes do Refeitório. Criou-se uma proximidade excessiva, muito perto do
intolerável (cf. Marc Breviglieri) que fez com que estas pessoas em situação de vulnerabilidade se
apegassem em demasia e me tratassem com termos que não me deixavam à vontade e capaz de
prosseguir o meu trabalho quer como investigadora quer como voluntária.”
19
Tendo em conta que já tinha nesta altura um conjunto de técnicas de observação
sociológica formuladas, já tinha um terreno delimitado, um tema e uma linha
problemática, uma mala de leituras composta, chegava ao momento de desenhar a forma
como deveria abordar diretamente as pessoas sem-abrigo para poder obter a sua visão
acerca dos tópicos que queria analisar na minha investigação.
Foi uma tarefa complexa e que foi sendo construída à medida que o trabalho
tomava corpo e eu ia percebendo que abordagens funcionavam, que abordagens eram
bem recebidas, que abordagens levavam a uma reflexão profunda destas pessoas sem-
abrigo (cf. entrevista a Francisco), que abordagens, por oposição, levavam a um
fechamento imediato.
Interessava-me, assim, descobrir quem são estas pessoas e qual o seu contexto, o
seu passado e o que pensam em relação ao futuro; como é o seu quotidiano, quais são as
rotinas que estas pessoas poderiam ter ou não; a relação entre as pessoas sem-abrigo e
os vários locais por onde passam, os vários locais que habitam e de que se apropriam
através do caminhar constante; a questão de ao não terem muitas posses suas passarem a
dar ou não mais importância ao pouco que possuem; a relação com os serviços,
nomeadamente o Refeitório mas não só, no que de reflexão pode haver por parte das
pessoas sem-abrigo e de inquietações que lhes trazem estes dispositivos criados para os
auxiliar; e as dinâmicas familiares e relacionais que têm seja com os outros utentes do
Refeitório, seja com possíveis amigos/conhecidos, seja ainda com a família.
A Entrevista: relatos, histórias e momentos do “eu”
Os tópicos de interesse da investigação acima apresentados são recrutados para
um capítulo metodológico pelas várias reações que suscitaram na população em estudo,
tendo sido visível um conjunto de reações diferente de pessoa para pessoa mas sendo de
notar um certo desconforto geral nas primeiras entrevistas em que as questões foram
sendo colocadas quase automaticamente e seguindo uma ordem pré-estabelecida para
guiar a entrevista, o que, após um ajuste na estrutura da entrevista, deixou de acontecer.
Outra questão interessante de reportar ao falar da metodologia é o porquê da
escolha das entrevistas como técnica de recolha de informação, bem como os objetivos
e as consequências dessa escolha.
20
Seguindo a ideia de Burgess de entrevistas “como «conversas com um objetivo»”
(Burgess 1997, 112) queríamos encontrar nesta técnica uma forma de receber os
discursos das pessoas sem-abrigo utentes do Refeitório após uma primeira fase da
investigação onde os laços de confiança e proximidade foram sendo cimentados.
Procurava-se ouvir o seu encadeamento das suas histórias, dos seus factos, das suas
vidas e modos de percecionar o que os rodeia tendo em conta a situação de pessoas sem-
abrigo.
Não queria, no entanto, obter um conjunto de respostas formatadas, procurando,
por oposição, dotar os meus interlocutores de um estar à vontade e de uma liberdade
para encadearem eles mesmos o que me queriam contar, do que me queriam falar, o que
me queriam mostrar daquilo que guardam como a sua verdade acerca de si mesmos6 (cf.
Aldeia 2011 e a importância de ouvir as vozes das pessoas sem-abrigo).
Foi, assim, fundamental partir deste comprometimento a «“levar a sério” as
justificativas e as críticas dos atores», isto é, o discurso produzido pelos vários
interlocutores não surge aqui como um conjunto de invenções, de histórias produzidas
por eles, mas antes como material a ser analisado tendo em conta por um lado “um
esforço para justificar o seu fundamento prático” e por outro lado o “cuidado em
analisar os seus efeitos sociais” (Barthe et al. 2016, 98).
O importante a ter em mente nesta opção metodológica é, portanto, “considerar
que eles têm razões para afirmá-lo – razões ligadas às contradições reais das suas
práticas.” (Callon; Rabeharisoa, 1999 in Barthe et al. 2016, 99), e assim se realizou a
análise dos discursos que foram sendo apresentados não só por via direta nas entrevistas
como também nas conversas ouvidas e percecionadas aquando da observação
participante enquanto voluntária no Refeitório.
Esta técnica revelou-se bastante útil para captar informação, uma vez que todos
os interlocutores permitiram a gravação das entrevistas e a maioria acabou por
6 Não posso deixar de incluir aqui um pequeno parêntesis acerca da noção de veracidade do que me foi
sendo contado por parte das pessoas sem-abrigo e por parque da equipa de voluntários do Refeitório, uma
vez que, por vários momentos ouvi da parte de algumas voluntárias um aviso de cautela em relação ao
que me iam contando e ao que ia registando como verdadeiro em relação às pessoas sem-abrigo. Muitas
foram as vezes em que tanto uns como os outros me foram mencionando suspeitas de factos não
comprováveis acerca uns dos outros, ou seja, tanto as voluntárias me diziam que achavam que o utente a)
ou b) tinha feito isto ou aquilo daí estar em situação de sem-abrigo, como o utente a) ou b) me dizia que a
voluntária x) ou y) agia deste ou daquele modo. Tendo isto em conta optei por definir claramente que, no
caso das entrevistas, a verdade que captaria seria aquela que os meus interlocutores me transmitissem.
21
desenvolver uma conversa bastante longa acerca daquela que é a sua forma de vida
enquanto pessoa sem-abrigo mas dotada de um passado e esperando por um futuro (cf.
Breviglieri e Stavo-Debauge 1999).
Também devo assinalar como algo importante de notar o facto de cada
interlocutor ter escolhido o local onde queria que fosse a sua entrevista, havendo casos
que preferiram ficar dentro das instalações do Colégio onde é o Refeitório, casos que
quiseram realizar a entrevista no local em que almoçam ocupando o lugar exato em que
se sentam todos os dias no Refeitório, e casos que quiseram afastar-se das imediações
deste espaço para obter uma maior privacidade.
Tendo em conta a natureza dos utentes do Refeitório acabei por encontrar aqui
um conjunto de dificuldades à realização das entrevistas por dois principais motivos: 1)
A maioria dos utentes do Refeitório Rosália Rendu são estrangeiros, estando ainda
muitos deles a aprender a falar português, o que dificulta as vias de comunicação e
acaba por impedir a realização de uma entrevista; 2) Trata-se, como já acima foi dito, de
uma população um pouco instável e que tem dificuldades em confiar no outro para falar
sobre si (ou de si), o que acabou por se concretizar em duas outras situações: 2.1)
Alguns utentes com quem fui criando uma relação de proximidade deixaram o
Refeitório ou sofrem de problemas que afetam as suas capacidades psíquicas, e 2.2)
Alguns utentes afirmaram claramente que não queriam falar comigo ou acabaram por
combinar um dia e uma hora aos quais nunca compareceram.
Assim, de uma população vasta apenas alguns utentes são “fixos” e desses
utentes “fixos” apenas alguns falam fluentemente português ou mesmo inglês e desses
utentes com os quais a comunicação é possível apenas foi exequível desenvolver uma
relação de proximidade e confiança com alguns levando a que, no final, conseguisse
realizar 10 entrevistas, sendo uma delas feita a uma das voluntárias para entender
também um pouco acerca do funcionamento do Refeitório de modo a fornecer uma
visão mais geral e contextualizadora do ambiente envolvente dos utentes deste espaço
(cf. Balsa 2012).
Esta técnica de recolha de informação deve ser assim analisada na sua
globalidade, devendo ser objeto de reflexão na medida em que comporta em si uma
forma de conseguir o material necessário tendo em conta os objetivos deste trabalho
mas tem em si tanto de peculiar na forma de o obter como de complicado e, por vezes,
frustrante. A entrevista semi-estruturada levou-me a verdadeiros momentos de
22
confissão, de perceção de uma reflexão que o outro faz quando questionado acerca de si
mesmo, de humanização da minha população de estudo com a importância que tal
assumiu para eles7.
Não foi, no entanto, uma técnica de recolha de informação fácil tendo em conta
todo o contexto quer da população que tinha muito de irregular nas idas ao Refeitório,
que nem sempre falava português, que nem sempre comparecia para as entrevistas, que
nem sempre compreendia o que lhes perguntava, que muitas vezes optava por alterar os
factos, que muitas vezes optava pelo silêncio ou por divagar acerca de outros temas
além daqueles que questionava8; quer do terreno em si na medida em que sendo um
espaço de ordem e regras e com elevada importância para estas pessoas nem sempre se
sentiam à vontade para falar sobre as suas vidas, nem sempre se sentiam à vontade
mesmo quando distantes do Refeitório para falar sobre a sua realidade9. Foi, ainda
assim, uma técnica que acabou por dar frutos.
Tendo a metodologia apresentada em conta, é importante diferenciar as
perspetivas e hipóteses com que fui para o terreno e para um primeiro contacto com as
pessoas sem-abrigo do Refeitório e os momentos sucessivos em que tive
obrigatoriamente de realizar um ajuste seja nas hipóteses que criara seja nas relações
entre tópicos que imaginara seja no comportamento que tinha à partida10.
Esta ideia é fundamental tanto neste trabalho como em qualquer outro que seja
científico e estude uma população em geral: trata-se de um processo, de um
encadeamento, de uma ligação entre várias fases na qual a ideia de partida, a pergunta
7 Como exemplo explicativo dessa importância posso incluir a entrada do Diário de Campo de dia
4.1.2017: “Levou a ideia de entrevista muito a sério não deixando ninguém falar perto dele para que não
perturbasse a gravação.” E de dia 17.4.2017: “De certa forma, todos aqueles com quem falei para o
trabalho fazem questão de me ir mantendo a par da evolução das suas situações/problemáticas com que
se deparam (…)”
8 Cf. Entrevista a Francisco; entrevista a Nicolay; entrevista a Jallah
9 Cf. Entrevista a Nicolay; entrevista a Yassine
10 Como é o caso, por exemplo, dos tópicos de conversa que tinha inicialmente em que incluíra questões
como: “Tem algum sítio a que possa chamar casa?” ou “O que significa não ter uma casa?” ou “O que
significa ser sem-abrigo?” ou “Tendo em conta a situação de vulnerabilidade que soluções lhe foram
sendo apresentadas?” e que mais tarde foram retiradas para não ferir suscetibilidades depois de ter falado
com a pessoa que gere o Refeitório e esta me ter alertado para não utilizar o termo “sem-abrigo” (cf.
Diário de Campo). Também posso dar o exemplo da alteração de comportamento que se deu na forma
como me relacionava com as pessoas sem-abrigo que frequentavam o Refeitório, sendo visível na entrada
do Diário de Campo de dia 7.11.2016.
23
de partida, as teorias e perspetivas analíticas, as metodologias, são constantemente
alteradas à medida que vamos e regressamos do terreno, relevando este processo a
necessidade de adquirirmos uma postura de abertura à mudança e ao que o terreno nos
dá, numa completa contradição daquelas ideias metodológicas que apelam a um
conjunto de formas rígidas e padronizadas de olhar o que queremos investigar,
chegando quase a moldar o terreno e a informação àquilo que queremos à partida
encontrar.
Todo este trabalho de pesquisa, de formulação de hipóteses, de aproximação ao
terreno, de contacto com a população de estudo, de análise dos dados recolhidos, foi
realizado tendo em conta alguns dos princípios da Sociologia Pragmática, na medida em
que foi com base nessas premissas que conseguimos ir para o terreno com uma lente
que nos permite olhar ao mesmo tempo os processos e as operações presentes no
contexto estudado e a forma como a pessoa sem-abrigo se envolve e é envolvida nesses
mesmos processos e operações que lhe são exteriores mas interiores porque têm uma
implicação direta no “eu” dos indivíduos por mim estudados (cf. Barthe et al. 2016).
Percurso metodológico: balanço e reflexão
Tendo em conta o percurso metodológico realizado, que começou na definição
da população de estudo – as pessoas sem-abrigo –, do terreno onde iria decorrer o
trabalho de investigação – a cidade de Lisboa, em geral, e o Refeitório Rosália Rendu,
em particular – e de alguns eixos basilares que sustentaram tanto a observação
participante como as entrevistas realizadas – resumidos nos verbos acolher, habitar,
apegar –, cabe-me apontar aqui alguns aspetos positivos, bem como alguns aspetos que
recomeçando ponderaria alterar.
A metodologia por mim escolhida levou-me a realizar um estudo de cariz
qualitativo, a observar detalhadamente a realidade das pessoas sem-abrigo com quem
estive no papel de voluntária desde outubro de 2016, a conversar com estas pessoas
durante o período de almoço com os momentos que lhe antecediam e sucediam e a
entrevistar um pequeno grupo de pessoas com quem a comunicação e a relação
estabelecida foram obtendo menos obstáculos face ao grupo geral.
Consegui, por esta via, bastante informação acerca das várias problemáticas das
pessoas sem-abrigo, da forma como lidam com as suas inquietações, das dinâmicas
24
entre uns e outros seja com base no país de origem, na língua falada, no lugar que
ocupavam durante o almoço.
Consegui, igualmente, ter uma noção daquela que é a apropriação do espaço
efetuada por estas pessoas sem-abrigo, sendo neste caso mais visível se deslocarmos o
olhar da cidade para o Refeitório onde cada um tem o seu prato, tem o seu lugar, tem a
sua forma de tratamento que o diferencia do utente que está imediatamente ao seu lado,
tem as suas especificidades, o seu nome, a sua caixa, tem uma hipótese de ser tido como
ser humano.
Por fim, foi notório através das entrevistas realizadas, que as vivências e as
experiências destas pessoas vulneráveis adquirem uma outra dimensão quando relatadas
por quem as vive e experiencia. Isto é, as entrevistas serviram não só para recolher
informação acerca dos tópicos de interesse em relação à população em análise mas,
também, para que estas pessoas acabassem por refletir um pouco elas mesmas na sua
história, no seu presente, na situação que vivem.
Acabaram por – dadas as circunstâncias em que falámos, a importância que tinha
para mim ouvi-los, a confiança que foi sendo construída, a escolha do local onde seria a
entrevista – servir-se destes momentos de entrevista para falarem abertamente comigo,
para se justificarem, para criticarem, para sugerirem, para sonharem e perspetivarem,
tornando-se as entrevistas quase como momentos condensados e afastados da
normalidade dos seus quotidianos.
Tendo em mente o objeto final da investigação que realizei posso dizer que num
futuro em que trabalhe com uma população de pessoas sem-abrigo por um lado irei
tentar ir o mais cedo possível para o terreno, resolvendo as questões logísticas tais como
a que instituição me associar para ter acesso à minha população de estudo; tentarei
igualmente privilegiar um terreno com pessoas que dominem o português ou o inglês
para que a comunicação possa fluir; e provavelmente outra ideia seria conseguir tempo
suficiente na investigação e ter confiança suficiente nas pessoas sem-abrigo e delas em
relação a mim para as acompanhar no antes e depois do Refeitório para que melhor
conseguisse observar não só a sua relação com a cidade e o espaço que habitam e
marcam com o seu caminho como também a sua relação com o “outro” que coabita os
mesmos espaços.
25
Como pensar as Pessoas Sem-Abrigo: definições, vulnerabilidades, experiências e
problemáticas
Ao partir para o terreno na investigação que procurei desenvolver era
fundamental ir já com uma mala de leituras prévia, sendo que, depois das várias
conversas e observações realizadas empiricamente essas leituras tiveram de passar por
todo um processo de atualização para que pudessem acompanhar os desenvolvimentos
que aconteciam na vertente mais prática deste trabalho.
Imperava pensar em três tempos a realidade das pessoas sem-abrigo do
Refeitório Rosália Rendu – espaço por mim escolhido para realizar o trabalho de
voluntária e investigadora, onde a diversidade e especificidade das pessoas sem-abrigo
abundava.
Num primeiro momento o foco prende-se com o “acolher” – como é que a
cidade acolhe a pessoa que passa a ser/estar sem-abrigo, quais os mecanismos que é
necessário aprender para (sobre)viver na cidade enquanto pessoa vulnerável sem-abrigo,
quais os dispositivos existentes para, de facto, acolher esta população desprovida da
maioria dos bens e do conforto associados ao habitar uma “casa”.
Com o passar do tempo pela experiência da pessoa sem-abrigo podemos olhar o
“habitar” – quais as táticas para tornar o espaço público um espaço “habitável”, o que
implica “habitar” um espaço do comum, como se realiza a “apropriação” e a
“marcação” do espaço por uma população vulnerável.
Por fim, interessa-nos ainda um terceiro tempo que passa pela equação do
“apegar” – como se (re)faz o laço de confiança com o “outro”, como se olha e se sente a
proximidade do outro, como se relacionar numa realidade pautada pelas ausências.
É com base nestes três principais eixos que queremos problematizar a população
sem-abrigo do Refeitório Rosália Rendu (no Campo Grande), na apropriação que faz do
espaço urbano e também do status de serem pessoas sem-abrigo, e ainda na relação que
desenvolvem com o “outro” na multiplicidade de figuras assumida por esse “outro”.
Ora, torna-se deveras importante articular várias formas de pensar a realidade
das pessoas sem-abrigo no panorama atual, seja, por um lado, na sua definição oficial,
seja através de uma observação com a lente científica dos estudos produzidos acerca
desta população e das várias problemáticas que lhe são inerentes, seja, ainda, tendo em
conta a experiência dos próprios atores sem os quais não se poderia realizar um estudo
26
que correspondesse à realidade na forma que é vivida pelas próprias pessoas sem-
abrigo.
Temos, atualmente em Lisboa, que pessoa sem-abrigo é “aquela que,
independentemente da sua nacionalidade, idade, sexo, condição socioeconómica e
condição de saúde física e mental, se encontre: sem teto – vivendo no espaço público,
alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário; sem casa –
encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito.” (in Estratégia
Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo, 2008; Plano Cidade para a Pessoa
Sem-Abrigo, 2009; Programa Municipal para a Pessoa Sem-Abrigo, 2015).
Deparamo-nos, ao analisar esta definição oficial pela qual são orientados os
dispositivos de auxílio à pessoa sem-abrigo, que a preocupação principal face a estas
pessoas passa pela questão da falta ou precariedade de habitação, deixando de lado
todas as outras problemáticas que existem na vida quotidiana de quem se encontra em
situação de sem-abrigo.
Importa, então, levar o nosso olhar além da questão habitacional uma vez que é
de pessoas que estamos a falar, de seres vivos que são seres humanos, ou seja, tal como
defendido por Ricoeur e analisado em Breviglieri (2012) devemos equacionar estas
pessoas sem-abrigo através de uma “antropologia das capacidades”11, surgindo aqui a
ideia de uma “garantia íntima de poder tornar-se capaz”12 associada a uma noção de
“eu posso”13 que nos vai permitir pensar as histórias de vida das pessoas sem-abrigo no
que de vulneráveis e frágeis podem ser nesta distinção do eu como pessoa ou, então,
numa perspetiva distinta com relatos de superação das contrariedades que vão surgindo
no quotidiano destes meus interlocutores.
Refiro-me, aqui, a um olhar para as pessoas sem-abrigo que transporta em si
uma reflexão não só nossa como também dos indivíduos com quem fui interagindo,
numa tentativa de “recuperar a sua «capacidade de agir, de pensar, de sentir,
capacidade quase enterrada, perdida, nos saberes, nas práticas, nos sentimentos que
11 «anthropologie capacitaire» (Breviglieri 2012)
12 «assurance intime de pouvoir se rendre capable» (Breviglieri 2012)
13 «je peux» (Breviglieri 2012)
27
exterioriza sobre si mesmo” (Vallée 2010, 263-264, tradução minha14), ou seja, aquilo
que faz destes sujeitos seres humanos, pessoas sem-abrigo que são mais do que meros
corpos sem um teto – são pessoas (cf. noção de manutenção de si em Vezeanu 2004).
É precisamente para esse todo de problemas, questões, faltas, dificuldades que se
articulam naquilo que é ser pessoa sem-abrigo que queremos olhar, problematizando
esta realidade bem como os dispositivos de auxílio que foram entretanto criados, as
relações que são mantidas e desenvolvidas tendo em conta a carência que vai além dos
bens materiais e chega, de forma alarmante, a uma falta de afeto notável a quem quer
que doe um pouco do seu tempo a falar com estas pessoas sobre as suas experiências.
Quintas (2010) surge aqui com uma extrema importância num aspeto do seu
trabalho ao qual recorri para melhor realizar a minha investigação, pensar os resultados
e analisar não só a população de estudo como os serviços disponibilizados para os
auxiliar.
Essa importância surge quando a autora nos diz que “importa, antes de mais,
salientar que não é por falta de proteção jurídica e de enquadramento legal que
existem pessoas sem-abrigo. O direito a uma habitação condigna, ao trabalho, ao
acesso à saúde e a um tratamento igual perante a lei é universalmente proclamado,
como podemos constatar, nomeadamente, pela Declaração Universal dos Direitos do
Homem e pelo Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais,
estando também defendido na Constituição da República Portuguesa e nos diversos
Decretos-Lei que adotaram as medidas internacionalmente propostas.” (Quintas 2010,
4).
O aumento das pessoas sem-abrigo num processo marcado pela sua constância
nesse aumento visível é justificado pela autora com recurso ao patamar individualista e
competitivo em que a nossa sociedade se situa, num contexto claramente impregnado
pelo tecnicismo, a massificação e a virtualidade, “retirando ao homem as suas ligações
ao concreto e desvirtuando-o da sua verdadeira condição humana (…). Neste sentido,
não serão os sem-abrigo os inevitáveis vencidos desta corrida quotidiana tantas vezes
desleal?” (Quintas 2010, 4).
14 «ressaisir sa «puissance d’agir, de penser, de sentir, puissance en quelque sorte enfouie, perdue, dans
les saviors, les pratiques, les sentiments qui l’extériorisent par rapport à lui-même».» (Vallée 2010, 263-
264)
28
Aqui, podemos olhar a tese de João Aldeia (2011) quando este autor nos fala do
principal problema da atual lente através da qual se perceciona o fenómeno das pessoas
sem-abrigo em Portugal, que passa por uma ausência da voz das pessoas em questão, ou
seja, os estudos desenvolvidos têm vindo a deixar de fora, ao não inquirir, as pessoas
que experienciam diariamente não só o que é ser “sem-abrigo” como também a
adaptabilidade ou não das soluções apresentadas nas investigações que vão sendo
desenvolvidas não só pela via da psicologia como também pela via
governamental/estatística, afirmando o autor que “Não é possível produzir informação
relevante sobre o fenómeno sem considerarmos as perspetivas dos próprios indivíduos
sem-abrigo.” (Aldeia 2011, 6).
Aldeia (2011) acaba por ir ao encontro das opções metodológicas tomadas na
minha investigação, na medida em que também este autor se apercebe que para se
escrever, analisar, problematizar, formular teorias, hipóteses, conclusões ou soluções em
relação às pessoas sem-abrigo “É fulcral interagir com estes sujeitos, ouvir as suas
palavras e apreender as suas visões sobre si mesmos e sobre a sociedade.” (Aldeia
2011, 6) – sendo no nosso caso esta interação desenvolvida através do papel de
voluntária no Refeitório, mantendo uma relação praticamente diária com os utentes
desse Refeitório, com os seus problemas, com as conversas que têm entre si, com as
suas realidades transportadas para um pequeno espaço e colocadas em comum num todo
partilhado entre o tempo do período pré-almoço ao período pós-almoço.
É também com João Aldeia (2011) que somos levados a pensar algumas das
problemáticas que orientam a ideia de que ao ser sem-abrigo não se tem um espaço
privado, o que faz com que estas pessoas (que se veem impedidas do direito a um
espaço só seu) se apropriem do espaço público, do espaço do comum, para aí realizarem
tarefas que seriam, à partida do foro privado15.
Uma vez que um dos eixos nos quais se articula a presente investigação passa
pela importância das relações entre as pessoas sem-abrigo e o “outro” somos levados,
não só através da formulação de algumas hipóteses como também através de informação
empírica recolhida, a pensar a importância dos laços sociais para estas pessoas, a forma
15 Um exemplo dessa questão surge na entrevista realizada dia 3.1.2017: o senhor Marcelo dizia que,
como o albergue onde vive tem horários em que está fechado ele faz, por vezes, a troca de roupa, por
motivos de higiene, no sítio onde estiver, realizando um ato de higiene, à partida privado, em locais
públicos, frequentados pelo cidadão comum, onde não se sente confortável por sentir um constante
observar das suas ações.
29
como estes potenciaram a sua situação atual16 ou mesmo como são um resultado direto
da vida na rua onde a interação com o “outro” é necessária à sobrevivência se
equacionarmos uma aprendizagem constante e uma interajuda existente entre as pessoas
sem-abrigo com quem fui falando.
Através das conversas que fomos tendo com os utentes do Refeitório e da
observação que foi sendo realizada conseguimos apreender que, apesar de não ser
evidente, existem muitas relações a serem desenvolvidas no contexto em questão e entre
as várias pessoas sem-abrigo que frequentam este espaço, o que nos leva a pensar, tal
como Aldeia (2011), que “A vida na rua elimina laços, mas também os cria.” (Aldeia
2011, 77), como por exemplo, no caso de Francisco que perdeu a ligação com os pais e
com a restante família mas refere um conjunto de pessoas que o “adotou” ao longo das
situações que foi vivenciando, ou mesmo Marcelo que refere o rompimento dos laços
com os colegas, com os amigos, com as filhas mas que assume um papel de mentor em
relação aos outros utentes do Refeitório, ou ainda o caso de Nicolay que não se
relaciona com a sua família mas diz ter criado em Portugal uma nova família composta
pelos seus amigos.
Surge, de igual modo, a ideia associada a um “desprestígio” – seja numa
autoavaliação potenciada pelas conversas que fui tendo com as pessoas sem-abrigo, seja
pelos discursos perpassados em relação a alguns casos por parte da equipa de
voluntários – da pessoa que passa de ser um cidadão inserido na sua sociedade e no seu
contexto, para ser uma pessoa quase unicamente definida – como visto naquela que é a
definição oficial de pessoa sem-abrigo – pela falta de uma casa, portanto, uma pessoa
sem-abrigo com a vulnerabilidade, a necessidade quase permanente de assistência que
resulta num olhar “desqualificador” destes indivíduos (cf. Pizzio e Veronese 2008;
Aldeia 2011).
Uma vez que nos encontramos a estudar as apropriações e relações desta
população em específico, as ideias de uma possível “solução” para cada conjunto de
problemáticas comportado na história de pessoa com quem fomos falando acabam por
surgir. No entanto, não passa, este trabalho, por uma organização detalhada de vários
16 “Estes são importantes quer para compreender as causas do fenómeno – alterações estruturais nas
relações entre indivíduos e esferas da sociedade – quer para entendermos as formas que essas causas
assumem nas vidas dos sujeitos – despedimento, divórcio/separação, ausência de suporte de outros
indivíduos aquando da perda da habitação.” (Aldeia 2011, 35).
30
conjuntos de solução perante várias questões e problemáticas apresentadas. Passa, antes,
pelo momento que antecede o aparecimento dessas soluções: passa por uma mudança no
olhar que temos para com estas pessoas, nos quadros analíticos que recrutamos para
pensar os modos de vida, as experiências, as dificuldades, as superações, as
potencialidades destes indivíduos.
Ao procurar estudar a pessoa sem-abrigo numa tentativa de olhar além da
definição oficial redutora da realidade que observei aquando do trabalho de campo, fui
levada a consultar o trabalho de Prates, Prates e Machado (2011), na medida em que
estes autores alertam para a necessidade de evitar olhar para a população sem-abrigo
como sendo uma população da rua, pois “considerar que um sujeito é de rua seria o
mesmo que considerar que alguém é de casa ou de apartamento. (…) Ver essa situação
como estado e não como processo é um modo de reiterá-la, sem reconhecer a
perspetiva do movimento de superação (…).” (Prates, Prates e Machado 2011, 194), o
que me fez pensar a situação de sem-abrigo como um processo pautado por um conjunto
de experiências que coexistem num modo de vida que é especial e caracteristicamente
marcado pela ausência de uma casa, não sendo só isso mas também isso.
Em Prates, Prates e Machado (2011) é-nos apresentado como conclusão algo que
tomei como ponto de partida, anterior ainda a uma primeira ida ao terreno, que é
precisamente o “necessário reconhecimento da heterogeneidade [desta] população
[tendo] como consequência, a elaboração de estratégias diversas que contemplem as
particularidades desses sujeitos para possibilitar a superação dos processos de
rualização, evitando abordagens massificadas, a partir da criação de serviços
específicos com corpo profissional diferenciado e capacitado.” (Prates, Prates e
Machado 2011, 211).
Nesta tentativa de concetualização da pessoa sem-abrigo inerente a todo o
trabalho desenvolvido, da denominação de um todo com partes tão diversas que é o ser
“sem-abrigo”, olhamos por um lado os seus discursos onde o termo se funde com uma
realidade pautada para alguns pela ausência de uma casa e de recursos para manter uma
casa17 e para outros por um todo mais global que vai da falta de habitação, à falta de
trabalho, passando mesmo por uma ideia associada à inexistência de autoestima e de
17 Cf. entrevista a Marcelo
31
motivação, de capacidades do “eu”18 para conseguir fazer face ao “ciclo” ou à “espiral”
associada àquilo que é percecionado por estes indivíduos como o ser (com a variação
entre ser e estar) sem-abrigo.
Barreto (1998/2000) refere a questão da relação entre o par “não ter habitação”-
“não ter trabalho” como duas faces distintas, na medida em que ao haver rendimentos
do trabalho, pensões, reformas, estes não garantem por si mesmos o acesso à habitação,
mas diz, tal como Aldeia (2011) e como os utentes do Refeitório, que o facto de não ter
habitação condiciona o acesso ao trabalho e o facto de não terem trabalho condiciona a
possibilidade de possuírem uma casa sua com recursos para a manter.
Ao focarmos, aqui, a população sem-abrigo é importante mencionar o trabalho
de Sousa e Almeida (2001), na medida em que estes autores vão procurar a voz destes
indivíduos para se poderem pronunciar sobre as suas necessidades e relações com os
serviços que são orientados para os auxiliar, tal como eu procuro também dar voz às
pessoas sem-abrigo com quem falei de modo a construir uma análise das suas
experiências e modos de vida nas apropriações e relações que mantêm.
Outro aspeto importante referido por estes autores é a ressalva que fazem acerca
da existência de um novo tipo de pessoa sem-abrigo, uma vez que as condições em que
vivemos hoje são diferentes daquelas vivenciadas há alguns anos atrás, o que acaba por
influenciar o tipo de necessidades e as problemáticas que podemos encontrar ao falar
sobre as experiências das pessoas sem-abrigo hoje (cf. Sousa e Almeida 2001).
Torna-se, de igual modo, interessante recrutar algumas ideias presentes em
Becker (1953), tais como aquelas que se prendem com a ideia de experiência como
fundamento de um dado comportamento (“a presença de um certo tipo de
comportamento é o resultado de uma sequência de experiências sociais, durante as
quais a pessoa adquire uma conceção do significado do comportamento (…)”19 (Becker
1953, 235, tradução minha)), que procuramos transportar para a análise da nossa
problemática de investigação.
Isto é, procuramos pensar as pessoas sem-abrigo e os comportamentos que estas
tendem a desenvolver com uma lente que tenha por base explicativa desses mesmos
18 Cf. entrevista a Francisco
19 “the presence of a given kind of behavior is the result of a sequence of social experiences during which
the person acquires a conception of the meaning of the behavior (…)” (Becker 1953, 235)
32
comportamentos as experiências que foram e vão sendo vividas por estas pessoas,
moldando-as e reconfigurando a forma como se apercebem e autocategorizam não só os
seus modos de vida como, de igualmente e por conseguinte, a si mesmos.
No caso das pessoas sem-abrigo, tal como no caso que Becker (1953) nos
apresenta, existe todo um processo de aprendizagem pelo qual passam as pessoas ao
transitarem de uma situação em que têm um abrigo para a de pessoa sem-abrigo, seja no
que concerne as táticas de sobrevivência na rua, seja a nível de a que instituições
recorrer, em que sítios permanecer, que locais evitar20.
Tendo em conta as observações feitas durante o trabalho de campo conseguimos,
de certo modo, transportar-nos e à nossa população de estudo para aquilo que já Howard
Becker dizia na sua obra Outsiders: “Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em
certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las.” (Becker [1991] 2008, 15) –
tornando-se possível só ao olhar as interações no Refeitório encontrar estas regras do
grupo de utentes entre si como grupo, dentro de si como indivíduos diferentes
pertencentes por si a outros grupos, e com o “outro” representado na figura dos
voluntários e das regras que lhes são impostas ao frequentarem este Refeitório.
Becker ([1991] 2008) continua ainda na temática associada às regras do grupo
social, tal como nós continuamos através da observação participante, dizendo: “Regras
sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando
algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra
é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo
especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo
grupo. Essa pessoa é um outsider.” (Becker [1991] 2008, 15), o que nos leva a pensar
as formas e o modo de qualificação e os julgamentos assentes numa moral política que
tal implica, ou numa vinculação política assente em normatividades com cunho moral.
Ora, no caso da nossa pesquisa, quem será então o “outsider”? Como poderemos
definir “o grupo” a ser estudado uma vez que os elementos desse grupo são por si
mesmos “outsiders” em relação à sociedade no seu todo? Neste caso em particular não
serão as pessoas que vivem em conformidade com as regras da sociedade os “outsiders”
em relação à população observada? Através de que regras, experiências e valores surge
um “outsider” no grupo que procuramos estudar?
20 Cf. entrevista a Francisco; entrevista a Igor; entrevista a Jallah
33
É ainda em Becker (2010) que somos levados a questionar, por um lado, a
importância das imagens que o indivíduo social constrói para si mesmo como
entendimento do seu contexto e das suas experiências e, por outro lado, a ideia de que
“aquilo que encontramos numa área da vida social pode, talvez, iluminar outras áreas,
mesmo aquelas aparentemente muito diferentes.” (Becker 2010, 17), o que nos levou a
analisar os discursos dos nossos interlocutores tendo por base a ideia de que a sua linha
de diálogo, as suas experiências, os seus modos de vida, acabam por ganhar uma nova
luz de entendimento quando relacionados entre si, ao invés de compartimentar o
conhecimento obtido em pequenas “caixas” desligadas umas das outras.
Uma das questões que se colocou ao ter como base empírica da presente
investigação os discursos das pessoas sem-abrigo acerca das suas experiências e modos
de vida foi a da veracidade dos mesmos, de um juízo a ser feito sobre se o que é
formulado por estas pessoas coincide com aquilo que é “a” verdade ou se, por outro
lado, devemos manter algumas reservas em relação ao que nos é dito, tal como as
voluntárias do Refeitório foram dizendo em forma de conselho.
Será através de Goffman (1956) que me proponho olhar uma solução para esse
paradigma entre a verdade factual e a verdade que cada indivíduo transmite quando
discursa sobre aquilo que entende ser a sua experiência, passando precisamente por uma
análise das formas através das quais estes indivíduos se vão apresentar no decorrer do
seu quotidiano, tendo em conta a salvaguarda do autor: “devemos estar preparados para
ver que a impressão da realidade obtida através de uma performance é uma coisa
delicada e frágil que pode ser destruída por percalços menores.”21 (Goffman 1956, 36,
tradução minha).
Olhamos, assim, uma organização discursiva, física e de desempenho perante
um “outro”, que passa por um encadeamento de assuntos, de momentos, de gestos e
expressões reveladoras daquilo que é importante para o “eu” que se dá a conhecer, que
se apresenta representando um determinado papel face à situação em que se encontra,
dando-nos a conhecer aquilo que para ele é importante, em dado contexto, dar a
conhecer (cf. Goffman 1956).
21 “we must be prepared to see that the impression of reality fostered by a performance is a delicate,
fragile thing that can be shattered by very minor mishaps.” (Goffman 1956, 36).
34
Todo este trabalho em torno das pessoas sem-abrigo de Lisboa terá, portanto, um
especial enfoque nas experiências destas pessoas e serão essas experiências que irão
servir para obter quer um contexto quer uma tentativa de conclusão acerca dos
problemas por nós enunciados ao longo do trabalho.
Deste modo, utilizarei o conceito de experiência na esteira de Dewey, isto é, a
ideia de que a experiência conjuga os vários tempos da vida do indivíduo (passado,
presente e futuro) num processo de aprendizagem que significa, em último caso, a
integração do indivíduo (cf. Santos 2011).
Santos (2011) diz-nos ainda que Dewey pensa a experiência tendo por base o
“conhecimento acumulado ao longo do tempo. A experiência não se limita ao ato no
presente, mas também remonta ao que foi aprendido no passado e se reporta ao futuro
para se aprimorar a inteligência quando existe algum problema. O ser humano sofre a
experiência e reage ao mesmo tempo.” (Santos 2011, s.p.).
Além de Dewey (cf. Santos 2011), recrutamos para a nossa análise empírica o
conceito de “experiência” à luz do que Breviglieri (2008b) diz, na medida em que
define este conceito como “eixo de valor”, o que nos vai ajudar a suportar teoricamente
a nossa ideia de pensar as pessoas sem-abrigo com base nas experiências por si vividas
que nos levam não só ao seu passado como à importância que o mesmo teve e tem no
presente e a ideias que, com base nesse presente marcado pelo passado, são formuladas
em relação ao futuro.
Assim, podemos concetualizar a experiência destas pessoas sem-abrigo, na
esteira de Breviglieri (2008b), pela ideia da capacidade de um indivíduo tirar partido das
suas potencialidades para a solução das divergências e problemáticas com que se vai
deparando, o que acaba por ir ao encontro do que procuramos na análise da pessoa sem-
abrigo, é precisamente esta capacitação das potencialidades do “eu” pessoa para fazer
face à situação que o “eu” sem-abrigo enfrenta para, assim, conseguir (sobre)viver em
condições vulneráveis, não deixando de olhar com curiosidade para as questões de
como (con)viver quando se está nessas condições mais vulneráveis, como é que se vai
dar o apegar a alguém ou a algo numa vida pautada pelas carências e ausências.
Ao analisar a população sem-abrigo, uma população vulnerável, vista como
carente não só de meios de sustento financeiro e habitacional mas, como já referi acima,
também de afeto, comportando consigo uma imagem de grupo que vive à margem da
35
sociedade, “outsiders” por si mesmos se comparados com a sociedade dita “normal” (cf.
Becker [1991] 2008), torna-se deveras interessante olharmos além de todos estes pré-
conceitos e, através de uma análise dos discursos como formas de agir, como
dispositivos operativos que trazem consigo e dos comportamentos que têm (no
Refeitório enquanto espaço onde o paradoxo autonomia-vulnerabilidade está muito
presente (cf. Breviglieri 2010b), uns com os outros e entre eles e os voluntários),
olharmos os seus motivos morais nas suas tentativas de justificação (cf. Boltanski 2001)
que, talvez por se tratar o nosso locus de observação de um espaço que tem por base a
ideia de tratar estes indivíduos como seres humanos, faz com que eles se sintam
capacitados de utilizar justificativas e críticas que, no dia-a-dia, não podem demonstrar
por serem, de certo modo, “desumanizados” perante a restante sociedade.
Torna-se interessante olhar para os comportamentos, para as interações, para a
forma como recorrem à crítica, à justificação, numa análise que tem por base a ideia de
que “contra as tentativas de redução das justificações, fornecidas pelos atores a
ideologias que dissimulam interesses e relações de força, tomámos o partido de levar a
sério as exigências normativas que as pessoas fazem a si próprias, as suas
justificações.” (Boltanski 2001, 15).
Ora, toda esta formulação de exigências normativas do “eu” das pessoas sem-
abrigo para consigo mesmas acaba por ser bastante visível num contexto pautado pela
palavra “ordem”, que tem um conjunto de “regras” que ao não serem cumpridas
levantam questões que catapultam o ator social para a formulação clara de um discurso
justificativo de onde se consegue facilmente extrair os seus motivos, as suas críticas, as
suas justificações perante determinada forma comportamental que tem.
Numa outra linha de pensamento ao analisar esta população pautada por um
quotidiano de experiências de ausência acabamos por recorrer às ideias de Paperman
(2013) quando olhamos as emoções que vão exprimindo estas pessoas, seja nas relações
mantidas e observáveis no Refeitório, seja nas relações de que nos falam em
confidência, seja ainda naquelas que estão presentes no discurso por eles formulado (cf.
entrevistas a todos os interlocutores e Diário de Campo).
Estas emoções vão exprimir algo não capturado pelas palavras mas percecionado
no tom de voz, na forma como se mexe as mãos, como se desvia o olhar ao falar de
determinado tema, como se evita ao nível do discurso um certo tópico escolhendo
outros para mencionar, acabando por revelar alguma incongruência discursiva que
36
deverá ser ultrapassada numa análise atenta aos detalhes juntando a escuta ao olhar
nesta tentativa de compreender as relações sociais das pessoas sem-abrigo que estudei.
Os sentimentos surgem em Paperman (2013) também como um indicador da
pertença a um grupo ou coletividade. Isto é: “As regras dos sentimentos não são nada
mais que um conjunto de regras sociais, que contribuem para delimitar a pertença a um
grupo ou a uma entidade coletiva. Elas são um dos elementos da constituição do
coletivo, permitindo traçar uma linha de partilha entre aquele que manifesta uma
pertença, é reconhecido e identificável como tendo uma conduta inteligível pelo grupo e
aquele que, suprimindo as regras, perde essa inteligibilidade imediata, aquela que
advém da aceitação das condutas associadas às regras.”22 (Paperman 2013, 167-168,
tradução minha).
Procurando, então, analisar uma população vulnerável (no sentido dado pelo
paradoxo autonomia-vulnerabilidade, tal como referido em Breviglieri (2004)), entendi
que o contexto estudado implicaria uma dupla vulnerabilidade: estava a lidar com
pessoas sem-abrigo estrangeiras, na sua maioria, o que me levou a questionar se esta
particularidade de estar sem-abrigo num país que não o seu não acabaria por agravar a
vulnerabilidade acima referida.
Deste modo, debrucei-me no texto de Breviglieri e Stavo-Debauge (2004) onde
os autores analisam a fragilidade das identidades, nomeadamente dos imigrantes. Daí
consegui extrair algumas ideias interessantes a ter em conta aquando da aproximação à
população de estudo que procuro problematizar, como por exemplo quando os autores
mencionam que aquele que é imigrante “não é aquele que «vem ao mundo», ele é
aquele que «vem a um mundo» (depois de outro) perante o qual ele se apresenta pouco
ou mal equipado e que se espera que possa, no decorrer de um percurso, dizer e ser
dito como parte «desse mundo».”23 (Breviglieri e Stavo-Debauge 2004, s.p., tradução
22 «Les règles de sentiments ne sont rien de plus qu’une certaine sorte de règles sociales, contribuant à
délimiter l’appartenance à un groupe ou une entité collective. Elles sont un des éléments de la
constitution du collectif, permettant de tracer une ligne de partage entre ce qui manifeste l’appartenance,
est reconnaissable et identifiable comme conduite intelligible pour le groupe et ce qui, dérogeant aux
règles, perd cette intelligibilité immédiate, celle qui ressort de l’acceptabilité de conduites pouvant être
rattachées à des règles.» (Paperman 2013, 167-168)
23 «S’il n’est pas celui qui «vient au monde», il est celui qui «vient à un monde» (depuis un autre) pour
lequel il se présente peu ou mal équipé et dont on attend qu’il puisse, à l’issue d’un parcours, se dire et
être dit partie prenant «de ce monde».» (Breviglieri e Stavo-Debauge 2004, s.p.)
37
minha) – o que nos pode levar a problematizar a aproximação destas pessoas sem-
abrigo ao “mundo” de Portugal e Lisboa, em particular, dotando-se para essa
aproximação de alguns dispositivos que vão possibilitar engajamentos, vinculações,
estar ligados ao “outro” ou, por outro lado, evitar o “outro”, desligar-se ou desapegar-se.
Sendo estes indivíduos imigrantes, vários entraves se colocam tendo em conta a
sua pertença à sociedade portuguesa, passando primeiramente pela aprendizagem da
língua (quando comecei o voluntariado no Refeitório havia quem não soubesse falar
outra língua além do russo, o que dificultava a relação e o auxílio) e, num outro
momento, pela adaptação às especificidades dos modos de vida que são diferentes
daqueles experienciados no seu país de origem, acabando por ser através das suas
relações sociais que vão aprender a orientar-se e que vão descobrir o Refeitório que
surge aqui muitas vezes como um primeiro dispositivo de apego destas pessoas
estrangeiras.
Coloca-se também a questão dos motivos e das implicações de quem se sujeita a
realizar esta mudança que tanta agitação causa ao “eu” num primeiro momento quanto
refletimos sobre “(…) a questão da fragilidade da sua pertença”24 (Breviglieri e Stavo-
Debauge 2004, s.p., tradução minha), na medida em que acaba por haver um jogo de
onde pertence e onde deixa de pertencer, com o que tal vai significar para possíveis
questões não só identitárias como também práticas – “Olhar a realidade da pertença
leva os investigadores a mostrarem-se atentos a um certo número de «lugares» onde se
anuncia a existência persistente de obstáculos que impedem o exercício de capacidades
e a obtenção de bens permitidos àqueles que pertencem «plenamente».”25 (Breviglieri e
Stavo-Debauge 2004, s.p., tradução minha).
Focando-nos ainda nesta dupla vulnerabilidade – de pessoa sem-abrigo e
estrangeira – temos de pensar, então, nos processos e nas experiências pelas quais estas
pessoas passaram desde o seu país de origem e da saída desse país, com os motivos
associados a essa saída, até hoje em Lisboa na situação de pessoas sem-abrigo, o que
leva a que olhemos a ideia tida em Breviglieri (2010a) de que “o primeiro
24 «(…) la question de la fragilité de son appartenance.» (Breviglieri e Stavo-Debauge 2004, s.p.)
25 «Se soucier de la réalité de l’appartenance amène les chercheurs à se montrer attentifs à un certain
nombre de «lieux» où s’annonce l’existence persistante d’obstacles entravant l’exercice de capacités et
l’obtention de biens promis à ceux qui «pleinement» appartiennent.» (Breviglieri e Stavo-Debauge 2004,
s.p.)
38
acontecimento sofrido na migração emerge no momento de partida e tem que ver com a
separação dos que são próximos, com a perda e uma certa rutura com um mundo
familiar.”26 (Breviglieri 2010a, 58) – ou seja, teremos de recuar a nossa análise das
experiências destas pessoas sem-abrigo migrantes a um tempo passado, apelando à
memória de uma vida ancorada noutro país, com outras ocupações, outros modos de
vida e outras relações, de forma a percebermos o seu presente e a sua tentativa de
manter uma “coesão de vida” (cf. Breviglieri 2010a).
Ao conversar com pessoas sem-abrigo migrantes ou não migrantes torna-se
interessante a ideia de uma nostalgia em relação ao seu passado, seja ao nível de um
país onde outrora viveram com algumas posses, um trabalho, uma família e um conceito
de felicidade, seja ao nível de um passado onde, embora no mesmo país, tinham as suas
relações, trabalhos e estabilidade.
Olhamos, assim, estes discursos que nos levam ao conceito de nostalgia perante
um passado e um país que outrora formaram uma realidade distinta da que hoje
experienciam, à qual alguns se querem manter agarrados enquanto realização prática da
felicidade e de perspetivas futuras e outros se querem afastar devido a momentos de
rutura dolorosos ao ponto de não se ponderar um regresso ao país de origem – levando-
nos ao que Breviglieri (2010a) dizia pensando esta nostalgia associada a uma tentativa
de coesão do “eu”: “É, por conseguinte, através de uma frágil coesão identitária que
faz da nostalgia, não só um esforço notável leva a que o migrante se mova do seu lugar
de origem, instituído pelo próprio exílio, para o sítio onde ele vai; mas também há uma
inclinação retrógrada, uma postura desatualizada que tende a cristalizar esse lufar e a
dar-lhe uma forma fechada e definitiva. A coesão consolida-se mas numa quase-
virtualidade problemática, uma vez que ela não opera senão em detrimento de qualquer
encontro real, de qualquer possibilidade de descentramento da perspetiva, e na
impossibilidade de fundar um mundo comum num outro lugar onde a mediação do outro
é necessária.”27 (Breviglieri 2010a, 63).
26 «(…) le premier événement subi dans la migration émerge au moment du départ et prend le visage de
la séparation des proches, de la perte et d’une certaine rupture avec un monde familier.» (Breviglieri
2010a, 58)
27 «Il y a donc, à travers la fragile cohésion identitaire que permet la nostalgie, non seulement un effort
remarquable que produit le migrant pour déplacer son lieu d’origine, institué par l’exil même, là où il
va ; mais il y a aussi une pente rétrograde, une posture passéiste qui tend à cristalliser ce lieu et à lui
donner une forme close et définitive. La cohésion se consolide alors, mais dans une quasi-virtualité
39
É, prosseguindo com a problematização da “nostalgia” presente no discurso dos
nossos interlocutores, que retornamos à ideia de “habitar” – bastante central num
trabalho sobre uma população sem um abrigo, sem uma estabilidade associada ao seu
habitar, sem um local certo, fixo, permanente que possam “habitar”, mas que acabam
por, através de diversas táticas adotadas, aprendidas, observadas, base de um jogo de
tentativa-erro, encontrar um conjunto de espaços que vão ser por si “apropriados”, logo
“habitados”, na esteira do que Breviglieri (2010a) diz: “Habitar supõe uma certa
ancoragem fenomenal do corpo, alimentada por uma matriz de experiências familiares,
um conjunto de emoções tranquilizantes procuradas na intimidade da casa, uma sutura
afetiva que tem cada um como ligado aos que lhe são próximos por um laço não-
arbitrário” (Breviglieri, 2002 in Breviglieri 2010a, 63, tradução minha28).
Conseguimos já depreender que uma das problemáticas com que nos deparámos
no âmbito da investigação, no seu momento mais prático, e que se tornou impossível
não olhar com mais atenção, foi a questão da imigração e da forma como o acolhimento
destas pessoas migrantes pelo país de destino (Portugal) acabou por ditar a forma como
estas se adaptaram e o estilo de vida que acabaram por manter num país que sentem ser
pouco deles face ao seu país de origem.
Deste modo, tornou-se importante, na medida em que catapultou o nosso
interesse para outros parâmetros que não os pensados inicialmente, pensar esta questão
da imigração e do direito à cidadania com base no texto de Lacroix (2012).
Esta autora menciona questões que já tínhamos concebido, tais como a
vulnerabilidade e a precariedade, orientando estas questões em torno do migrante (cf.
Lacroix 2012), daquele que sai do seu país de origem, do seu espaço de familiaridade e
segurança, e se dirige para um outro país muitas vezes em busca de um futuro melhor e
acabando, nos casos por nós estudados, por sucumbir a uma vida vulnerável, sem
apoios, com carências monetárias, habitacionais e afetivas (mencionando apenas
algumas), acabando por se tornar sem-abrigo e viver na rua nos casos mais extremos.
problématique car elle ne s’opère qu’à la défaveur de toute rencontre véritable, de toute possibilité de
décentrement de perspective, et dans l’impossibilité de fonder un monde commun dans un ailleurs où la
médiation de l’autre est requise.» (Breviglieri 2010a, 63)
28 «Habiter suppose un certain ancrage phénoménal du corps, nourri par une matrice d’expériences
familières, un foyer d’émotions sécurisantes procurées dans l’intimité du chez soi, une suture affective
qui tient chacun comme attaché aux proches par un lien non-arbitraire» (Breviglieri, 2002 in Breviglieri
2010a, 63)
40
Somos, então, alertados para o facto de que “Certas categorias de pessoas,
incluindo migrantes sem documentos, vítimas de tráfico, trabalhadores temporários,
trabalhadores sazonais, trabalhadores domésticos, e pessoas que procuram asilo, são
mais vulneráveis do que outras devido à natureza precária do seu estatuto de
imigração. Significando precária que eles não sabem se lhes vai ser permitido ficar ou
não no país, se vão ter um estatuto de residência permanente, se podem pensar em
assentar no país anfitrião a longo prazo como cidadãos com os mesmos direitos que
devem ser tidos para todos, independentemente do estatuto de imigração. Estes
migrantes caem na categoria de pessoas que foram relegadas para as margens não só
das políticas sociais e de imigração, e da participação social nas políticas de
acolhimento, eles também veem negados os direitos de cidadania na sua totalidade.”29
(Lacroix 2012, 97, tradução minha).
Acabamos, assim, por ter em mente uma das principais conclusões de Marie
Lacroix (2012) – “O argumento apresentado neste ensaio é de que a natureza precária
do estatuto de imigração experienciado pelas várias categorias de migrantes nas
diferentes partes do mundo (…) é definido por processos de exclusão social universais
que são um resultado direto das políticas sociais e de imigração e, num nível
individual, caracterizadas pela ansiedade e incerteza.” (Lacroix 2012, 97, tradução
minha30) – quando olhamos as pessoas sem-abrigo migrantes com as quais nos
deparamos, ajustando, pois, a forma como pensamos as possíveis soluções e influências
das características “migrante” e “vulnerável” na experiência e nos modos de vida destas
pessoas, não deixando, precisamente, de sublinhar a importância, tanto em Lacroix
(2012) como no meu trabalho, de analisar os discursos das pessoas em questão.
29 “Certain categories of people, including undocumented migrants, victims of trafficking, temporary
workers, seasonal workers, domestic workers, and asylum seekers, are more vulnerable than others due
to precarious nature of their immigration status. Precarious meaning that they do not know if they will be
allowed to stay or not in the country, if they will be given permanent residency status, if they can envisage
settling in the host country for the long term as citizens endowed with the same rights that should be
accorded to all, regardless of immigration status. These migrants fall into a category of people that have
been relegated to the margins not only of social and immigration policies and of social participation in
host polities, they are also denied full citizenship rights.” (Lacroix 2012, 97)
30 “The argument presented in this paper is that the precarious nature of immigration status experienced
by various categories of migrants in different parts of the world (…) is defined by universal processes if
social exclusion that are a direct result of immigration and social policies and, at an individual level
characterized by anxiety and uncertainty.” (Lacroix 2012, 97)
41
Ao estar a analisar uma população que, como vimos, é composta por alguns
imigrantes, nomeadamente alguns dos países de Leste, torna-se interessante olhar para a
questão da integração destas pessoas em Portugal, que se apresenta muitas vezes como
uma das problemáticas que leva à situação de sem-abrigo.
Recorri, então, ao trabalho realizado por Castro e Marques (2008) pela forma
como analisam esta questão, com a importância que tem para esta investigação, que é a
da integração dos imigrantes no país que os vai receber (neste caso, Portugal). Tendo
como base essa integração são analisadas as categorias de legalização, língua e
educação, percursos profissionais, habitação e mobilidade territorial, acolhimento e
relações interétnicas, segurança social e, por fim, saúde.
Coloca-se, então, a questão de como é que estes indivíduos participam das
pluralidades mantidas e perpetuadas no quadro da realidade social em questão. Como
falar de cidadania daquele que ainda tem questões de pertença por resolver? Como
integrar sem homogeneizar, sem retirar àquele que chega os seus princípios-base tidos
na relação com o país em que outrora viveu? Transportando-nos para um sistema de
auxílio às pessoas sem-abrigo migrantes: como auxiliar na pertença e na vulnerabilidade
sem retirar autonomia e poder de escolha?
As Pessoas Sem-Abrigo e o Espaço: Apropriar Habitando
Uma vez que nos encontramos a realizar um trabalho sobre a apropriação do
espaço pelas pessoas sem-abrigo, torna-se importante problematizar esta noção de
espaço, seja enquanto “espaço público”, seja como espaço do comum (cf. Pattaroni
2016), seja enquanto espaço onde se vai inserir e desenvolver o indivíduo.
Esta ideia surge explícita quando Pattaroni (2016) nos diz que podemos refletir
sobre o espaço através de dois eixos, ou seja, “através da experiência e dos
fundamentos antropológicos do agir, por um lado, e através da instituição do comum e
dos fundamentos políticos de viver em conjunto, por outro lado.” (Pattaroni 2016, 1,
tradução minha31), sugerindo ainda uma outra abordagem que passa por uma “leitura
plural” deste espaço que é político, tem vários formatos e temem si uma relação com as
pessoas numa formulação daquilo que vai ser o comum. 31 «vers l’expérience et les fondements anthropologiques de l’agir d’une part et vers l’institution du
commun et les fondements politiques du vivre ensemble d’autre part.» (Pattaroni 2016, 1)
42
Aqui o espaço de que falamos é mais do que um simples local onde acontecem
os processos sociais, é antes um fator bastante importante na estrutura sociedade e
desses mesmos processos e fenómenos (cf. Pattaroni 2016), na medida em que se vai
desenvolver uma relação entre os atores sociais e o espaço por eles habitado,
apropriado, em que um irá influenciar a experiência do outro, que por sua vez vai
marcar (cf. Veschambre 2004 e a ideia de marcação do espaço), alterando, assim, esse
espaço. Falamos, pois, de “uma conceção de espaço que o liga, por sua vez, à questão
da experiência situada das pessoas – a questão do agir – e à questão da instituição do
comum – a questão das estruturas.” (Pattaroni 2016, 2, tradução minha32), sendo estas
duas questões interligadas na forma como é percecionado o espaço na Sociologia
Pragmática e no trabalho apresentado.
Somos confrontados com uma noção de prática espacial que se vai associar à
ideia de um código (cf. Pattaroni 2016), que já acima mencionei querer compreender, ou
seja, quero entender como é que as pessoas que vou analisar desenvolvem uma prática
espacial com os seus códigos próprios, uma vez que possuem muito poucas coisas que
delimitem determinado lugar como seu, como alvo das suas práticas e em relação com
as suas experiências, operando este código que procuro ao nível de “relacionar a
experiência individual e a constituição do comum necessária para dar à questão
espacial toda a sua importância social. Ou por outras palavras, ela contém uma teoria
da ação que permite ter em conta a interação entre a espacialidade de uma situação e
as formas de relação das pessoas.” (Pattaroni 2016, 9, tradução minha33).
Olhamos o papel do espaço na estrutura do social, na esteira de Pattaroni (2016),
na medida em que analisamos “a maneira como a produção do espaço se realiza
através de uma delimitação das modalidades da experiência e das qualidades do
comum.” (Pattaroni 2016, 16, tradução minha34), numa ideia de pensar não só a
32 «d’une conception de l’espace qui le lie à la fois à la question de l’expérience située des personne – la
question de l’agir – et à la question de l’institution du commun – la question des structures.» (Pattaroni
2016, 2)
33 «la mise en relation entre l’expérience individuelle et la constitution du commun nécessaire pour
donner à la question spatiale toute son importance sociale. En d’autres termes, elle contient une théorie
de l’action permettant de rendre compte de l’interaction entre la spatialité d’une situation et les formes
d’engagement des personnes.» (Pattaroni 2016, 9)
34 «la manière dont la production de l’espace se réalise au travers d’une délimitation des modalités de
l’expérience et des qualités du commun.» (Pattaroni 2016, 16)
43
experiência do “eu” em determinado local como também a importância d comum na
modelação desse mesmo espaço.
Encaramos, aqui, o espaço como desempenhando um conjunto de papéis tais
como o de estruturação da experiência, numa ideia de uma trama sociológica do espaço
onde os seus papéis múltiplos acabam por surgir interrelacionados num agregado entre,
por um lado, a experiência do indivíduo e, por outro, a estrutura e a instituição,
orientadas para uma produção do comum (cf. Pattaroni 2016).
Abordando agora a população sem-abrigo na sua relação com a cidade somos
confrontados com uma realidade pautada pela movimentação, pela errância, quase por
uma demarcação de percursos, na medida em que o quotidiano destas pessoas acaba por
ser semelhante ao passar do tempo, os sítios aos quais se recorre vão sendo os mesmos,
os trajetos acabam por definir todo um estilo de vida, bem como as experiências que lhe
vão ser adjacentes.
Deste modo, apoiamo-nos na esteira de Michel de Certeau (1998), de forma a
olharmos precisamente as vidas caracterizadas pela errância, pelo caminhar que se torna
a forma de “habitar” a cidade mantida pelas pessoas sem-abrigo numa relação dialética
onde “cidade” aparece concetualizada como algo associado àquele que percorre o
espaço que lhe é inerente.
Se nos cingirmos a um caminhar das pessoas sem-abrigo, ou seja, das pessoas
que não têm uma casa própria, que não habitam um lugar de familiaridade, que vivem
num trajeto permanente e sem retorno a um ponto base, se analisarmos as problemáticas
levantadas por este duplo movimento entre cidade e pessoa sem-abrigo, moldando-se
entre si numa relação dialética, então, temos que “Caminhar é ter falta de lugar. É o
processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância
multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social de privação
de lugar – uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e
ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas relações e os cruzamentos
desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob o signo do que
deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a Cidade.” (Certeau 1998, 183; cf.
Breviglieri e Stavo-Debauge 2007).
Também a identidade das pessoas por mim analisadas vai estar intrinsecamente
relacionada com esta apropriação do espaço-cidade que se transporta num quotidiano de
44
caminhos e percursos, o que nos leva a refletir sobre como “a identidade fornecida por
esse lugar [a cidade] é tanto mais simbólica (nomeada) quanto, malgrado a
desigualdade dos títulos e das rendas entre habitantes da cidade, existe somente um
pulular de passantes, uma rede de estradas tomadas de empréstimo por uma
circulação, uma agitação através das aparências do próprio, um universo de locações
frequentadas por um não-lugar ou por lugares sonhados.” (Certeau 1998, 183).
Será, ainda, através de Certeau (1998) que podemos pensar a questão da
memória associada a um passado que imprime a atualidade tal como ela é, moldando-a
através das experiências já vividas num conjunto de realidades que irão orientar um
conjunto de expectativas para um futuro desconhecido hoje. Em relação à população
sem-abrigo, nomeadamente àqueles que são migrantes, somos levados a transpor a ideia
de memória um pouco mais além, juntando-a ao conceito de nostalgia e de que “o
memorável é aquilo que se pode sonhar a respeito do lugar.” (Certeau 1998, 190), e é
precisamente esta memória que vamos encontrar ao falar das experiências e da história
de vida dos nossos interlocutores.
O que significa, então, “habitar” junto de um conjunto de pessoas que, por
definição oficial e operacional, não tem um abrigo, uma casa, um espaço associado à
intimidade, proteção, privacidade? Como é que podemos olhar as formas de
“habitabilidade” (cf. Breviglieri 2006) destes indivíduos na cidade? Existe uma
apropriação de um espaço na cidade? Será que ao demarcarem um percurso, tornando-o
algo do quotidiano, não se apropriam – momentaneamente – de um lugar na cidade?
Como pensam estas pessoas o “meu”, o “teu”, o “nosso”, o “público”, o “privado”?
Quais as noções e definições que pautam a sua vida diária?
Marc Breviglieri (2006) diz que “habitar faz com que nos apeguemos”
(Breviglieri 2006, tradução minha), continuando com a ideia de que “os seres e as
coisas que nos habitam inscrevem, no centro da nossa personalidade, um fundo de
história partilhada que é sentida na dimensão afetiva do apego” (Breviglieri 2006, 9,
tradução minha35), o que me leva a questionar as formas de apego em vigor no grupo
que estudei.
35 «les êtres et les choses qui nos habitent inscrivent, au cœur de notre personnalité, un fond d’histoire
partagée qui est ressenti sous la dimension affective de l’attachement.» (Breviglieri 2006, 9)
45
Isto é, como é que se vai tornar possível falar de termos como “habitar” e, por
sua vez, “apegar” a algo, com uma população que por princípio não terá nada de seu? A
decisão que tomei na estruturação de tópicos de conversa a manter com as pessoas sem-
abrigo foi de contornar, de modo a que fossem os próprios a mencionar essa temática.
Perguntei acerca de objetos, de espaços, de locais, para no fim ser construído um
discurso de “habitabilidade” com o consequente apego e, de facto, foi o que encontrei,
na medida em que estas pessoas vão optar por um mesmo sítio de pernoita, por um
mesmo espaço para viver o quotidiano, por um traçar de uma rotina, de um conjunto de
regras e imposições com vista a “ocupar/passar o tempo” (cf. entrevistas a todos os
interlocutores).
Esta questão do “habitar” coloca-se de forma pertinente quando estudamos a
população sem-abrigo, principalmente se pensada na esteira de Breviglieri (2006), na
medida em que este autor vai dicotomizar de um lado as facilidades associadas a ter um
local que se “habita” com os respetivos laços afetivos e apego, e de outro lado a ideia de
que o ser humano persegue desde os primórdios da sua existência um conceito de
liberdade por oposição à “rotina, uma rotina capaz de tiranizar o habitante nos seus
ritmos de vida e de o deixar incapaz de rever a sua existência, alienada e renunciada.”
(Breviglieri 2006, 10, tradução minha36).
Outra ideia interessante de se associar ao conceito de “habitar” é a questão do
futuro e de uma certa estabilidade que lhe está incutida na sociedade em que nos
inserimos, na medida em que, ao ter um local onde habita, a pessoa sabe onde se vai
manter no futuro, o que não a impede de mudar de local de habitação mas dá uma certa
estabilidade, ou seja, acaba por estabelecer um laço de confiança e responsabilidade em
relação àquele que habita e tem onde habitar (cf. Breviglieri 2002; 2006).
“Habitar”, quando quem é questionado é uma pessoa que não tem onde “habitar”
ou que saiu do país que outrora “habitou”, torna-se um tema sensível e de abordagem
complexa por estar associado a uma nostalgia desse país que se “habitou” e não “habita”
mais, dessa casa, dessa segurança, dessa familiaridade que levou ao apego a um espaço
e a quem pertencia à comunidade envolvente desse espaço, ou seja, a pessoa acaba por
36 «la routine, une routine capable de tyranniser l’habitant dans ses rythmes de vie et de le rendre
incapable de réviser son existence, aliénée et démissionnaire.» (Breviglieri 2006, 10)
46
produzir um discurso de perda nostálgica associado ao conceito de “habitar” (cf.
Breviglieri 2002; 2006).
Relacionar, confiar, apegar: um olhar para o afeto nas pessoas sem-abrigo
Na estrutura deste trabalho há alguns conceitos aos quais não podemos escapar,
visto estarmos a analisar a população sem-abrigo de Lisboa, como é o caso, por
exemplo, das ideias associadas à pobreza e à exclusão social, seja no que cada uma tem
de específico face à população por mim estudada, seja aquilo em que se juntam para dar
um contexto de vulnerabilidade às histórias de vida que vamos ouvindo.
Assim, recorremos a Lavinas (2002) para concetualizar de forma sistemática este
panorama de pobreza urbana e exclusão social, falando-se do surgimento da primeira
com o desenvolvimento das grandes cidades e de uma preocupação com um restauro da
ordem social face à precariedade das populações provenientes do campo, sendo, pois,
marcadamente um fenómeno urbano – “A pobreza é urbana porque cada vez mais as
formas de regulação de pobreza são medidas por compromissos instituídos no processo
de construção da cidadania urbana.” (Lavinas 2002, 27).
Já em relação à exclusão social somos colocados perante um conceito “mais
amplo que o da carência ou do deficit de renda para informar o debate da pobreza. É
transitar do universo restrito do não atendimento das necessidades básicas e vitais
para o espaço da equidade, da emancipação e do pertencimento.” (Lavinas 2002, 27),
logo algo que também encontramos nos discursos dos nossos interlocutores quando os
questionamos acerca do modo como os outros interagem consigo e como pensam eles
que são vistos e percecionados pelo cidadão que tem a sua casa, o seu trabalho, a sua
família (cf. entrevistas a todos os interlocutores).
Se vamos falar da população sem-abrigo um dos pressupostos que temos de ter
em mente é o contexto (cf. Goffman 1986 e o conceito de frame) em que vivem e o
facto de este ser pautado por um conjunto de ausências (ausência de abrigo, de trabalho,
de família, de afeto, de proximidade, de auxílio, de segurança, de intimidade) que
acabam por moldar as experiências destas pessoas nas quais nos debruçamos neste
trabalho.
Pizzio e Veronese (2008) auxiliam-nos a pensar esta Sociologia das Ausências
em contextos pautados pela desqualificação social, o que podemos facilmente
47
transportar para o nosso campo de observação, na medida em que não só olhamos
contextos e vivências de ausências (como explicado acima), mas também nos
deparamos com pessoas que são pensadas através de um ponto de vista desqualificante,
como um conjunto que não acrescenta valor à sociedade, logo acaba por ser
“descartável” (cf. Mendes 2010), como um todo tomado por incapaz, por culpado da
situação em que vive, por estando condenado a um modo de vida de dificuldades e
ausências.
A noção de “desqualificação social” surge, então, como sendo sinónimo de
“abordar questões relativas à situação de pobreza vinculadas aos processos de
exclusão do mercado de trabalho. Trata-se de (…) estudar a diversidade dos status que
definem as identidades pessoais, ou seja, os sentimentos subjetivos acerca da própria
situação que esses indivíduos experimentam no decorrer de diversas experiências
sociais e, enfim, as relações sociais que mantêm entre si e com o outro” (Paugam 2003,
p. 47 in Pizzio e Veronese 2008, 52).
Tal acaba por ser reportado no meu trabalho na medida em que não só me
deparei com uma população pobre como igualmente excluída do mercado de trabalho,
situação essa que vai obrigatoriamente afetar a forma como se percecionam e auto-
categorizam, revelando uma autoestima extremamente baixa face às experiências que
vivenciam e às (escassas) relações que mantêm com o “outro” (cf. entrevistas a todos os
interlocutores).
Esta ideia de desqualificação social surge no nosso panorama de estudo como
estando intimamente associada a uma pobreza que desqualifica por si só contribuindo
para a primeira noção, uma vez que “alude a condições precárias de vida vistas como
ameaça à coesão social. Em outras palavras, fala-se aqui de uma precariedade
económica e social que revela a existência de um contingente de indivíduos
economicamente desnecessários e supérfluos, ao mesmo tempo que supostamente
exporiam um modo de vida caracterizado pela instabilidade conjugal, pelo baixo nível
de participação nas atividades sociais e por uma vida familiar «inadequada».” (Pizzio
e Veronese 2008, 52). Trata-se de um conceito utilizado no presente trabalho não só por
ser retirado dos discursos mantidos pelos meus interlocutores quando em situação de
entrevista, como também dos discursos escutados no Refeitório entre conversas dos
utentes e conversas da equipa de voluntários, que vão perpassar esta noção de
precariedade e instabilidade.
48
Neste olhar focado na “desqualificação social” torna-se interessante pensar “um
processo percebido através de uma trajetória de vida (visto de forma longitudinal), na
qual experiências e situações estigmatizantes são vivenciadas e interiorizadas, com
efeitos negativos sobre as condições sociopolíticas e sobre a autoestima.” (Pizzio e
Veronese 2008, 58; cf. Breviglieri e Stavo-Debauge (1999) e a questão de uma análise
com base num “duplo horizonte temporal”; Heinich (2014) e a ideia de análise com
base numa “reconstrução histórica”), tal como eu tentei fazer no decurso das entrevistas
e observações que foram sendo realizadas junto dos utentes do Refeitório, numa análise
que procura desmistificar essa “desqualificação” e virar-se antes para uma
potencialização das capacidades do indivíduo e da experiência do mesmo como algo
que acrescenta um valor incalculável ao trabalho de quem procura saber o como e o
porquê desta população sem-abrigo.
É, então, a Pizzio (2009) que recorremos para obter esta visão mais positiva do
nosso panorama de análise através da noção de “qualificação social”, sendo esta
pensada enquanto “o processo em que os indivíduos alicerçados em práticas e valores
experimentam um desenvolvimento em âmbito económico, político e social, que serve
de base para que vivifiquem os laços sociais, contribuindo para a satisfação de
objetivos comuns, no exercício da cidadania e da capacidade de se fazer representar na
esfera pública, adquirindo, assim, maior autonomia como sujeitos.” (Pizzio 2009, 227).
Eis aqui aquele que deveria e deve ser o objetivo do auxílio prestado às
populações mais vulneráveis, esta qualificação do “eu” que passa a ser visto não como
alguém com algo em falta, com uma ausência de algum tipo ou estilo, mas antes como
alguém que tem capacidades e um potencial para ser responsabilizado, autonomizado e
individualizado no exercício da cidadania, de um papel no espaço público, de ser uma
pessoa capaz, um sujeito autónomo no mundo em que vivemos.
Temos, então, que as pessoas sem-abrigo podem ter na sua concetualização uma
relação estabelecida com a ausência. Ora, Mendes (2010) vai levar-nos a pensar numa
ausência de direitos associada a uma não produção de valor e a uma ideia de
invisibilidade (ou ausência de visibilidade (cf. Aldeia 2011 e as questões de visibilidade
das pessoas sem-abrigo)) por serem parte de um grupo instável que, ao não produzir
valor numa sociedade orientada para esse tipo de produção acaba por ser abarcado pelo
conceito de “grupos descartáveis” (cf. Mendes 2010).
49
É precisamente essa invisibilidade e essa ideia de “ser descartável” que quero
evitar e contornar através deste trabalho, ou seja, quero dar voz a quem por norma não
tem momentos para ser ouvido, para se explicar, justificar, criticar, para falar das suas
experiências e da sua realidade, de modo a que, ao invés de “descartável” numa
sociedade onde a produção é valorizada, seja potenciado e humanizado num trabalho de
recuperação face às ausências com que se depara.
Pensando nos dispositivos de auxílio a esta população, no cuidado a ser tido e
mantido para com estas pessoas sem-abrigo vulneráveis e com as suas problemáticas e
ausências que de um modo ou de outro se vai procurar colmatar, assim, abordamos “o
cuidado, numa perspetiva sociológica,” como uma ação que “permite a definição de
problemas morais e os modos para enfrentar os mesmos” (Mendes 2010, 453).
Outra abordagem interessante de se perspetivar com base em Mendes (2010) é a
importância do corpo na pessoa sem-abrigo, ou seja, “o corpo, constituído como um
fenómeno social na esfera pública, é e não é meu. E é a vulnerabilidade de um corpo
singular, de vários corpos, de grupos e de comunidades que deve ser reconhecida para
que a atenção que lhes é dispensada seja potenciadora de um encontro ético. A
vulnerabilidade depende das regras existentes de reconhecimento” (Butler, 2004, p. 43
in Mendes 2010, 453-454; cf. Waskul e Vannini (2006) e o “corpo social”) – procuro,
assim, pensar estes corpos sociais da pessoa sem-abrigo com a vulnerabilidade que lhes
é adjacente ao não serem possuidores de um abrigo que os conforte e mantenha seguros
face às intromissões exteriores.
Estando a trabalhar sobre uma população que, à partida, tem um quotidiano
pautado pela ausência de regras, de ordem, de rotinas, torna-se interessante observar
como, ao frequentarem o Refeitório todo um conjunto de regras de convivência lhes
passa a ser imposto, ou seja, para um bem-estar geral estas pessoas, muitas vezes
caracterizadas pela ausência de regras, princípios e valores que vão de acordo com
aqueles perspetivados na sociedade, acabam por ser “corpos dóceis” porque
“docilizados” através de um exercício de disciplina por parte da instituição a que
recorrem (cf. Foucault [1975] 2013).
Ora, para melhor analisarmos estes corpos que passam de indomáveis, não
regrados e sem ordem, a um conjunto que coexiste (mesmo que só no período de
almoço) num mesmo espaço, abarcado pelas mesmas regras e princípios, passíveis de
consequências caso entrem em incumprimento, devemos reportar-nos a Foucault
50
([1975] 2013), quando este refere que a disciplina “dissocia o poder do corpo; faz dele,
por um lado, uma «aptidão», uma «capacidade» que procura aumentar; e, por outro,
inverta a energia, a força que daí poderia resultar, e faz dele uma relação de sujeição
estrita. Se a exploração económica separa a força e o produto do trabalho, pode dizer-
se que a coerção disciplinar estabelece no corpo o laço coercivo entre uma aptidão
aumentada e um domínio acrescido.” (Foucault [1975] 2013, 160).
O eixo da minha investigação que procuro abordar neste subcapítulo é
precisamente aquele que passa pela problematização dos modos de relação que as
pessoas sem-abrigo desenvolvem com o “outro” sendo esse “outro” uma multiplicidade
de personagens (aquele que é também sem-abrigo, aquele que é um cidadão com posses
e uma vida organizada e estável e que passa e prossegue com a sua vida, aquele que é
voluntário e a quem se recorre quando é sentida a necessidade de auxílio).
Para obter algum suporte teórico para esta problematização das relações que as
pessoas sem-abrigo vão mantendo independentemente ou precisamente por causa da
situação de carência em que se encontram, recorri ao trabalho de Rosa e Guadalupe
(2015), pois, será com esse mesmo trabalho que nos vamos permitir “através dos
discursos de pessoas que experienciam a situação de sem-abrigo, compreender como
são vivenciadas as ruturas com os laços sociais e como são equacionados os laços
sociais.” (Rosa e Guadalupe 2015, 157), partindo do princípio de que surge como sendo
inerente ao ser humano (diferenciando-o do ser animal) a ideia de manter laços com o
“outro”, uma relação de confiança e apego com outrem e que varia ao nível da
proximidade e do tipo de relação a ser estabelecida.
Rosa e Guadalupe (2015) levaram-me também a ponderar uma situação que
acabou por influenciar a forma como abordei o terreno de estudo, isto é, há um alerta de
que a população que queria estudar vive numa situação onde “a confiança também é
afetada, pela forma como se vive a situação de rutura, pelo que a reconstituição deste
tipo de laço ou a criação de novos vínculos eletivos significativos podem demorar
algum tempo.” (Rosa e Guadalupe 2015, 165). Isto levou-me a entender que para
melhor chegar a diálogo com a minha população de estudo seria necessário optar por
uma abordagem que me pusesse em contacto permanente com estas pessoas algum
tempo antes de poder começar a fazer perguntas sobre os seus modos de vida e as suas
experiências, numa procura daquilo que seria a sua verdade face às questões colocadas.
51
Assim sendo, pensamos esta confiança como base das relações sociais, ou seja,
como na esteira de Soulet (in Balsa 2006), “A confiança está na base das relações
sociais (…). Neste sentido, a confiança é um pré-requisito essencial para se agir em
sociedade, para se iniciar uma ação significativamente orientada para o Outro.”
(Soulet in Balsa 2006, 1), sendo tal deveras importante ao considerar a relação
estabelecida, ou a estabelecer, entre investigador e investigado(s), uma vez que me
encontrava a recolher dados acerca dos modos de vida e experiências destas pessoas
que, ao serem vulneráveis, acabam por ter um cuidado especial com as relações que
optam por manter e com as pessoas em quem confiam ou não (cf. Lundȧsen (2002) e as
definições de “confiança”; entrevista a Marcelo; entrevista ao senhor Mário).
No eixo das relações com o outro e tendo em conta o que nos é transmitido por
Pereira, Vala e Leyens (2009), podemos questionar a forma mais ou menos humana
como determinados grupos de pessoas são tratados pela sociedade. Esta problemática é
algo que me acompanhou desde que foi delimitado o tema e o campo de estudo.
Assim, desde o início que os modos de tratamento e o conjunto de atitudes
demonstrado por parte do cidadão “normal” para com a população sem-abrigo, aquele
olhar que passa mas não olhar, juntamente com o tratamento predominantemente
estatístico (cf. Aldeia 2011) da situação experienciada por esta população, levantou
diversas inquietações em relação ao que podemos apelidar, tendo em conta Pereira, Vala
e Leyens (2009), de infra-humanização (“a forma pela qual os membros exteriores ao
grupo são privados de uma humanidade completa através da atribuição de menos
características unicamente humanas, tais como emoções secundárias (i.e., amor,
desprezo) do que aquelas do grupo de pertença (…).”37 (Pereira, Vala e Leyens 2009,
336, tradução minha)), levando-nos a procurar um olhar mais cuidado (cf. Breviglieri e
Stavo-Debauge 2007 e a importância do olhar), mais sensibilizado, mais preocupado
que torne estas pessoas, bem como as suas experiências e modos de vida, num conjunto
populacional humanizado, dotado de uma voz, de características, táticas, problemas e
soluções.
Nesta relação com o “outro” podemos olhar o texto de Balsa (2014) num
questionamento da ação desenvolvida junto da população sem-abrigo ao nível das
37 “the way in which outgroup members are deprived of complete humanness by attributing them fewer
uniquely human characteristics, such as secondary emotions (i. e., love, contempt) than to ingroup
members (…).” (Pereira, Vala e Leyens 2009, 336)
52
Políticas Públicas a serem implantadas, na medida em que nos ajuda a pensar a nível
estratégico o papel que não só o Estado, como também outros vários atores a serem
mobilizados, podem ter na tentativa de encontrar soluções adaptáveis à minha
população de estudo, agindo em prol de uma potenciação das capacidades destes
indivíduos seja ao nível laboral ou habitacional.
Marc Breviglieri (2005) é interessante de ser analisado também tendo em conta
as Políticas Públicas, nomeadamente o trabalho social desenvolvido junto das
populações mais vulneráveis, num percurso evolutivo que “não se contenta mais em
situar o seu paciente numa classe beneficiária, mas procura conduzir, com ele, uma
ação conjunta e personalizada. (…) Sobre a frente da intervenção social, os
trabalhadores sociais, ocupados com o desafio de uma responsabilização dos pacientes
tendo em conta o seu futuro, utilizaram duas ferramentas (…): o contrato e o projeto
individual.” (Breviglieri 2005, 220, tradução minha38).
Aqui também olhamos esta proximidade como algo positivo que pode comportar
em si algo negativo, isto é, pode dar lugar a uma emancipação do indivíduo, tendo em
conta a ação social realizada em prol de uma autonomização das pessoas a quem vai ser
aplicada, devendo, no entanto, ser mantido o alerta em relação a um excesso de
assistencialismo paternalista que “emite uma poderosa desqualificação de laços
paternalistas ou clientelistas que podem jogar-se nestes modelos de bondade fundados
sobre o próximo”39 (Doidy 2005 in Breviglieri 2005, 221, tradução minha).
Breviglieri (2005) menciona no seu texto algo que também eu fui conseguindo
observar ao longo do trabalho de campo que realizei no Refeitório junto da população
sem-abrigo, nomeadamente quando somos levados a pensar a fragilidade ou
vulnerabilidade dos utentes deste dispositivo de auxílio perante um julgamento que vem
sido tecido por parte dos elementos integrantes da sociedade, o que mais cedo ou mais
tarde acaba por ter repercussões na forma como estes indivíduos se categorizam,
percecionam e auto-etiquetam.
38 «il ne se contente plus de situer son patient dans une classe bénéficiaire, mais prétend conduire avec
lui une action conjointe et personnalisée. (…) Sur le front de l’intervention sociale, les travailleurs
sociaux, occupés par l’enjeu d’une responsabilisation des patients en vue de leur futur, ont pu jouer
essentiellement de deux outils (…) : le contrat et le projet individuel.» (Breviglieri 2005, 220)
39 «émet une puissante disqualification des liens paternalistes ou clientélistes qui peuvent se jouer dans
ces modèles de bienveillance fondés sur le proche» (Doidy, 2005 in Breviglieri 2005, 221)
53
Devemos, ainda, debruçar-nos na ideia de “confiança na justiça da instituição”
por parte dos utentes, representada, neste caso, nas pessoas que atuam no Refeitório (os
voluntários, a psicóloga e as assistentes sociais), que não será uma confiança no
próximo, no “outro”, ou uma confiança em si mesmo e nas suas capacidades, mas antes
uma confiança que algo irá contribuir para a resolução das suas problemáticas
individuais na situação de sem-abrigo em que se encontra com base no tipo de auxílio
prestado pela instituição (cf. Breviglieri 2005).
Esta relação entre quem cuida e quem recebe o cuidado é concebida de forma
interessante se utilizarmos como base o texto de Vicente Faleiros (2013), pois: 1) faz
parte do nosso terreno de investigação essa relação entre quem auxilia e quem é
auxiliado, sendo assim importante problematizar a mesma; 2) ajuda-nos a pensar a
questão da autonomia numa população vulnerável, recursando a visão de um
assistencialismo em detrimento de uma visão onde se procura, através do consentimento
informado e do projeto individual, uma potencialização das capacidades dos indivíduos
auxiliados (cf. Faleiros 2013).
Tendo em conta as entrevistas realizadas com a equipa de voluntários do
Refeitório retivemos uma ideia que também Faleiros (2013) nos apresenta em relação ao
papel de quem auxilia o outro que é vulnerável, ou seja, “o cuidado passa por um
processo de mediação de conflitos e negociação. Os conflitos do cuidar estão
articulados não só à desigualdade do poder como também às desigualdades
socioeconómicas e às desigualdades de relações e suportes institucionais (Faleiros,
2011c). O cuidado é a preocupação com o tempo da vida, com a expressão da vida e
com as condições de trabalho.” (Faleiros 2013, 86-87; cf. entrevista a Isabel).
Temos portanto como conclusão em relação à dinâmica entre voluntário e pessoa
sem-abrigo a ideia, que partilhamos com Faleiros (2013), de uma base assente na
solidariedade, em que ambos se relacionam compreendendo as fragilidades presentes
nessa dialética, tentando, através da interação e relação, obter uma possível solução para
as problemáticas do eixo mais vulnerável da relação acima mencionada.
A questão do cuidado (das politics of care ou politiques du care) deve ser
também analisada tendo em conta a perspetiva de Joan Tronto (2008), na medida em
que esta autora vai propor uma definição deste conceito de care – “Num nível mais
geral, nós sugerimos que o cuidado (care) seja considerado como uma atividade
genérica que compreende tudo o que fazemos para manter, perpetuar e reparar o nosso
54
«mundo», de forma a podermos cá viver tão bem quanto possível. Este mundo
compreende os nossos corpos, nós mesmos e o nosso ambiente, todos elementos que nos
procuram ligar a uma rede complexa, apoiando a vida.” (Fisher e Tronto, 1991, p. 40
in Tronto 2008, 244, tradução minha40).
Além desta concetualização do cuidado, Tronto (2008) vai mais além e desperta-
nos para uma abordagem que deve ser prática deste tipo de ação, na medida em que será
apenas adotando esta vertente que se vão satisfazer as necessidades daqueles que
necessitam de cuidados, alertando-nos também para a ideia de que “o cuidado só pode
ser útil na condição de modificar o contexto no qual nós refletimos sobre ele” (Tronto
2008, 262, tradução minha41), devendo ser pensado como um conceito moral e político,
tal como Girault (2010) vai demonstrar – “o cuidado não é só uma atitude moral e um
trabalho: é um ideal político que desenha as qualidades dos cidadãos numa sociedade
realmente democrática” (Girault 2010, 8, tradução minha42).
É precisamente esta abordagem do cuidado que Bart van Leeuwen (2017) vai
privilegiar para falar dos cuidados a serem prestados tendo em conta as necessidades
apresentadas pelas pessoas sem-abrigo, na medida em que “Na maioria dos casos a
questão dos sem-abrigo não é nem uma identidade do grupo valorizada internamente
nem uma escolha autêntica, mas antes uma condição trágica que é o resultado de
causas diferentes, tanto estruturais (i.e. político-económicas) como individuais (i.e. a
adição, a doença mental, o desemprego, as histórias de vida traumáticas).” (Leeuwen
2017, 2, tradução minha43), devendo, assim, ser encontradas soluções que passem por
um cuidado com o indivíduo procurando resolver os seus problemas concretos, de modo
40 «Au niveau le plus générale, nous suggérons que le care soit considéré comme une activité générique
qui comprend tout ce que nous faisons pour maintenir, perpétuer et réparer notre «monde», en sorte que
nous puissions y vivre aussi bien que possible. Ce monde comprend nos corps, nous-mêmes et notre
environnement, tous éléments que nous cherchons à relier en réseau complexe, en soutien à la vie.»
(Fisher e Tronto, 1991, p. 40 in Tronto 2008, 244)
41 «le care ne peut être ainsi utile qu’à la condition de modifier le contexte dans lequel nous y
réfléchissons.» (Tronto 2008, 262)
42 «le care n’est pas seulement une attitude moral et un travail : c’est un idéal politique qui dessine les
qualités des citoyens pour une société réellement démocratique.» (Girault 2010, 8)
43 “In most cases homelessness is neither an internally valued group identity nor an authentic choice, but
instead a tragic condition that is the result of different causes, both structural (e.g., political-economical)
and individual (e.g., addiction, mental illness, unemployment, traumatic life histories).” (Leeuwen 2017,
2)
55
a que não acabe por haver lugar para soluções intermédias que apenas perpetuam a
situação destas pessoas sem-abrigo.
Olhando para o Refeitório enquanto entidade que é posta ao serviço da
população sem-abrigo, fornecendo-lhes almoço, lanche e jantar em caixas para mais
tarde comerem, roupa e cuidados de higiene, procuramos que este nosso olhar para a
instituição não seja desprovido de uma problematização que desnaturaliza aquilo que à
partida seria dado como certo: há um problema, logo uma solução tem de surgir.
Breviglieri (2010) dá-nos algumas ferramentas de análise para pormos em
prática não só através da observação participante como, de igual modo, através das
entrevistas que foram sendo realizadas, nomeadamente, quando nos refere “as situações
limite que apontam a incapacidade relacional de certos utentes, a sua impossibilidade
de assumir um certo número de responsabilidades individuais e a manter uma “plena”
interação com os atores institucionais.” (Breviglieri 2010b, s. p., tradução minha44).
Somos também alertados para a importância da existência de um “consentimento
informado” no trabalho de auxílio social, ou seja, os utentes têm consciência do tipo de
auxílio que lhes será prestado numa relação dinâmica entre pessoa sem-abrigo e
instituição, neste caso, em que um toma conhecimento das motivações e ações o outro
planeia desenvolver perante si (por exemplo através das regras de acesso ao Refeitório
escritas na porta do mesmo), tal como explicitado em Breviglieri (2010b): “É nessa
condição que podemos compreender porque é que o trabalho social não define apenas
um conjunto de obrigações e responsabilidades que incumbem o utente, e devem ser
preferivelmente, ou mesmo necessariamente, consentidas por este.” (Breviglieri 2010b,
s. p., tradução minha45).
É importante reter que estamos em relação direta com um grupo de pessoas que
querem ser autónomas, independentes, capazes por si mesmas de tomar as suas escolhas
no que concerne o que têm de fazer, como têm de o fazer e qual o futuro tendo em conta
as suas ações.
44 «les situations limites où pointe l’incapacité relationnelle de certains usagers, leur impossibilité à
assumer un certain nombre de responsabilités individuelles et à soutenir une «pleine» interaction avec
les acteurs institutionnels.» (Breviglieri 2010b, s.p.)
45 «C’est à cette condition que l’on pourra comprendre pourquoi le travail social ne définit pas seulement
un ensemble de possibilités ou d’issues mais, à côté de cela, un ensemble d’obligations et de
responsabilités qui incombent à l’usager, et doivent être préférablement, ou même nécessairement,
consenties par lui.» (Breviglieri 2010b, s.p.)
56
No entanto, uma vez que a dimensão situacional destas pessoas sem-abrigo
acaba por os levar a recorrer ao auxílio de alguém para atingir os fins e suster as
necessidades que vão nutrindo, acabam por se encontrar algo presos naquilo que uns
apelidam de “espiral de estar sem-abrigo” (cf. entrevista a Marcelo), outros de “rotina
diária” (cf. entrevista a Francisco), e que aqui, através de Breviglieri (2010b), nós
podemos chamar de “paradoxo autonomia-vulnerabilidade”. Este paradoxo é de uma
riqueza analítica tal que várias questões são levantadas só de pensar o conceito de
autonomia numa população que não dispõe sequer de uma casa.
Será em Pattaroni (2007) que vamos reforçar a ideia de autonomia no trabalho
social a ser tido para com o outro, evitando cair no lado mais negativo que a
proximidade ao outro pode ter (o excesso que leva a que a presença do outro que auxilia
se torne insuportável, intolerável quando pautada por atitudes de paternalismo,
assistencialismo e clausura (cf. Pattaroni 2007)), ou seja, quer-se uma ação social que
prepare o indivíduo para as provas que vai enfrentar aquando da sua inserção na
sociedade, salvaguardando-se aqui a ideia de que é precisamente uma preparação para a
autonomia e independência que procuramos, e não um estandardização ou padronização
homogeneizadora dos indivíduos a serem auxiliados (cf. Pattaroni 2007).
Procura-se, antes, não só uma autonomia como também uma responsabilização e
individualização da pessoa a ser auxiliada (cf. Pattaroni 2007) cujas capacidades vão ser
potenciadas num auxílio para que a sua situação seja menos vulnerável do que à partida,
num posicionamento das instituições nas “fronteiras das políticas públicas que dizem
respeito a uma subjetividade individual. Nas fronteiras, uma vez que se trata nesses
casos não tanto de apoiar a administração do poder público na subjetividade já dada
aos cidadãos mas mais de restituir aos mais fragilizados a subjetividade esperada dos
diferentes dispositivos de regulação da sociedade.” (Pattaroni 2007, 1, tradução
minha46).
Tendo em conta estas noções de Pattaroni (2007), questionamos o papel do
contrato e do equipamento jurídico que lhe é inerente num olhar para a autonomia
individual, na medida em que esse contrato e essa jurisdição vão dar um poder de
46 «frontières des politiques publiques respectueuses d’une subjectivité individuelle. Aux frontières, car il
s’agit dans ces cas moins d’appuyer l’administration du pouvoir public sur la subjectivité déjà donnée
des citoyens que de restituer aux plus démunis la subjectivité attendue des différents dispositifs de
régulations de la société.» (Pattaroni 2007, 1)
57
escolha real à pessoa que vai ser auxiliada, responsabilizando a mesma (cf. Pattaroni
2007).
A noção de “consentimento informado” mantém-se através de Breviglieri
(2008a) e no trabalho que faz com populações sensíveis porque vulneráveis, como é o
caso das pessoas sem-abrigo com que trabalhei nesta investigação.
Vai ser, portanto, através da construção deste “consentimento informado” e de
um “projeto individualizado” para cada utente que se irá combater a exclusão de um
indivíduo que outrora era visto apenas como uma pessoa necessitada, pessoa incapaz,
pessoa vulnerável e que agora passa a ser dotado de uma autonomia e potencial que irá
alterar a forma como é percecionado não só de si para si como de si para a sociedade
(cf. Breviglieri 2008a).
Esta ação tida perante a pessoa que vai ser auxiliada tem na sua constituição a
junção, por um lado, da solicitude – portanto a disposição de quem vai auxiliar a, de
facto, criar um conjunto de soluções perante as problemáticas apresentadas por quem
vai ser auxiliado – e da solicitação – ou a ideia de um pedido de ajuda por parte de
quem vai ser ajudado, na medida em que o assistente social só pode ajudar alguém
quando esse pedido é formulado, gerindo-se deste modo dialético a questão da
proximidade e das possíveis consequências da mesma, que passam pelo clientelismo,
paternalismo e miserabilismo (no excesso), bem como pela indiferença (na falta de
proximidade) (cf. Breviglieri 2008a).
É interessante notar como este conceito de “consentimento informado” além de
dotar o indivíduo de um conjunto de características positivas que passam pela
autonomia e poder de escolha, incutem também em si a ideia de uma capacitação da
pessoa que está a ser auxiliada, capacitação essa que passa não apenas por poder avaliar
e enunciar os desejos e expectativas que tem de acordo com o plano a ser traçado no seu
auxílio, mas também na possibilidade de fazer dessas expectativas algo prático a ser
colocado em ação aquando de um percurso evolutivo de resolução das suas
problemáticas, demonstrando, assim, além de autonomia, também capacidade e
responsabilidade, pois, passa a ser pensado como digno de confiança (cf. Breviglieri
2008a; cf. Diário de Campo e momentos de receção de novos utentes).
Mantendo como um dos focos da minha análise da população sem-abrigo a ideia
desta relação que os indivíduos desenvolvem com o “outro” (surgindo este “outro” nos
58
vários atores sociais com os quais se vão deparando no seu quotidiano), é interessante
continuar a linha de raciocínio acerca desta proximidade e da influência que tem quando
aplicado ao trabalho social, observável, neste caso, no Refeitório.
Breviglieri, Pattaroni e Stavo-Debauge (2003), vão iluminar este conceito de
proximidade através de uma relação entre os agentes do Estado e o seu público, ou
como referido pelos autores: "A questão da proximidade pensa, assim, através de
diversos títulos, o desenvolvimento de uma coordenação local entre os agentes do
Estado e o seu público. (…) A exclusão (…) retorna à necessidade de um auxílio social
capaz de autonomizar os excluídos e religá-los à sociedade para que eles possam sair
da sua situação precária.” (Breviglieri, Pattaroni e Stavo-Debauge 2003, 141, tradução
minha47).
Pensamos, assim, uma proximidade que vai procurar um ténue equilíbrio entre
estes indivíduos vulneráveis e uma tentativa de potenciar as suas capacidades para um
futuro autónomo. A instituição serve como mediador entre as várias problemáticas
apresentadas pelas várias pessoas sem-abrigo que usufruem do espaço em questão e os
ideais do Estado e da sociedade, sendo essa mediação feita, neste caso, através de um
conjunto de regras imposto aos utentes do Refeitório (cf. fotografia do Regulamento do
Refeitório nos Anexos), um conjunto de princípios para o usufruto daquele local, que
vão oferecer uma estabilidade a alguém que é errante, caminhante, instável.
É ainda em Breviglieri (2009) que se acaba por concretizar a ideia latente ao
falar de proximidade que passa pelos problemas trazidos pelo excesso da mesma no
contacto com populações vulneráveis (cf. Breviglieri, Pattaroni e Stavo-Debauge 2003;
Pattaroni 2007; Breviglieri 2008a).
Este autor fala-nos daquela situação em que o “outro” está tão próximo,
ultrapassa em tamanha medida os limites que o “eu” coloca perante o que lhe é exterior,
que a sua presença, através dessa proximidade sufocante, se torna insuportável,
intolerável, impossível de manter. Ora, uma vez que estamos a lidar com uma população
vulnerável, como o são as pessoas sem-abrigo, será que se aplica esta ideia de poder
47 «La question de la proximité entend ainsi, à divers titres, le développement d’une coordination locale
entre les agents de l’État et leur public. (…) L’exclusion (…) renvoie alors à la nécessité d’une aide
sociale capable d’autonomiser les exclus et de les rattacher à la société afin qu’ils puissent sortir de leur
situation précaire.» (Breviglieri, Pattaroni e Stavo-Debauge 2003, 141)
59
dizer que o “outro” é insuportável no excesso de proximidade? Terá esta população voz
e audiência para produzir tais julgamentos, críticas, opiniões em relação ao “outro”?
A observação participante realizada no Refeitório revela que sim, uma vez
situados num espaço que faz deles o ser humano que de facto são, embora nem sempre
tal seja reconhecido pela sociedade em que se encontram, estes indivíduos expressam a
sua opinião, a sua crítica quando algo não vai ao encontro dos seus princípios e do que
seria expectável, tendo sido inclusive observado e ouvido algumas críticas face à
presença e ao discurso – por vezes situações sufocantes para os utentes – de alguns
voluntários.
Fala-se, então, de uma proximidade excessiva, de uma intromissão indesejada na
vida de cada utente, numa posição que lhes retira o pouco de autonomia que procuram
estabelecer apesar da vulnerabilidade inerente à sua situação atual, independentemente
de ser uma situação de um ano (como no caso de Marcelo) ou de 16 anos (como no caso
de Francisco) – o tempo aqui não atua como fator potenciador de mais ou menos
vulnerabilidade na medida em que ao ser ou estar pessoa sem-abrigo (conforme a
pessoa observe a situação como algo já fixo ou algo passageiro) um indivíduo já se vê
desprovido de uma casa, de um trabalho com as comodidades que tal comporta,
sentindo-se, assim, vulnerável perante a sociedade.
Paperman (2008) aparece no panorama do meu trabalho ao investigar as
questões de ética no cuidado do outro, ou seja, fala não só dos problemas associados à
proximidade e à distância, tendo em conta essa ética, como também dos métodos a
utilizar num tipo de auxílio que se quer potenciador, autonomizador, e não um gerador
de padrões numa tentativa de “normalização” do utente.
Ao utilizarmos o aporte teórico que este conceito de “ética no cuidado do outro”
comporta, conseguimos questionar a vulnerabilidade no seu todo e não apenas como
algo visível em alguns grupos populacionais em particular – “Na perspetiva do cuidado,
a vulnerabilidade é constitutiva das vidas humanas. (…) Nesse caso a ética do cuidado
propõe refletir sobre a vulnerabilidade naquilo que ela não é reservada a certas
categorias de pessoas nem a grupos particulares.” (Paperman 2010, 52, tradução
minha48) –, dotando, assim, este conceito de uma visão holista que me permitirá pôr em
48 «Dans la perspective du care, la vulnérabilité est constitutive des vies humaines. (…) En ce sens
l’éthique du care propose de réfléchir sur la vulnérabilité en ce qu’elle n’est pas réservée à certaines
catégories de personnes ni à des groupes particuliers.» (Paperman 2010, 52)
60
relação esse todo que é vulnerável com o tipo de vulnerabilidade demonstrada pela
pessoa sem-abrigo.
Tal como me proponho dar voz às pessoas sem-abrigo com quem falei numa
tentativa de compreensão das suas histórias de vida, das suas experiências e
problemáticas inerentes à situação em que se encontram, também Paperman (2011) diz
acerca das “éticas do cuidado” que estas “procuram reconfigurar a conceção da justiça
numa tentativa de as incluir, ou pelo menos de tornar mais difícil ignorá-las. Dizendo
de outra forma, o sujeito das éticas do cuidado é um sujeito minoritário, «diferente»,
que pensa e age a partir de uma experiência concreta, materialmente estruturada por
uma atenção e pelas atividades realizadas por outrem. Um sujeito não aparecendo não
é tido em conta e, muito menos, como sujeito principal das éticas anteriores.”
(Paperman 2011, 190, tradução minha49).
É esta autora que nos vai mostrar também que, na “ética do cuidado”, “A
questão da distância, entendida na maioria das vezes como aquelas relações com os
indivíduos e os grupos que não fazem parte dos nossos grupos de pertença, é
regularmente invocada para apontar os limites da ética do cuidado.” (Paperman 2008,
267, tradução minha50), ou seja, é importante esta delimitação da proximidade quando
estamos a lidar com pessoas vulneráveis que procuramos, dentro das nossas
possibilidades, ajudar, pois só através da delimitação de uma distância é que se pode
manter um trabalho que não comporte em si os excessos que já Breviglieri (2009)
referia e que acabam por se tornar insuportáveis.
Somos levados a pensar mais além desta dicotomia proximidade/distância na
ética do cuidado de Paperman (2008, 2010, 2011), olhando o propósito comum do
cuidado do outro como passando por esta ideia de que “o cuidado e a atenção não
podem ser concebidos senão no quadro das relações diádicas.” (Paperman 2008, 269,
49 «visent à reconfigurer la conception de la justice en sorte de les inclure, ou du moins de rendre plus
difficile de les ignorer. Pour le dire en d’autres termes, le sujet des éthiques du care est un sujet
minoritaire, «différent», qui pense et agit à partir d’une expérience concrète matériellement structurée
par une attention et des activités réalisées pour autrui. Un sujet qui n’apparaissait pas, n’était pas pris
en compte et encore moins comme sujet principal dans les éthiques antérieures.» (Paperman 2011, 190)
50 «La question de la distance, entendue le plus souvent comme celle des relations avec les individus et
groupes qui ne font pas partie de nos groupes d’appartenance, est régulièrement invoquée pour pointer
les limites de l’éthique du care.» (Paperman 2008, 267)
61
tradução minha51), logo as lentes do investigador devem ajustar-se com o propósito de
encontrar esses quadros onde vão ser concebidos o cuidado e a atenção para com o
outro na nossa população de estudo.
Assim, tendo em conta algumas conversas mantidas com alguns dos utentes do
Refeitório, tecemos como conclusões relativas a esta proximidade no que de
incomportável pela pessoa sem-abrigo pode ter o seu excesso, a ideia de um isolamento
relacional. Isto é, no seu discurso perpassa a ideia de que seja pela sua situação
vulnerável, seja pela pouca autonomia de que dispõem para lidar com as atitudes de
outrem que lhes sejam desagradáveis, estas pessoas acabam por se isolar apesar de
manterem um relacionamento continuado com outras pessoas.
Isto leva-nos a uma vivência afetiva pautada por um certo paradoxo, na medida
em que estas pessoas estão em contacto com o “outro”, com o voluntário, com aquele
com quem se partilha o quarto, a rua, o Refeitório, com o que passa na rua, com que
experiencia uma realidade semelhante ou alternativa à sua, mas tal não significa que se
permitam relacionar com estes vários “outros” a um nível mais profundo, afetivamente
falando. Pelo contrário, encontrámos mesmo discursos que revelam que enquanto o
“estar sem-abrigo” não ficar “resolvido” não tencionam relacionar-se com quem seja,
mantendo as relações anteriores a esse “estar” quase em “pausa”, prontas para serem
continuadas mal a situação de “estar sem-abrigo” acabe (cf. entrevista a Marcelo e
entrevista a Francisco).
Ao ter em conta a população sem-abrigo podemos questionar, então, tal como
Breviglieri (2013) “Teremos nós alguma coisa a aprender, de um ponto de vista
sociológico, com as relações múltiplas que acompanham a história de vida de cada
homem?” (Breviglieri 2013, 1, tradução minha52), isto é, se olharmos esta relação do
“eu” pessoa sem-abrigo com o outro conseguiremos extrair alguma informação
determinante acerca destas pessoas, da forma como experienciam, por um lado, a sua
situação e, por outro lado, se imbuem de capacidades para (sobre)viver, fazer frente às
várias problemáticas com que se deparam, encontrar as suas táticas, através de vários
processos que passam pela aprendizagem e imitação do que veem ser bem sucedido (cf.
51 «soins et attention ne se conçoivent que dans le cadre de relations dyadiques.» (Paperman 2008, 269)
52 «Avons-nous quelque chose à apprendre d’un point de vue sociologique des attachements multiples qui
accompagnent l’histoire de vie de chaque homme ?» (Breviglieri 2013, 1)
62
entrevista a Francisco; entrevista ao Igor; entrevista ao Jallah), encontrar o seu modo de
vida específico na sociedade que os exclui, põe de parte desumanizando?
Marc Breviglieri (2013) associa esta ideia de “relação com” à identidade de cada
indivíduo, o que pode, já de si, sustentar este meu interesse em explorar esta área da
vida das pessoas sem-abrigo que procuro conhecer e cuja experiência está na base da
minha reflexão. Tendo em conta os modos de vida, as experiências, o passado que vai
moldar o presente e levantar questões sobre o futuro, como é que se torna possível ao
investigador falar deste grupo de pessoas pautado por tantas individualidades que
merecem uma desnaturalização que as problematize?
Atenção, aqui não falamos do porquê do conjunto, do como do conjunto, da taxa
de alfabetização, da taxa de desemprego, da taxa de consumos, não falamos de perfis, de
padrões, de estandardizações estatísticas de múltiplos “eus” com vista a formar um todo
homogéneo. Pelo contrário, queremos olhar densamente o “eu” (cf. Mota (2008) e a
análise densa, detalhada, dos gestos mais íntimos), a experiência, a história de vida, os
percursos, as escolhas, as críticas, as justificações, para, assim, conseguirmos falar, com
base na voz destas pessoas sem-abrigo, nas problemáticas que são vivenciadas e que vão
tentando ser superadas, nos obstáculos, nas interações, no que significa ser pessoa sem-
abrigo em Lisboa: vulnerável, porém capaz.
63
Análise de Conteúdo
Acolher e Habitar: a Apropriação do Espaço por Parte das Pessoas Sem-Abrigo
1. Múltiplos espaços, múltiplos quotidianos
Tendo em conta os três eixos que orientaram todo este trabalho (acolher, habitar,
apegar) podemos desenvolver uma análise dos dados recolhidos junto da população
sem-abrigo que frequenta o Refeitório Rosália Rendu onde encontramos algumas
evidências de uma apropriação dos múltiplos espaços da cidade de Lisboa e arredores
no quotidiano destes indivíduos.
Para realizar esta análise recorremos à voz de alguns dos utentes do Refeitório
quando nos falam do seu dia-a-dia, do seu passado e de como vão ocupando o tempo de
forma característica tendo em conta a situação em que se encontram.
Torna-se, assim, possível utilizar os verbos acolher e habitar para no primeiro
caso pensar um momento inicial da situação de sem-abrigo destes indivíduos onde a
cidade de Lisboa com as suas instituições53 e as suas características acolhe ou não estas
pessoas.
No segundo caso para pensar como é que são desenvolvidos alguns mecanismos
para tornar os espaços da cidade habitáveis tendo em conta o aumento da duração da
permanência em situação de sem-abrigo.
Deste modo, irei traçar uma linha de raciocínio em torno desta apropriação do
espaço que se inicia nos locais onde as pessoas sem-abrigo (com quem falei nas
entrevistas que realizei) dormem, passando em seguida para os espaços da cidade por
onde caminham diariamente e terminando no Refeitório.
1.1 Albergues, casas e a rua
“Habitar supõe uma certa ancoragem fenomenal do corpo, alimentada por uma matriz
de experiências familiares, um conjunto de emoções tranquilizantes procuradas na
intimidade da casa, uma sutura afetiva que tem cada um como ligado aos que lhe são
53 Cf. Lista de instituições de auxílio às pessoas sem-abrigo presentes no Plano Cidade para a Pessoa
Sem-Abrigo (2009); na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo (2009-2015); e no
Programa Municipal para a Pessoa Sem-Abrigo (2015)
64
próximos por um laço não-arbitrário (Breviglieri, 2002 in Breviglieri 2010a, 63,
tradução minha54).
Os espaços onde estes indivíduos dormem dividem-se essencialmente em três
categorias: albergues (com 2 casos registados), casas partilhadas (com 4 casos
registados), casas da Câmara Municipal de Lisboa (com 1 caso registado) e a rua (com 2
casos registados).
Em relação aos albergues é mencionada principalmente a Vitae (em Xabregas
onde vivem atualmente 2 dos indivíduos com quem falei, mas por onde já passou um
terceiro indivíduo que atualmente vive na rua) mas também é referida a passagem por
outros locais na Cruz dos Poiais, nas Amoreiras e, ainda, em Castanheira de Pera.
A experiência de pernoita nestes albergues raramente é mencionada sem que se
apontem algumas características negativas destes espaços, tal como é apresentado no
seguinte excerto da entrevista a Yassine: “M: Como é que poderias falar do sítio onde
vives? Da casa, do espaço onde vives? Y: Onde vivo é…um bocadinho complicado, tem
muitas pessoas, tás a ver? Não tens aquela liberdade…”.
Também o senhor Marcelo que vive atualmente na Vitae apresenta uma
descrição negativa não só desse albergue como daquele onde esteve anteriormente:
“Quando eu cheguei [ao primeiro albergue] era tudo precário, muito precário, inclusive
em termos de higiene e tudo, tá bem? (…) Bom, mas então agora me deparei mais uma
vez com essa realidade, não é? Lá na Vitae, não é? (…) o alojamento da Vitae parece
que não está adaptado para o abrigo da pessoa humana. É desprovido totalmente de
conforto (…).” (excertos da entrevista ao senhor Marcelo).
É ainda possível referir o caso do Jallah que tendo estado um ano a viver na
Vitae se encontra atualmente a dormir na rua não tendo sido percetível se esta mudança
foi causada pelas condições do albergue ou se foi imposta por algum outro motivo.
Por fim, podemos mencionar a experiência de Iury contada através de uma
voluntária da seguinte forma: “estava a viver num albergue em Xabregas com péssimas
54 «Habiter suppose un certain ancrage phénoménal du corps, nourri par une matrice d’expériences
familières, un foyer d’émotions sécurisantes procurées dans l’intimité du chez soi, une suture affective
qui tient chacun comme attaché aux proches par un lien non-arbitraire» (Breviglieri, 2002 in Breviglieri
2010a, 63)
65
condições cujos utentes são tratados como animais e, como se recusava a tomar os
medicamentos (porque na Ucrânia era desportista, praticava kickbox) foi expulso do
albergue e passou a dormir na rua.” (Diário de Campo, dia 27.2.2017).
Em ambos os casos de pessoas que ainda dormem em albergues (o senhor
Marcelo e o Yassine) não foi possível no discurso dos interlocutores reter qualquer tipo
de apropriação destes espaços.
Foi, ao invés, notório um desligamento daquele local ao qual têm acesso apenas
para dormir, tal como referido pelo senhor Marcelo: “eu não tenho o hábito de andar
com mochila mas por causa do treino e por causa do acesso regrado, do acesso restrito
à casa de banho, ao quarto, só no final da noite (…)”, partilhando-o com múltiplos
indivíduos, tal como Yassine menciona.
Encontramos, assim, um tipo de acolhimento a estas pessoas, em situação de
vulnerabilidade, pautado pelas condições precárias, pelo excesso de utentes e pela
ausência de conforto, tal como descrito pelos dois indivíduos com quem falei e que
pernoitam em albergues.
Figura 1: Localização do primeiro albergue do Sr. Marcelo
66
Figura 2: Localização da Vitae
Os indivíduos que vivem em casas e que, à partida, poderíamos pensar não se
enquadrarem neste trabalho acabam por ser parte da população de estudo com quem
falei, na medida em que, logo no início do trabalho de campo fui informada de que
“mesmo os que tinham casa nunca era sustentada por eles nem tinham as condições
mínimas.” (Diário de Campo, dia 19.12.2016), sendo parte integrante do conceito de
pessoa sem-abrigo já mencionado acima55.
Nesta situação encontramos três casos distintos: um indivíduo que vive numa
casa da Câmara Municipal de Lisboa, dois indivíduos que vivem em casas partilhadas
no Campo Pequeno e dois indivíduos que sendo casados vivem na casa dos pais/sogros
onde muitas das necessidades básicas lhes são recusadas.
A experiência de quem vive em casas tem em si mais momentos – pelo menos
ao nível do discurso dos interlocutores que se encontram nesta situação – de apropriação
do espaço, da casa, da minha casa onde tenho as minhas coisas e a minha privacidade.
No caso do senhor Mário que vive atualmente numa casa da Câmara Municipal
de Lisboa na Quinta dos Barros relata como antigamente quando morava numa outra
casa no Pote de Água dispunha de liberdade para fazer várias atividades e que, ao ter
sido forçado a mudar de local de residência, perdeu parte dessa mesma liberdade, tal
como se depreende do seguinte excerto da entrevista ao senhor Mário:
“M: Vocês é que tiveram que ir embora?
55 Cf. Conceito de Pessoa Sem-Abrigo apresentado no Plano Cidade para a Pessoa Sem-Abrigo (2009); na
Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo (2009-2015); e no Programa Municipal
para a Pessoa Sem-Abrigo (2015)
67
Sr.M: Sim mas estou bastante arrependido.
M: Porquê?
Sr.M: Porque ali eu tinha mais liberdade em todo o sentido. Tinha casa rasteirinha,
pré-fabricada, quer dizer, o terreno não era nosso, era da Câmara. Mas eu tinha outra
liberdade que não tenho aqui.”
Torna-se possível referir um especial apego em relação ao espaço que outrora
habitou, que não sendo dele tinha em si alguns elementos que permitiam que se
apropriasse desse local.
É possível, neste caso, pensar numa apropriação que passava pela ideia de
liberdade associada ao espaço em questão e ao conjunto de atividades que se podia
realizar tendo em conta as características desse mesmo espaço:
“Sr. M: É totalmente diferente porque ali onde eu morava tinha a minha privacidade,
num certo sentido, que eu podia, uma hipótese, assar um peixe assim num, é uma
hipótese, que eu tinha um estacionamento para parquear, e nós, quem diz eu diz as
outras pessoas em si que moravam também, a gente assava o nosso peixe mas tinha
outra liberdade totalmente contrária, não tem nada a ver.” (excerto da entrevista ao
senhor Mário)
No caso de Nicolay e de Igor, que vivem ambos em casas no Campo Pequeno, a
sua relação com o espaço já varia, na medida em que, além do espaço ser partilhado
(“N: Comigo vivem eu não sei quantos…10 ou mais, por aí…” (excerto da entrevista a
Nicolay); “M: E dormes em alguma instituição? I: Na casa de um amigo.” (excerto de
entrevista ao Igor)) é também mantido por quem lá vive, não sendo da Câmara como no
caso do senhor Mário.
Assim, quando perguntei a Nicolay se no futuro gostaria de ter uma casa a
resposta foi imediata: “N: Uma casa? Minha? Eu tenho casa! Eu tenho casa grande
não aqui, lá [na Ucrânia]…” (excerto da entrevista a Nicolay), referindo várias vezes
que prefere estar em Portugal e que gosta da forma como vive (“N: Eu quero cá. Eu
gosto Portugal.” (excerto da entrevista a Nicolay)).
É visível no discurso de Nicolay uma escolha que se opera em torno de um
lugar. Ou seja, vivendo no Campo Pequeno, numa casa partilhada com 9 ou mais
pessoas, prefere olhar além dos possíveis elementos menos positivos (como a possível
68
falta de privacidade e excesso de habitantes) e focar-se, ao longo do seu discurso, nas
características positivas da sua experiência em Portugal, observando-se, aqui, uma
demarcação do seu espaço, da sua casa e da forma de habitar a cidade que escolheu:
“M: E quando há problemas [com as pessoas com quem vive], vai cada um para seu
lado?
N: Não há problemas, está tudo bem, passo bem, corre bem, não há nenhum
problema…somos uma família.
(…)
N: Aqui está tudo bem, eu gosto de trabalhar, eu gosto da gente, quem trabalha, quem
não trabalha eu não gosto…e que mais?” (excertos da entrevista a Nicolay)
Igor, por sua vez, ao ter vindo da Ucrânia para Portugal à procura de uma vida
melhor diz que quando tiver dinheiro quer voltar para o seu país de origem. Já viveu no
Centro Pedro Arrupe usufruindo de alguma ajuda temporária (“I: Só no início [é que
ajudaram] e depois só ajudaram quem mora no Centro Pedro Arrupe eles também
ajudam mas já não…” (excerto de entrevista ao Igor)) e agora dorme na casa de um
amigo.
No discurso de Igor em relação ao local onde dorme encontram-se apenas alguns
detalhes que podemos utilizar para falar da apropriação desse espaço. Por um lado, diz
que vive em casa de um amigo, logo não é um espaço seu, pertence ao seu amigo.
Por outro lado, tendo já vivido noutro local (Centro Pedro Arrupe) acaba por ser
passível equacionar a escolha de viver atualmente naquela casa, num espaço que apesar
de não lhe pertencer acaba por ser partilhado por si, apropriado por si em relação a
outros espaços onde poderia pernoitar por opção ou obrigação das circunstâncias em
que se encontra.
69
Figura 3: Campo Pequeno
Figura 4: Localização do Centro Pedro Arrupe
A experiência da Susana e do Paulo acaba por ser reveladora da ideia passada
pela Irmã que gere o Refeitório acerca do conceito de pessoa sem-abrigo ser também
aplicado a pessoas que vivem em casas, na medida em que, no caso deste casal apesar
de terem uma casa não possuem as condições mínimas de habitação, como é visível
quando o Paulo diz:
“P: Depois a minha sogra tem uma coisa que a gente não se dá muito bem, nega a luz,
nega a água, nega o gás, nega a própria comida e por isso é que é mesmo… Porque se
não fosse por causa disso ainda ia-me enrascando como eu tenho-me enrascado nos
tempos antigos mas quando aconteceu isso já tive que pedir mais ajuda de uma solução
70
ao meu assistente social, o Dr. Hugo, ele arranjou-me para aqui.” (excerto de
entrevista ao Paulo)
Deste modo, têm um local onde dormir e onde viver, têm uma casa, mas que, ao
não ser sua, acaba por levar a uma situação de negação e inexistência dos bens mais
básicos para uma vida condigna, tais como a água, a luz, o gás e a comida.
Este casal tem, de facto, o seu espaço e a sua casa da qual se apropriam, sendo
sua, tendo a sua privacidade e os seus pertences. No entanto, nesta situação não é
possível falar de um “habitar” o espaço onde se vive, pois, ao não terem condições são
obrigados a recorrer a dispositivos exteriores à casa (por exemplo o Refeitório) para
suprirem as suas necessidades, tal como é visível no discurso do Paulo, acabando por
dormir apenas naquele espaço.
Por fim, em situação de rua encontramos dois indivíduos, dormindo um deles em
Sete Rios e outro tendo já dormido na Gare do Oriente atualmente pernoita numa
fábrica abandonada.
O primeiro indivíduo a que me refiro é o Jallah que tendo já pernoitado na Vitae
dorme agora em Sete Rios, descrevendo essa situação da seguinte forma: “J: Antes
abrigos, agora vivo…na rua. Antes Vitae, um ano Vitae. (…) é centro de Sete Rios
[onde dorme], pero sempre passear, sempre ter de passear dentro de… (…) um dia vai
para metros, outro dia vai para autocarros…” (excerto da entrevista a Jallah).
A forma como Jallah me descreve não só o seu quotidiano pautado pelo
caminhar como também o sítio onde dorme permite-me pensar na apropriação que faz
dos espaços do seu quotidiano.
Por um lado, dorme sempre no mesmo local – em Sete Rios – explorando as
possibilidades que o mesmo lhe traz para que consiga um mínimo de conforto nesse
espaço público, uma vez que em alguns momentos do trabalho de campo foi visível a
ausência de objetos potenciadores de conforto, chegando a não ter sapatos para calçar
(“Quando estava a ir embora depois das entrevistas vi o Jallah a dizer adeus aos
voluntários e reparei que estava descalço (…)” (Diário de Campo, dia 16.5.2017)).
Por outro lado, num quotidiano feito de caminhos e deambulações – com a
respetiva demarcação do espaço por onde se vai passando e caminhando (cf.
Veschambre 2004) –, a escolha de Sete Rios para local de pernoita é em si bastante
inteligente e representativa da lógica de quem não tendo posses ou uma casa tem de
71
recorrer aos espaços da cidade para (sobre)viver: é um local público, com visitas de
turistas e uma boa rede de transportes em seu redor ficando relativamente perto do
centro da cidade.
O segundo caso que dorme na rua é o do Francisco que se encontra nessa
situação há 2 anos e 11 meses “mas em global tudo, geral, é 16 anos e 11 meses desta
vida sempre assim.” (excerto da entrevista a Francisco).
Quando falei com ele disse-me que dormia na Gare do Oriente, escolhendo os
locais mais resguardados para pernoitar: “F: há sempre um espaço que eu durmo ou
perto do Meo Arena ou ali ao pé do Oceanário, pronto, aqueles sítios que eu mais vejo
que estão resguardados, que me abrigue do frio é o mais essencial (…).” (excerto da
entrevista a Francisco).
Figura 5: Localização de três sítios de pernoita de Francisco: Oceanário, Meo Arena e Estação
do Oriente
Entretanto mudou de sítio para uma fábrica abandonada que partilha com um
“colega de quarto” e onde tem uma espécie de cama e uma janela que mostra em
fotografias do seu telefone:
“Conversa com Francisco sobre o novo sítio onde vive. Agora, em vez de viver na
estação do Oriente, vive numa fábrica abandonada com um “colega de quarto” –
Expressão interessante tendo em conta que uma fábrica abandonada e a continuidade
da situação de pessoa sem-abrigo não implicariam, à partida, a ideia de um “colega de
quarto”.” (Diário de Campo, dia 6.2.2017)
72
A situação de pernoita de Francisco é igualmente interessante para pensar as
questões da apropriação do espaço, uma vez que além da escolha do local onde dormir
encontramos também um aproveitamento das características dos espaços escolhidos.
É possível pensar também a forma de apropriação através da marcação do
espaço, uma vez que no local onde dorme atualmente (a fábrica abandonada) tem uma
cama sua e uma janela sua, desenhando ele mesmo uma espécie de quarto num espaço
que é transformado por este indivíduo em algo mais do que seria à partida. Ou seja,
assistimos a uma modelação da fábrica abandonada que se vai tornar num quarto, numa
casa, num espaço privado e do Francisco.
É interessante notar, para terminar esta análise dos lugares apropriados por estas
pessoas sem-abrigo, que apesar de alguns dormirem em albergues, outros em casas com
poucas condições e outros ainda na rua, a maioria destes indivíduos tem uma casa sua
com condições para uma habitação condigna.
Esta ideia que praticamente todos os indivíduos com quem falei (à exceção do
Francisco, Susana e Paulo) mencionaram – de ter uma casa sua com boas condições –
vem sublinhar de forma bastante clara a mudança que se opera nas suas vidas.
Sendo na sua maioria motivados pela procura de uma vida melhor ou por ofertas
de trabalho que vão surgir nos percursos das suas vidas, estes indivíduos escolhem vir
viver para Portugal não querendo voltar para a realidade que outrora experienciavam
mesmo que tal regresso representasse uma vida com melhores condições e/ou com mais
apoio ao nível da família.
“Eu tenho 41 anos e já fui brasileiro, por algum acaso eu despedi-me para sempre de lá
[…]; É assim: eu tenho do lado de lá, do Brasil, a minha casa própria, está a minha
casa sem dever um cêntimo de nada […]; (…) porque da Europa eu não saio!”
(excertos da entrevista ao senhor Marcelo)
“Eu quero cá. Eu gosto Portugal. […] Eu tenho casa grande não aqui, lá…” (excertos
da entrevista ao Nicolay)
“M: E antes, em Marrocos, como é que era?
J: Família. Sempre com família.” (excerto de entrevista a Jallah)
“M: E no país de onde vieste, tinhas essa liberdade?
73
Y: Claro que tinha! Tinha a minha casa, tinha os meus pais, tinha, tinha a minha
família à volta de mim (…)” (excerto de entrevista a Yassine)
1.2 Caminhos do quotidiano
“Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de
um próprio. A errância multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa
experiência social de privação de lugar – uma experiência, é verdade, esfarelada em
deportações inumeráveis e ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas
relações e os cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano,
e posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a
Cidade.” (Certeau 1998, 183)
Quando questionamos a apropriação que as pessoas sem-abrigo fazem do espaço
por onde passam torna-se interessante pensar como o fazem ao longo dos caminhos que
tomam no seu dia-a-dia.
Assim, ao falar com os utentes do Refeitório Rosália Rendu encontrei as mais
variadas formas de passar o tempo, de caminhar pela cidade, de escolha de sítios por
onde passar conforme as circunstâncias em que se encontram no momento.
O senhor Marcelo, por exemplo, passa diariamente o tempo em função da sua
doença (Transtorno Afetivo Bipolar, TAB), procurando espaços onde possa fazer
atividade física e cultivar o lado intelectual:
“Sr. M: O meu dia-a-dia tem sido o trabalho em prol da minha saúde, atividade física
exaustiva, sempre que posso, sempre mesmo que posso então vou até lá, gosto muito da
praia de Belém, gosto muito demais da praia de Belém para fazer atividade física. Tem
lá parques com aparelhos de ginástica e eu faço bom uso daquele local. Bom e após,
logo em seguida, eu continuo o trabalho da minha proteção de saúde, no sentido de
estar numa biblioteca, num ambiente que condiz com a minha vida pessoal, com a
minha personalidade. Então eu estou sempre ou numa loja de livros ou dentro de uma
biblioteca a escrever e a ler alguns livros também e a meditar e mesmo a matar o
tempo, matar o tempo porque envolver nessa espiral, nesse ciclo vicioso de sem-abrigo
é muito prejudicial para qualquer pessoa e para mim tem o agravante da doença, pode
74
até ser fatal se eu deixar essa espiral tomar conta da minha vida, não é?” (excerto da
entrevista ao senhor Marcelo)
Torna-se possível ver como, tendo esta rotina, o senhor Marcelo acaba por
definir um conjunto de espaços dos quais usufrui diariamente não só para chegar aos
pontos da cidade onde tem de ir para suprir necessidades (como o Refeitório, por
exemplo) como também para praticar algumas atividades de lazer (desporto e leitura).
O relato do caminho que é percorrido a pé pelo senhor Marcelo permite-nos
perceber como os espaços da cidade são utilizados tendo em conta as suas
características, as suas potencialidades, sendo moldados por vezes para fazer face às
necessidades destes indivíduos em situações vulneráveis.
Figura 6: Percurso do Senhor Marcelo
Outro percurso que é possível analisar é o do Francisco que, dormindo no
Oriente aquando da entrevista, refere que tem vários mecanismos para “passar os
tempos livres”. Entre eles aponta a frequência de espaços públicos, tais como lojas de
produtos eletrónicos como a Fnac ou a Worten, bancos do jardim, estações de
transportes e bibliotecas:
“F: (…) usufruo mais ou menos assim dos meus tempos livres, ou quer uma estação,
quer uma biblioteca, quer um banco do jardim. (…). Eu geralmente durante o dia
frequento mais assim locais públicos para me distrair ou vou à Worten ou à Fnac,
pronto para estar entretido com um computador ou…passar os tempos livres (…)”
(excerto da entrevista ao Francisco)
75
É interessante pensar aqui não só as distâncias percorridas a pé por este
indivíduo (Oriente-Refeitório passando pelas lojas, bibliotecas e jardins) como também
a escolha dos locais que frequenta.
Podemos, de igual modo, pensar na ideia transmitida por Francisco sobre estar
entretido como sinónimo de passar o tempo, passar os dias que se fazem caminhando,
indo a vários locais, experienciando os vários espaços da cidade até esgotar as horas do
dia, uma vez que, ao ser sem-abrigo, não dispõe de uma casa para onde ir ao fim do dia,
onde ter momentos de lazer, de privacidade, de repouso.
Ainda é possível equacionar a reação do cidadão “normal” na presença de uma
pessoa sem-abrigo nestes espaços públicos. Por um lado, essa reação não deve ser
excessivamente manifestada uma vez que Francisco continua a frequentar esses espaços
públicos. Por outro lado, essas reações existem e fazem-se notar, pois, em conversa no
Refeitório Francisco referiu várias vezes que sente que olham para ele com uma atitude
de julgamento: “Hoje o Francisco falou muito sobre a forma como as pessoas o julgam
com base no seu aspeto.” (Diário de Campo, dia 29.12.2016).
Figura 7: Percurso do Francisco
Nicolay gere o seu dia-a-dia de acordo com a existência ou não de trabalho, indo
do Campo Pequeno para o trabalho (que não indicou onde seria) ou para um escritório
(que também não disse a localização) ou para o Refeitório.
Os espaços utilizados por este indivíduo são potenciados para a sua
sobrevivência, principalmente a nível monetário, mencionando além desse facto que
também passa bastante tempo em cafés, a beber café, o que nos leva a associar o
76
quotidiano de Nicolay não só ao trabalho como também a momentos de lazer, sempre
experienciados fora de casa:
“N: A manhã eu vou beber café [risos], depois, depois o que é que eu faço? Não sei o
que é que eu faço…depois, quando me liga patrão, vou trabalhar, quando me não liga
vou ajudar para escritório…e depois outra vez bebo café [risos] e depois vou dormir.”
(excerto de entrevista ao Nicolay)
Por sua vez, Igor que também vive numa casa no Campo Pequeno passa o dia a
deambular pela cidade dizendo que não vale a pena sequer tentar procurar trabalho
porque o custo que representaria para si trabalhar não compensa tendo em conta o
salário que recebe:
“I: E quando trabalhas ordenado…melhor não trabalhar… [risos] acho eu ou trabalhar
e ganhar normal. (…) Eu, último trabalho trabalhar um ano e não resultar, ou
trabalhas ou não trabalhas é igual, mais ou menos.” (excerto de entrevista ao Igor)
Refere também como vai vendo o tempo passar enquanto caminha pela cidade,
registando-se, aqui, mais uma vez a questão do tempo e do caminhar como ocupação
principal do quotidiano numa apropriação do espaço da cidade que se dá precisamente
para ver o dia ir passando, entre passeios e atividades de lazer e convívio com amigos
em caminhos e locais escolhidos para o efeito:
“I: Andar [risos] (…) Não faço nada…não muito procurar trabalho… (…) O tempo
passa…” (excerto de entrevista ao Igor)
Analisando o quotidiano do senhor Mário encontramos também a referência a
alguns espaços que usufrui para ir passando o tempo, uma vez que também não tem um
trabalho com que se ocupe.
Fala das distâncias percorridas e do convívio com vários “colegas” em locais
como as Galinheiras e a Ameixoeira, refere como se entretém em espaços públicos
como cafés, como vai até à farmácia e ao Pingo Doce e, tal como os outros utentes com
quem falei foca também a questão de passar o tempo:
“Sr. M: Aaaaah convivo com um colega assim, às vezes vou à Ameixoeira, outras vezes
vou às Galinheiras. Convivo, passo o dia-a-dia, ou entretenho-me num café ou…não,
bebidas alcoólicas não…não bebo, é muito difícil. Não quer dizer que às vezes não me
77
junte com um amigo ou outro mas…passo o dia no café, assim a ver televisão, mais a
passar o tempo.” (excerto da entrevista ao senhor Mário)
Figura 8: Percurso do senhor Mário
Jallah caminha todos os dias de Sete Rios (onde dorme) até ao Refeitório e diz
que gosta de ir a bibliotecas para ler. Conseguimos ver no seu discurso que também
costuma frequentar estações de metro e de autocarros e que já esteve em outros
refeitórios antes, nomeadamente o Refeitório do Gerês e um outro no Cais do Sodré.
Neste quotidiano onde a deambulação por Lisboa está muito presente e onde,
neste caso, a dormida se faz na rua é possível encontrar uma apropriação dos vários
espaços por onde se passa para realizar as tarefas associadas à casa: no Refeitório toma
banho e come e nos caminhos que vai fazendo vai passando o dia:
“J: Nada, sim como sempre: vai passear um pouco, depois vem à Irmã e aqui come,
janto, depois vai passear e arrumar e um pouco, como sempre…” (excerto da entrevista
a Jallah)
Continuando esta análise que interliga os caminhos quotidianos das pessoas
sem-abrigo com a sua apropriação dos espaços da cidade numa relação de “habitar” a
cidade, deparo-me com o dia-a-dia de mais um utente que vive na Vitae – o Yassine.
Todos os dias faz, a pé, o caminho entre Xabregas e o Refeitório (Campo
Grande) passando sempre por um jardim e calculando sempre o tempo que demora a
percorrer essa distância, de modo a não chegar atrasado ao Refeitório e a poder
caminhar com calma:
78
“Y: Venho a pé, saio lá de Xabregas, vou calmamente dar uma volta até ao jardim e
depois venho aqui a pé, devagarinho, quando chegar aqui é 11h30, 12h, já está.”
(excerto da entrevista a Yassine)
Yassine, ao manter uma rotina que o leva de um ponto da cidade ao outro
consecutivamente, diariamente, quotidianamente acaba por demarcar a cidade face às
suas necessidades, face à sua pessoa e ao caminho por si escolhido apropriando-se dos
vários espaços envolventes a esse caminhar do dia-a-dia.
É ainda salientado por Yassine a procura diária de trabalho, bem como a ideia de
que ao encontrar um trabalho e alguma estabilidade deixará de frequentar o Refeitório,
tal como já aconteceu anteriormente quando se encontrava empregado.
Figura 9: Percurso de Yassine
Torna-se, assim, possível constatar a forma como estas pessoas sem-abrigo
utilizam o espaço público para cumprir as funções que a casa teria. Encontramos
claramente um conjunto de atividades que normalmente seriam realizadas em casa e
que, ao não existir essa possibilidade, são realizadas nos espaços que a cidade dispõe e
dos quais estes indivíduos se apropriam, moldando-os tendo em conta as necessidades
que vão tendo e as atividades que vão desempenhando.
1.3 O Refeitório: observação da apropriação de um espaço
“O refeitório Rosália Rendu, sito no Campo Grande, constitui uma resposta social
prestada pelas Filhas da Caridade de S. Vicente Paulo à população imigrante em
79
condições de grande precariedade, em especial, em situação de sem-abrigo e de
irregularidade.” (Relatório de Atividades do Refeitório Rosália Rendu 2011, 2)
O Refeitório, sendo uma “resposta social”, tem um público-alvo – imigrantes
sem-abrigo e em situação de irregularidade – e existe desde 2005 prestando apoio “a
utentes diretamente encaminhados pelo Gabinete de Apoio Social” (Relatório de
Atividades do Refeitório Rosália Rendu 2011, 2).
Tendo em conta os casos já apresentados neste trabalho é importante referir, em
relação ao público-alvo, que “embora prevaleçam os imigrantes sem-abrigo, existe um
número considerável de utentes que possui alojamento e ainda assim foram
encaminhados para o refeitório, especialmente, ao tratar-se de alojamento inseguro ou
alojamento inadequado ou em casos em que o rendimento auferido não permite a
supressão das despesas relativas à habitação e à alimentação.” (Relatório de
Atividades do Refeitório Rosália Rendu 2011, 7).
O serviço prestado por este espaço permite, então, aos seus utentes tratarem da
sua higiene, lavarem a sua roupa ou receberem peças de roupa que tenham em falta, e
ainda almoçar e levar comida para o jantar, bem como manterem um acompanhamento
junto de técnicos de serviço social (cf. Relatório de Atividades do Refeitório Rosália
Rendu 2011; 2015).
Deste modo, dada a observação realizada neste local também aí foi possível
encontrar momentos em que os seus utentes se apropriam do espaço em que se
encontram, seja através dos lugares em que se sentam, seja através dos objetos que têm
aí guardados, seja através da utilização ou não dos diferentes espaços (por exemplo, a
cozinha e o refeitório em si ou o balneário ou a lavandaria).
Desde o primeiro dia de trabalho de campo que foi possível observar uma clara
divisão espacial entre grupos de utentes do Refeitório, sendo notório que estes
indivíduos se sentavam de acordo com o seu país de origem, língua falada e algumas
relações que pareciam já estabelecidas.
“Pouco depois chegaram dois senhores que penso serem russos porque se sentaram
numa mesa separada (o senhor Stepan e um outro senhor). Ficaram os dois a conversar
apenas um com o outro, o que me levou a pensar na distinção que existe entre os
utentes do Refeitório, o facto de escolherem sentar-se ao pé das pessoas com quem
80
partilham a etnia ou o país de origem, a separação física tão bem visível neste espaço
(…).” (Diário de Campo, dia 24.10.2016)
Torna-se possível, então, pensar a apropriação do espaço em função das relações
estabelecidas. Ou seja, os utentes do Refeitório escolhem os lugares onde se sentam e o
resultado final dessas escolhas individuais acaba por ser uma separação por mesas
conforme a lógica já referida.
“Desta vez notei também que o aumento de utentes veio trazer uma alteração na
disposição dos lugares, o que levou também a uma alteração na harmonia e na forma
de convívio do Refeitório com as personalidades e as características de cada um a
ganhar nova ênfase. O Francisco (…) agora tem ao seu lado não o Galvino e o senhor
Mário mas uma senhora (ucraniana ao que parece) que diz que ele é seu amigo, e as
outras duas senhoras novas que tenta enturmar, e o Dumitru mantém o seu lugar. A
mesa do canto varia entre os muçulmanos Omar e Jallah ou utentes novos como hoje
(dois senhores e uma jovem mãe com a filha de 5-6 anos, falava só inglês). A mesa do
meio mantém o senhor Ivan, o outro senhor Ivan, o senhor Stefan e hoje também o
Norberto (…). A mesa da porta mantém os senhores ucranianos (…). E a mesa da
frente com os novos utentes (…) este grupo (…) fica no Refeitório depois de almoçar a
conviver entre conversas, ver televisão e comer pão.” (Diário de Campo, dia
20.12.2016)
Esta separação por mesas e o episódio de alteração da norma descrito acima
permite-me equacionar as escolhas destas pessoas que se encontram em situação de
vulnerabilidade em relação ao espaço que escolhem para seu, sendo que, ao contrário
dos locais onde dormem, no Refeitório ganham uma nova liberdade para efetuar essa
escolha.
Assistimos a uma demarcação do espaço – das cadeiras e das mesas neste caso –
com os (poucos) objetos que transportam consigo (por exemplo, chapéus, telemóveis,
mochilas) tornando esse espaço ocupado por si e não por outro utente qualquer, é o seu
lugar.
De igual modo, as questões associadas ao espaço no Refeitório tornam a surgir
não só ao nível desta divisão de lugares à mesa como também na divisão dos próprios
espaços do Refeitório e, desta feita, a separação opera-se entre utentes e voluntários.
81
A cozinha e o escritório são espaços onde os utentes não podem entrar, o
refeitório e o balneário são espaços onde podem estar e a lavandaria é um local onde só
podem ir na presença de um voluntário, sendo que a lavandaria e a cozinha têm, por
norma, a porta fechada à chave numa clara evidência de proibição à entrada de quem
não possua a chave (dos utentes, portanto).
No entanto, as características de alguns destes espaços e as relações utentes-
voluntários permitem uma certa permeabilidade à separação destas fronteiras espaciais.
“Hoje estive a falar com o Nicolay que já tem “autorização” para entrar dentro da
cozinha e já fica a ajudar com a loiça. – Penso que é sinal de que, de facto, as coisas
estão a começar a encaminhar-se, seja a nível de ter um trabalho fixo, seja a nível da
documentação e, provavelmente, tanto ele como o Iury em breve deixarão de ser
pensados como pessoas sem-abrigo ou sem teto; talvez sejam os dois primeiros casos
que acompanho ao longo deste percurso evolutivo.” (Diário de Campo, dia 17.2.2017)
É possível, assim, ver como na situação apresentada o utente em questão pôde
ultrapassar a fronteira entre o espaço dos utentes e o espaço dos voluntários, bem como
a associação entre esse trespassar de barreiras pré-existentes e a melhoria da sua
situação de vida.
A fronteira cozinha-refeitório tem também outra forma de ser ultrapassada tanto
pelos utentes como pelos voluntários. Entre os dois espaços além de existir uma porta
encontra-se também uma janela que serve para manter o refeitório como espaço privado
dos seus utentes face aos voluntários que se encontram na cozinha.
“Estive a falar com a Irmã Celeste sobre algumas histórias e o Francisco ia ouvindo
pela janela que às vezes fecha para nós não ouvirmos o que falam entre eles.” (Diário
de Campo, dia 13.2.2017)
Torna-se possível pensar numa breve apropriação do espaço do refeitório por
parte dos seus utentes quando se fecha a janela, na medida em que moldam aquele
espaço (através dessa ação de fechar a janela) para lhe conferir características privadas,
de forma a não serem ouvidos ou incomodados pelos voluntários que se encontram na
cozinha.
Por fim, em relação aos espaços e divisões espaciais do Refeitório refiro mais
um episódio em específico no qual essas divisões, ao serem trespassadas, causaram uma
reação junto de uma voluntária que fez questão de se exprimir:
82
“Uma situação interessante de hoje foi a reação da Irmã e de uma das voluntárias ao
facto de o Francisco entrar pela “porta dos voluntários” quando vai buscar os sacos
com caixas de comida à entrada. A conversa que se seguiu foi a voluntária a perguntar
porque é que ele (o Francisco) entrava por aquela porta quando trazia os sacos com a
comida e a Irmã a dizer que não sabia porquê, mas que era assim; a voluntária riu-se e
disse que pronto nesse caso era assim, mas que ele deveria entrar pela “porta deles”.”
(Diário de Campo, dia 28.4.2017)
Nesta situação é através da reação à entrada de um utente pela “porta dos
voluntários” que vemos como há uma clara separação do espaço dentro do Refeitório,
nomeadamente nas entradas neste local.
Acaba por existir um conjunto de normas que não aparecem escritas nem são
explicadas a quem chega pela primeira vez ao Refeitório em relação à utilização
daquele espaço e às dinâmicas que lhe estão inerentes conforme se é utente ou parte da
equipa de voluntários, como foi possível ver nos episódios apresentados acima.
O tipo de apropriação do espaço que é passível de ser observado aqui passa pela
separação do meu lugar à mesa em relação a todos os outros lugares possíveis de
ocupar, seja através da marcação do espaço com objetos seja através da presença fixa
nesse lugar.
De igual forma encontramos a modelação do Refeitório que se vai transformar
num local de privacidade. Observa-se, ainda, uma forma que os utentes têm de dotar
este local de uma “habitabilidade” contrastante, por vezes, com os locais onde estes
indivíduos pernoitam e que se encontram desprovidos dessa característica.
Figura 10: Refeitório (1) Figura 11: Refeitório (2)
83
Apegar: as Relações das Pessoas Sem-Abrigo
2. A Carência nos Afetos
Em relação ao terceiro e último eixo no qual se apoia este trabalho – as relações
e a forma como as pessoas sem-abrigo se apegam confiando no outro – houve uma
procura das características e dinâmicas inerentes ao modo como estes indivíduos, cuja
vida é pautada de carências e pela instabilidade, conseguem ou não manter relações e
ligações a outras pessoas.
Sendo caracterizados como indivíduos que não possuem meios de sustento a
nível económico não detendo abrigo ou teto, encontramos também uma outra forma de
pensar a realidade das pessoas sem-abrigo: “são apenas pessoas carentes de afetos
(pobres de afetos) que querem chamar a atenção mas que não fazem mal a ninguém.”
(Diário de Campo, dia 7.11.2016).
“I: (…) porque é aquilo que eu lhe dizia no outro dia: além das carências monetárias,
eles têm principalmente carências afetivas e eu penso que eles têm muita necessidade
de alguém que pare um bocadinho para os ouvir e que converse um bocadinho com
eles.” (excerto de entrevista a Isabel)
No entanto, através da observação realizada junto desta população em específico
– os utentes do Refeitório Rosália Rendu – esta ideia de “carência de afetos” foi sendo
desconstruída e foram sendo encontradas formas de se relacionarem com o “outro”
características de quem se encontra na situação de sem-abrigo.
Assim, o verbo apegar vai ser utilizado na análise dos dados recolhidos que
focam as relações destes indivíduos numa lógica que vai das relações estudadas e
visíveis dentro do Refeitório até às relações que estas pessoas mantêm fora desse
espaço.
2.1 As relações no Refeitório
“(…) tenho assistido a momentos de camaradagem, entreajuda, preocupação/cuidado
com o outro, animação, afetividade (incluindo os lugares em que se sentavam).”
(Diário de Campo, dia 17.10.2016)
84
A questão do apego é visível no Refeitório não só nos comportamentos que os
seus utentes têm entre si e com os voluntários, como também pela própria disposição
das pessoas no espaço e pelo ambiente que se vive durante a hora de almoço naquele
local.
“A Irmã diz-me que eles (sem-abrigo) são simpáticos, conversadores, calmos, mas
muito exigentes seja com a comida seja com a vez de comer para que não lhes falte
alimento.” (Diário de Campo, dia 17.10.2016)
Encontramos, assim, um conjunto de indivíduos que convivem num mesmo
espaço durante determinado período dos seus quotidianos partilhando não só a refeição
como muitas vezes as experiências que vão vivendo tendo em conta várias
problemáticas com que se deparam, como é visível no seguinte episódio:
“(…) depois o Nicolay recebeu um telefonema do seu patrão a pedir que fosse
trabalhar hoje à 1 hora da manhã. Terminou o telefonema bastante revoltado. Diz que
recebe apenas 5€ à hora seja um trabalho durante o dia ou durante a noite, mas que
pagam cerca de 10/12€ ao seu patrão e que ele apenas dá 5€ aos seus empregados. A
Irmã perguntou a que horas acabava o trabalho e ele disse que não sabia, que acabava
quando acabasse e que se ele não fosse chamavam outro.” (Diário de Campo, dia
21.4.2017)
Além destes momentos em que os utentes sentem a necessidade de falar sobre os
vários problemas com que se deparam é possível ver também como vai aumentando a
proximidade dos utentes em relação aos voluntários, tendo em conta um maior número
de vezes que os segundos aparecem no Refeitório e o facto de demonstrarem
disponibilidade para ouvir e falar com estes indivíduos sem-abrigo:
“M: Essa confiança existe pela repetição de vezes que vêm cá? É através de… Como é
que se dá essa confiança que passa a haver?
I: É a repetição de vezes, é também eu acho que para eles é muito importante que nós
nos vamos aproximando devagar, que vamos esboçando um sorriso porque é aquilo que
eu lhe dizia no outro dia: além das carências monetárias, eles têm principalmente
carências afetivas e eu penso que eles têm muita necessidade de alguém que pare um
bocadinho para os ouvir e que converse um bocadinho com eles.” (excerto da entrevista
a Isabel)
85
É visível no Refeitório uma certa distinção entre os vários utentes. Opera-se
quase uma humanização de cada um ao falar deles com base nas suas características,
nos seus gostos e preferências, e na sua personalidade.
“As voluntárias que já conhecem os utentes dizem “ah é o x, é normal” ou “ah lá vem
este ou aquele outra vez” – conversam entre si com um código de linguagem já criado
para falar de alguns utentes, dando-lhes alcunhas ou referindo-se a eles através de
características que estes tenham e que sobressaiam.” (Diário de Campo, dia
19.10.2016)
“Foram chegando os utentes e as caixas e os vários pedidos que cada um tem, seja em
relação aos lanches, seja em relação às caixas. É interessante ver como cada um deles
já sabe que a Irmã conhece os seus gostos e os seus vários pedidos quando dizem “a
Irmã já sabe o que é para pôr”.” (Diário de Campo, dia 18.11.2016)
Uma situação interessante de ser mencionada num capítulo onde se fala de
relações e interações é a dos novos utentes. A forma como são recebidos pelos
voluntários e pelos utentes habituais do Refeitório, a forma como aprendem através da
observação quais os comportamentos e a postura a adotar naquele espaço, a forma como
se mantêm junto daqueles que entram no Refeitório ao mesmo tempo que eles.
“Chegou um novo utente, um refugiado sírio (?) que só fala inglês e queria almoçar no
Refeitório. Foi interessante ver os olhares dos outros utentes para com o refugiado num
misto de desconfiança e curiosidade. À hora de almoço foi também interessante ver o
processo de aprendizagem da ordem e dos comportamentos no Refeitório durante o
almoço.” (Diário de Campo, dia 16.1.2017)
O “processo formal” – por ser repetido de todas as vezes que chega um novo
utente – de receção aos novos utentes por parte dos voluntários foi observado por três
vezes e nas três vezes teve a mesma ordem: entrega de um documento assinado pelas
assistentes sociais a comprovar que aquele indivíduo poderia usufruir dos serviços do
Refeitório; explicação do funcionamento do Refeitório; fotocópia do documento do
utente.
“Quando a Irmã estava para ir almoçar apareceram três senhores angolanos novos, o
que me permitiu assistir ao acolhimento destes novos utentes de perto: vinham com um
documento da JRS a sinalizar que poderiam ir ao Refeitório e foi-lhes dito que não
perdessem esse documento e que dessem os seus documentos de identificação (no caso
86
os passaportes) para que fossem fotocopiados para depois serem devolvidos –
Pergunto-me que tipo de explicação/justificação terá aqui a JRS para que tenham dado
os seus documentos de identificação (uma das coisas mais importantes para as pessoas
sem-abrigo) assim tão prontamente a uma pessoa desconhecida… - De seguida, foi-lhes
explicado o horário do Refeitório, as refeições, as instalações e as possibilidades de
usufruto deste espaço acabando com, “mas vocês vêm da JRS já devem saber isto que
vos estou a dizer”.” (Diário de Campo, dia 27.2.2017)
Aqui observamos como estes seres vulneráveis por se encontrarem em situação
de sem-abrigo acabam por desenvolver alguma confiança não só em relação ao espaço
do Refeitório (“(…) veio ao Refeitório porque é o seu “lugar seguro” disse ele a uma
das voluntárias.” (Diário de Campo, dia 31.3.2017)), como também em relação ao
grupo de voluntários que os acolhe e auxilia durante o período de almoço.
Estas relações e este estar em contacto com, que encontramos no ambiente do
Refeitório, acabam por revelar que existindo uma possível “carência de afetos” nesta
população em específico, tal não significa que estas pessoas deixem de manter relações
quando têm oportunidade de o fazer.
Podem ser encontrados indícios destas relações, deste apegar através da
confiança, em pequenos gestos como a preocupação com o outro utente que tarda em
chegar, a tentativa de comunicação através de gestos e olhares, ou ainda as conversas
mantidas enquanto se espera pelo almoço.
Um aspeto interessante de reter aqui é também a questão dos conflitos existentes
ou passíveis de existir no Refeitório, uma vez que, ao falar de relações entre indivíduos,
podemos deter-nos em alguns momentos em que existiu uma certa tensão na população
que estudei.
“(…) regressámos ao Refeitório e os ânimos estavam exaltados: um dos utentes tinha
tentado agredir um outro utente por causa da ordem dos banhos e a Irmã teve de
intervir e chamar a segurança e deu ordens para que todas as portas ficassem
trancadas até ao seu regresso e que não se desse nada aos utentes, nem toalhas.”
(Diário de Campo, dia 17.4.2017)
“A Irmã esteve a contar-me que ontem houve uma grande confusão no Refeitório que
resultou na expulsão permanente de um dos utentes, o senhor Norberto. Contou-me que
ele e o senhor Luís se tinham pegado um com o outro incluindo cadeiras nesse ato de
87
violência que decorreu no momento em que o Refeitório estava cheio com os almoços a
serem servidos.” (Diário de Campo, dia 21.4.2017)
E o que motiva estes conflitos? O que faz com que os utentes em questão
ponham em causa a continuidade da ida ao Refeitório? No primeiro caso foi a ordem
dos banhos que foi desrespeitada, no segundo caso foi a alimentação indevida do animal
de estimação de um por parte de outro.
Em ambas as situações apresentadas houve motivos que se tornaram mais
importantes no momento para estes indivíduos do que propriamente a continuidade das
idas ao Refeitório.
Tornou-se possível através da tensão gerada entender por um lado alguns dos
eixos que levaram as pessoas em questão ao conflito, por outro lado a importância que
determinados elementos têm para estas pessoas (num caso o respeito da ordem e do
utente que estaria primeiro, noutro caso o animal de estimação).
Outra questão levantada quer pelos utentes quer pelos voluntários em relação às
dinâmicas do Refeitório é a importância do respeito a ser tido não só entre utentes como
também entre utentes e voluntários:
“I: Eu acho que há um princípio básico que é o essencial…que é o respeito que eles têm
por nós voluntários e principalmente pela Irmã. Já assisti aqui a duas cenas menos
agradáveis, já tive que me pôr no meio de dois e sujeita a levar um murro ali, mas não,
quando eu levantei a voz e me pus no meio deles os dois cada um sentou-se na sua mesa
e penso que eles acabam por, podem não se respeitar uns aos outros, mas acabam por
respeitar os voluntários que estão, porque sabem que estão para os ajudar e
principalmente respeitam a Irmã porque sabem que ela está para lhes dar comida e
acho que isso é muito importante, o respeito.” (excerto da entrevista a Isabel)
“Sr. M: mas geralmente é com o Francisco que conversamos assim mais, mas é uma
coisa assim passageira, mas não é toda a gente, como é normal, mas como se diz o
outro não dou muita confiança porque eu já vai mais ou menos o que não se pode, eu
gosto muito do respeito.” (excerto da entrevista ao senhor Mário)
Por fim, é ainda interessante contrapor aquilo que os utentes do Refeitório me
disseram nas entrevistas acerca das relações que mantêm naquele espaço com aquilo
que é observado e com aquilo que dizem quando não estão focados na questão “Como
são as relações que mantém no Refeitório?”.
88
As respostas a esta pergunta variaram entre “mais ou menos amigo, mas amigo,
amigo não tem” (excerto de entrevista ao Igor), “relações muito à superfície” (excerto
de entrevista ao senhor Mário), “só conhecidos, não é amigos, aqui não tem ninguém”
(excerto de entrevista ao Jallah), “tem amigos lá de casa, estão sempre juntos” e ainda
“aqui no Refeitório também tenho amigos” (excerto de entrevista ao Paulo).
No entanto, se formos olhar para a continuação do discurso destes indivíduos ou
mesmo para o seu comportamento durante o período do almoço no Refeitório
encontramos uma realidade diferente.
Igor menciona várias vezes os seus amigos ucranianos ao longo da entrevista e a
forma como estes o foram ajudando na sua adaptação à situação de sem-abrigo, indo
desde a pernoita em casa de um amigo (como visto no capítulo anterior) até à indicação
de locais onde se pode dirigir para comer:
“M: E como é que tiveste acesso à igreja e à comida da igreja?
I: Amigos, amigos ucranianos.” (excerto da entrevista ao Igor)
O senhor Mário não só revela preocupação com Francisco num dia em que este
não aparece às horas que costuma aparecer no Refeitório como também indica depois da
sua entrevista que eu poderia falar com os seus amigos Jallah e Yassine:
“O senhor Mário perguntava, preocupado, se a Irmã não saberia nada, se ele [o
Francisco] não se teria metido em alguma confusão. (…). Passado algum tempo fui
chamada como testemunha da preocupação do senhor Mário com o atraso do
Francisco – interessante como o zelo e a preocupação com o outro se tornam
importantes neste contexto de vulnerabilidade.” (Diário de Campo, dia 28.10.2016)
A contradição de Jallah acerca da forma como mantém as suas relações no
Refeitório surge poucos instantes depois de me ter dito que não tem amigos naquele
espaço, referindo que:
“Importante? Verdade como família, se dá comida para nós, é verdade, muita coisa,
por aí, dá muita coisa, coisa para a Irmã complica, porque sempre dá coisa, comida,
verdade, como Irmã, como todos mais sim, eu gosto é verdade tenho amigos aqui, um
dia não venho aqui sempre diz “ah como está amigo?”. Toda a gente é boa, a Irmã,
muito obrigado.” (excerto de entrevista a Jallah)
89
Podemos analisar ainda uma posição que mantendo as contradições difere em
relação àquelas já apresentadas que é a do senhor Marcelo. Por um lado, diz que cortou
com qualquer tipo de relações (amizade, colegas, família), mas, refere de igual modo
como se sente como “um monitor à parte” (excerto da entrevista ao senhor Marcelo)
não deixando, no entanto, de “causar impacto” (excerto da entrevista ao senhor
Marcelo) junto dos restantes utentes daquele espaço.
2.2. As relações fora do Refeitório
“Teremos nós alguma coisa a aprender, de um ponto de vista sociológico, com as
relações múltiplas que acompanham a história de vida de cada homem?” (Breviglieri
2013, 1, tradução minha56)
Analisei a forma como as pessoas sem-abrigo que estudei interagem entre si e
com a equipa de voluntários tendo em conta o espaço do Refeitório, demonstrando que,
de facto, se vão desenvolvendo relações e formas de apego através da confiança que se
estabelece entre uns e outros.
É agora interessante procurar deslocar o olhar além do espaço do Refeitório e
ponderar acerca das relações que estes indivíduos mantêm além daquele lugar e da hora
de almoço.
Importa aqui recorrer não só ao passado e a uma realidade anterior à situação de
sem-abrigo com também ao presente e às formas de (con)viver com o outro
precisamente ao estar sem-abrigo. Ou seja, procuram-se as ligações, as interações, as
formas de relacionamento entre a especificidade da situação em que se encontram as
pessoas sem-abrigo e o outro que pode ser ou não sem-abrigo.
Desta forma, o senhor Marcelo menciona sobretudo três tipos de relações com
que se tem deparado desde que se encontra em situação de sem-abrigo: as relações de
tensão com outros utentes dos albergues onde pernoita e pernoitou; a relação à distância
com as filhas; todas as outras relações mantidas, nomeadamente com um colega
advogado.
56 «Avons-nous quelque chose à apprendre d’un point de vue sociologique des attachements multiples qui
accompagnent l’histoire de vie de chaque homme ?» (Breviglieri 2013, 1)
90
Em relação aos albergues a descrição dos relacionamentos que vivenciou aí toca
em termos como “comportamento anárquico”, “castigo” ou ainda “desordem”, tal como
é referido no seguinte excerto da entrevista ao senhor Marcelo:
“Sr. M: Embora eu tenha a certeza absoluta que eles não têm a menor intenção, a
menor perceção, a menor consciência do que se trata, eles têm um comportamento
anárquico, no sentido da desordem, da ideia política mesmo de anarquia, da ideia de
sociabilidade desordenada, desorganizada, tá bem?”
“Sr. M: Então eles utilizam um método de criar situações, de montar cenas, para
castigar aquele que não é integrado, que não se consegue integrar bem no grupo. Ou
tem que estar adaptado ao grupo, ou tem que ser mais um, ou sofre o castigo.”
Depreende-se que as experiências relacionais que o senhor Marcelo teve
principalmente com os utentes do primeiro albergue onde ficou não foram de todo
positivas levando, inclusive, a que fosse apresentando queixas sucessivas para que o
colocassem noutro albergue.
No entanto, não deixa de ser interessante olhar a forma como os indivíduos que
pernoitam no primeiro albergue em que o senhor Marcelo esteve funcionam em grupo,
incluindo ou excluindo outros indivíduos desse grupo principal através de formas
curiosas de coerção e domínio de uns em relação aos outros numa realidade onde a
vulnerabilidade impera.
Passando para um tipo de relação mais privado e profundo o senhor Marcelo fala
das suas filhas: “E tem lá (…) as minhas filhas que nunca esqueço delas, não é? Uma
mais velha e duas gémeas iguais, uma de 11 anos e duas gémeas iguais de 8 anos.”
(excerto de entrevista ao senhor Marcelo).
Diz que não mantém contacto com as filhas por impedimento da mãe das
mesmas e que no futuro gostaria de viver com elas cá, na Europa, demonstrando algum
nervosismo nos gestos e no olhar ao falar dessa relação:
“(…) viu-se pela forma como as mãos tremiam, pelas pausas e pela expressão séria,
emocionada e quase de uma revolta impotente, que o tema “relações” no geral e “as
filhas” em particular o afetam bastante (…)” (Diário de Campo, dia 3.1.2017)
91
Por fim, ao falar da sua amizade com um colega advogado, o senhor Marcelo
revela aquilo que sente e pensa acerca da estreita conexão entre a situação de sem-
abrigo e a necessidade de se afastar das outras pessoas para que não as prejudique:
“Sr. M: Tenho esse colega advogado (…). Ele gosta muito de mim e eu gosto muito dele
mas a gente não pode, não posso deixar um transtorno que está-me acometendo roubar
a energia dele, percebeu? Senão eu vou atrapalhar a vida dele. Porque me arrancou da
minha normalidade quotidiana, vai arrancar ele também.”
“De modo que, depois de ter acontecido isso cá em Portugal, eu cortei absolutamente
as minhas relações de tudo, de amizade, de colegas, de família, de tudo, porque eu acho
que é um peso demasiado para as pessoas carregarem, então eu nem me permito ter um
envolvimento emocional, nem profissional, enquanto eu não ultrapassar definitivamente
esse assunto, percebeu? Porque eu acho que é um preço muito alto para o colega, para
uma pessoa que a gente gosta pagar. Principalmente porque percebi que quando me
acham vulnerável eles vão então numa circunstância, numa coisa à minha volta que
possa me atingir, é o caso das minhas filhas, não é?” (excertos da entrevista ao senhor
Marcelo)
Estes excertos são úteis e importantes para pensar não só a posição que a
situação de sem-abrigo assume para este indivíduo e para as suas relações sociais como
também as defesas que são ativadas face à vulnerabilidade comportada por essa mesma
situação.
Isto é, o senhor Marcelo não só fala de um desligamento total como forma de
proteção daqueles que lhe são queridos procurando que a sua situação não os afete,
como utiliza esse desligamento como autodefesa pois cortando as relações sociais que o
envolviam antes de ser sem-abrigo acaba por ter menos um ponto frágil onde o
poderiam “atingir”.
Francisco refere formas de relacionamento com características diferentes, mas
com algumas semelhanças àquelas mencionadas pelo senhor Marcelo.
Por um lado, e à semelhança dos outros utentes dos albergues de que o senhor
Marcelo menciona, fala das pessoas que dormem nos mesmos espaços que ele.
Por outro lado, apresenta dois tipos de família: aquela família composta pelos
seus parentes e uma outra composta por pessoas que o foram ajudando conforme se ia
deparando com problemas.
92
Em relação às pessoas que dormem no mesmo que espaço que ele, Francisco
fala de alguma instabilidade na presença desses indivíduos levando a momentos em que
se sente sozinho:
“F: De momento, pronto, existem lá assim alguns que dormem, outros dias não vão,
pronto, uma vez sinto-me sozinho (…)” (excerto da entrevista ao Francisco)
É interessante pensar aqui a noção já referida de “carência de afetos” – o
momento em que Francisco expressa uma falta de contacto com outras pessoas por se
encontrar numa situação instável de sem-abrigo, sente-se sozinho, sem companhia, sem
alguém com quem partilhar aquele espaço onde dorme e a quem esteja ligado, apegado,
relacionado.
Sobre o tópico da família Francisco divide no seu discurso dois tipos de pessoas
que considera família:
“F: Digamos, não aconteceu, mas foi um afastamento daquilo que eu
era…propriamente… eu educado até uma certa idade, digamos, dos 14 anos até aos 17
ainda consegui frequentar a ausência dos meus pais e acabando depois, envolvendo-se
etnias e grupos, fiquei sem a minha família e…afastando-me, lá está, afastando-me do
pouco ou muito que eu já levava e isso…digamos, obrigando-me a mim mesmo a
arrastar-me para a dita cidade de Lisboa e aí onde eu me aprofundei.” (excerto da
entrevista ao Francisco)
“Olhando neles, porque me adotaram em certas circunstâncias falando comigo,
sabendo o que é que eu sou, o que é que faço, o que é que não faço, eu adotei-as!”
(excerto da entrevista ao Francisco)
Vemos nestes excertos a forma como se dá o ligar e o afastar do outro no caso de
Francisco. Se por um lado este indivíduo diz que perdeu a sua família devido a um
conjunto de problemas. Por outro lado, foi também em situações em que estava em
circunstâncias complicadas que encontrou uma nova “família” que o ajudou, que o
ouviu, que passou a conhecê-lo.
Nicolay, por sua vez, divide também as suas relações principalmente ao nível
dos dois tipos de família que diz ter: de um lado aquela família com quem não mantém
contacto porque não quer (composta pelos seus pais, irmãos e filha) e, de outro lado, os
seus amigos e os indivíduos com quem partilha a casa.
93
“N: (…) Pai, mãe [estão na Ucrânia], irmão está em Espanha, irmã Eslováquia, minha
filha não sei onde…
M: E falas com os teus pais? Tens algum tipo de relação com a tua família?
N: Eu não falo há muitos anos. Porque não quero.
M: Então consideras mais próximo quem vive contigo cá em Portugal?
N: Sim, claro, minhas amigas, meus amigos. A família não me interessa. (…) Já estou
há muitos anos longe. Eles não querem saber como estou eu e eu não quero saber como
estão eles. Pronto.” (excerto de entrevista ao Nicolay)
Não deixa de ser interessante pensar como se operou o corte na relação entre
Nicolay e a sua família e a forma como este indivíduo arranjou outras pessoas que o
ajudassem e com quem partilhar um quotidiano que, caso não tivesse existido o corte
prévio com a família, talvez fosse partilhado com os seus parentes.
As relações que Igor mantém fora do Refeitório cingem-se principalmente à sua
mãe, aos seus amigos ucranianos, expressando ainda como se sente mal em Portugal por
ser visto como imigrante e por ouvir todo um conjunto de ideias negativas associadas
aos imigrantes por parte de alguns portugueses.
Igor fala da sua mãe com bastante carinho (usando a palavra “Mamã”)
associando as saudades que tem do seu país de origem à pessoa da mãe com quem fala
com bastante regularidade. Refere ainda que no futuro gostava de ter dinheiro suficiente
para poder regressar à Ucrânia e ajudar a sua mãe.
“I: Minha família é só minha mãe.
M: E costumas falar com ela?
I: Sim, ela quer que eu todo o dia falar com ela. Mamã tem reforma…como estes
velhotes… Eu queria ajudar mamã, ela sozinha e eu também quero minha mãe como
cozinheira. (…) Só que ela como general, ela gosta de mandar, general “Faz isto, faz
aquilo, vai lá, vai ali” e eu não muito gosto…antes quando pequeno tudo bem, agora
não… [risos]” (excerto de entrevista ao Igor)
As amizades que mantém, segundo o próprio, são sobretudo com pessoas
ucranianas que o vão ajudando a descobrir lugares na cidade de Lisboa onde pode ir
para resolver algumas das suas necessidades, nomeadamente para encontrar comida:
94
“M: E como é que tiveste acesso à igreja e à comida da igreja?
I: Amigos, amigos ucranianos.” (excerto da entrevista ao Igor)
Neste caso vemos como, por vezes, a questão de encontrar outras pessoas do
mesmo país de origem leva a um tipo de confiança e de relacionamento diferente, a uma
partilha de experiências e conhecimentos diferente, causada ou não por essa mesma
origem e que sendo referida fora do Refeitório também é observada dentro daquele
espaço.
Por fim, é ainda mencionado por Igor a forma como se sente mal em Portugal,
como sente que é visto enquanto estrangeiro e como esse ser estrangeiro acarreta um
conjunto de conotações negativas perpassadas por alguns cidadãos portugueses:
“I: Lá [na Ucrânia] a minha mãe e…eu gosto de sentir não como estrangeiro. Ucrânia é
minha casa e todas as pessoas não olhar para mim como imigrante, como estrangeiro,
como…eu sente em Ucrânia melhor do que aqui, aqui muitas vezes sente-se mal porque
eu é ucraniano e esse é problema para as pessoas, para os pretos, para os portugueses,
muitos portugueses dizem “vocês roubam nossos lugares de trabalho e vocês bebem
álcool e fazer mal e…”.” (excerto da entrevista ao Igor)
Ao falar com o senhor Mário sobre as relações que mantém fora do Refeitório é
possível reter, por um lado, que recentemente sofreu um grande impacto na sua rede de
relações sociais com a morte da sua mãe, por outro lado, registam-se outros cortes desta
vez associados à passagem para a situação de sem-abrigo e ao “abandono” por parte dos
seus amigos de outrora.
“M: Vive sozinho?
Sr. M: Sim, sim, sim, a minha mãe já… [pausa; o sr. M emociona-se ao falar da mãe e
demora algum tempo a conseguir continuar a falar] faleceu-me há…há uns oito meses…
[mudança no tom de voz que ficou mais baixo porque o sr. M ficou comovido]
atualmente vivo sozinho na casa da Câmara que arranjei. Tenho família, mas cada um
no seu canto.” (excerto da entrevista ao senhor Mário)
“Sr. M: E realmente quando eu comecei a entrar em decadência, derivado à minha vida
em si, nas vendas, quem eu pensava que era uma pessoa meu amigo ou minhas amigas
foi quem me abandonou.” (excerto da entrevista ao senhor Mário)
95
Deste modo, é referido que não tem amigos apenas conhecidos, que vive sozinho
e que apesar de ter família não há uma grande proximidade para com os seus parentes.
Além disso conversa e convive diariamente com algumas pessoas que apelida de
“colegas”.
“Sr. M: Eu passo os dias realmente…às vezes encontro-me com um colega ou com
outro (…)” (excerto da entrevista ao senhor Mário)
“Sr. M: O amigo que eu tinha no bolso é que era o amigo deles, que eles me
consideravam como amigo. Então hoje eu não tenho amigos, tenho conhecidos.”
(excerto da entrevista ao senhor Mário)
Jallah tem vários amigos espalhados por três países principalmente: Marrocos,
Espanha e França. Além dos amigos que foi fazendo refere ainda a sua família
numerosa com quem vivia quando estava em Marrocos e com quem fala com alguma
regularidade enquanto está em Portugal.
É interessante pensar no caso deste indivíduo a importância que tem o contacto
que vai mantendo com a família que está em Marrocos, na medida em que, ao ser sem-
abrigo, não dispõe de muitos meios para contactar a família, mas, ainda assim, havendo
essa necessidade de dar notícias aos pais e irmãos, Jallah acaba por encontrar meios
para os contactar.
“M: Há bocado falaste que vivias em família, ainda manténs relação com eles? Falas
com eles?
J: Com família? Sim. É um dia se marca, se lhama, dois dias…quando ter dinheiro
fazer um recadito, mais a irmã como sentam…” (excerto da entrevista a Jallah)
“M: Além da família, tens outro tipo de relações? Amigos…cá em Lisboa?
J: Sim, tenho amigos aqui, em Espanha, França, Marrocos.” (excerto da entrevista a
Jallah)
No caso de Yassine são referidos dois grupos nas relações que mantém fora do
Refeitório: um composto pelos indivíduos que vivem no mesmo albergue que ele e o
outro composto pela sua família com quem vai mantendo contacto.
Ao contrário das experiências relatadas pelo senhor Marcelo que vive no mesmo
albergue que Yassine, este indivíduo demonstra como o facto de viverem no mesmo
local mantém o seu grupo de amigos junto fora do albergue, passando uma ideia de um
96
grupo e uma experiência mais pacíficas do que aquelas vivenciadas pelo senhor Marcelo
no mesmo espaço.
“M: Há bocado falou da família. Costuma falar com eles…
Y: Sim. Costumo, eu não…eu tenho contacto sempre com eles, no Facebook, no
Whatsapp, no telefone… Não é diariamente, mas por exemplo uma vez por mês tem que
ou duas vezes por mês tem que saber notícias, principalmente a mãe, não é? A mãe é
que mais…”
Neste relato de Yassine são referidos os meios que costuma utilizar para se
manter em contacto com a família que vive em Marrocos. É interessante observar o uso
das novas tecnologias (Facebook e Whatsapp através da Internet) e a necessidade, tal
como já visto no caso de Jallah, de manter um contacto regular com os seus familiares.
Por fim, ao nível das relações mantidas fora do Refeitório encontramos o caso
do Paulo e da Susana que, sendo casados, têm o seu filho de 3 anos que veem com
alguma regularidade e esperam poder ter meios para o sustentar num futuro próximo.
“M: Muito bem, como é que pensas o futuro, ou seja, como é que gostarias de estar
daqui a cinco anos?
S: Com o meu trabalho, com a minha própria casa, com o meu próprio trabalho e…ter
uma família realizada, isto seja, com o meu esposo e com o meu filho.” (excerto de
entrevista a Susana)
Falam ambos também dos amigos que têm, seja no curso (no caso de Susana),
seja aqueles que foram sendo feitos ao longo da vida (no caso de Paulo). Paulo
menciona ainda a tensa relação com a sua sogra em casa de quem vive (já mencionado
acima).
“M: Além da família tens amigos, tens outro tipo de relações?
S: Sim, tenho amigos lá do curso, tenho.” (excerto de entrevista a Susana)
“P: Tenho, por acaso tenho muitos amigos. Nas minhas antigas escolas, onde eu passei
no meu curso, não completei o curso de carpintaria ali na Crinabel do Lumiar, nos
trabalhos do dia-a-dia, no próprio bairro, no dia-a-dia…” (excerto de entrevista ao
Paulo).
97
Conclusões: As Pessoas Sem-Abrigo – Apropriações e Relações
Quando pensamos nas pessoas sem-abrigo da cidade de Lisboa podemos ser
levados a uma imagem de um conjunto de seres que deambulam pelas ruas da cidade,
que ocupam indevidamente os espaços que vão encontrando, que não têm relações com
outros seres humanos, que têm sobretudo problemas de falta de uma casa, falta de um
trabalho. Falta de vontade de querer mudar acabando por viver nessa situação de
carência manifesta, inexorável, a quem passa e olha para um destes indivíduos.
O intuito de todo este trabalho é, através de uma abordagem onde a pessoa sem-
abrigo é tida como sendo, de facto, um ser humano com as suas características próprias
e peculiaridades individuais, pensar além desta imagem de conjunto que homogeneíza
uma realidade pautada pela multiplicidade de realidades. Quero desenvolver um estudo
que, ao ir ao encontro destes seres vulneráveis pelas suas múltiplas problemáticas,
analise uma população através da sua relação com o espaço e com o outro.
Isto porque, uma vez chegada pela primeira vez ao Refeitório onde iria
desenvolver trabalho de campo, tornou-se evidente um conjunto de premissas: a) não é
possível falar das pessoas sem-abrigo como um todo uniforme e homogéneo uma vez
que cada um dos indivíduos com quem falei apresenta um enredo de experiências
vividas completamente diferente daquele mencionado pelo indivíduo seguinte; b) estava
perante uma realidade que implica uma desconstrução problematizante, na medida em
que quase me impelia a ir além do que já era conhecido acerca das pessoas sem-abrigo
(por exemplo, questionando a aplicação do conceito oficial de pessoa sem-abrigo)
procurando a especificidade inerente aos modos de vida daqueles indivíduos em
concreto; c) é possível conceber um envolvimento característico dos indivíduos em
situação de sem-abrigo com os vários outros com que se vão cruzando e tal
envolvimento deve ser analisado com o maior interesse; d) não existe nada de óbvio na
forma como estas pessoas falam do espaço, da cidade, dos mecanismos que vão
encontrando para (sobre)viver ao não terem uma casa.
Deste modo, e tendo em conta este conjunto de ideias obtido não só numa leitura
prévia do estado da questão correspondente ao fenómeno das pessoas sem-abrigo, como
também através de um primeiro contacto com o terreno e com a população que iria
estudar, torna-se interessante e fundamental aprofundar principalmente duas áreas da
realidade das pessoas sem-abrigo: a relação mantida com o espaço e o apego e
envolvimento com o “outro”.
98
Em relação ao espaço posso dizer que se desenvolveu uma aproximação em dois
tempos. Inicialmente as questões tocam o acolhimento que é feito a esta população por
parte de um espaço público que poderia até já ser conhecido mas nunca antes através da
lente de quem se vê em situação de sem-abrigo. Numa sequência temporal onde os
indivíduos já estão em situação de sem-abrigo há mais tempo acaba por se tornar
imperativo questionar a habitabilidade que os vários locais do espaço público acabam
por ganhar.
Assim, tendo observado os dados recolhidos torna-se possível estabelecer um
conjunto de ideias conclusivas no que concerne o fenómeno que passei a poder apelidar
de “apropriação” do espaço por parte das pessoas sem-abrigo.
Por um lado, torna-se evidente como há diferentes graus de apropriação dos
diferentes espaços por onde o dia-a-dia destas pessoas os vai levando. Encontramos,
desta forma, três tipos de apropriação correspondentes a três momentos diários
analisados neste trabalho: uma apropriação do espaço onde dormem; uma apropriação
dos caminhos que percorrem; e uma apropriação dos espaços do Refeitório onde
comem, tratam da sua higiene e têm momentos de lazer.
Em relação ao espaço onde dormem acaba por ser importante lembrar a noção de
“habitar” na esteira de Breviglieri (2010) - “Habitar supõe uma certa ancoragem
fenomenal do corpo, alimentada por uma matriz de experiências familiares, um
conjunto de emoções tranquilizantes procuradas na intimidade da casa, uma sutura
afetiva que tem cada um como ligado aos que lhe são próximos por um laço não-
arbitrário” (Breviglieri, 2002 in Breviglieri 2010a, 63, tradução minha57) – para melhor
podermos compreender que nem sempre encontramos uma apropriação efetiva do
espaço onde pernoitam, uma vez que em alguns dos casos por mim analisados até pode
existir uma casa onde dormem mas tal não implica que seja um espaço apropriado pelos
indivíduos que aí permanecem.
O que quero transmitir com a associação do conceito de “habitar” com o
conceito de “apropriar” é que acaba por ser necessário a existência de um para se
constatar a realidade de outro. Se um indivíduo tem uma casa sua mas não tem
57 «Habiter suppose un certain ancrage phénoménal du corps, nourri par une matrice d’expériences
familières, un foyer d’émotions sécurisantes procurées dans l’intimité du chez soi, une suture affective
qui tient chacun comme attaché aux proches par un lien non-arbitraire.» (Breviglieri, 2002 in Breviglieri
2010a, 63)
99
condições de “habitar” esse espaço, limitando-se a dormir aí e nada mais, então talvez
possamos mais depressa falar de uma apropriação do espaço da rua por quem aí dorme
repetidas vezes e aí tem um conjunto de dispositivos que vão fazer daquele recanto um
local “habitável”, do que do espaço de uma casa onde não se tem qualquer tipo de
possibilidade de aí viver, de “habitar” esse espaço apropriando-se do mesmo.
A apropriação do espaço onde as pessoas sem-abrigo junto das quais realizo o
meu trabalho dormem acaba por ser diferente entre si consoante o tipo de espaço em
questão.
De um lado temos aqueles indivíduos que dormem em albergues cujas regras de
funcionamento apenas permitem a sua presença nesses locais durante o período da noite
registando-se uma ideia contrária à apropriação daquele espaço: estes indivíduos vão ali
apenas para dormir partilhando esse espaço com outros vários utentes, não se apropriam
do espaço porque não têm tempo de estadia ali que leve a uma identificação de que
aquele local é meu porque tem objetos meus ou mesmo a minha presença ou ainda uma
modelação desse espaço tendo em conta a minha pessoa.
Os indivíduos com quem falei que dormem em albergues realizam toda e
qualquer tarefa que vá além de dormir fora daquele lugar levando a um tipo de
apropriação muito mais evidente no exterior dos albergues. A apropriação do espaço
que as pessoas sem-abrigo que dormem em albergues têm é encontrada nos caminhos
que percorrem e na sua capacidade de ir assegurando a resposta às suas necessidades ao
longo desse caminhar, ao longo dos espaços que vão descobrindo na cidade e que até
podem ser públicos mas para estes indivíduos acabam por ter características privadas
porque passa a ser o sítio onde fazem exercício (como é o caso da Praia de Belém para o
senhor Marcelo), onde descansam do caminho (como é o caso dos jardins que vários
interlocutores referem), onde se educam através da leitura (nas bibliotecas), onde têm
inclusive a privacidade para trocar de roupa.
Por sua vez, as pessoas sem-abrigo que dormem em casas partilhadas têm
também evidente nas suas experiências esta questão entre o habitar e o apropriar tal
como vista em relação aos albergues com a ligeira diferença de que, ao contrário dos
albergues, nas casas estes indivíduos acabam por ter um espaço seu mesmo quando a
própria casa é partilhada. Ou seja, embora ainda não possa falar de uma
“habitabilidade” do espaço porque quem dorme em casas acaba por viver fora dessas
casas, é possível falar de um maior grau de apropriação do que nos casos que pernoitam
100
em albergues na medida em que as casas são espaços seus onde têm os seus pertences e
onde podem à partida realizar mais tarefas quotidianas do que nos albergues uma vez
que não há horário de fecho das casas.
No entanto, é através das experiências de quem dorme na rua que encontramos
uma clara observação de como estes indivíduos se apropriam do espaço urbano, das
suas características, das suas propriedades, das suas possibilidades para conseguirem
um mínimo de conforto que lhes permita dormir no local por eles escolhido.
Aqui vamos além da relação entre habitar e apropriar um espaço, uma vez que,
muito mais do que essa relação, é visível nos casos apresentados que dormem na rua
uma modelação do espaço público e das suas características e potencialidades para
imbuir esse local público de características privadas, de conforto, de semelhança a uma
cama onde se pode dormir. Estes indivíduos vivem na rua. Não tendo uma casa ou um
local protegido onde possam dirigir-se para dormir acabam por desenvolver um
conjunto de mecanismos e dinâmicas de modo a garantirem essa proteção e esse
recolhimento associados à casa mas experienciados nos espaços da cidade.
Trata-se de uma apropriação que além de moldar o espaço, habitar o espaço,
experienciar o espaço também permite analisar as questões do acolhimento das
características da cidade em relação às pessoas sem-abrigo. É nesta situação extrema
onde pouco ou nada se tem que encontramos uma nova lente para focar a estação de
comboios, o edifício onde decorrem espetáculos mas que possui recantos que abrigam
os indivíduos sem-abrigo do frio da noite, o local público onde se vai para admirar as
suas características e para ter momentos de lazer e diversão mas que serve também para
garantir uma noite tranquila e protegida, tal como as pessoas sem-abrigo que
acompanhei referem.
É este o olhar das pessoas sem-abrigo que dormem na rua em relação às
características dos locais com que se deparam numa procura de soluções para as suas
várias necessidades. Se precisam de arranjar dinheiro têm um local com turistas a quem
o podem pedir; se precisam de comer têm um local destinado a esse efeito onde, pela
experiência própria ou alheia, sabem que encontram comida; se precisam simplesmente
de passar as horas do dia conhecem vários percursos a fazer e vários locais aos quais o
acesso não é interdito e aos quais podem recorrer; se precisam de repousar, de descansar
de mais um dia de caminho então conhecem espaços de que se podem apropriar para,
nesse momento, serem a sua cama, a sua casa.
101
Os percursos tomados ao longo do dia têm aqui um interesse acrescido ao serem,
em alguns casos, referidos quase ao nível de uma rotina que é criada nos quotidianos
destas pessoas sem-abrigo. Quando referem que todos os dias fazem exercício em
determinado local, quando referem que todos os dias caminham a pé do seu local de
pernoita até ao Refeitório, quando referem que todos os dias caminham pela cidade de
Lisboa procurando trabalho, quando referem que passeiam, andam, caminham por aí
usando os espaços da cidade para ver o tempo passar, quando referem que se deslocam a
locais específicos para conviver.
Esta rotina de caminhos pela cidade acaba por revelar uma apropriação de
múltiplos espaços enquanto se anda pela cidade. Tendo um destino definido ou não,
estes indivíduos ao não terem uma casa para onde ir nos vários momentos do dia é na
rua e nos locais com acesso ao público que passam os seus dias. Esses locais por si
escolhidos – operando uma decisão e uma escolha entre o caminho a) e o caminho b)
que os vai levar ao local c) ou ao local d) – tomam proporções interessantes se os
contrapusermos com o dia-a-dia do cidadão “normal” que por sua escolha pode estar ou
não na sua casa. A escolha experienciada pelas pessoas sem-abrigo não inclui o regresso
a casa, repartindo esse conceito por vários outros espaços aos quais regressam na sua
rotina diária, apropriando-se dos mesmos.
E como se dá esta apropriação do espaço no nosso locus de observação? Será
possível falar de uma apropriação do espaço do Refeitório? Os comportamentos, os
gestos e as dinâmicas observadas apontam que sim que também naquele espaço as
pessoas sem-abrigo desenvolvem uma apropriação dos vários lugares mas desta vez
recorrendo a meios diferentes e tratando-se de uma apropriação diferente mas não
menos importante para pensar a relação destes indivíduos com os múltiplos espaços por
onde passam nos seus quotidianos.
Por um lado, encontramos uma apropriação do lugar à mesa e da mesa em si em
detrimento de outro lugar ou de outra mesa. Esta apropriação é feita através da presença
destes indivíduos no seu lugar durante todo o período de tempo em que se encontram no
Refeitório ou, caso circulem pelo espaço, através de mochilas ou pequenos objetos
como bonés ou telemóveis. Desta forma, encontramos alguns mecanismos que impedem
que o seu espaço seja utilizado por outro utente e seja reconhecidamente pertencente à
pessoa a) ou à pessoa b).
102
Outra forma de observar os modos como estes indivíduos se apropriam do
espaço no Refeitório é através da criação de barreiras deles em relação ao grupo de
voluntários que também circula naquele espaço. Estas barreiras podem ser portas ou
mesmo janelas que são fechadas ou abertas consoante se quer manter o espaço do
refeitório público e com acesso a todos ou privado impedindo que os voluntários ouçam
o que é discutido e falado na zona reservada aos utentes através desse fecho da barreira
física representada pela porta ou pela janela.
Uma vez mais encontramos aqui uma apropriação que não deixa de se prender
com as ideias associadas ao conceito de casa, nomeadamente em relação à privacidade
que se poderia ter nesse local e que ao não se deter uma casa e havendo essa
necessidade de manter algumas conversas mais privadas se opta por criar barreiras e
definir, mesmo que momentaneamente, um espaço que não deve ser partilhado com o
outro grupo.
As diversas formas de apropriação do espaço visíveis na relação das pessoas
sem-abrigo com os lugares que pautam o seu dia-a-dia são interessantes de ser
analisadas na medida em que vão contra a ideia de que estes seres se encontram num
espaço por simples acaso, de que estes seres se limitam a vaguear pela cidade num dia-
a-dia sem destino e sem utilidade, perpassado pelo senso comum.
As evidências encontradas através dos discursos analisados ou da observação
realizada demonstram como há, de facto, uma relação que é estabelecida nas múltiplas
formas como estes indivíduos se apropriam dos múltiplos espaços para fazer face às
necessidades com que se deparam nos seus quotidianos, como moldam os lugares da
cidade para aí encontrarem uma forma de realizar as tarefas que normalmente seriam
desempenhadas dentro de quatro paredes numa casa mas que, na ausência de casa, são
mantidas numa separação espacial ao longo da cidade e dos seus caminhos.
Se deslocarmos o olhar para as questões que se prendem com as dinâmicas e
comportamentos inerentes às relações que as pessoas sem-abrigo mantêm então além de
encontrarmos situações interessantes, tais como as contradições apresentadas pelos
dados recolhidos, observamos de igual modo formas de estar com e de se apegar a
bastante semelhantes àquelas que o cidadão “normal” mantém.
A ideia neste último eixo de análise das pessoas sem-abrigo que estudo passava
pela conceção de que, apesar das circunstâncias em que se encontram (estar sem-
103
abrigo), estes indivíduos não deixam de manter contacto, de criar formas de
(re)ligamento através da confiança que vão depositando no outro, de criar relações
sociais e de operar também o corte com aquelas relações que já não lhes são proveitosas
ou cujos elementos acabaram por falhar na retribuição do afeto demonstrado.
Torna-se possível através dos dados recolhidos contradizer a possível associação
das pessoas sem-abrigo com a desvinculação, os cortes radicais de relações, o
desligamento da sociedade, a ausência do campo afetivo nos modos de vida destas
pessoas.
Para pensar as dinâmicas das relações mantidas pelas pessoas sem-abrigo
observo não só os seus comportamentos durante os momentos que partilham no
Refeitório como também ouço os seus discursos e o conjunto de ideias que transmitem
quando o tópico “relações” surge na conversa.
Interessa-me saber o que pensam sobre os relacionamentos que são anteriores à
sua situação de sem-abrigo, na medida em que se ouvimos falar de cortes radicais nas
relações e de “desvinculação” na vida relacional destas pessoas importa pensar como
era no passado e como é atualmente esse campo em particular de forma a
comprovarmos ou contradizermos essas ideias. Importa saber se, existindo cortes, foi a
situação de sem-abrigo que os provocou ou se já vinham a ser perspetivados antes de se
encontrarem em situação de sem-abrigo.
Outra questão que procuro problematizar foi a forma como além de
(sobre)viverem em situação de sem-abrigo também acabam por criar momentos de
convívio por se encontrarem precisamente nessa mesma situação, recorrendo aqui a uma
ideia que João Aldeia (2011) transmite na sua tese e que me levou a querer tentar aplicá-
la junto da população que estudei: “A vida na rua elimina laços, mas também os cria.”
(Aldeia 2011, 77).
Assim, desenvolvo uma análise das relações dos indivíduos sem-abrigo que
equaciona as dinâmicas existentes tanto no Refeitório como fora deste espaço, indo da
família às pessoas com quem se partilha o local onde se pernoita e chegando ainda aos
colegas de trabalho e amigos vários.
Ao nível do Refeitório é notório um conjunto de comportamentos e de gestos
que revelam a preocupação e o cuidado com o outro bem como uma proximidade que é
104
mantida com base em alguns aspetos tais como a partilha do mesmo idioma ou a
partilha de experiências já em situação de sem-abrigo.
Outro aspeto interessante para pensar as formas de relacionamento das pessoas
sem-abrigo passa pelos momentos de entreajuda e aprendizagem onde para cada
obstáculo é encontrada uma solução, nomeadamente ao nível da compreensão que
quando não se concretiza através das palavras passa a ser efetuada pelo uso do gesto e
do olhar.
Os comportamentos observados no Refeitório indicam claramente que, tal como
acontece com o “cidadão normal”, também as pessoas sem-abrigo têm uma necessidade
de manter um contacto com o outro, de confiar, de se apegar, demonstrando essa
necessidade das mais variadas formas mas não deixando de ser evidente que as relações
sociais são tão importantes junto desta população como junto de outra população
humana qualquer.
O ser humano é um ser social independentemente da situação em que se
encontre. Podemos utilizar os diálogos dos utentes do Refeitório uns com os outros ou
mesmo as dinâmicas presentes na aproximação destes em relação à equipa de
voluntários para comprovarmos que existindo uma “carência de afetos” nesta
população, quando se encontram num local onde podem expressar também essa
necessidade (além de todas as outras já evidenciadas) então aproveitam e criam,
mantêm e desenvolvem os mais variados tipos de laços sociais. Observa-se um apegar a
quem demonstra constância ao nível da presença assídua no espaço do Refeitório que
acaba por funcionar para estes indivíduos vulneráveis como uma manifestação de que
podem, de facto, confiar em quem aparece, levando à formação de uma relação.
No entanto, não deixa de ser curioso como também estes indivíduos acabam por
ser imbuídos das ideias perpassadas pela sociedade de que existe um corte que faz deles
seres desligados e desvinculados sem qualquer tipo de relações sociais.
Tal é visível nos seus discursos e na forma como as ações, gestos e
comportamentos contradizem as suas palavras quando a questão colocada é a das
relações mantidas.
O que quero dar conta aqui é que todos os indivíduos que observo e com quem
falo referem ter amigos e manter relações. Alguns dizem que, no seu quotidiano os
momentos de lazer são inclusive passados na companhia desses amigos e colegas. No
105
entanto, se perguntarmos diretamente se têm amigos, por exemplo dentro do Refeitório,
a maioria responde que não, que são apenas conhecidos.
Essa resposta leva-me a analisar os gestos e comportamentos que observo nesse
espaço e que revelam o contrário: uma preocupação, um cuidado, uma amizade, um
companheirismo e afetividade em relação ao outro que partilha aquele espaço enquanto
utente. Igualmente relevantes são os discursos de quem ia dizendo não ter amigos e
minutos depois falava dos seus amigos com quem estava no Refeitório.
Talvez se trate de uma negação daquelas relações ou de um conjunto de relações
e de proximidades que passam quase despercebidas aos próprios intervenientes mas
estas contradições ao nível dos discursos e das ações não deixam de ser curiosas de
salientar.
Assim, no Refeitório há uma clara divisão espacial em função das relações
mantidas. Seja por mesas, seja por lugares, estes indivíduos mantêm uma dinâmica
relacional e uma escolha que é livremente feita sobre junto de quem vão passar aquelas
horas aquando da ida ao Refeitório. Há conflitos, há conversas, há demonstrações de
afeto neste espaço entre os utentes e da parte dos utentes para com a equipa de
voluntários.
Esta visibilidade que o relacionar-se com e o apegar-se a, nas suas múltiplas
dinâmicas, assume acaba por ir ao encontro da minha tentativa de estudar como as
pessoas sem-abrigo não deixam de ser seres sociais e de necessitar de afeto só por
estarem em situação de sem-abrigo. Muito pelo contrário, por vezes é precisamente por
se encontrarem em situação de ausências várias que vão revelar uma maior necessidade
de conversar, de partilhar momentos, de estar com o outro, necessidade essa que toma
uma maior evidência nos momentos partilhados no espaço do Refeitório.
Por fim, sou levada a questionar as relações que as pessoas sem-abrigo mantêm
fora do locus de observação por mim escolhido – o Refeitório. Procuro saber se têm
família, se têm amigos, como gerem as proximidades e as distâncias e como se operam
os cortes e os (re)ligamentos por parte de quem vive em situação de sem-abrigo.
As realidades com que me deparo nos discursos destes indivíduos vão ao
encontro daquilo que penso serem as semelhanças entre as relações das pessoas com
abrigo e as relações das pessoas sem abrigo.
106
São relatadas histórias de famílias que se separaram há alguns anos e cujo
contacto dos seus elementos foi efetivamente quebrado de ambos os lados, cenário
também possível de encontrar junto de um cidadão com abrigo. São relatadas histórias
de amigos que se separam apenas ao nível geográfico mas que mantêm contacto e ainda
detêm o nome de “amigo”, tal como acontece normalmente quando alguém muda de
país. São relatadas histórias de auxílio face a problemas que vão surgindo e em relação
aos quais se procura uma solução junto de quem é mais próximo destes indivíduos, tal
como acontece quando se procura um conselho junto de um amigo.
O que procuro analisar aqui com este paralelismo entre as dinâmicas das
relações das pessoas sem-abrigo e aquelas experienciadas pelas pessoas com abrigo é
que, de facto, não são visíveis cortes radicais em relação aos “outros” que estavam
presentes na vida destes indivíduos antes de estarem em situação de sem-abrigo e, ao
mesmo tempo, como as relações vão sendo inovadas à medida que também a situação
vai mudando.
Estas pessoas revelam a necessidade de ter companhia mesmo tendo um dia-a-
dia instável e, quando não têm um qualquer “outro” ser humano com quem partilhar
momentos, histórias, conversas, falam da solidão. Estas pessoas criam formas de manter
as suas relações com aqueles que lhes são mais próximos através de chamadas
telefónicas ou das novas tecnologias. Estas pessoas cultivam novas relações quando têm
necessidades que têm de ser supridas, olhando os gestos e os comportamentos dos
outros de forma a aprenderem os mecanismos que devem usar para (sobre)viver no
espaço público. Estas pessoas confiam nos seus amigos com quem partilham o espaço
onde dormem, a quem ligam para irem passear e ver o tempo passar, com quem
convivem seja no café seja no Refeitório seja ao longo dos caminhos da cidade.
Assim, em forma de conclusão, as ideias que penso que são de salientar tendo
em conta os dados que recolhi neste trabalho são as de que: a) as pessoas sem-abrigo,
apesar de não terem uma casa para onde regressar, onde realizar várias tarefas no dia-a-
dia e onde manter a sua privacidade e o seu refúgio em relação ao que é público, adotam
uma relação com os espaços da cidade onde pernoitam apropriando-se destes,
habitando-os em alguns casos e moldando-os às suas necessidades para que se tornem
algo semelhante ao conceito de casa que detêm; b) as pessoas sem-abrigo aprendem e
mantêm caminhos diários ao longo da cidade que vão percorrendo e que vão sendo parte
de uma rotina que criam para dar conta das suas necessidades e das tarefas que têm de
107
realizar diariamente apropriando-se de determinados locais em função das tarefas que
procuram ver cumpridas; c) as pessoas sem-abrigo criam, desenvolvem e mantêm
relações sociais através das quais se apegam ao outro em dinâmicas que têm algumas
semelhanças àquelas mantidas pelos cidadãos com abrigo e que têm por base a ideia de
confiança no outro.
108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Aldeia, João. 2011. «A Barraca do Rui». Os laços sociais no fenómeno dos sem-
abrigo. Dissertação de Mestrado em Sociologia apresentada à Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra.
- Balsa, Casimiro. 2012. Estado Poiético, Autopoiesis e Agir Poiético – A coordenação
em rede das políticas de desenvolvimento social em Portugal como instrumento de luta
contra a pobreza in Adilson Marques Gennari e Cristina Maria Pinto Albuquerque
(Org.), Políticas Públicas e Desigualdades Sociais – Debates e Práticas no Brasil e em
Portugal, Ed. Cultura Acadêmica, Série, Relações Internacionais e Mundo
Contemporâneo, Capítulo IV, S. Paulo
- Balsa, Casimiro. 2014. “Temporalidades das Políticas Públicas e Metodologias de
Implantação” in V SEMEAP – Seminário de Modelos e Experiências de Avaliação de
Políticas Públicas, Programas e Projetos Sociais/III Seminário Internacional sobre
Avaliação: Avaliação de Políticas Públicas no Capitalismo Globalizado: Para Quê e
Para Quem
- Barreto, Elias Rato, 1998/2000. “Vinculação e Relações de Objeto dos Sem-Abrigo:
um Estudo Exploratório”. Dissertação de mestrado. Instituto Superior de Psicologia
Aplicada
- Barthe, Yannick et al. 2016. “Sociologia Pragmática: guia do usuário” in Sociologias,
vol. 18, n. 41, pp. 84-129
- Becker, Howard. 1953. “Becoming a Marihuana User” in The American Journal of
Sociology, vol. 59, no. 3, 235-242
- Becker, Howard. [1991] 2008. Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de
Janeiro: Zahar
- Becker, Howard. 2010. “Quatro coisas que aprendi com Alain Pessain” in DILEMAS:
Revista de Estudos de Conflito e Controlo Social, vol. 3, nr. 9, JUL/AGO/SET 2010, 9-
20
- Boltanski, Luc. 2001. “A Moral da Rede? Críticas e Justificações nas Recentes
Evoluções do Capitalismo” in Fórum Sociológico, nos. 5/6 (2ª Série), 13-35
109
- Breviglieri, Marc e Stavo-Debauge, Joan. 1999. «Le geste pragmatique de la
sociologie française. Autour des travaux de Luc Boltanski et Laurent Thévenot» in
Antropolítica, n. 7, 7-22
- Breviglieri, Marc. 2002. «L’horizon de ne plus habiter et l’absence du maintien de soi
en public» in L’héritage du pragmatisme. Conflits d’urbanité et épreuves de civisme, D.
Céfaï et I. Joseph (éd.), Éditions de l’Aube, pp. 319-336
- Breviglieri, Marc; Pattaroni, Luca; Stavo-Debauge, Joan. 2003. « Quelques effets de
l’idée de proximité sur la conduite et le devenir du travail social » in Revue Suisse de
Sociologie, 29 (1), 141-157
- Breviglieri, Marc e Stavo-Debauge, Joan. 2004. “Les identités fragiles. La «jeunesse»
et l’«immigration»” in C. Cicchelli-Pugeault, V. Cicchelli et T. Ragi (dir.). Ce que nous
savons des jeunes. Paris : PUF
- Breviglieri, Marc. 2005. «Bienfaits et méfaits de la proximité dans le travail social» in
Ion, J., Le travail social en débat(s), Éditions La Découverte, Paris, coll «Alternatives
Sociales», 219-234
- Breviglieri, Marc. 2006. «Penser l’habiter, estimer l’habitabilité» in Tracés, n. 23, 9-
14
- Breviglieri, Marc e Stavo-Debauge, Joan. 2007. «L’hypertrophie de l’œil. Pour une
anthropologie du «passant singulier qui s’aventure à découvert»» in Céfaï, Daniel &
Saturno, Carole, dir., Itinéraires d’un pragmatiste. Autour d’Isaac Joseph. Paris :
Economica
- Breviglieri, Marc. 2008a. ««Le «corps empêché» de l’usager (mutisme, fébrilité,
épuisement). Aux limites d’une politique du consentement informé dans le travail
social» in Payet, J.-P., Giuliani, F. & Laforgue, D., La voix des acteurs faibles. De
l’indignité à la reconnaissance, Rennes : Presses Universitaires de Rennes (collection :
Le sens social), 215-229
- Breviglieri, Marc. 2008b. «Penser la dignité sans parler le langage de la capacité à
agir» in Payet, J.-P. & Battegay, A., La reconnaissance à l’épreuve. Explorations socio-
anthropologiques, Lille : Presses Universitaires du Septentrion, 83-92
110
- Breviglieri, Marc. 2009. « L’insupportable. L’Excès de Proximité, l’Atteinte à
l’Autonomie et le Sentiment de Violation du Privé » in Brevigleri M., Lafaye C. &
Trom D., (dir.). Compétences critiques et sens de la justice, Economica, 2009
- Breviglieri, Marc. 2010a. «De la cohésion de vie du migrant : déplacement migratoire
et orientation existentielle» in Revue Européenne des Migrations Internationales, n.
(26) 2, 57-76
- Breviglieri, Marc. 2010b. «L’« épuisement capacitaire » du sans-abri comme
urgence ? Approche phénoménologique du soin engagé dans l’aide sociale (gestes,
rythmes et tonalités d’humeur)» in
http://revel.unice.fr/symposia/actedusoin/index.html?id=795
- Breviglieri, Marc. 2012. «L’espace habité que réclame l’assurance intime de pouvoir.
Un essai d’approfondissement sociologique de l’anthropologie capacitaire de Paul
Ricœur» in Études Ricœuriennes/ Ricœur Studies, vol. 3, n. 1, pp. 34-52
- Breviglieri, Marc. 2013. «Peut-on faire l’histoire d’un attachement ? » in SociologieS
[online], Théories et recherches, http://sociologies.revues.org/4403
- Bruyne, Herman e Schoutheete [1977] 1982. Dinâmica da Pesquisa em Ciências
Sociais: Os Pólos da Prática Metodológica. Rio de Janeiro: F. Alves
- Burgess, Robert. 1997. A Pesquisa de Terreno. Oeiras: Celta
- Castro, Alexandra e Marques, Sofia Delgado. 2008. “A integração dos imigrantes de
Leste em Portugal. Contributos para a sua análise” in Cidades – Comunidades e
Territórios, n. 17, 63-80
- Certeau, Michel de. 1998. A Invenção do Cotidiano – Artes de Fazer. Petrópolis :
Editora Vozes Lda.
- Estratégia Nacional para a Integração da Pessoa Sem-Abrigo: Prevenção, Intervenção
e Acompanhamento, 2009-2015
- Faleiros, Vicente de Paula. 2013. “Desafios de cuidar em Serviço Social: uma
perspetiva crítica” in R. Katál, Florianópolis, v. 16, n. esp., 83-91
- Flick, Uwe. 2005. Métodos Qualitativos na Investigação Científica. Lisboa: Monitor
- Foucault, Michel. [1975] 2013. Vigiar e Punir. Lisboa: Edições 70
111
- Girault, Eloïse. 2010. «Un monde vulnérable. Pour une politique du care, de Joan
Tronto» in Sociétés et jeunesses en difficulté, n. 9, pp. 1-9
- Goffman, Erving. 1956. The Presentation of Self in Everyday Life. Edinburg:
University of Edinburg Social Sciences Research Center
- Goffman, Erving. 1986. Frame Analysis. Boston: Northeastern University Press
- Gold, Raymond L.. 1958. “Roles in Sociological Field Observations” in Social Forces,
vol. 36, n. 3, pp. 217-223
- Grupo de Trabalho da Pessoa Sem-Abrigo. 2009. Plano Cidade para a Pessoa Sem-
Abrigo
- Heinich, Natalie. 2014. “Práticas da Arte Contemporânea: uma abordagem pragmática
a um novo paradigma artístico” in Sociologia & Antropologia, v. 04.02: 373-390,
outubro
- Lacroix, Marie. 2012. “Precarious Immigration Status and Citizenship Rights: a
human rights framework for international social work” in Lusíada. Intervenção Social,
Lisboa, n. 40, 95-107
- Lavinas, Lena. 2002. “Pobreza e Exclusão: Traduções Regionais de Duas Categorias
na Prática” in Económica, vol. 4, nr. 1, pp. 25-59, jun.
- Leeuwen, Bart van. 2017. “To the edge of urban landscape: Homelessness and the
politics of care” in Political Theory, SAGE Publications, pp. 1-25
- Lundȧsen, Susanne. 2002, “Podemos confiar nas medidas de confiança?” in Opinião
Pública, Campinas, vol. VIII, n. 2, 304-327
- Malinowski, Bronislaw. [1922] 1984. The Argonauts of Western Pacific. Illinois:
Waveland Press Inc.
- Mendes, José Manuel Oliveira. 2010. “Pessoas sem voz, redes indizíveis e grupos
descartáveis: os limites da teoria do ator-rede” in Análise Social, vol. XLV (196), 447-
465
- Mota, Fábio Reis. 2008. “Deslocamentos, movimentos e engajamentos: as formas
plurais da ação humana na perspetiva de Laurent Thévenot” in Antropolítica, vol. 24,
221-234
112
- Pais, José Machado. 2015. “Deambulações Cotidianas: a emergência de um método na
observação dos sem-teto” in Estudos de Sociologia. Recife. Vol. 1, n. 21
- Paperman, Patricia. 2008. «Pour un Monde Sans Pitié» in Revue du MAUSS, n. 32,
267-283
- Paperman, Patricia. 2010. «L’Éthique du Care : un changement de regard sur la
vulnérabilité» in Gérontologie et société, n. 133, 51-61
- Paperman, Patricia e Molinier, Pascale. 2011. «L’Éthique du Care Comme Pensée de
l’Égalité» in Travail, genre et sociétés, n. 26, 189-193
- Paperman, Patricia. 2013. «Émotions Privées, Émotions Publiques» in Multitudes, n.
52, 164-170
- Pattaroni, Luca. 2007. “Le sujet en l’individu. La promesse d’autonomie du travail
social au risque d’une colonisation par le proche” in Cantelli, F. e Genard, J.L. Action
publique et subjectivité. Paris, LGDJ, col. Droit et Société, vol. 46, 203-218
- Pattaroni, Luca. 2016. “La trame sociologique de l’espace. Eléments pour une
pragmatique de l’espace et du commun” in SociologieS, 1-31
- Pereira, Cícero., Vala, Jorge., e Leyens, Jacques Philippe. 2009. “From infra-
humanization to discrimination: The mediation of symbolic threat needs egalitarian
norms” in Journal of Experimental Social Psychology, n. 45, 336-344
- Pizzio, Alex. e Veronese, Marília Veríssimo. 2008. “Possibilidades Conceituais da
Sociologia das Ausências em Contextos de Desqualificação Social” in Cadernos de
Psicologia Social do Trabalho, vol. 11, nr. 1, pp. 51-67
- Pizzio, Alex. 2009. “Desqualificação e Qualificação Social: uma Análise Teórico-
Conceitual” in Revista Mal-Estar e Subjetividade, vol. IX, n. 1, pp. 209-232, mar/2009
- Prates, Jane Cruz; Prates, Flávio Cruz; Machado, Simone. 2011. “Populações em
situação de rua: os processos de exclusão e inclusão precária vivenciados por esse
segmento” in Temporalis, n. 22, 191-215
- Programa Municipal para a Pessoa Sem-Abrigo 2016-2018. Outubro de 2015
- Quintas, Sílvia Maria Monteiro. 2010. A Perceção de Técnicos e Indivíduos “Sem-
Abrigo”: Histórias ocultas de uma realidade no Porto. Dissertação de mestrado.
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto
113
- Relatório de Atividades do Refeitório Rosália Rendu 2011
- Relatório de Atividades do Refeitório Rosália Rendu 2015
- Rosa, Vânia e Guadalupe, Sónia. 2015. “A Rutura dos Laços Sociais nas Narrativas da
Pessoa em Situação de Sem-Abrigo” in Lusíada. Intervenção Social, Lisboa, n. 42/45,
157-176
- Santos, Maria Cristina Ferreira dos. 2011. “A noção de experiência em John Dewey, a
educação progressiva e o currículo de ciências” in
http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/viiienpec/resumos/R0214-1.pdf (consultado dia 7 de
maio de 2016)
- Soulet, Marc-Henry. 2006. “Confiança e Capacidade de Ação. Agir em Contexto de
Inquietude” in Balsa, Casimiro (Ed.), Confiança e Laço Social, Col. CEOS/Inquéritos-
3, Edições Colibri/CEOS: Lisboa
- Sousa, Fernando M. V. de., e Almeida, Sandra M. de. 2001. “E se perguntássemos aos
Sem-Abrigo? Satisfação e necessidades percecionadas face aos serviços, num abrigo de
Lisboa” in Análise Psicológica, n. 2 (XIX), 299-312
- Tronto, Joan. 2008. “Du Care” in Revue du MAUSS, n. 32, pp. 243-265
- Tuller, Pâmela Daniele Ramos. 2015. Moradores de Rua: Porque Eles Nela
Permanecem?. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros/MG
- Vallée, Marc-Antoine. 2010. « Paul Ricœur et la question du vivant» in Bulletin
d’analyse phénoménologique, VI 2, Actes 2, pp. 262-277
- Veschambre, Vincent. 2004. «Appropriation et marquage symbolique de l’espace:
quelques éléments de réflexion», ESO, nr. 21, mars 2004
- Vezeanu, Ion. 2004. «Moi-même comme un autre. Identité personnelle et langage» in
I. Copoeru et N. Szabo (ed.), Beyond Identity. Transformations of Identity in a (Post-)
Modern World. Cluj-Romania: Editura Casa Cartii de Stiinta, pp. 104-124
- Waskul, Dennis D., e Vannini, Phillip. 2006. “Introduction: The Body in Symbolic
Interaction” in Body/Embodiment: Symbolic Interaction and the Sociology of the Body.
New York: Ashgate Publishing, 1-18
114
- Yin, Robert K. 2001. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Porto Alegre:
Bookman
115
ANEXOS
Anexo 1:
Figura 12: Regulamento do Refeitório Rosália Rendu
116
Anexo 2: Excertos da entrevista ao senhor Marcelo
Mariana: Eu queria começar por perguntar a sua idade, nacionalidade e local onde vive.
Sr. M: Tá bem. Eu estou a viver nesse instante num albergue, numa casa de regras. Eu
tenho 41 anos e já fui brasileiro, por algum acaso eu despedi-me para sempre de lá
exilado político voluntário. Um alto exílio, um refrigério pessoal autorizado pela
instabilidade inédita e pelas crises gravíssimas e não menos inéditas de lá. Ao não
compactuar com aquele mal de lá, eu me permiti o refrigério do alto exílio político
voluntário, tá bem? O meu nome é Marcelo Metzner.
M: Que profissão teve ou qual foi o último trabalho que teve?
Sr. M: Tem, tenho a profissão de advogado de lá e de advogado de cá, inscrito na
Ordem dos Advogados do Brasil, de Brasília, da capital do Brasil e, também, na Ordem
dos Advogados de Lisboa, do distrito de Lisboa. Então, estou a exercer advocacia na
praça lusa e também mantenho alguns clientes brasileiros mas é assim, por
circunstâncias que me tiraram das minhas atividades quotidianas, estou a viver numa
casa de regras que se chama albergue, não é? Fui acolhido pela Santa Casa em uma casa
de regras.
Bom a profissão é, então, advogado. Tenho outras habilidades profissionais:
professor de karaté, treinei karaté desde os cinco anos de idade e treino até hoje,
cinturão preto aos 16 anos, foi a minha primeira profissão, dentro outras de ser
professor de línguas e tal, até que tive a minha primeira profissão pública de policial de
trânsito, polícia de trânsito. Depois enveredei para a justiça, fiquei na justiça muito
muito tempo, uma década e tal, duas décadas, por volta disso. E depois de ser acometido
de uma doença grave que é o TAB – está autorizada a divulgar no seu relatório –
Transtorno Afetivo Bipolar, num diagnóstico muito complicado, muito delicado, a
doença tem evoluído para um nível gravíssimo na época, então eu também sou inativo
do serviço público do Brasil, do Tribunal Superior Eleitorado, sou servidor público
inativo de lá, reformado. Tenho de lá a minha aposentadoria por invalidez, tá bem?
M: Muito bem, continue, se quiser.
Sr. M: Bom, eu estou a exercer advocacia. Nesse instante eu não estou no escritório
porque condições externas, circunstâncias externas me retiraram das minhas atividades
habituais mas a minha profissão é de advogado e o exercício da advocacia é a minha
atividade presente, tá bem?
117
M: Seria possível descrever-me como é o seu dia-a-dia atualmente?
Sr. M: Olha o dia-a-dia atualmente é chatíssimo, eu tento matar o tempo da maneira que
mais me convém no sentido de também de preservar a minha saúde, porque tenho essa
circunstância do TAB, não é? Então eu aprendi que tenho de ter uma responsabilidade a
mais com isso, com a minha saúde e aprendi da época que esse diagnóstico aconteceu
até à data de hoje que algumas coisas me ajudam a manter a saúde mental, não é? Bom,
então, primeira coisa que eu tenho que trabalhar e muito é um esgotamento físico, uma
atividade física constante e exaustiva, porque, por alguma circunstância ou outra que eu
não sei explicar – alguma colega da área de Medicina talvez possa te ajudar –, eu tenho
uma energia física inexplicável, eu tenho, em estado de euforia, eu tenho uma energia
que não é comum nas pessoas, é uma energia diferente. Então eu sou hiperativo, não é?
Quando estou em estado de euforia, o que acontece o contrário quando estou em estado
depressivo mais quietinho, mais reservado, não é? Tá bem.
O meu dia-a-dia tem sido o trabalho em prol da minha saúde, atividade física
exaustiva, sempre que posso, sempre mesmo que posso então vou até lá, gosto muito da
praia de Belém, gosto muito demais da praia de Belém para fazer atividade física. Tem
lá parques com aparelhos de ginástica e eu faço bom uso daquele local. Bom e após,
logo em seguida, eu continuo o trabalho da minha proteção de saúde, no sentido de estar
numa biblioteca, num ambiente que condiz com a minha vida pessoal, com a minha
personalidade. Então eu estou sempre ou numa loja de livros ou dentro de uma
biblioteca a escrever e a ler alguns livros também e a meditar e mesmo a matar o tempo,
matar o tempo porque envolver nessa espiral, nesse ciclo vicioso de sem-abrigo é muito
prejudicial para qualquer pessoa e para mim tem o agravante da doença, pode ser até
fatal se eu deixar essa espiral tomar conta da minha vida, não é? Então tenho que ter o
controlo da vida, tá bem?
…
M: Muito bem, disse que ia à praia de Belém, que ia à biblioteca e depois como é que
continua o dia-a-dia?
Sr. M: Bom, então eu passo todo o restante do dia a ler e também entro na Internet para
fazer algumas publicações no meu perfil social, no meu perfil do Facebook que era um
perfil profissional – era, por algum acaso, é uma história bem longa que se um dia
118
quiser eu conto os pormenores mas que deixou de ser um perfil que eu posso usar
dentro da normalidade (…).
…
M: Depois vem cá ao Refeitório todos os dias?
Sr. M: Eu, por algum acaso, nunca aconteceu faltar um dia, eu tenho vindo todos os dias
mas tenho comigo que nalgum ou outro dia eu tenho tido uma dificuldade é capaz que
eu não venha todos os dias mas eu tenho vindo todos os dias mas eu tenho comigo que
nalgum momento de dificuldade posso falhar alguma ou outra vez. Estou disposto de
aqui permanecer até quando resgatar dessa situação, dessa situação precária, não é? Que
me deixa vulnerável, estou vulnerável, tá bem?
M: Em relação ao albergue onde vive como é que poderia falar um bocadinho do espaço
e das regras e como é que pensa o sítio onde vive?
Sr. M: Olhe, aquilo deve ser mesmo pensado. Aquilo deve ser mesmo pensado. E deve
ser pensado com a seriedade jurídica, sociológica, psicológica, psiquiátrica e tudo, tá
bem?
Por um lado, é um mérito muito grande do seguro social de Portugal conseguir
desenvolver esse trabalho, que a gente sabe que é dificílimo, de acolhimento dos sem
moradas, de acolhimento dos sem teto, dos, lá no Brasil chamaria mendigos, não é?
Então é louvável e é digno de nota e de elogio.
Agora, por outro lado, as condições ainda precisam, em se tratando de estar
fazendo, as condições precisam ser pensadas. Por exemplo, não há lá extintores de
incêndio, eu não percebi que há extintores de incêndio com validade; não há lá uma
caixinha de primeiros socorros; as instalações a gente pode perceber que… (pausa para
se benzer com o toque do sino da igreja), as instalações a gente pode perceber, pelo que
os colegas conversam, que elas não têm um conforto para pessoa humana, não é? Eles
dizem que aquilo lá foi, no passado, um abatedouro de animais.
Bom, eu estive num primeiro albergue, numa primeira casa de regras, e passei
para a segunda. A primeira casa de regras que eu estive, que me acolheu ela tinha essas
deficiências, essas carências todas, durante o período que eu fiquei lá ela mudou
completamente, eu entrei num ambiente e deixei a primeira casa de regras num outro
ambiente, ela estava mesmo transformada, era outro espaço, tinha melhorado muito,
119
parecia até um hotel ali de duas estrelas, três estrelas, tá bem? Parecia mesmo uma
pensãozinha três estrelas, estava bem arrumada quando a deixei. Mas uma situação toda
contrária de quando eu cheguei. Quando eu cheguei era tudo precário, muito precário,
inclusive em termos de higiene e tudo, tá bem?
Bom, mas então agora me deparei uma vez mais com essa realidade, não é? Lá
na Vitae, não é? Bom mas o que eu percebo é que já começa um processo de
transformação lá. O que não ajuda é mesmo o prédio, a disposição predial, o alojamento
da Vitae parece que não está adaptado para o abrigo da pessoa humana. É desprovido
totalmente de conforto e parece que lá funcionava um, e a ideia que passa para uma
pessoa humana é que lá funcionava mesmo um abatedouro de animais como dizem, não
é? Bom, a questão da higiene tem melhorado mas quando eu cheguei era mesmo um
caso de vigilância sanitária, era um caso de preocupação sanitária gravíssimo, tá bem? E
o trato dos funcionários com as pessoas é relativamente bom, agora entre os utentes é
que tem fenómenos engraçados, quer dizer nada engraçados. Existem fenómenos de
atenção sociológica entre os utentes tanto de lá da primeira casa de regras, como da
segunda, da Vitae.
Embora eu tenha a certeza absoluta que eles não têm a menor intenção, a menor
perceção, a menor consciência do que se trata, eles têm um comportamento anárquico,
no sentido da desordem, da ideia política mesmo de anarquia, da ideia de sociabilidade
desordenada, desorganizada, tá bem? E ao mesmo tempo eles utilizam aquele
mutualismo anárquico, que nada tem que ver com socialismo, nada tem que ver com
comunitarismo. Aquele mutualismo, eles transformam aquilo em tribos ou em gangs, tá
a ver bem? Bom e aí eles têm comportamentos impregnados de fascismo. Então esse já
é um raio-x que eu pude verificar muito claramente do ponto de vista sociológico: há
um comportamento anarquista impregnado de fascismo. Fascismo no sentido de por
uma liderança carismática, não é? Uma pessoa que eles gostam, eles serem utilizados
como figurantes de um jogo imaginário para criar situações ou montar cenas feitas,
preparadas para castigar pessoas contrárias ao grupo, contrárias à ideologia deles, aos
pensamentos ou aos interesses ou às vontades. Então eles querem mesmo submeter as
pessoas com um castigo que não é um castigo autorizado pela lei, não é o castigo legal,
não é por meio da polícia, não é por meio do Ministério Público, não é por meio da
justiça de um magistrado, é mesmo por alto defeso, é mesmo por exercício arbitrário das
120
próprias razões, é mesmo por dominação, é mesmo por violentação do outro, é mesmo
para subjugar o outro.
Então eles utilizam um método de criar situações, de montar cenas, para castigar
aquele que não é integrado, que não se consegue integrar bem no grupo. Ou tem que
estar adaptado ao grupo, ou tem que ser mais um, ou sofre o castigo. (…)
…
M: Falou que tinha estado, antes de estar nesta casa, que tinha estado noutra, porque é
que teve de mudar?
Sr. M: Então foi exatamente isso, um ataque desses grupa, tribal, não é, é um ataque de
mutualismo não é, de um comportamento anárquico impregnado de fascismo. Bom,
entrou lá um senhor sem a menor consciência do que estou a dizer. Bom mas ele entrou
disposto a ter um combate corporal comigo, um combate real, corporal, de corpo, não é?
Bom, então, ele não podia chegar e como dizia ele “partir a minha fuça com um
chapadão”, ele não podia entrar e “partir a minha fuça com um chapadão”, ele precisava
de um motivo. Bom, então ele entrou buscando um motivo, ele entrou procurando um
motivo e assim foi. Então ele ficava todo o tempo a me espetar e aquela turma que
montou aquilo – porque eu tenho comigo que ele não foi parar lá por acaso, é eu tenho
comigo que não. Bom mas aí então é leviano eu afirmar que isso é verídico porque isso
já é uma impressão que eu tive, tá bem?
Tá mas então, o facto é que isso não importa, o que importa é que ele estava lá e
que aquela se arrodeou no tornou daquela circunstância, daquela situação e alimentou
aquela situação, aquela circunstância, montando cena, criando situações no sentido de
ver ali uma bela rinha de gente, não é? Não era rinha de galos nem rinha de cães nem
rinha de animais, era uma rinha de gente. Bom, então ficou aquela torcida, não é? “Dá
um chapadão nele, dá um chapadão nele, dá um chapadão nele”. Eu pensei comigo “não
convém dar um chapadão nele, não é?”. Não convém porque é o tipo de coisa que a
gente sabe como começa, nunca sabe como termina, não é? Tá bom. Então não convém
mesmo dar um chapadão nele.
Então acontece que eu reclamei uma vez, duas vezes, três, quatro, cinco, seis,
sete, fui até à oitava, nona, décima vez reclamando. Subindo de reclamação, primeiro
com o porteiro, depois com a assistente social, depois fui na Santa Casa. Mas quando eu
fui na Santa Casa, a assistente social da Santa Casa entendeu a situação, eu disse “olhe,
121
eu nem consigo para lá voltar hoje, está vendo? Então, se não tiver uma solução hoje eu
já fico mesmo já na rua, eu prefiro ficar na rua que me enrascar com um momento de
estouro, um momento se ele me estressou acima do meu limite eu nem imaginei que
conseguia passar o final de semana e chegar até essa data”. Bom então já pedi, a solução
era simples: ou me tirava do quarto ou tirava ele, tem muitos quartos, não tinha nada
que estar os dois metidos juntos, alimentando aquela rinha de gente, não é? Bom, então
eu fiquei perplexo com a falta da solução mas o caso é esse, não é?
Então a minha assistente social me falou “olhe eu vou te mandar um email no
final da tarde para onde vocês vai, eu vou tentar achar uma vaga porque eu percebi a
gravidade, percebi a urgência mas foi assim tu me falou agora, não é, e precisa para
agora, não é?”. Eu falei “eu não volto mais lá, pode ser que não ache a vaga mas já fica
sabendo que eu estou fora, não consigo conviver num ambiente assim” – porque o
ambiente está preparado para o confronto, não é, está sim faltando vender ingresso
[risos]. Então não convém. Aí ela falou “Tá bem”.
Bom, quando foi no final da tarde chegou o email do encaminhamento para o
segundo, para a Vitae, e foi assim que eu fui transferido de uma casa para a outra. Mas o
que eu percebi é que eles tentaram esse tipo de manobra estratégica comigo várias vezes
e em vários locais: nos Anjos isso aconteceu muito, no Refeitório dos Anjos, por isso
até que eu estou a fazer as refeições aqui, nos Anjos isso era estimulado lá pelos
monitores, nos Anjos, no primeiro albergue lá de Cruz dos Poiais, no segundo albergue
aconteceu e acontece mas assim numa escala muito menor de intensidade. Então como
eu já passei o antes eu criei um pouco de resistência, eu aprendi a me defender bem, até
por conta do conhecimento sociológico que me salvou, eu aprendi a intervenção correta
que não é a intervenção corporal, não é a intervenção física, não é a intervenção jurídica
absolutamente eles não têm muita noção de regras quanto mais de direito, não é, a
intervenção para se salvar, para escapar numa ocasião dessas é mesmo a intervenção
sociológica, é o impacto de conhecimento que ofusca já a visão deles, percebeu, e meio
que “olha eu sei o que vocês estão fazendo, eu estou olhando por trás do picadeiro, eu
estou vendo vocês nos bastidores”. (…)
…
M: Outra questão: diariamente, que objetos é que transporta consigo que são os seus
objetos, que tenham uma importância especial para si?
122
Sr. M: Olha, basicamente são os documentos, não é? São os documentos, essa
mochila…eu não tenho o hábito de andar com mochila mas por causa do treino e por
causa do acesso regrado, do acesso restrito à casa de banho, ao quarto, só no final da
noite, então eu costumo ter sempre aqui algum fato de treino, então tenho aqui alguma
camiseta, por conta de um suor, de uma coisa, então eu faço a troca onde eu estiver, a
troca de roupa, então tem aqui alguma camiseta, algum material mesmo de treino, é
mesmo o material que eu costumo ter como meu assim do dia-a-dia, de transporte, é
mesmo isto, tenho a necessaire, tenho aqui algum material para atividade física e é só
isso. É como se fosse uma mochila para ir ao ginásio, está a ver? É mesmo isso e os
documentos pessoais.
M: O local onde está agora a viver é relativamente perto dos sítios por onde caminha
diariamente ou por onde passa diariamente ou é uma grande distância que tem que estar
sempre a fazer?
Sr. M: Olha, eu não vou ser falso modesto, é uma grande distância mas que eu acho
bom porque eu tenho que caminhar até lá, então caminhada já é o meu aquecimento,
quando eu chego às máquinas já estou aquecido, então eu não perco tempo com o
aquecimento corporal. Ali eu já parto direto para um trabalho de flexibilidade ou de
alongamento, não é? (…)
…
Lá na praia de Belém eu tenho feito muito menos [treinos de artes marciais].
Alguma coisa ainda não me deixa à vontade, no sentido de estar demonstrando técnicas
para pessoas que eu não sei quem é que está olhando, percebeu? É como se uma criança
ou um irresponsável visse e quisesse tentar reproduzir aquilo e se prejudicasse ou
prejudicasse alguém e se eu soubesse que foi porque me viu eu ia ficar…é muito uma
questão ética, é pessoal.
M: Vê a sua situação atual como sendo uma pessoa sem-abrigo, considera-se a si
mesmo uma pessoa sem-abrigo?
Sr. M: Olha, isso é um paradoxo que quem conseguir responder primeiro conta para o
outro, tá bem? É assim: eu tenho do lado de lá, do Brasil, a minha casa própria, está lá a
minha casa sem dever um cêntimo de nada, está lá a casa que eu estou tentando vender
já faz dois anos e tal e nunca consigo concretizar a venda; tenho a renda da reforma do
123
Tribunal Superior Eleitoral, do TSE, é o pagamento de aproveito de aposentadoria, que
suspenderam o pagamento (…).
…
Eu podia muito bem estar pagando um quarto com a renda que eu tenho da
reforma, tá bem? Então isso não é exigível, se eu tivesse a renda eu não iria [para o
Brasil] porque nada justifica com o Consolado aqui no Chiado, bem pertinho, onde eu
passo na porta todo o dia, nada justificaria eu pagar uma passagem de avião, ir até
Brasília (…) para me sujeitar a uma perícia médica de 15 minutos, 10 minutos, para
uma burocracia que eu já sei qual vai ser o resultado porque a minha doença,
infelizmente, ela é grave e incurável, isso já está reconhecido pela Organização Mundial
de Saúde.
…
Bom, tem lá a herança do pai falecido que por algum acaso o irmão acha na
cabeça dele, eu não sei se é leviano eu dizer o que é que passa na cabeça dele, o que eu
sei é que ele não pagou a minha parte com burla, com algum tipo de burla que ele tenta
justificar para as pessoas, não é?
E tem lá, essa parte já foge da resposta mas, tem lá as minhas filhas que nunca
esqueço delas, não é? Uma mais velha e duas gémeas iguais, uma de 11 anos e duas
gémeas iguais de 8 anos.
Mas com a renda, com o valor do imóvel, com a renda da reforma de
aposentadoria do tribunal, com a herança do pai falecido eu não me considero um sem-
abrigo, eu estou na situação, eu fui lançado, contra minha vontade, nessa situação de
sem-abrigo. Eu fui tirado de dentro do escritório, com esse tipo de comportamento que
eu te disse, eu estava a exercer, fui tirado de dentro das universidades, estava como
explicador das miúdas da universidade a 300€ o trabalho, quando era uma coisa simples
60€ o trabalho, do escritório era 800€ à hora, fui tirado com esse tipo de comportamento
(…), tem lá essa situação patrimonial, então eu não me considero um sem-abrigo, um
sem teto, um sem morada. Eu estou lançado numa situação de emergência social
propositadamente.
…
124
M: Quanto ao futuro, como é que pensa, por exemplo, que vai ser daqui a 5 anos? Tem
alguma ideia do que é que gostaria que mudasse?
Sr. M: É assim, depois do que aconteceu comigo e do que eu vi acontecer no Brasil com
os meus olhos, eu penso que a única certeza que uma pessoa que respira tem é que um
dia vai parar de respirar, o resto tudo na vida é incerto – depois essa experiência esse é o
meu pensamento.
Mas acoplado a esse pensamento, graças a Deus, tem a minha escolha cristã
católica e eu penso que eu tenho sim algumas esperanças presentes do futuro próximo.
Então o que eu tenho em mente é ultrapassar esses assuntos primeiro, primeiro
ultrapassar os assuntos do Brasil, depois de estar com autorização de residência ou
nacionalidade já conquistada na Europa – porque da Europa eu não saio! – e, se Deus
quiser e muito me ajudar, já com as filhas do lado de cá, no sentido de proteção mas não
é de uma proteção no sentido pejorativo de que eu seja um racista ou de que eu seja um
preconceituoso ou de que eu seja um contrário ao Brasil, é no sentido de ter a seleção de
comportamento, percebeu? É no sentido, olha aqui tem essa realidade mas a realidade
do Petismo lá é muito pior.
…
M: Mantém contacto com, neste caso, as suas filhas?
Sr. M: Não, o contacto já vinha sendo tirado por alienação parental antes do primeiro
ataque que eu tive (pausa para se benzer com o toque da igreja a dar as horas)…no
Brasil, essa é uma história longa (…).
A mãe das crianças, essas três filhas são da mesma mãe, ela já impedia o meu
contacto com as filhas. Então tinha na justiça uma causa e ela durante o processo na
justiça, com muito custo porque eu já sentia ali um empreendimento político, eu já
sentia ali uma interferência política. Bom mas durante o curso do processo ela
conseguiu mesmo algum apoio político, no sentido de alguém se aproveitar disso para
me neutralizar de alguma forma.
…
Eles levaram isso até às últimas consequências, no sentido de tirar toda a
comunicação entre o pai e as filhas. As filhas que tanto me amam como eu as amo. O
125
nosso amor é uma coisa que está fora dessa questão. Está acima disso de tão bonito, de
tão forte.
…
M: E cá em Lisboa, tem amigos, tem familiares, tem colegas de trabalho?
…
Sr. M: Tenho esse colega advogado (…). Ele gosta muito de mim e eu gosto muito dele
mas a gente não pode, não posso deixar um transtorno que está me acometendo roubar a
energia dele, percebeu? Senão eu vou atrapalhar a vida dele. Porque me arrancou da
minha normalidade quotidiana, vai arrancar ele também. (…)
De modo que, depois de ter acontecido isso cá em Portugal, eu cortei
absolutamente as minhas relações de tudo, de amizade, de colegas, de família, de tudo,
porque eu acho que é um peso demasiado para as pessoas carregarem, então eu nem me
permito ter um envolvimento emocional, nem profissional, enquanto eu não ultrapassar
definitivamente esse assunto, percebeu? Porque eu acho que é um preço muito alto para
o colega, para uma pessoa que a gente gosta pagar. Principalmente porque percebi que
quando me acham vulnerável eles vão então numa circunstância, numa coisa à minha
volta que possa me atingir, é o caso das filhas, não é? (…)
M: E em relação, por exemplo, aos outros utentes do Refeitório: que tipo de relação é
que podemos falar que existe ou pensamento em relação…
Sr. M: A relação que existe é mesmo de, eu funciono ali, dentro do limite que posso,
como um monitor à parte, porque para preservar a minha segurança, o meu bem-estar, a
minha saúde, eu todo o tempo estou a fazer intervenção sociológica com eles, eu todo o
tempo estou a causar impacto. Então na comunicação, na linguagem deles, na mais
acessível que eu perceber, eu transformo uma teoria num conto de alguma coisa, numa
historinha, numa piada que seja, à maneira do entendimento de cada qual.
Bom, a partir do momento em que eu percebo que ele bebeu, eu já vou
acompanhando o desenrolar daquilo no comportamento e deduzindo o que se passou na
cabeça deles. Isso tenho visto resultados fantásticos, fenomenais. Tem pessoas que eu
conheço hoje que nem são mais as mesmas pessoas que eu conheci quando eu cheguei
lá, já são toda outra, nem sem pode dizer “ah é a mesma pessoa”, não, já é uma outra
pessoa toda diferente.
126
…
M: Qual é que é a importância que o Refeitório, como instituição onde pode ir para
comer, tomar banho, ter roupa e ter lá os voluntários, tem para si?
Sr. M: Olha, esse em particular tem toda a importância porque ele está ligado com a
minha crença religiosa, com a minha escolha de fé, de profissão de fé. Então ele tem um
sentido de refrigério, eu faço aqui o meu alimento, o meu alimento corporal e o meu
alimento holístico, espiritual, a minha espiritualidade é muito trabalhada nesse lugar.
Então ele tem aqui uma função essencial, fundamental para mim. Esse refeitório de cá,
o outro de lá foi, de tão prejudicial que estava, aí aquele de lá estava mais brasileiro que
o Brasil. (…) Bom, mas esse aqui é todo outro, é um ambiente de paz, de boa
consciência, de trabalhar a consciência, é um refrigério para alma esse.
…
M: Queria só perguntar se há algum tipo de outras instituições ou serviços a que recorra
além do Refeitório?
Sr. M: Eu vou recorrer pela primeira vez a uma instituição chamada Cáritas. Bom, diz lá
que tem algumas roupas para trabalho. Se, por algum acaso tiver mesmo eu perplexo de
não ter ultrapassado os meus assuntos por mais de um ano, por um ano e tal, então já
assim mesmo espantado, tomei conhecimento e vou até lá tentar conseguir algum fato
para avaliar se tenho condições de retomar os trabalhos, não é? Tanto nas universidades
como no escritório, porque tem a questão da saúde, tem a questão emocional, tem a
questão de vulnerabilidade e tem a questão de responsabilidade que está acima de toda
as outras. Não posso ficar abrindo assuntos de clientes sem conseguir fechar os meus
próprios porque uma vez aberto o assunto, a relação do cliente, eu tenho que devolver
para ele aquela situação fechada, ultrapassado, o assunto resolvido, então ali eu não
enxergo o processo como um amontoado de papéis, ali são interesses de pessoas,
interesses de pessoas são vida, não é?
Bom, mas então eu vou até à Cáritas e que eu me lembre agora vai ser a primeira
vez e é só essa mesmo.
127
Anexo 3: Excertos da entrevista ao Francisco
Mariana: Pronto, o meu trabalho é sobre populações, por assim dizer, mais
vulneráveis…
Francisco: Em que quê? Estilo assim se eu me relaciono, como é que eu…
[…]
M: Queria primeiro perguntar a idade, nacionalidade e local onde vives.
F: A idade tenho 42 anos e…agora estou…a viver na rua…e é assim que eu me
desenvolvo ao longo dos anos e mesmo sem veres o, e é bom que chegues a isso, até
podes um dia ser uma assistente social. Bom, já estou muito galardoado com isso e já te
acompanhei nesse sentido, tu daqui para a frente vês que eu tenho sido uma pessoa que
ao longo dos anos eu tenho-me desenvolvido, pronto um pouco dificultadamente, já
chegar aqui já levo um certo tempo e, pá, o meu objetivo é querer mudar de vida mas
não é, ainda não alcancei bem esse objetivo, para subir onde eu pretendo alcançar e
assim olha, Deus deu mais, ao longo dos meus anos eu tenho vindo questionadamente a
pouco e pouco e olha ver o que é que isto me vai dar.
M: Qual é que é a tua profissão ou último trabalho que tiveste?
F: A minha profissão é carpinteiro, pronto, e tive cerca de dois anos e meio, já me
faltava praí pouco tempo para eu…atingir o escalão fixo, ou seja, efetivo e coisa que
pronto, conforme os contratos eu não, não alcancei esse método e agora sinto-me
desempregado, a ver o que é que isto vai-me dar.
M: Queria perguntar-te se conseguias, mais ou menos, descrever o teu dia-a-dia.
F: Bom digamos o meu dia-a-dia é passar assim…não me envolvendo com certas e
determinadas ocorrências ou digamos pessoas que eu…me junte ou venha-me a
envolver com elas, eu antes prefiro mais, não o aparto mas estar presente mas ver um
pouco de cada situação e assim, ao longo da minha…deslocada vida que levo, pronto, é
ter um…sei lá só quem sabe, Deus é que…há de haver uma porta que um dia se abra
para mim e ali eu seguirei em frente.
M: Costumas andar durante o dia, vens até aqui…?
128
F: Sim venho, usufruo mais ou menos assim os meus tempos livres, ou quer uma
estação, quer uma biblioteca, quer um banco de jardim. Viver um pouco de…digamos
dia-a-dia daquilo que eu já vivo e é assim que eu levo…
M: Tu disseste que vives na rua, certo?
F: Sim.
M: Antes vivias em alguma casa, outro sítio, mudaste ou estás no mesmo sítio?
F: Tinha um centro de acolhimento, pronto, e nesse centro de acolhimento
eu…pronto…há situações e eu…tive de abandonar esse local onde eu…onde eu estive,
pelo menos…várias…várias vezes…e agora fiquei sem…fiquei sem nada, agora
fiquei…na rua e onde periodicamente eu durmo e tenho as minhas regalias e é assim
que eu, pronto…
M: E contigo, ou seja, diariamente, tens contigo algum tipo de objeto, algumas coisas
que possas dizer que são tuas e que ajudam a fazer do espaço da rua mais…confortável,
dentro do possível?
F: Sim, um pouco mais dentro do possível que seja capaz de usufruir, não digamos um
saco cama, não digamos um metro para me resguardar seja onde for, pronto, vou
passando a maior parte do tempo, quer dormindo em sítios que…teoricamente não é
meu ao usufruir logo o espaço que encontro, é só mais para passar a noite e assim
sucessivamente eu levo…
M: Vais mudando de sítio onde dormes?
F: Sim, sim.
M: Há algum sítio que tu identifiques como casa?
[silêncio enquanto Francisco pensava]
F: Bom, propriamente o sítio que eu…conheça como casa hoje em dia não…daquilo
que eu já passei, onde fui dormindo, foi-me fisionominando a…a memória e fui
tomando aquilo como digamos, dá um começo para mim mas ao fim ao cabo tudo foi
passageiro, eu dormia e depois queria ter a minha pontualidade, ter a minha usufruência,
a minha, digamos, autoestima – coisa que nunca consegui e espero bem que olha não sei
se para o ano eu continuarei e oxalá que não venha a acontecer isso, se vier a acontecer
olha, o demais tenho eu que dizer. Por mim mesmo eu aguentar dia após dia esse é o
129
melhor, digamos: se acreditamos nalguma coisa que nos muda, primeiro que ela nos
mude, temos que nós mudarmos, e é esse o meu pretendido.
M: Vives, ou seja, dormes num sítio em que estás sozinho ou há mais pessoas no
mesmo espaço?
F: De momento, pronto, existem lá assim alguns que dormem, outros dias não vão,
pronto, uma vez sinto-me sozinho e até agora não tenho tido agora a aparência de nada,
ontem deparei-me assim com tudo remexido mas é provavelmente o que não é nosso,
pronto, só geralmente o que é meu é o que transporto e agora ter uma coisa fixa, que
seja minha, não me considero como isso, pronto, remexem e tudo mais.
M: Nada é teu…o que transportas contigo é a mochila?
F: Só a mochila com os utensílios de roupa e nada mais.
M: O sítio onde dormes atualmente é perto dos sítios onde vais durante o dia?
F: Neste momento, agora, é na Gare do Oriente, onde eu me envolvo. Aquilo fica ali,
pronto, abrange em todo o redor da Gare do Oriente há sempre um espaço que eu durmo
ou perto do Meo Arena ou ali ao pé do Oceanário, pronto, aqueles sítios que eu mais
vejo que estão resguardados, que me abrigue do frio é o mais essencial, mas isso para
mim não é vida, eu, ao longo dos anos, eu vejo que isto não é vida para mim.
M: E durante o dia costumas andar por onde? Ir para longe? Aqui?
F: Eu geralmente durante o dia frequento mais assim locais públicos para me distrair ou
vou à Worten ou à Fnac, pronto para estar entretido com um computador ou…passar os
tempos livres, ou um órgão para, enfim, eu pretendo hoje em dia continuar, não sei o
que é que isto, qual será o meu objetivo de hoje para amanhã.
M: Tendo em conta a situação, podemos dizer de vulnerabilidade, que soluções é que te
foram sendo apresentadas?
F: Digamos, a respeito de tentar mudar foi muitas soluções que me privilegiaram, tens
aquele privilégio das pessoas, não que elas deixassem de fazer o trabalho que elas já
deixaram de fazer, eu que me ocupe desses mesmos trabalhos que elas fizeram.
Digamos, ajudá-las nas tarefas de casa ou…uma outra coisa do género, e as pessoas
como hoje em dia no mundo se vê, elas, pronto…é… digamos…elas precisam de
alguém que lhes alcance o objetivo que elas deixaram – lavar uma casa, fazer uma tarefa
qualquer. Compartilha-se com o mesmo trabalho que se está a fazer que a pessoa goste,
130
auxiliá-la, digamos mais o…o notável que é a pessoa tentar ser ajudada e ela sente-se
bem porque é uma coisa que deixou de fazer já há muito tempo e surpreende-se que
alguém lhe, do nada, lhe apareça e lhe faça as tarefas, é o mesmo que eu assim faço.
M: Como é que tu pensas o futuro? Como é que te vês daqui a, por exemplo, cinco
anos?
F: Bem, como é que eu vejo daqui a cinco anos? Não me hei de se calhar ver no mesmo
mas…eu olhando para mim com os olhos que consiga ver as minhas mãos, assim, olhar
para mim, vejo-me o mesmo, sinto-me o mesmo como tenho vindo-me arrastando ao
longo de certos anos e assim ver o meu futuro, de hoje a amanhã, gostaria eu de ver-me
numa situação um pouco melhor mas digamos eu alcançar logo aquilo mas quando é
que isso há de ser? Quando, há de haver alguém que pense, agora sim, mesmo que as
pessoas me digam isso, eu não levo em conta o que as pessoas digam, é bom é que a
pessoa se mantenha com aquilo que tem, ser responsável daquilo que tem, não é? Um
sem-abrigo, não me considero um sem-abrigo com montes de coisas, considero-me sim,
tenho um abrigo mas o abrigo que tenho tido sempre ao longo dos anos é uma casa aqui,
outra ali, espalhadas e assim conforme eu me vou prolongando ao longo da minha
carreira de andar, olha é assim como eu geri…
M: E como é que tu vês, por exemplo, as pessoas com casa, o cidadão que anda por aí,
que tem um trabalho, tem uma casa, tem posses, por assim dizer? Como é que tu pensas
essas pessoas?
F: Digamos eu já…já estive nessa situação, já tive casa, já tive eu como titular, já tive
residência, pronto, tudo, ocupava-me eu das minhas tarefas e sendo assim eu
periodicamente, ao ter o meu espaço que, digamos, eu vinha a ver que era…pago ou
fosse por conta bancária ou…por transferência bancária, ou um género qualquer, e tinha
aquele método, quando eu já começar a ter uma certa conduta em mim para…as pessoas
já verem que já tinham um certo relacionamento e já se envolviam comigo e tudo mais,
só que como hoje em dia no mundo nós, entre aspas, não se ligam as pessoas assim,
poucamente a pessoa que tem esse perfil pela frente e que apanham uma casa e que
queira mudar de vida, leva sempre uma…um acompanhamento de inveja, perseguido e
o meu caso é veem-me o que é que eu sou, o que é que eu faço, quem eu sou.
M: Sentes-te observado pelos outros?
131
F: Sim, digamos, eu não é considerado um patinho feio mas é mais olham-me o que eu
sou, mesmo que uma pessoa nunca pode dizer que esteja bem na vida. Tem uma tarefa
qualquer e ocupam-se sempre “ai o que é que faz, o que é que não faz, qual é o
desempenho dele” e tentam sempre, digamos, se a pessoa está bem escorraçá-la, afastá-
la do sítio de onde está, não querem, antes preferem ver-me, ou sentem-se melhor ver
uma pessoa anda aí ao abandono, anda aí sem vida na…não é estorvo nenhum.
M: Claro. Outra questão: tens família?
F: Tenho mas é como não ter porque o causador fui eu porque, digamos, há uma palavra
muito conhecida no dizer que a pessoa diz: um desenrasca. Eu isso, utilizei isso para
quando vim para Lisboa vim em 2002, cheguei eu a Lisboa e foi logo à, logo assim à
aparência, Lisboa, Terreiro do Paço, aqui vou-me orientar, há isto por aqui, há por ali e
eu todo operacionante, “ah agora vou, a primeira situação que apanhar é logo aí um
trabalho, pronto, eu queria-me lançar aquela consecutiva, mas erradamente olha acabei
por mesmo, senti-me mesmo cortado sem força nenhuma e depois ao longo de isto tudo
eu fui-me desenvolvendo, mas com dificuldades.
M: E cortaste os laços com a tua família?
F: Não, mas eu não estou a dizer que não diga cortar, digamos é que a minha família
toda que me conhece todos que estavam envolvidos comigo e continuam envolvidos
comigo eles, mesmo que eu esteja numa aflição eles são capazes de me ajudar, agora,
num sentido, ajudam-me em eu tendo prosperidade e boas condutas para compartilhar
com eles, a falar, o diálogo, ou seja, o meu diálogo tem que ser positivo, sempre
positivo com o diálogo deles, não é eles dizem-me “A” e eu não vou dizer “B”, se eles
dizem “B” eu não vou dizer “B”, agora tem que se coincidir os diálogos. Agora, eu
falhando, eles sabem logo “a falha é dele, nós apertamos, mas estamos sempre em
observação com ele e ele está sempre em… nunca se aparta uma família”, hoje em
dia…
M: Então vocês mantêm o contacto?
F: [F fica reticente] Contacto…telefónico e contacto pessoal não propriamente, mas
assim contacto de notícia “Olha vi o seu sobrinho, o seu afilhado” isso acaba sempre
por chegar.
M: Que outras relações é que manténs atualmente? Tens amigos, colegas de trabalho?
132
F: É muito, hoje em dia, pronto, não é às vezes a questão de querer fazer os amigos
porque muitas próprias das vezes, aqui já eu tentei fazer e já houve assim boatos,
pronto, de acompanhamentos com este ou com aquele, eu envolvo-me pouco, mais
propriamente é às vezes procuram-me e eu sempre digo para os demais que me
procuram, que eu a maior parte das vezes tenho tido sempre exortações bíblicas que é o
que eu trabalho, não é que seja um dom, eu hei de ter um dom, com aquilo com que
nasci é com aquilo que hei-de viver até ao fim, portanto, digamos, eu, alcanço um dia
um futuro oxalá que sim, não sei.
M: Então quer dizer que não tens, por exemplo, amigos, são só conhecidos?
F: Tenho uma parte de amigos e levo-os em conta e mesmo que seja alguém que me
conheça “Ai mas com que autorização isto e aquilo” e eu, o bom já é eu deslocar-me
com quem eu ando, apanhar com a primeira, a segunda, são duas, os nomes e outros, a
outra moça.
M: A Catarina?
F: Não, a outra Mariana.
M: Sim.
F: Pronto, conheço-as e nem importa o que digam: “ah isto e aquilo” desde que sejam
amigos que eu compartilhe. Porque o que tenho, tenho eu e anda por aí à deriva mas um
dia costuma-se a dizer “Aquilo que te marcou, um dia virá a ti” é isso que eu espero,
não é que eu agora ande a saltar “ eu amo-te, faz isto e aquilo, não sei quê” isso é…
M: Dos filmes.
F: Porque é tudo, tu podes ver que é isso, hoje em dia tu vês…
M: Aqui no Refeitório tens amigos ou só conhecidos?
F: Olha tenho os demais que me servem, é o mais importante.
M: As pessoas que vêm cá também?
F: Às vezes não é o conveniente. Às vezes, pá, não digo que de hoje a amanhã, aqueles
que me conheçam, que propriamente peguem em mim, e digo, o outro qualquer “Ah, eu
conheço-o e agora vou ter uma razão, ouvi falar disto, ouvi falar daquilo, e agora”
depois cabe-me a mim, a minha casa, quero lá saber, olha é a mesma coisa que os
Flintstones, mete o “Ai Mariana, que é isto? Estás louca?”, louco? Louco era se eu se
133
não tivesse um cantinho onde dormir e escolhesse alguém com capacidade “Ah mas isso
é o pior gajo”, isso é o que vocês dizem, quem diz que diz, assume, agora quem não tem
coragem para dizer…
M: Qual é a importância deste Refeitório para ti?
F: Não levo em conta isso. São coisas que, para mim é um refeitório, é um sítio onde me
alimento e vou, olha oxalá que…era bom viesse eu a ter um cargo onde me encontro
porque o que eu tenho passado seja Refeitório, seja dormir em casa de alguém, seja ter
uma higiene. Olho para mim e digo: “olha podia ter isto, mas tinha que me esforçar, ou
fosse uma coisa qualquer do género e eu aí”…mas não, vejo as coisas, quem me dera a
mim estar nisto ou quem me dera ter uma possibilidade de ter o meu compartimento, ter
a minha coisa pessoal e hoje em dia até casa, a expressão casa…para as pessoas
estarem, que pode estar num sítio qualquer e quando chega tem a casa arrombada,
pronto, há situações sempre, uma pessoa nunca diga que está bem, se estiver bem é em
si mesmo porque demais é passativo.
M: Então se calhar se não viesses aqui a este refeitório irias a outro sítio?
F: Sim, por exemplo, se terminasse este refeitório e houvesse outro, deslocar-me-ia, ou
aqui podia ser numa cantina onde…ali na avenida de Berna e a Calouste Gulbenkian,
que é aquela principal, as duas transversais. Houvesse ali naquela faculdade, houvesse
um refeitório, há lá um refeitório, para os sem-abrigo, epá eu deslocava-me lá, depois
quem me conhece também já lá ia outras vezes fazer auxílio, “Olha o gajo está aqui e
não sei quê” – não, o importante é chegar lá comer e o demais…
M: Em relação aos voluntários e ao trabalho que eles fazem aqui, tens alguma coisa a
dizer, o que é que pensas em relação a isso?
F: Aos voluntários olha, que eles propriamente tenham um pouco melhor daquilo que
eles sejam, que eles não se, digamos, disponibilizem mais…abertamente a ajudarem,
eles em si próprios eles já manifestam alguma coisa, já se demonstram que são alguém,
só o meu apelo que eu tenho a dizer aos demais, para quem quer que seja, é que nunca
desistam, sigam sempre em frente, desfalecer qualquer um desfalece, não é? [risos]
M: Como é que tu tomaste conhecimento e vieste parar a este refeitório?
134
F: Vendo os outros, seguindo os demais, vendo para onde eles iam, porque é assim que
eu faço, há uma carrinha com comida, eu vou, há uma coisa qualquer com comida, eu,
não é que me digam “olha há ali e ali”, onde vejo as pessoas.
[…]
M: Então se calhar foi observando o que os outros faziam e vendo o que é que faziam de
positivo e que sucediam bem…
F: Sim, a maior parte… digamos…
M: E que foste fazendo porque tinhas que te aguentar.
F: Pois… digamos assim, eu envolvi-me por demais que aconteceu diariamente e
acontece, as ocupações de tempo livre e se há uns amigos e às vezes, pronto venho por
aquelas faculdades e vejo a usufruência das pessoas, o desempenho que elas têm, “Ah
fazer isto ou fazer aquilo, ou A ou B ou C”, querem-se desenvolver e eu digo assim:
“num mundo onde a humanidade, se encontra, haja sempre galardoantes ou, salvo
aquele que se considere que seja salvo, a humanidade toda ela é salva, certo? Segundo é
aquele ter a noção daquilo de fazer e de ter fé, porque eu mais exorto aqueles que estão
comigo e aqueles que vier a ter por companhia.
M: Então acaba sempre por haver uma relação mais que não seja de ver se corre bem, se
corre bem, bora?
F: Sim, ao longo dos anos tem acontecido coisas boas, umas assim pouco positivas mas
isso…não olhando a isso.
M: Tens algum tipo de outra instituição ou serviços a que recorras?
F: De momento agora não, agora estou em stand-by, em lista de espera. Penso eu agora,
qualquer coisa que seja para renovar a documentação e como eu agora tenho a
residência, o mais que me possam fazer é a antiga residência que eu tinha, não sei se
eles renovam isso se não e continuar assim, mas eu esperava que não fosse este o meu
futuro daqui para a frente, igual como agora em 2017, eu entrei sendo igual como os
outros anos e eu esperava bem que, digamos, com 42 anos, quase com 43, não chegar
mesmo àquela consecutiva de…às vezes não é eu dizer que não sou capaz, eu sou
capaz, o que é naquela dificultância “ah agora vou, não vou”, não dou lugar àquilo
porque é fácil, as coisas surgirem, a pessoa é que, é preciso é a pessoa querer logo na
135
hora e dizer “olha eu agora sou capaz, vou conseguir!” e no momento que eu coiso,
olha, pode ter a honestidade de não acertar. […]
M: Há quanto tempo mais ou menos é que estás nesta situação de não ter uma casa, por
assim dizer?
F: Digamos mas de tudo em geral, de anos? Bom, já levo disto…16 anos e 11 meses,
praticamente, de vida de rua 2 anos e 11 meses de vida de rua, mas em global tudo,
geral, é 16 anos e 11 meses desta vida sempre assim.
[…]
M: E o que é que falta para conseguires?
F: É não dar lugar à…ao que conheço, Deus e, pronto, tenho-me aguentado assim o
resto da minha vida e olha oxalá que não venha a ter um futuro pior, digamos, mais pior
ainda que aquele que tenho levado.
[…]
M: Antes desses 16 anos e 11 meses aconteceu alguma coisa que fizesse com que
deixasses de ter…
F: Digamos, não aconteceu mas foi um afastamento daquilo que eu
era…propriamente…eu educado até uma certa idade, digamos dos 14 anos até aos 17
ainda consegui frequentar a ausência dos meus pais e acabando depois, envolvendo-se
etnias e grupos, fiquei sem a minha família e…afastando-me, lá está, afastando-me do
pouco ou muito que eu já levava e isso…digamos, obrigando-me a mim mesmo a
arrastar-me para a dita cidade de Lisboa e aí onde eu me aprofundei.
M: Então foi um processo, não foi…
F: Digamos é…aqui foi uma coisa que pensava que nunca me dominava, dizer um
desenrasca e logo isso dominou-me total e para quem me veja “o gajo não mudou, não
consegue mudar”, mas envolvo-me nelas, mas sou capaz de sair, saio porque eu antes de
entrar nelas digo assim “há alguém que existe, há alguém que é acima de mim, haja o
que acontecer em suas mãos eu deitar-me-ei”, venha lá quem vier “ai és um badagomax
que andas aí, és um salame que não tens por onde cair” epá dá-me vontade é de dar
nisto e naquilo, quando é altura não conseguem ou se conseguirem depois arrependem-
se.
136
M: Se houvesse, por exemplo, agora algum tipo de ação social que te desse uma casa
mas nessa casa tivesses de estar de acordo com algumas regras, aceitavas?
F: Sim, eu propriamente já ouvi falar, não sei se é verdade se não, ouve-se tanta coisa…
[…]
M: Então neste caso se houvesse casa e trabalho o teu problema ficava resolvido?
F: Um pouco sim, não era perto dos 100 mas mantinha-se. Viria aqui todos os dias, sim,
agora a mínima, que eu se não tenho rendimento foi por culpa minha, só não comprei
um carro e uma casa porque não me dava, dava, dava, mas o que é que eu não saber
bem…alargar mais e elas aí viram logo “ai o senhor Caldeira anda com uma gravatinha
e tal e não sei quê”, em 2000 e tal cortamos-lhe o rendimento, chegando em 2005, outro,
e agora…
M: Então seria casa, trabalho e mais alguma coisa?
F: Neste momento só casa e trabalho compensava-me, depois o resto mais ia-se
fazendo. Porque num quarto já eu me coloquei numa situação dessas e digo pronto para
os demais não tenho consideração em culpá-los mas para mim não é aquela questão de
sentir bem, “ai e agora o vizinho é coiso e isto e aquilo”, há sempre aquelas coisas e
envolve-se sempre, mas quem me dera a mim hoje em dia digamos ter uma ocupação,
que eu por acaso já tive um género comparado com uma faculdade, que é a instituição
da AJAF que fiz trabalhos comunitários, fiz trabalhos, digamos, não é bem trabalho
comunitário, mas fiz trabalhos de ir de sítio em sítio, domiciliários e eu ia a certos
trabalhos e fazia as tarefas, reparar uma coisa qualquer, um eletrodoméstico, fosse o que
fosse e eu trabalhava por conta própria para a Junta de Freguesia de Nossa Senhora de
Fátima.
[…]
Só que claro, eu apanhando-me com dinheiro exijo-me logo ser eu logo o líder e isso
traz consequências. [F fica pensativo e suspira]
M: Tu atualmente tens algum tipo de rotina, alguma coisa que faças sempre?
F: Propriamente a rotina, olha, eu antes preferia mais, e digo mesmo sincero, mesmo de
interior meu: todas aquelas pessoas que comigo andaram, que me rejeitaram, que me
conhecem, oxalá eu seja capaz de dar um pulo enorme na minha vida, eu não tenho
medo de agarrar as pessoas com quem me envolvo e perante a Humanidade que já me
137
conhece dizer assim “é isto aqui, aquelas pessoas com quem eu me envolvi e estão aqui
à vossa frente”.
[…]
Olhando neles, porque me adotaram em certas circunstâncias falando comigo, sabendo
o que é que eu sou, o que é que faço, o que é que não faço, eu adotei-as! Apesar de
adoção, por mim, chegar ao sítio de onde eu consegui e se forem a ver, não tenho
vergonha nenhuma de dizer “ai você vive do quê? Criar hamsters”.
[…]
M: Quando tu estavas a falar de pessoas que te adotaram o que é que tu queres dizer
com isso? Pessoas que estiveram contigo? Do teu lado?
F: E sempre estarão comigo.
[…]
Os demais aqui que me envolvem querem saber o que é que eu sou. Epa eu não me sinto
perfeito.
[…]
M: Como é que achas que as pessoas, por exemplo quando vais na rua, por exemplo
quando passas na Gulbenkian como disseste no outro dia, como é que achas que as
pessoas te veem?
F: É muito raro passar, porque lá está, as pessoas ao passarem por mim na rua elas
sabem que ao conhecerem-me, porque muitas delas viam-me sempre por ali, era o
menino privilegiado na carrinha e cinto de segurança e com a malinha e muitas vezes ia
com a farda.
[…]
M: E os outros estavas a dizer que te viam como privilegiado e agora?
F: Veem-me como um demais fazendo as tarefas que eles porventura fizeram ou que
pretendem fazer e não conseguem e dizem “ai mas com que autoridade é que aquele
consegue e eu não consigo?” […]
M: Tendo em conta o sítio onde dormes há algum tipo de estratégia que adotes para
teres uma noite segura, uma noite tranquila?
138
F: Até agora sempre foram seguras porque digamos as noites que tenho tido umas vezes
é embriagado, outras vezes é medicinais, outras vezes é incompreensíveis de momentos
que eu não tive bem um dia-a-dia anterior prosperado e aquela coisa toda de
pensamentos e agora vem e não aparece e agora aparece, pronto há sempre uma coisa
que me envolva, nunca digamos tenhamos sempre com pensamentos ou deixemos de
pensar.
M: Então é graças a essas coisas que tu sentes que estás seguro, estás calmo, estás bem?
F: Propriamente agora como vais vendo ao longo da tua, desenvolvimento de vida e
dizes “olha gostei de falar com esta pessoa”.
[…]
Pessoas que trazem-me o bloco com tudo o que eu deva aceitar, eu recuso, dão para
outro.
M: Porque é que recusas?
F: Às vezes não é questão de…digamos, pronto, é bom que as pessoas quando falam
umas com as outras e usufruadamente se identifiquem.
[…]
M: Obrigada.
139
Anexo 4: Excertos da entrevista a Isabel (voluntária)
Mariana: Primeiro queria perguntar há quanto tempo é voluntária aqui no Refeitório.
Isabel: Sou voluntária há dois anos, fez em dezembro dois anos que estou aqui.
M: E o que é que motivou, por assim dizer, esta decisão de começar a fazer voluntariado
aqui? Houve alguma…
I: Eu sempre tive muita vontade de fazer voluntariado. Eu não trabalho e estava em casa
a tomar conta do meu filho, até que chegou a altura em que ele já não precisava tanto de
mim e então comecei a procurar um sítio para fazer voluntariado. Não fazia ideia que
isto existia aqui, vim a primeira vez com a minha irmã para experimentar e estou cá há
dois anos. E a vontade de ajudar as pessoas que precisam é muito grande.
M: Em relação aos utentes do Refeitório como é que se realiza uma aproximação com
estas pessoas mais vulneráveis, por assim dizer?
I: Penso que cada pessoa é uma pessoa completamente diferente da outra, não é? E há
pessoas em que nós nos aproximamos e que se dão logo e que falam logo connosco, há
outras que têm primeiro que ganhar a nossa confiança e, a partir daí, a partir do
momento que vão ganhando a nossa confiança vão desabafando, vão esboçando um
sorriso e, pronto, e cada vez vão estando mais à vontade e vão falando mais.
M: Essa confiança existe pela repetição de vezes que veem cá? É através de… Como é
que se dá essa confiança que passa a haver?
I: É a repetição de vezes, é também eu acho que para eles é muito importante que nós
nos vamos aproximando devagar, que vamos esboçando um sorriso porque é aquilo que
eu lhe dizia no outro dia: além das carências monetárias, eles têm principalmente
carências afetivas e eu penso que eles têm muita necessidade de alguém que pare um
bocadinho para os ouvir e que converse um bocadinho com eles.
M: Como é que nós podemos pensar este auxílio da pessoa vulnerável aqui do
Refeitório, de modo a que não corte a autonomia, ou seja, de modo a que não seja
excessivo, como é que podemos separar o excesso da proximidade…
I: Isso eu penso que se vai aprendendo com o tempo, a lidar com eles. Eu cheguei cá e
era uma pessoa extremamente sentimentalista e os primeiros dias que tive cá dei por
140
mim a sair daqui e ir para o Colombo fazer compras para trazer no dia a seguir, tipo, por
exemplo, um que apareceu com os sapatos rotos em pleno inverno, porque eu comecei
aqui em dezembro, e eu a seguir fui ao Colombo comprar uns sapatos; apareceu uma
mãe com um bebé a chorar porque não tinha leite para o bebé e eu saí daqui e fui ali ao
supermercado comprar leite, mas depois vamos aprendendo a lidar com isso e vamos
aprendendo a lidar com eles, aqueles que podemos dar mais confiança e os que temos
que travar um bocadinho e vamos aprendendo a lidar também com os nossos
sentimentos.
M: Criar uma espécie de uma barreira para não ser…
I: Exatamente.
M: Que tipo de ação, por assim dizer, dá-se o almoço mas que tipo de ação é
desenvolvida com estas pessoas? De encaminhamento, de ordem…
I: É assim, eu neste momento não estou propriamente nessa parte de encaminhamento
além das refeições, por enquanto, temos as assistentes sociais que, muito sinceramente,
não me parece que façam grande trabalho e portanto nós neste momento estamos a
juntar, nós voluntárias, para começar a fazer um bocadinho isso também. Até junto das
assistentes sociais para se começar a chamar à atenção para é preciso isto, é preciso
aquilo.
Eles precisam de se deslocar a alguns sítios que não conseguem, que alguns,
como a Mariana sabe, não falam português, que têm imensa dificuldade e portanto nós
estamos a começar a ter reuniões para começarmos a juntar a nível de voluntários para
começar a fazer também um bocadinho esse trabalho exterior com eles.
M: Nesse caso falta basicamente uma mediação entre a pessoa que precisa e o serviço
ao qual vai ter de recorrer?
I: É exatamente porque isso era a função das assistentes sociais mas nós voluntários
estamos a chegar à conclusão que elas andam aqui um bocadinho…alheias ao que se
passa à volta delas. Não sabemos, portanto não queremos culpar ninguém porque não
sabemos se são elas que funcionam mesmo assim ou se não têm mesmo meios para…
M: Fazer essa mediação.
I: Fazer essa mediação e portanto como não queremos culpar ninguém, queremos nós
começar a entrar em campo para perceber o que é que está a falhar aqui. Porque temos
141
aí pessoas que…algumas que merecem uma segunda oportunidade e que nós achamos
isso e que não estão a conseguir fazer nada.
M: Sim, há pessoas que é só mesmo um bocadinho e fica resolvido o problema.
I: Nós neste momento estamos a tentar trabalhar com o Iury e portanto as reuniões que
vamos ter agora é para tentar…lançar o Iury e depois se conseguirmos é óbvio que
vamos partir para outros, não é?
M: Será então uma tentativa de…reinserir as pessoas na sociedade? Dando trabalho e…
I: Exatamente, este neste caso é inserir, não é? Porque é o início dele, apesar de ele já
estar cá, o Iury já está cá penso que há um ano e tal e…como fala mal português não se
está a conseguir desenrascar, ninguém está a trabalhar com ele e…não está a ter a
oportunidade que se calhar merecia ter.
M: Que tipo de problemáticas é que surgem assim mais nestas pessoas que vêm ao
Refeitório?
I: [silêncio] Isso é difícil responder porque eu penso que cada um tem os seus
problemas, não é? E…
M: Ou seja, cada pessoa tem um conjunto de problemas…
I: Seus e alguns desabafam connosco outros nem por isso, guardam para eles, têm a
história das necessidades básicas que não têm, que dormem na rua, os que não dormem
na rua também eu penso que há muitos aqui que têm casa mas que depois não têm nem
água nem luz lá dentro porque não têm como pagar isso, e eu penso que isto aqui há
muitos problemas e muito diferentes, há alguns que nós sabemos e outros que nós nem
fazemos ideia.
M: Então, uma ação, assim, que fosse melhor do que aquela que está a ser tida de
momento seria a nível individual tentar analisar quais é que são os problemas de cada
um…
I: Exatamente, isto cada caso é um caso, não é?
M: E assim arranjar-se-ia soluções para os problemas.
I: Sim. Sim, apesar que, como a Mariana sabe e caindo na realidade, é quase impossível,
não é? Mas pode-se tentar fazer com que, ir fazendo devagar. Porque isto não
142
conseguimos mudar o mundo de um dia para o outro, não é? [risos] Temos de fazer
devagarinho.
M: Nesse caso aqui o papel dos voluntários acaba por ser um papel que tem muitos
papéis lá dentro, ou seja, é aquele que ouve, é aquele que ajuda, o que é que é ser um
voluntário aqui no Refeitório?
I: Mais uma vez digo: cada caso é um caso e cada voluntário é um voluntário. Eu penso
que temos aqui, eu também não conheço os voluntários todos, mas penso que temos
aqui voluntários que vêm, que ajudam e que não passa disso, portanto fazem
simplesmente o seu trabalho; temos outros voluntários que tentam conversar com eles;
temos outros voluntários que tentam, tipo a Isabel Simões, a Isabel Antunes, peço
desculpa, que é uma voluntária que tenta ir mais ao fundo e que tenta fazer muito, aliás
esta história das reuniões agora foi ela que me telefonou e que me pediu se eu estava
disponível para ajudar e portanto penso que, mais uma vez: cada caso é um caso e temos
todo o tipo de voluntários aqui. Mas é das tais coisas, todos são precisos. [risos]
M: Como é que se mantém a ordem junto de uma população que, em princípio, não tem
assim propriamente muitas regras, muitas rotinas, muito… Que princípios é que há aqui
no Refeitório para manter a ordem?
I: Eu acho que há um princípio básico que é o essencial…que é o respeito que eles têm
por nós voluntários e principalmente pela Irmã. Já assisti aqui a duas cenas menos
agradáveis, já tive que me pôr no meio de dois e sujeita a levar um murro ali mas não,
quando eu levantei a voz e me pus no meio deles os dois cada um sentou-se na sua mesa
e penso que eles acabam por, podem não se respeitar uns aos outros, mas acabam por
respeitar os voluntários que estão, porque sabem que estão para os ajudar e
principalmente respeitam a Irmã porque sabem que ela está para lhes dar comida e acho
que isso é muito importante, o respeito.
M: Têm também regras?
I: Têm, têm regras, que é, que nem todos cumprem, que é manter o Refeitório e
nomeadamente os balneários minimamente limpos, que não cumprem, e, por exemplo,
almoçam, levantar a louça suja da mesa, a deles, que como viu há bocado também não
cumprem, alguns. Temos muitos que ajudam e que não tomam a iniciativa para ajudar
mas se forem chamados que ajudam de boa vontade e…e pronto e há regras que nem
todos cumprem mas isso como nós sabemos grande parte vive na rua e também não têm
143
uma vida com regras, portanto depois também lhes é difícil incutir qualquer tipo de
regras aqui, não é? [risos]
M: O acesso ao Refeitório pode ser feito por qualquer pessoa sem-abrigo ou há um
conjunto de condições?
I: Não, eu não estou a par dessa parte e essa parte, esse papel é feito pela assistente
social daqui do Colégio, pela Carla. Mas eles têm que vir referenciados, como diz a
Irmã Celeste aqui não se recusa comida a ninguém, portanto a primeira vez que vêm se
não vierem referenciados dá-se comida obviamente mas depois têm que trazer um
documento ou da Segurança Social ou de uma Junta de Freguesia, têm de trazer um
documento em que indique que realmente eles necessitam de comida, que têm carências
monetárias e depois tudo isso é estudado pela assistente social em que abre um processo
e que vai tentando trabalhar com eles, não sei a que nível, mas têm que ser todos
referenciados.
M: Já houve alguns casos desde que começou a vir cá que tenham conseguido sair da
rua, arranjar um trabalho e…
I: Sim. E é isso que nos dá alento para continuar. Temos casos, eu já apanhei dois:
tivemos um nigeriano que era uma pessoa fantástica que não falava português, só falava
francês e que era uma pessoa que acabava de comer e que agarrava no pano e limpava
tudo, era…com um sorriso sempre, ele era muito escuro, sempre com um sorriso
enorme e tentava comunicar connosco – eu também não falo francês – e ele tentava
comunicar connosco, era um miúdo fantástico. Estava a tirar um curso de mecânica cá
em Portugal e…praí há um ano veio-nos visitar e dizer que já tinha emprego e que
estava com a vida dele já normalizada.
Temos o Manel também, não sei se a Mariana conheceu, ele esteve cá antes do
Natal, que também tirou um curso de jardinagem e que também nos veio visitar antes do
Natal a desejar boas festas que está a trabalhar na Junta de Freguesia de Alcântara.
E eu acho que são estes que nos dão alento para continuar aqui.
M: Mostram que é possível.
I: Exatamente. E provavelmente há mais casos que eu não conheço, não é? Eu conheço
estes dois mas provavelmente há mais casos porque nós temos alguns que vêm durante
144
uns tempos e depois desaparecem, pode não ser pelas melhores razões mas também
pode ser pelas melhores razões [risos].
M: Além das voluntárias e da Irmã e das assistentes sociais há mais alguma instituição,
algum papel que apareça aqui no Refeitório?
I: Sim nós temos o Banco Alimentar que nos fornece algumas coisas, basicamente
lanches, fruta e iogurtes, cereais e depois temos ao fim-de-semana vem comida da
Refood. Depois temos as voluntárias e os pais dos meninos aqui da escola que vão
trazendo comida e roupas e todas essas coisas, ainda agora no Natal acho que a Mariana
se apercebeu que funcionou lindamente e conseguimos atingir os nossos objetivos,
conseguimos tudo o que queríamos.
[…]
Temos muitos que infelizmente se acomodaram à situação e que acham que
estão bem assim, portanto não querem sair da situação em que estão.
M: E eles próprios dizem isso?
I: Não dizem mas demonstram porque eu penso que se eles querem, apesar de que eu sei
que estamos numa altura de crise, que estamos numa altura que é difícil arranjar
emprego mas temos exemplo daqueles que conseguiram, não é? E portanto eu acho que
se eles lutarem um bocadinho que acabam por conseguir e temos aqui alguns que não…
M: Não mostram essa vontade.
I: Não, não se vê que…
M: E o que é que se pode fazer nesses casos?
I: Eu penso que é difícil porque quando eles próprios, quando eles desistem deles
próprios acho que isto é um bocadinho como um toxicodependente, não é? Tem de ter
força de vontade para sair da droga senão as pessoas que estão à volta, sozinhas, sem a
força de vontade da pessoa não conseguem e eles aqui é um bocadinho isso também, se
não têm eles vontade para sair da rua como é que nós vamos ajudá-los?
M: Só se ajuda quem quer ser ajudado.
I: É exatamente. Eles têm que ter vontade de ser ajudados senão para nós é impossível.
[risos]
M: Ok, obrigada.
145
I: De nada Mariana, se precisares de mais alguma coisa.
Anexo 5: Excertos da entrevista ao Nicolay
Mariana: A primeira coisa que eu queria perguntar era a tua idade? (…)
N: Eu tenho 44 [anos], vou ter.
M: Nacionalidade.
N: Ucrânia.
M: O sítio onde vives aqui em Lisboa?
…
N: Albergue!
M: Profissão?
N: Minha? Construção.
M: Quando é que vieste para Portugal?
N: Para Portugal…2010.
M: Porque é que vieste para cá?
N: Eu? (…) Eu estou em Espanha, trabalhar em Espanha, depois meu amigo estava aqui
trabalhar, ligou para mim e disse “vamos para Portugal, vamos trabalhar, eu venho aqui
para trabalhar”. Então nós trabalhamos os dois. Depois, trabalho termina e acabou estou
aqui.
…
Construção com palcos, trabalhando com Tony Carreira, 3 anos, muita vez,
muitos palcos.
M: A chegada a Portugal foi tranquila então? Foi com uma proposta de trabalho?
N: Sim.
M: E sentes saudades da Ucrânia?
[N não entende a palavra saudade por isso a pergunta foi reformulada várias vezes]
146
N: Eu quero cá. Eu gosto Portugal.
M: Como é que costuma ser o teu dia-a-dia?
N: Dia-a-dia de quê?
M: Por exemplo de manhã se tens alguma rotina, algum conjunto de coisas que faças de
manhã, à tarde depois vens ao Refeitório, a seguir ao Refeitório, quando é que
trabalhas…
N: A manhã eu vou beber café [risos], depois, depois o que é que eu faço? Não sei o que
é que eu faço…depois, quando me liga patrão, vou trabalhar, quando me não liga vou
ajudar para escritório…e depois outra vez bebo café [risos] e depois vou dormir.
M: Atualmente, o albergue onde estás é perto dos sítios onde costumas ir durante o dia
ou tens de andar muito durante o dia?
N: Não, está perto, não ando muito.
M: Então é mais ou menos aonde em Lisboa?
N: Campo Pequeno…
M: Que objetos é que tens contigo que consideres importantes?
N: A mim? Que é importante? Que vou-te dizer? Importante…eu não sei… (…) Minha
mochila? Minha mochila não me importa. (…) A mim importante…eu vou-te dizer uma
coisa: a mim importante é vida, trabalho e outras coisas…casa…e não me interessa
outras coisas…
M: No albergue onde estás, estás sozinho ou partilhas o espaço com mais pessoas?
N: Está mais pessoas… [olha à volta e faz shiu como se tivesse medo de estar a ser
ouvido]
M: E que tipo de relação tens com essas pessoas?
N: Está amigos e conhecidos…
M: Dás-te bem com eles?
N: Às vezes. [risos]
M: E quando há problemas, vai cada um para seu lado?
147
N: Não há problemas, está tudo bem, passo bem, corre bem, não há nenhum
problema…somos uma família.
M: Consideras as pessoas que vivem contigo como família?
N: Comigo vivem eu não sei quantos…10 ou mais, por aí… [volta a olhar à volta a ver
se não está ninguém a ouvir e a fazer shiu]
…
M: Como é que tu pensas o futuro? Por exemplo, daqui a 5 anos onde é que tu te vês?
N: Daqui a 5 anos? Eu não sei o que vai passar agora, amanhã, 5 anos…
M: Sim mas o que é que tu gostavas que mudasse?
N: Eu gosto muito mas não há nada.
…
M: Estabilidade? Uma casa? Tua?
N: Uma casa? Minha? Eu tenho casa! Eu tenho casa grande não aqui, lá…
…
Aqui está tudo bem, eu gosto de trabalhar, eu gosto da gente, quem trabalha,
quem não trabalha eu não gosto…e que mais?
M: Na Ucrânia tens família?
N: Sim. (…) Pai, mãe [estão na Ucrânia], irmão está em Espanha, irmã Eslováquia,
minha filha não sei onde…
M: E falas com os teus pais? Tens algum tipo de relação com a tua família?
N: Eu não falo há muitos anos. Porque não quero.
M: Então consideras mais próximo quem vive contigo cá em Portugal?
N: Sim, claro, minhas amigas, meus amigos. A família não me interessa. (…) Já estou
há muitos anos longe. Eles não querem saber como estou eu e eu não quero saber como
estão eles. Pronto.
M: Em relação às outras pessoas do Refeitório, aos outros utentes, como é que tu os
vês?
148
N: Estão minhas amigos todos. Estão muito boa gente. Ajuda-me também e eu ajudo
para eles.
M: Então acabam por ser amigos?
N: [falando mais alto] Estamos como uma família! Trabalhamos juntos.
M: E como é que tu tiveste acesso ao Refeitório, a primeira vez que lá foste, como é que
descobriste que existia o Refeitório?
N: Desculpa lá que eu não lembro… (…) Não me disse ninguém nada que eu estava
bêbedo [risos].
…
M: E há quanto tempo foste para o Refeitório?
N: Há uns dois anos.
M: E vais todos os dias?
N: Não.
149
Anexo 6: Excertos da entrevista ao Igor
Mariana: Queria começar por perguntar a idade?
I: A idade, 40.
M: A nacionalidade?
I: Ucrânia.
M: Muito bem, o sítio onde vives?
I: Lisboa.
M: E dormes em alguma instituição?
I: Na casa de um amigo.
M: Ok. E profissão?
I: Tem muitas profissões.
…
M: Quais?
I: Cantor, pintor, filósofo.
M: A sério?
I: [Acenou com a cabeça e sorriu]
…
M: Então tens muitas profissões?
I: Oito, mais ou menos. […]
Eu pintar quadros também. A construção, pintar quadros e cantor.
M: Muito bem, de que tipo de música?
I: Música tradicional da Ucrânia.
…
M: Há quanto tempo é que estás em Portugal?
I: Hum…17 anos.
150
M: E como é que vieste para cá? Porquê?
I: Porque a Ucrânia naquela altura era uma República nova, dinheiro novo, Presidente
novo, deputados novos, tudo novo. Tudo malucos, tudo bandidos e eu ganhar 180€ por
mês. E eu querer muito, ganhar muito.
M: Então vieste para Portugal à procura de…
I: O meu amigo ele mora aldeia, ele é da aldeia, tem vacas, tem relvinhas, tem muito, e
lá muito pior, naquele sítio pior. Ele emigrar para Portugal e depois ele tratar
documentos em Kiev, eu moro em Kiev e como Lisboa, capital, e para tratar dos
documentos ele vai a minha casa e depois quando ele emigrar para Portugal eu telefonar
e perguntar “então como é lá português?”. Ele disse “ah normal, não muitos problemas”
e ele falar com patrão “o Igor – eu –, ele quer também trabalhar emigrar”. E eu, depois
de um mês, quando chegar cá os patrões já esperarem por mim. Só que este patrão é
hum…pagar pouco, mas naquela altura para mim é mais do que na Ucrânia, não muito
mas melhor do que na Ucrânia e ver outras terras, tipo turista [risos].
M: E então a tua chegada a Portugal foi tranquila? Não houve problemas de
documentos…
I: Não, foi depois 2001 na Europa vários países fazer legalização, Portugal, Espanha,
Holanda, aí eu fiz aqui em 2001 fiz legalização. Agora pagar multas porque Estado
inventar lei para ganhar dinheiro. É business. [risos]
M: Mas são multas elevadas?
I: [acenou a cabeça que sim]
M: E porque é que há essas multas?
I: Porque tem limites de residência: um ano, dois anos tem que renovar e depois quando
acaba tem meio ano para renovar e quando passa meio ano e não renovar, e até antes,
anulam e pagar, ter que pagar multas e tudo.
M: Para ganhar dinheiro o Estado?
I: [acenou a cabeça que sim] Eles querem também comer. [risos]
M: Tens saudades do teu país?
I: Sim, muitas. Quero voltar com dinheiro. A Ucrânia eu quero viver lá e comprar muito
terra. Lá a vida melhor do que aqui.
151
M: Mas vieste cá na altura porque cá era melhor?
I: Não sei… Eu acho que melhor do que a Ucrânia, quando eu falar com telefone com
amigo ele disse ordenado maior e pessoas não piratas [risos].
Mas depois quando passou meio ano não muito gostar de Portugal porque eu
conheço países melhores: Alemanha, França, Austrália.
M: E porque é que acabaste por vir para Portugal e não para esses países?
I: Porque para ir para outros países é preciso dinheiro e…cá ordenado de 500€, lá uma
semana a pessoa ganhar 500€ e estes 500€ tem que pagar isto e aquilo e não dá para
juntar porque eu fumar, eu passear e não consigo juntar dinheiro para eu desaparecer
muito rápido daqui e agora há outro problema: acabou a residência, tenho que pagar
500€ multa e depois que eu posso fugir porque sem residência na fronteira como não
tem residência fronteiras podem fazer deportar e depois 5 anos tenho que comprar um
novo passaporte, mas isso sistema na Ucrânia compra-se.
[pausa porque tocou o telemóvel do Igor]
M: Como é que é o teu dia-a-dia?
I: Hã? [risos]
M: Por norma, qual é que é a tua rotina, o que é que tu costumas fazer no dia-a-dia?
Vens ao Refeitório e mais?
I: Andar [risos]
M: Costumas andar?
I: [acenou que sim com a cabeça] Não faço nada…não muito procurar trabalho…
M: Vais passando o tempo?
I: Humhum [acenou que sim com a cabeça]. O tempo passa… [risos]
M: O sítio onde vives agora é muito longe do Refeitório, por exemplo? Tens de andar
muito?
I: Não.
M: É pertinho?
I: Mais ou menos…não muito longe…
152
M: E como é que tu costumas andar por Lisboa? Tens passe de metro, autocarro?
I: Passe eu um mês não carregar passe e depois [risos] aqueles controladores eu disse
que se calhar ele partiu [risos] ele disse “não é o chip, isto ele não tem saldo, não
carregar, a máquina diz tu não carregar, ele vazio, o chip funciona bem”, eu disse “não
sei, eu carregar” [risos]. E depois ele ficou com ele, com passe e eu foi embora, tive que
fugir.
Mas e depois noutro dia andar comboio e o homem escrever multa e eu não
consigo fazer passe porque tem multas.
…
E quando trabalhas ordenado…melhor não trabalhar… [risos] acho eu ou
trabalhar e ganhar normal.
M: Que tipo de objetos é que tens contigo que consideres importantes?
I: Importantes?
M: Por exemplo, documentos…
I: Documentos.
M: São os mais importantes. Tens algum tipo de lembranças de casa? Fotografias, por
exemplo?
I: Não.
M: Os documentos é o mais importante?
I: Para Portugal sim, para mim documentos não…
M: Vives sozinho?
I: Sim…
M: Ou com amigos ou com família…
I: Na casa de um amigo.
M: Sim mas esse teu amigo também vive lá?
I: Sim. (…) Eu solteiro, sultão, ele não casado [risos].
M: Como é que pensas o futuro? Onde é que tu gostavas de te ver daqui a cinco anos?
153
I: Eu quero muito poder emigrar à Austrália…tem cangurus [risos]. Austrália eu ganhar
dinheiro, depois voltar à Ucrânia, na Ucrânia comprar casa e depois eu morar lá na casa.
M: Ficas na Ucrânia. Tens família na Ucrânia?
I: Minha família é só minha mãe.
M: E costumas falar com ela?
I: Sim, ela quer que eu todo o dia falar com ela. Mamã tem reforma…como estes
velhotes… Eu queria ajudar mamã, ela é sozinha e eu também quero minha mãe como
cozinheira. Quando era pequeno “Mamã faz isto.” E ela faz. Só que ela como general,
ela gosta de mandar, general “Faz isto, faz aquilo, vai lá, vai ali” e eu não muito
gosto…antes quando pequeno tudo bem, agora não… [risos]
M: Além da tua mãe, por exemplo outras relações que mantenhas, por exemplo, aqui no
Refeitório, por exemplo, tens amigos? Ou só pessoas que pronto conheces?
I: Conheço…
M: Mas amigos não?
I: Amigos…acho que não.
M: Só pessoas com quem, pronto, falas um bocadinho…
I: Hmhm [acenou que sim com a cabeça]
M: Partilhas o almoço quando estão ali e pronto.
I: Mais ou menos como amigo mas amigo amigo acho que não tenho. (…) Eu quero
uma amiga. [risos]
…
M: Como é que tu sentes que os portugueses e as pessoas que andam aí na cidade se
relacionam contigo? São simpáticos? Sentiste-te bem acolhido quando chegaste cá?
I: Hum…sim, tudo normal…hum…simpáticos…mentirosos, simpáticos e mentirosos
[risos]
M: Mas porquê mentirosos?
I: Porque eu descobrir muitas mentiras, muito falso…
M: Mas são…pensas que são pessoas que acolhem bem neste espaço?
154
[pausa porque tocou o telefone]
…
I: Eu, último trabalho trabalhar um ano e não resultar, ou trabalhas ou não trabalhas é
igual, mais ou menos.
M: Mas porquê?
I: Porque… [pausa]… Porque melhor não trabalhar ou trabalhar depois para ganhar para
comprar isto ou aquilo…e trabalhar não…
M: Não ganhas o suficiente, por isso não vale a pena, é isso? É principalmente isso?
I: Humhum [acenou que sim com a cabeça]
M: Como é que tiveste acesso ao Refeitório?
I: Já foi quatro anos atrás mais ou menos. Quatro ou cinco…ah eu lembro! Meu amigo
ele disse tem jesuítas e eles podem arranjar um trabalho. Eu foi lá falar com eles e
depois eles dizem nós ter refeitório, nós tem um centro e depois eu viver lá no Centro
Pedro Arrupe…um amigo, vocês conhece esse amigo, ele às vezes vem aqui o Igor
Medveno (?), assim um grande, gordo e este amigo ele mostrou-me primeira vez as
jesuítas, que ele morar Caldas da Rainha, depois imigrar para Lisboa e Lisboa encontrar
eles. Ele viver metro Rato, albergue ou assim, e eu lá em cima pensão Amoreiras.
…
E depois jesuítas dizer que nós podemos comer aqui e lá primeiros meses
ajudaram pagar passe também, depois eles dizem que não têm finanças, não tem
dinheiro, não há finanças.
…
Só no início [é que ajudaram] e depois só ajudaram quem mora no Centro Pedro
Arrupe eles também ajudam mas já não…só ajudar um pouco.
…
A minha problema é que eu percebo bem, a falar…eu não gosto…só gosto da
minha língua. Não preciso de pensar para falar, para falar assim… (…) Em línguas
estrangeiras tem que pensar como falar mas… (…)
…
155
Não é Irmã Celeste e eu roubar comer no Lidl [risos]. (…) Se não Irmã Celeste
onde é que nós arranjar comer? Roubar, trabalhar não há ou não… Eu acho que bom a
Irmã Celeste arranjar comer.
…
Eu à noite às vezes vou a uma igreja à Campo Pequeno…é uma branca, essa
igreja à noite, depois das dez mais comida. Tem muita…eles trazem dos restaurantes,
dos cafés e dão saco bolos, saco salgados, sopa, muita coisa e se eu trago uma caixa que
eles lá não têm muito caixas vazias, eles pedem pessoas trazer caixa vazia para eles
meterem comida. Mas…para mim salgados e bolos já chega.
M: Como é que tiveste acesso à igreja e à comida da igreja?
I: Amigos, amigos ucranianos.
…
M: Tens algum tipo de experiência que tenha sido mais importante cá em Portugal?
I: Humhum [acenou que sim com a cabeça]. Uma grande experiência que passar 17
anos e Portugal não tem seguro, não, segurança social não tem…e polícias, polícias
falar e pensar mal: a polícia quando chegar ao pé de mim eles fazem cara mal, voz mal e
eu sei que eles pensar mal e eu não muito gostar. E médicos também, médicos, médico
em Portugal corta perna, braços e ainda ganha medalhas…médicos, polícia fazem o que
quiseres aqui em Portugal… Tem três problemas em Portugal que é a pobreza, é polícia
e médicos.
…
As coisas positivas…é o resto é tudo positivo (…), pessoas… (…) boas pessoas
[risos].
M: Achas que a cidade de Lisboa é de fácil acesso, ou seja, consegues descobrir
facilmente onde é que estão as coisas…?
I: Sim, não difícil. Primeiro meses eu desorientado, pessoas falar vai ali e eu um pouco
desorientado, depois passou dois, três meses e é fácil.
M: Tu já sabias falar português quando vieste para cá?
I: Niene. [risos] (…) Eu aprender com patrões quando falar e português patrões
ensinaram a falar. O primeiro patrão, ele é um pouco mafioso bandido [risos], ele disse
156
“eu vou-te pagar pouco porque tu não falas português e eu digo “ok eu quando falar
português, ordenado um milhão” [risos]. E na escola também não gostar línguas. (…)
…
Lá [Ucrânia] não todos os sítios com problemas tem sítios onde poucas pessoas e
só montanhas e eu quero…antes eu queria viver à Crimeia, agora Crimeia já é russa mas
agora se eu vou à Embaixada da Rússia eu posso ter passaporte da Rússia, os russos dão
passaportes para ucranianos. (…) E ao contrário não, se um russo quer um passaporte
ucraniano não, caput.
…
SEF…acho que fácil [acesso], acho que não muito [complicado], mas pessoas
que trabalham lá no SEF um pouco… [fez gesto sinónimo de malucas] (…) porque
muitos trabalham, muitos estrangeiros, muitos moldavos, ucranianos, russos, africanos,
tudo… e foi uma moldava, uma mulher moldava um pouco estragar a legalização:
aquela altura eu foi SEF com dinheiro, com contrato de trabalho, com minha mãe,
minha mãe estava cá e eu poder fazer residência só que não fiz porque ela disse que não
posso fazer por faltar um papel simples e…não sei…com amigos é outra coisa, para
mim tudo por lei, tudo…
…
Lá [na Ucrânia] a minha mãe e…eu gosto de sentir não como estrangeiro.
Ucrânia é minha casa e todas as pessoas não olhar para mim como imigrante, como
estrangeiro, como…eu sente em Ucrânia melhor do que aqui, aqui muitas vezes sente-se
mal porque eu é ucraniano e esse é problema para as pessoas, para os pretos, para os
portugueses, muitos portugueses dizem “vocês roubam nossos lugares de trabalho e
vocês bebem álcool e fazer mal e…”
…
E uma coisa: Portugal não é… [pausa à procura da expressão] pessoas não
ganham bem e depois muito pessoas zangados, tipo Brasil tudo bandidos [risos] ladrões.
Mas aqui não, aqui pouca mas aquele nível da… [pausa à procura da expressão]
financeiro é faz mal aos imigrantes também, muitos stresses.
…
Sinto como imigrante.
157
…
Para mim bom é viver na Ucrânia, não chatear ninguém… (…) e Ucrânia, eu
gosto da Ucrânia, tem pessoas boas (…) e pessoas más.
Anexo 7: Excertos da entrevista ao senhor Mário
Mariana: Então primeiro queria saber idade, nacionalidade e local onde vive.
Senhor Mário: Tenho 59 anos, moro na Quinta dos Barros, pertenço ao Campo Grande,
Lisboa.
M: Profissão ou última profissão que teve?
Sr. M: Eu era vendedor. Fazia feiras e mercados. Só que depois isto está muito mau, eu
deixei por completo.
M: Então agora…
Sr. M: Atualmente não estou a trabalhar mas já fui várias vezes à procura e está mesmo
difícil sobre o trabalho.
M: Como é que poderias descrever o teu dia-a-dia?
Sr. M: Eu passo os dias realmente…às vezes encontro-me com um colega ou com outro
eu sou assim uma pessoa muito reservada nesse aspeto, convivo com as pessoas mas
estou assim um bocado…sou um bocado meio reservado, é já de…
M: Sim, personalidade mesmo.
Sr. M: Sim, sou uma pessoa muito fechada. Fechada, isto é: eu custo fazer amizade, mas
quando mantenho uma amizade é pura e é sadia.
M: E fica.
Sr. M: E fica, só que às vezes eu fico dececionado.
M: Então não tens nenhum tipo de rotina, ou seja, antes de vires ao Refeitório como é
que é, depois de vires ao Refeitório vais para onde, fazer o quê?
Sr. M: Aaaaah convivo com um colega assim, às vezes vou à Ameixoeira, outras vezes
vou às Galinheiras. Convivo, passo o dia-a-dia, ou entretenho-me num café ou…não,
bebidas alcoólicas não…não bebo, é muito difícil. Não quer dizer que às vezes não me
junte com um amigo ou outro mas…passo o dia no café, assim a ver televisão, mais a
passar o tempo.
158
M: Antes de viveres onde estás agora aonde é que vivias?
Sr. M: Eu vivia no Pote de Água no Campo Grande, na parte de Alvalade, era no Pote
de Água. Mas depois como surgiu a Câmara Municipal de Lisboa que o bairro ia abaixo
então muitas pessoas saíram de lá, incluindo eu e outras mais, e fomos morar ali para a
Quinta dos Barros. Mas o bairro ainda continua lá…
M: Vocês é que tiveram que ir embora?
Sr. M: Sim mas estou bastante arrependido.
M: Porquê?
Sr. M: Porque ali eu tinha mais liberdade em todo o sentido. Tinha casa rasteirinha, pré-
fabricada, quer dizer, o terreno não era nosso, era da Câmara. Mas eu tinha outra
liberdade que não tenho aqui. Mas enfim…mas não sou só eu que estou arrependido,
muita gente que saiu.
M: Também por causa disso da liberdade?
Sr. M: Liberdade e a gente, uma hipótese, ali nós não podemos assar como…um peixe
assim à porta ou descemos cá abaixo, acho que já incomoda a vizinha do outro lado,
incomoda o outro. É totalmente diferente porque ali onde eu morava eu tinha a minha
privacidade, num certo sentido, que eu podia, uma hipótese, assar um peixe assim num,
é uma hipótese, que eu tinha um estacionamento para parquar, e nós, quem diz eu diz as
outras pessoas em si que moravam também, a gente assava o nosso peixe mas tinha
outra liberdade totalmente contrária, não tem nada a ver.
M: Diariamente, que objetos tem consigo que diga que são seus e importantes para si?
Sr. M: Olha…isso é uma coisa que…eu use, assim uma hipótese, talvez venha cá
noutra…olha os meus objetos que me faz falta é haver lume, que eu fumo, então isto é
assim, e outra coisa não me…mais nada, a sério.
M: Vive sozinho?
Sr. M: Sim, sim, sim, a minha mãe já…[pausa; o sr. M emociona-se ao falar da mãe e
demora algum tempo a conseguir continuar a falar] faleceu-me há…há uns oito
meses…[mudança no tom de voz que ficou mais baixo porque o sr. M ficou comovido]
atualmente vivo sozinho na casa da Câmara que arranjei. Tenho família mas cada um no
seu canto.
159
M: Vocês não falam?
Sr. M: Aaah…falamos mas é uma coisa muito…um bocado distante…e eu também sou
uma pessoa que eu tenho, tenho…sou orgulhoso, sou, não vou dizer que não. Sou
orgulhoso e eu não gosto…eu gosto que as pessoas me tratem…como eu realmente
mereço, porque eu sou uma pessoa muito boa, mas às vezes eu fico dececionado, é
como eu lhe digo que eu…eu sou uma pessoa que eu entrego muito o meu coração, até
às pessoas que nem merecem, é verdade, são da minha família mas eu ter família ou não
ter para mim é-me igual.
M: Sempre foi assim?
Sr. M: Não. Desde que a minha mãe faleceu mas assim eu lido com toda a gente mas eu
sou assim uma pessoa um bocado fechada, não vou dizer que não mas eu não sou
desconfiado. Eu sou uma pessoa que quando eu crio uma amizade com uma pessoa eu é
puro, eu é puro e entrego-me muito àquela pessoa. E…às vezes eu saio dececionado.
Mas nem todas as pessoas são iguais, não é?
M: O local onde vives fica relativamente perto dos locais onde vais diariamente? Ou
tens de andar muito?
Sr. M: Olha, principalmente para vir aqui, é um bocado distante. Muitas vezes vou lá a
um cafezinho ou coisa assim, as farmácias também são perto, o Pingo Doce é um
bocado mais distante, um bocadinho mais distante mas enfim…
M: E fazes o caminho a andar, de transportes?
Sr. M: A andar. Eu quando venho para aqui venho a andar. Sim, até me faz bem, não é?
Porque eu gosto de andar um bocadinho também.
M: Como é que pensa o futuro? Ou seja, daqui a 5 anos, o que é que queria que
mudasse, que permanecesse?
Sr. M: Eu queria era sim que uma das coisas que eu queria era que eu conseguisse
arranjar trabalho. Era a coisa que eu mais desejava. Porque…era uma coisa que eu
preciso porque dependendo de um rendimento mínimo que eu ainda não tenho, eu estive
a falar com a assistente social e eu preferia ter um trabalho do que estar a pôr esses
papéis para o rendimento mínimo e essas coisas eu não, não gosto disso porque eu isso
um dia mais tarde acaba e o trabalho eu realmente para a minha idade isto está um
bocado muito difícil…do que eu gostava mais era o trabalho, principalmente na área
160
que eu mais ou menos entendo, não é? Porque a minha vida era feirante, de vendas,
comprar e vender, porque eu trabalhava para mim próprio. Pronto, eu trabalhava para
mim próprio. Só que…é como eu lhe digo, eu gostaria que isto, que o dia-a-dia se fosse
melhorando mas não tenho muita esperança. Conforme eu vejo, eu não tenho, quer dizer
e a mais eu estou-me a referir à minha idade, não sei, para muitos mais jovens há uma
esperança, não é? Pronto, eu vejo pessoas com estudos, com estudos mesmo, já
formados e não conseguem arranjar realmente aquilo que eles são, ou tentam conseguir
e isto está muito difícil, está muito difícil. Eu converso com muitas pessoas, pessoas
com formação já e não conseguem arranjar nada, porque isto está muito…e não sei se o
dia de amanhã melhora, mas eu não acredito muito, eu não acredito muito.
M: Que outras relações mantém? Ou seja, amigos, conhecidos? Aqui no Refeitório tem
amigos, são só conhecidos?
Sr. M: Mariana, eu amigos não tenho, tenho conhecidos, porque quem mais eu confiava,
quer dizer, confiava, isto é, quem eu mais pensava que eram meus amigos quando eu
andava nas feiras e tinha dinheiro, para beber um copo com um amigo ou outro e haver
um convívio e eu pensei que eram meus amigos e não eram… O amigo que eu tinha no
bolso é que era o amigo deles, que eles me consideravam como amigo. Então hoje eu
não tenho amigos, tenho conhecidos. Sempre há aqueles conhecidos que a gente tem
uma certa…mas amigo mesmo amigo não tenho. Porque a vida me fez ser assim,
porque eu tive tantas experiências na vida que os meus amigos de antes tinham, não me
largavam de noite e de dia… […]
E realmente quando eu comecei a entrar em decadência, derivado à minha vida
em si, nas vendas, quem eu pensava que era uma pessoa meu amigo ou minhas amigas
foi quem me abandonou. […]
M: E aqui no Refeitório como é que são as relações mantidas?
Sr. M: Muito à superfície, converso mais ou menos assim, brincadeira mas uma
brincadeira saudável, uma brincadeira com respeito mais com o Francisco, o pessoal,
mas geralmente é com o Francisco que conversamos assim mais, mas é uma coisa assim
passageira mas não é toda a gente, como é normal, mas como se diz o outro não dou
muita confiança porque eu já vi mais ou menos que não se pode, eu gosto muito do
respeito.
161
M: Qual é a importância do Refeitório para si? Ou seja, haver aqui este espaço que dá
almoço, que acolhe…
Sr. M: Sim, sim, sim, eu acho muito importante isso, para mim foi muito bom.
M: Como é que vieste cá parar?
Sr. M: Foi intermente a assistente social, foi quando faleceu a minha mãe, porque eu
malamente sei cozinhar, sei fazer uma salada, os outros comeres eu não sei, não quer
dizer que não esteja família minha que me convidasse para eu ir almoçar e jantar mas
eu…é como eu lhe disse, eu sou muito orgulhoso. Prefiro comer fora porque ao dia de
amanhã podem-me jogar na cara e aqui nunca me jogam na cara. Eu sou assim, eu
penso assim, não sei. […]
Porque aqui, eu venho aqui comer mas geralmente é só almoço, o jantar eu
assim à noite sempre faço qualquer coisa, pronto. E eu aqui sinto-me à vontade, tratam-
me bem, com respeito, sem racismo – que isso foi uma das coisas que eu já reparei, eu
conforme entrei aqui para mim fui tratado como toda a gente ou negro ou preto, seja lá
quem for, ou branco, foi uma das coisas que eu reparei, são todos tratados de igual, aqui
não há distinção e isso para mim foi, eu sinto-me bem aqui, a sério, sinto-me. E nas
pessoas que realmente, as assistentes e as moças que ajudam aqui, também é
sensacional. […] Das pessoas que realmente vêm aqui ajudar só tenho bem a dizer. São
pessoas sensacionais, que nos servem com um sorriso na cara e isso é importante,
podem ter os seus problemas do dia-a-dia como normal, qualquer pessoa tem, mas
quando chegam aqui tratam toda a gente. […]
M: A que outras instituições ou serviços é que recorre?
Sr. M: Só aqui.
M: […] Muito bem, agradeço desde já.
162
Anexo 8: Excertos da entrevista a Yassine
Mariana: Queria perguntar a idade, nacionalidade e o sítio onde vive.
Yassine: Idade tenho 31 anos, sou de nacionalidade marroquina, vivo na rua Gualdim
Pais, no centro.
M: Profissão.
Y: A minha profissão lá em Marrocos é reparação de eletrodomésticos e refrigeração, ar
condicionado. E cá é teto falso, fazer gesso.
M: Muito bem. Quando e como é que veio para Portugal?
Y: Venho 2005.
M: E porquê?
Y: Vim para procurar outra vida.
M: Que lá estava difícil?
Y: Não, eu queria sair mesmo de lá, não é estar difícil, é o que tinha lá, tinha lá trabalho,
tinha lá a minha oficina mais o meu primo, tás a ver? Só que eu queria sair de lá, pronto,
já estou farto de estar lá.
M: Mas porquê?
Y: Queria ver outros países, para saber o que é que é a Europa, tás a ver?
M: E quando chegaste cá já tinhas trabalho ou tiveste que arranjar e começar tudo do
início?
Y: Não…eu tive cá…eu tive cá numa situação difícil… [baixou o tom de voz]
M: Então?
Y: Quando vim para aqui não venho, venho num camião, ilegalmente, tás a ver? Sem
pagar sem… Depois fiquei aqui cinco anos sem documentos sem nada. Tive apoio de
uma instituição que me ajudou a tratar dos documentos e ajudou-me também a ficar lá
num centro de formação profissional de carpintaria.
M: E que instituição foi essa?
Y: Foi uma instituição em Castanheira de Pera, perto de Pombal, Leiria.
163
M: E eles ajudaram-te então com os documentos, com o trabalho…
Y: Sim, sim, sim, sim, sim, ajudou-me muito, a assistente social chamada doutora Carla
ela que me ajudou muito, agradeço muito a ela.
M: Como é o seu dia-a-dia?
Y: O meu dia-a-dia é procurar trabalho, acho que neste momento já tenho trabalho no
final do mês, a empresa é portuguesa só que vai abrir fora, vou trabalhar fora de
Portugal, estrangeiro.
M: Mas então já tens trabalho?
Y: Vamos ver! [risos] Eles disseram que quando sair documento – porque renovei, fiz a
renovação – quando sair vem cá e nós vamos ver se tu vais lá para França, agora ainda
não está a 100%, ainda só está 70%.
M: Ok, é esperar então.
Y: É esperar até ao final do mês.
M: E depois vens cá ao Refeitório e a seguir?
Y: Não, agora quando começar a trabalhar já não vem, porque eu, antigamente, eu vinha
para aqui, só que comecei a trabalhar prontos […].
M: Como é que poderias falar do sítio onde vives? Da casa, do espaço onde vives?
Y: Onde que vivo é…um bocadinho complicado, tem muitas pessoas, tás a ver? Não
tens aquela liberdade…
M: E no país de onde vieste, tinhas essa liberdade?
Y: Claro que tinha! Tinha a minha casa, tinha os meus pais, tinha, tinha família à volta
de mim se precisava alguma coisa eles ajudavam, tás a perceber? Aqui…aqui também
ajudam pessoas [risos] estão a ajudar também.
M: Vives sozinho cá?
Y: Sim, sou solteiro.
M: E o sítio onde vives é perto dos sítios onde tens de ir diariamente?
Y: Não, é muito longe, é Xabregas.
M: Ok e vais aos outros sítios de transportes? A pé?
164
Y: Venho a pé, saio lá de Xabregas, vou calmamente dar uma volta ao jardim e depois
venho aqui a pé, devagarinho, quando chegar aqui é 11h30, 12h, já está.
M: Muito bem. Como é que pensa o futuro? Como é que gostava de estar daqui a 5
anos, por exemplo?
Y: Daqui a cinco anos gostava de ter filhos e uma casinha e um trabalho, não é? E uma
mulher também. Isso é que eu gostava de ter mesmo daqui a cinco anos. [risos]
M: Há bocado falou da família. Costuma falar com eles…
Y: Sim. Costumo, eu não… eu tenho contacto sempre com eles, no Facebook, no
Whatsapp, no telefone… Não é diariamente mas por exemplo uma vez por mês tem que
ou duas vezes por mês tem que saber notícias, principalmente a mãe, não é? A mãe é
que é mais…
M: Que outras relações mantém? Tem amigos, conhecidos cá…
Y: Sim, sim tem. Tem muitos amigos cá também, amigos, conhecidos.
M: E aqui no Refeitório, as pessoas são suas amigas, são conhecidas, tem…
Y: Não tenho queixa de ninguém.
M: E tem amigos cá?
Y: Tenho lá de minha casa, sempre estamos juntos.
M: Como é que teve acesso ao Refeitório? Como é que descobriu o Refeitório?
Y: O Refeitório foi através do Mohamed (Jallah), Mohamed é que me mostrou, depois
foi à doutora, lá ela me escreveu uma carta para a Irmã, poder vir cá.
M: É importante que exista este espaço aqui? Onde pode almoçar, tomar banho…
Y: Sim, existe para mim como existe para todas as pessoas, porque não se sabe o que
vai acontecer no dia de amanhã, não é? Pode…como eu que estava a trabalhar e depois
de repente acabou e já está. Se não for isso…
M: E a chegada a Portugal, a habituação à língua e tudo o mais, foi fácil?
Y: Sim, para mim foi fácil, sabe porquê? Porque eu estive num meio pequeno, numa
aldeia, numa vila, tás a perceber? E eu lá tive sempre ouvi portugueses, nunca falei
árabe com ninguém, nunca falei francês com ninguém, sempre só português. Por isso
que eu adaptei mais rápido. E aprendi também. E aprendi lá, aprendi na formação
165
profissional que eu estava a fazer que a doutora integrou num centro de aprendizagem
para nós e de carpintaria. Eu estive lá cinco anos, até quando tive documentos,
depois…fui embora. Eles depois arranjaram trabalho, arranjaram trabalho durante um
ano e meio e foi-se embora. Deixei caducar a residência, três anos e eu nunca soube.
Não sabia como é que se tratava, tás a ver? Porque não fui eu que tratei, tás a ver? Eu
descobri quando vim para aqui, quando vim para aqui para Lisboa é que depois comecei
a saber como é que as coisas funcionam, porque quando entrei aqui vi outro mundo.
Porque nunca vivi aqui em Lisboa, sempre vivi lá.
[…]
Era mais simples, ajudam-se uns aos outros, tás a perceber? Se precisares de alguma
coisa peço.
M: Em Lisboa estavas sozinho [risos]
Y: Estava, estava, quando entrei aqui foi…
M: E é fácil descobrir onde é que são os sítios em Lisboa onde tens de ir tratar dos
documentos e essas coisas?
Y: Agora sim, agora sim, agora já tenho tudo.
M: Consegues orientar-te bem em Lisboa?
Y: Sim, agora sim. Primeiro mês e segundo mês já deu.
M: Há alguma outra instituição a que recorras?
Y: Não, se não for esta é a Santa Casa.
M: E também foi assim porque descobriste?
Y: Sim, através, tudo que descobri, através do SEF, porque senão já vou para o meu
país...Quando vivi quase dois meses, quando falei para ele depois começou a mostrar
essas coisas.
M: E pronto é isto, muito obrigada.
Y: Nada, nada.
166
Anexo 9: Excertos da entrevista a Jallah
Mariana: Então, queria primeiro saber a idade, a nacionalidade e o sítio onde vives.
Jallah: Idade (…) 44.
M: 44?
J: Sim, 44.
M: Nacionalidade?
J: Marrocos [risos].
M: Muito bem e onde é que vives atualmente?
J: Antes abrigos, agora vivo…na rua. Antes Vitae, um ano Vitae.
M: Profissão?
J: Prédios, obras… (…)
M: Ok, quando é que vieste para Portugal? Há quanto tempo?
J: Há quanto tempo? Em outubro de 2015 entrei aqui.
M: 2015?
J: Sim, 2015, outubro, Vitae.
M: Ok. E porque é que vieste para cá?
J: É para cambiar a vida, trabalhar, porque em Marrocos menos um
pouco…complicado…tem trabalho lá pero não ganhar… Cambiar a vida mesmo…
M: E foi fácil chegar a Portugal?
J: É complicado, não é fácil. Pessoa toda que está em Marroco quer chegar aqui é
complicado.
M: Sim, não é propriamente fácil.
J: Se paga dinheiro, se não paga pode vir com camiões e é complicado…
M: Quando chegaste cá já tinhas trabalho?
J: Hum não, trabalho publicidade…
M: Depois acabou?
167
J: Sim.
M: Como é que é o teu dia-a-dia?
[Jallah faz cara de quem não entendeu a pergunta]
M: Como é que é a tua rotina, o que é que fazes durante o dia? De manhã…
J: Nada, sim como sempre: vai passear um pouco, depois vem à Irmã e aqui come,
janto, depois vai passear e arrumar e um pouco, como sempre…
M: Vais passeando.
J: Sim, em toda pessoa é igual [risos] é complicado… [pausa] Um dia vai às bibliotecas,
um dia…cambiando…
M: Gostas de ir à biblioteca?
J: Sim.
M: Gostas de ler?
J: Sim. Entendo tudo: entendo francês, espanhol, posso ler tudo.
M: Vives sozinho?
J: Sim, passar sozinho, com amigos um dia.
M: Depende.
J: Sim depende.
M: E antes, em Marrocos, como é que era?
J: Família. Sempre com família.
M: O sítio onde estás agora a dormir é perto dos outros onde tens de andar durante o
dia, onde vais passeando, do Refeitório, ou não? Tens de andar muito ou é perto?
J: Não, não, […] é centro de Sete Rios, pero sempre passear, sempre ter de passear
dentro de…
M: Então estás em Sete Rios?
J: Sim.
M: E vens daí por aí adiante, vais andando…
J: Andando, vou passeando, um dia vai para metros, outro dia vai para autocarros…
168
M: Como é que tu pensas o futuro? Como é que gostavas que fosse daqui a 5 anos, por
exemplo?
J: Que pensava…Pensa que trabalhar, casado, cambiado e muita coisa…
M: Em Lisboa?
J: Sim, me gusta aqui, é melhor. Aqui Lisboa é bonito e melhor.
M: Então casado, com trabalho, uma casinha.
J: Sim, como toda pessoa. [risos] Pensando casa, trabalho e vá um pouco para Deus
grande. Pouco, pouco. Quando eu tiver um trabalho pode fazer tudo isso. Sem trabalho
é complicado.
M: Há bocado falaste que vivias em família, ainda manténs relação com eles? Falas com
eles?
J: Com família? Sim. É um dia se marca, se lhama, dois dias…quando ter dinheiro fazer
um recadito, mais a irmã como sentam…
M: São uma família grande?
J: Sim, somos 5 [risos], quatro irmãos, não duas irmãs e três irmãos. Sou o segundo, um
irmão mais grande.
M: O segundo dos mais velhos?
J: Sim, segundo.
M: Além da família, tens outro tipo de relações? Amigos…cá em Lisboa?
J: Sim, tenho amigos aqui, em Espanha, França, Marrocos.
M: Já estiveste em Espanha e em França também?
J: Sim.
M: A sério? Quanto tempo?
J: Espanha dois anos, um, dois anos. França dois anos e meio, três anos.
M: E foste para lá porquê?
J: Procura mais trabalho. Espanha onde trabalhar, pero depois já tem amigos lá, ligam
para mim não pode trabalho. Trabalho em Toulouse anos, depois torno a Marrocos e
depois vem a Portugal.
169
M: Então foste de Marrocos para Espanha e França e depois voltaste para Marrocos e
depois vieste para cá.
J: […] é complicado para trabalhar, tem muitos marroquinos lá pero é complicado para
trabalhar lá…
M: E aqui no Refeitório, tens amigos ou só conhecidos?
J: Só conhecidos, não é amigos, aqui não tenho ninguém. Quando cheguei aqui não
sabia nada depois começo a conhecer um aqui, um aqui, quando chegar em França tens
amigos e em Marrocos também tenho família, aqui não…
M: Ainda não, ainda podes ter? Podes conhecer amigos?
J: Sim, sim, sim tem sempre a ver com a nossa imagem e com o nosso exemplo, quando
está fora conhecer sempre alguém, portugueses, franceses é igual, não tenho problemas.
M: Tu percebes tudo?
J: Percebo. Como aqui, não tenho problemas, gosto de todos e uma pessoa boa, gosto de
todos e falo com todos.
M: Muito bem. Como é que tiveste acesso ao Refeitório? Como é que descobriste que
havia aqui este Refeitório?
J: Em Vitae, quando estava em Vitae a dormir, aí doutora e mandar-me para aqui,
doutora Francisca, ela é que mandar.
M: E há quanto tempo é que vens cá?
J: Desde quando entrar em Portugal, um ano, seis meses. Segunda vez quando voltar de
Vitae mandar vir aqui e depois sempre com mesmo dia como aqui. Que 2015, final
2015 sempre aqui.
M: É importante que exista o Refeitório? É importante que haja este espaço?
J: Importante? Verdade como família, se dá comida para nós, é verdade, muita coisa,
por aí, dá muita coisa, coisa para a Irmã complica, porque sempre dá coisa, comida,
verdade, como Irmã, como todos mais sim, eu gosto é verdade tenho amigos aqui, um
dia não venho aqui sempre diz “ah como está amigo?”. Toda a gente é boa, a Irmã,
muito obrigado.
M: Há alguma outra instituição onde tu vás? Outra instituição, outro sítio em que te
ajudem, outros serviços?
170
J: Que me ajuda não, não. Eu fui um dia, Gerês, sim eu fui dois meses lá, depois lá para
escola e dizer vais esperar porque está muitas pessoas lá, não fui mais. Um dia Santa
Casa, em baixo, Cais Sodré lá, só um mês, dois meses…
M: Não gostaste dos outros sítios? [Jallah acenou que não] Preferes aqui?
J: É, gostar aqui, vir para comer, sentar com amigos, […] noutros sítios não…
M: Não é bom ambiente? [Jallah acenou que não]
...
M: Está abafado?
J: Tenho três roupas.
M: Para aguentar o frio à noite?
J: Não, está bom, está num sítio bom.
M: É onde?
J: Sete Rios.
M: Sim mas…
J: Um pouco, cinco minutos, está em centro, sim, tranquilo [risos].
M: Ok, muito obrigada.
J: Nada.
171
Anexo 10: Excertos da entrevista à Susana
Mariana: Então eu queria começar por perguntar a idade, a nacionalidade e o local onde
vive.
Susana: Então tenho 23 anos, sou de Lisboa e moro em Alvalade.
M: Profissão ou última profissão?
S: Estou a tirar um curso de assistente administrativa.
M: Como é o teu dia-a-dia?
S: O meu dia-a-dia é: saio de casa para o curso, para o curso para aqui e depois tenho o
ginásio também à tarde e depois para casa.
M: Sempre viveste em Alvalade?
S: Não.
M: Antes era onde?
S: Antes era em Moscavide.
M: E mudaste por algum motivo especial?
S: Mudei porque a casa onde eu estavam em Moscavide com os meus pais foi para
obras, então viemos morar para Alvalade.
M: Muito bem. Vives sozinha?
S: Não, vivo com o meu esposo e com os meus pais.
M: O sítio onde vives fica perto do curso e daqui do Refeitório?
S: Fica.
M: Então não tens de andar assim muito.
S: Não, para o curso apanho o autocarro e para o Refeitório venho a pé.
M: Além do Refeitório recorres a mais algum tipo de instituição ou de apoio?
S: Não.
M: Só aqui. Estás cá há quanto tempo?
S: Aqui? Não me lembro…
172
M: Há anos?
S: Não.
M: Meses?
S: Meses. Comecei este ano.
M: E como é que descobriste que havia aqui este espaço?
S: Foi através de uma assistente social. […] Porque eu e o meu esposo estávamos a
passar por uma situação em casa da minha mãe, então a gente fomos falar com o
assistente social e o assistente social falou com a Dra. Carla e a Dra. Carla…
M: Encaminhou-vos para aqui. Muito bem, como é que pensas o futuro, ou seja, como é
que gostarias de estar daqui a cinco anos?
S: Com o meu trabalho, com a minha própria casa, com o meu próprio trabalho e…ter
uma família realizada, isto seja, com o meu esposo e com o meu filho.
M: Já tens filhos?
S: Já.
M: Quantos?
S: [a sorrir] tenho um.
M: Com que idade?
S: [a sorrir] três aninhos.
M: Além dos teus pais tens mais família?
S: Tenho. Tenho dois irmãos, tenho os meus tios, primos.
M: E costumas falar com eles diariamente ou de vez em quando?
S: Com os meus irmãos sim mas com os meus primos somos primos afastados.
M: Além da família tens amigos, tens outro tipo de relações?
S: Sim tenho amigos lá no curso tenho.
M: Ok, então é um pouco à base de, o teu dia-a-dia e tudo isso, é um pouco à base de o
curso e os amigos do curso, o ginásio, aqui no Refeitório tens…
S: E o meu esposo. Ah tirando as visitas do menino! Estar com o meu filho também!
173
M: Qual é a importância que este refeitório tem para ti?
S: Eish… [risos] Então importância ao nível de quê?
M: Ou seja, se encerrasse o Refeitório?
S: Ah pois tipo acho que ia fazer muita falta porque o Refeitório ajuda muitas pessoas,
as pessoas que estão a passar dificuldades.
M: Penso que é tudo, obrigada!
S: De nada.
174
Anexo 11: Excertos da entrevista ao Paulo
Mariana: Queria saber idade, nacionalidade e sítio onde vive.
Paulo: E o nome não é preciso?
M: Não. […]
P: Idade tenho 24 anos, moro em Lisboa, zona de Alvalade.
M: Nacionalidade?
P: Portuguesa.
M: Profissão?
P: Desempregado mas a depender de biscates, o que aparece às vezes, por exemplo:
mudanças, quintais, tenho também o biscate da NOS que é até ajudar, ir acompanhando
as carrinhas, ajudar a montar os aparelhos em casa a casa, cafés. Tenho só à base de
biscates, não, mas profissão mesmo é desempregado.
M: E antes desse tipo de trabalhos tinhas algum…já tiveste algum tipo de trabalho fixo?
P: Trabalhador nas obras e numa empresa de mudanças, só nesses.
M: Como é que é o teu dia-a-dia?
P: O meu dia-a-dia… O meu dia-a-dia é, além de vir aqui ao Refeitório normal almoçar,
depois tenho as visitas ao final da tarde e depois quando tenho os trabalhos part-time
tenho as horas para fazer os trabalhos part-time, quando não tenho vou resolver
assuntos ou vou à procura de trabalho e depois há dias que também fico em casa, por
isso é que…nunca é certo, nunca é certo.
M: E tu disseste agora que vais, por exemplo, à procura de trabalho durante o dia, como
é que fazes isso? Vais, andas por aí à procura de anúncios?
P: Vou logo de manhã, vou logo, eu prefiro sempre ir da parte da manhã para não ir à
tarde, porque é sempre o que o ditado diz “é de manhã que começa o dia” é de manhã
que tem de se começar.
M: Exato. E costumas ir, por exemplo, a lojas, a cafés…
175
P: Eu vou mais é aos centros comerciais, que os centros comerciais é que costumam
ter…e também vejo no Correio da Manhã e na net, na parte do OLX, na parte dos
empregos, nessa parte assim.
M: Antes de viveres aqui em Alvalade onde é que vivias?
P: Vivia com o meu padrasto e com a minha mãe, na zona de Telheiras, que é onde está
o meu filho agora.
M: E mudaste para cá porquê?
P: Porque juntei com a minha esposa e fiz a vida com a minha esposa e agora estou
aqui.
M: Vou voltar a perguntar, também perguntei a ti [apontei para a Susana que estava
sentada ao lado do Paulo a ouvir a entrevista]: vives então com a tua esposa e com…
P: Com os meus sogros.
M: O local onde vives fica perto dos sítios onde vais à procura de trabalho, por
exemplo, por onde andas durante o dia…
P: Fica mais ou menos um bocado longe, como é aqui em Alvalade e eu vou ao
Colombo, outras vezes vou ao Oriente, só o Campo Pequeno é que fica mais perto mas
o Colombo e o Oriente ainda tenho que apanhar metro e autocarro.
M: E vais então de transportes?
P: Sim.
M: Além do Refeitório, recorres a algum tipo de outra instituição, de apoio, de…
P: Não, só quando preciso de falar com o Dr. Hugo mas isso é para tratar de coisas
normais, tirando isso não tenho outro tipo de apoios.
M: Como é que descobriste que existia aqui o Refeitório?
P: Foi através do meu assistente social, o Dr. Hugo.
M: Estás cá há muito tempo?
P: Ahhh estou mais ou menos mas não sei se já completou um ano ou se ainda não fez
um ano. Eu já estou aqui desde 2016, desde o ano passado, por isso é que eu não sei
se…cheguei perto da altura do verão, não sei se…
M: Estamos a chegar ao verão.
176
P: Pois deve estar perto, por isso é que eu não sei de cor.
M: O que é que pensas do futuro? Como é que tu te vês daqui a 5 anos, por exemplo?
P: Com uma vida melhor, que já possa ter a minha própria casa – ainda estou à espera
de uma casa da Câmara Municipal de Lisboa, ter já tenho, só me falta a entrega da
chave.
M: Como é que se deu esse processo?
P: Isso tive que ser eu a tratar sozinho e com a ajuda também do meu assistente social.
M: Mas falaram com a Câmara?
P: Não, tivemos que ir lá falar com a Câmara, preencher, normal como outras famílias
fazem. Eu agora não sei explicar assim por alto porque também já foi há algum tempo
mas…
M: Então está quase, só falta a chave?
P: Sim, só falta mesmo a entrega da chave. Repetindo aquilo que eu ia acabar: ter a
minha própria casa, ter as minhas próprias coisas, trazer o meu filho ao pé de mim, ter já
um emprego fixo e já ter uma vida melhor – é o que eu espero ainda antes dos cinco
anos que não quero esperar, o mais rápido possível melhor.
M: Muito bem. Então ter o vosso filho com vocês é…
P: É importante.
Susana: É muito importante.
P: E ter um emprego também fixo, também já é outra coisa.
M: Para estabilizar?
P: Já é melhor que andar em part-times.
M: Além do teu padrasto e da tua mãe tens família?
P: Tenho, tenho, a minha família é muito grande, se eu vou falar um por um…mas
tenho família grande.
M: Era para saber se costumas manter contacto com eles, se é tudo tranquilo…
P: Sim, mais com o meu padrasto e com a minha mãe porque estão a tomar conta do
meu filho e com os meus avós da parte do meu pai e com os meus avós da parte da
177
minha mãe. Já o meu pai já não posso dizer que não tenho muitos contactos com o meu
pai, nem com a minha madrasta e com os meus irmãos da parte do meu pai. E com
outras pessoas de família metade também tenho contacto, outra metade não tenho.
M: Em relação a outro tipo de relações, por exemplo, amizades e tudo mais, tens amigos
por aí?
P: Tenho, por acaso tenho muitos amigos. Nas minhas antigas escolas, onde eu passei
no meu curso, não completei o curso de carpintaria ali na Crinabel do Lumiar, nos
trabalhos do dia-a-dia, no próprio bairro, no dia-a-dia…
M: Vais conhecendo pessoas, dão-se todos bem…
P: Vou conhecendo pessoas novas. Aqui no Refeitório também tenho amigos…
M: Sim?
P: Sim.
M: Essas relações são fáceis?
P: Mais ou menos, é preciso é…é ir com calma, é conhecer bem a pessoa.
M: Verdade… Qual é que é a importância deste espaço do Refeitório para si?
P: Para mim é…é importante por causa das dificuldades que eu estou a passar…na casa
dos meus sogros por causa de falta de comida, falta de…de tudo o que é do dia-a-dia,
que coiso, é importante para mim. Depois a minha sogra tem uma coisa que a gente não
se dá muito bem, nega a luz, nega a água, nega o gás, nega a própria comida e por isso é
que…é mesmo… Porque eu se não fosse por causa disso ainda ia-me enrascando como
eu tenho-me enrascado nos tempos antigos mas quando aconteceu isso já tive que pedir
mais ajuda de uma solução ao meu assistente social, o Dr. Hugo, ele arranjou-me para
aqui.
M: E foi simples o processo? Foi só falar com o assistente social…
P: Foi, foi simples, ele depois falou com a Dra. Carla e a entrada foi de imediato, até
viemos logo no primeiro dia. Nós por causa dessas dificuldades é que viemos mais para
aqui.
M: Essas dificuldades não fazem com que vocês precisem de outro tipo de apoio? Só o
Refeitório basta?
P: Claro, o outro apoio é a gente esperar pela entrega da chave da nossa casa nova.
178
M: E aí já são vocês a tomar conta da casa, a gerir tudo.
P: Já as coisas são melhores e também estamos à procura é de um apoio que também
ajude a, mas isso é quando a gente depois tiver a nossa casa nova, para ajudar a equipar
a casa com eletrodomésticos e móveis, isso já temos o apoio daqui e procurar onde há,
para poder ajudar melhor.
M: Sim para ver se agora quando tiverem a casa conseguem de facto ficar
independentes com o vosso trabalho, com a vossa casa.
P: Sim.
M: Muito bem, obrigada!
179
Anexo 12: Diário de Campo
Dia 17.10.2016 – 1ª ida ao voluntariado da Irmã Celeste
Chegada ao terreno às 9:50h, 10 minutos antes da hora combinada. Estava no
refeitório a Irmã Celeste que estava a fazer um refogado e uma sopa; à sua frente tinha
um grande recipiente de macarrão com carne que iria ser aquecido juntamente com o
refogado para “dar mais gosto à massa que não tem sabor nenhum”.
Foi-me explicado pela Irmã onde era a casa de banho que “nós” (pessoas não
sem-abrigo) deveríamos utilizar, bem como a existência de comida de que me podia
servir porque “se vais sair daqui só por volta das 14 horas não queremos que te dê uma
fraqueza”.
A Irmã estava ocupada entre a função de preparar tudo para o almoço (mexer a
sopa, mexer o refogado, cortar melão, cortar pão) e a lavagem dos tupperwares (“Aqui
usa-se muitos tupperwares porque temos de conservar a comida porque não se pode
desperdiçar comida”).
Um dos temas que foi logo abordado foi a ordem inerente a todo o esquema de
funcionamento do Refeitório: num quadro estava afixada uma folha que mostrava os
voluntários responsáveis por cada dia da semana e por cada fim-de-semana do mês. A
ordem existe também nas tarefas que cada pessoa sem-abrigo desempenha em torno do
almoço: quem põe a mesa, quem põe os pratos direitos, quem atende o telefone.
Ao ver a Irmã tão atarefada perguntei se podia ajudar em algo e fiquei
encarregue da lavagem e secagem dos tupperwares. Eram muitos tupperwares…muitas
máquinas foram feitas…no silêncio.
De notar: há almoços especiais para os muçulmanos que apesar de não exigirem
tal coisa não comem carne quando a refeição é carne, de nenhum animal, pois, mesmo
sendo carne de frango, por exemplo, eles pensam que os estão a enganar e a querer fazer
com que comam carne de porco “disfarçada”.
Para quebrar esse silêncio, a Irmã perguntou-me em que área estava a fazer a
minha tese. Disse-lhe que a minha licenciatura tinha sido em Antropologia mas o
mestrado agora era em Sociologia. A Irmã respondeu que só poderia ser algo
180
relacionado com Antropologia, Sociologia ou a sociedade/o social, tendo em conta a
investigação das pessoas sem-abrigo.
Quase uma hora tinha passado e o Refeitório mantinha-se calmo, ainda sem
nenhum utilizador.
A tarefa seguinte de que me ocupei foi a separação e embalagem de lanches para
as pessoas sem-abrigo: croissants, pães-de-Deus, tranças, pastéis de nata. Também aqui
havia ordem – “o croissant e os bolos maiores vão sozinhos; os mais pequenos
acompanhados”.
Aparentemente tudo tem de estar “a postos” antes dos utentes do Refeitório
chegarem.
Depois dos lanches ajudei a Irmã a pôr o recipiente da comida no forno (“que é
uma coisa boa porque antes era tudo no micro-ondas”), a colocar a sopa em tupperwares
para as famílias carenciadas, e a estender as várias máquinas de roupa que entretanto
fizemos com toalhas, calças, meias, camisolas, cuecas, casacos, tudo. A lavandaria tem
sempre roupa a lavar ou a secar ou por dobrar ou por estender. É o stock onde não só é
deixada a roupa de cada pessoa sem-abrigo para que seja lavada, como também o stock
de peças que possam vir a fazer falta a cada indivíduo.
Por volta das 11:20h chegou o primeiro utente ao Refeitório, um senhor de
origem dos países de Leste que foi tomar banho logo que chegou.
Poucos minutos depois chegou outro senhor que começou a pôr a mesa.
À medida que chegavam tinham de assinar a folha de presenças.
Pouco depois chegou uma senhora para ir buscar comida para a sua família; e
um senhor também para ir buscar comida para a família.
O indivíduo seguinte era o Francisco, responsável por atender o telefone e
manter os pratos direitos. Indivíduo nos seus 30-40 anos, de etnia cigana e muito
conversador; cantava, dizia piadas, fazia imitações de personalidades famosas, falava
mal da publicidade de suplementos alimentares; tem uma considerável cultura geral e
sabe algumas curiosidades científicas/sobre o corpo humano. Interage facilmente
comigo ele e o outro senhor cujo nome penso começar por J e pôs a mesa – Francisco
fala, J ri.
181
Falámos de música; fui apresentada como “uma menina nova para ajudar”.
Houve silêncios, risos e senti que estavam a observar ao pormenor, com algum
desconfiança mas sempre simpáticos, sorridentes, quase acolhedores mesmo… A
pessoa sem-abrigo não é uma pessoa que corte relações e se desvincule. Pelo
contrário, penso ter assistido a momentos de camaradagem, entreajuda,
preocupação/cuidado com o outro, animação, afetividade (incluindo os lugares em
que se sentavam). Foi também notório algumas reações de separação entre o “nós”
(sem-abrigo portugueses) e o “eles”/os “outros” (indivíduos imigrantes), seja a nível
da linguagem (“Isso devem ter sido lá os moldavos), seja a nível espacial (o indivíduo
estrangeiro sentado noutra mesa).
O J tinha fome. Demos-lhe um pouco de pão enquanto não se serviam os
almoços. Francisco gosta de mel e os “moldavos” também (“Comem aquilo como se
fosse chantilly” diz Francisco).
Pouco antes de ir embora chegam mais dois indivíduos. A Irmã fala-me do
relatório de atividades do ano passado. É-me interessante e pergunto se mo pode
fornecer. Vamos para o escritório imprimir o relatório. A Irmã diz-me que eles (sem-
abrigo) são simpáticos, conversadores, calmos, mas muito exigentes seja com a
comida seja com a vez de comer para que não lhes falte o alimento.
É meio-dia, vou embora.
Dia 19.10.2016 – 2ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei à instituição às 11h25. Já lá estava a Irmã Celeste e três noviços –
o Frei Bernardo, o Frei Isaac e o Frei Gustavo. Apresentei-me aos noviços, disse quem
era e o que estava a fazer na instituição não só como voluntária mas também como
investigadora. Conversámos durante bastante tempo sobre vários temas; conhecemo-nos
uns aos outros, quase como se se construísse um elo entre os quatro por estarmos ali
com objetivos semelhantes.
A Irmã disse-me que o “serviço” já estava despachado (portanto a preparação de
tudo antes dos “utentes” chegarem; nova palavra para as pessoas sem-abrigo que
utilizam o Refeitório…) e que me calhava tratar do pão, das caixas e da fruta. Agora
era esperar que chegassem os “utentes” e depois eu poderia fazer a minha “missão” –
penso que esta conversa da minha missão seria numa tentativa de dar um objetivo
à minha presença naquele local.
182
Os primeiros a chegar foram 3 russos: Nicolay e mais dois senhores, sendo que
um não falava português nem inglês e o outro era surdo há 5-6 anos, o que tornou a
comunicação mais difícil.
Nicolay diz-nos que nasceu em 1974 e ri quando percebe que somos todos
“muito novos”.
Durante algum tempo criou-se um compasso de espera pois os senhores russos
estavam entretidos a ver vídeos nos telemóveis deles – É interessante como todos os
“utentes” têm telemóvel, alguns mesmo telemóveis caros.
Enquanto esperávamos apareceu um senhor com cerca de 30-40 anos a pedir
para levar almoço. A Irmã à partida estava reticente mas acabou por dar uma caixa com
almoço. Depois contou-nos que aquele senhor era ucraniano e que tinha pertencido a
uma quadrilha de tráfico de seres humanos e que era uma pessoa má mesmo – Um juízo
de valor um pouco precipitado e demasiado radical para um indivíduo que
aparentemente tentava mudar.
Com o passar do tempo foi chegando o Francisco (com muito boa disposição), o
Mário (que é da etnia do Francisco e que diz que ele canta muito bem; falámos de
música e do gosto por cantar), o António, o Júlio, o Dimutru, o Alex, o Alex, o Igor, o
Catamara, o Issam… Muitos, muitos “utentes” prontos para almoçar mal chegassem as
13horas.
Por volta do meio-dia a Irmã deixou-nos sozinhos para ir almoçar. A nossa
função era manter a ordem, o que não foi muito complicado apesar de irem chegando
cada vez mais “utentes”.
Hoje o almoço é peixe com arroz e a Irmã alertou-nos logo à partida que era um
prato que não tinha muitos adeptos, o que me pareceu estranho e me deixou a questionar
algumas coisas sobre estas pessoas que recorrem ao Refeitório… - Como é que a
pessoa sem-abrigo, mesmo encontrando-se numa situação vulnerável, mantém a
possibilidade de dizer que não gosta ou de pedir um prato especial ou de
simplesmente se recusar a almoçar o que é servido? Como é que inclusive chega a
haver um indivíduo que diz que só foi ali perder tempo, uma vez que a comida não
lhe agradava?
A Irmã avisa-nos que também fará parte da nossa função ter uma resposta firme
se é não é não porque ceder à vontade de um poder levar aos seguintes cenários: a) os
183
restantes também querem que se abra uma exceção e caso não aconteça começa um
conflito; b) alegam ser um ato de racismo; c) alegam ser um ato discriminatório por
causa da sua religião – Sendo de salientar aqui os eixos que alimentam os conflitos no
nosso contexto de estudo.
Quando a Irmã regressou estávamos a ouvir o Francisco cantar em italiano com
uma letra um pouco diferente e a ser incentivado a continuar pelo Mário e o António.
A hora de almoço estava perto. Os olhares estavam no relógio da parede. A
ansiedade era muita.
13horas: a equipa de voluntários aumenta com a chegada das “avós” (a
Margarida e a outra senhora) cada um se prepara para assumir a sua função e a sopa sai
para o Refeitório.
É pedido que os utentes permaneçam nos seus lugares indo nós levar o prato
com sopa à mesa. De início funcionava mas rapidamente a desordem começa: os utentes
apressados levantam-se com os seus pratos nas mãos para serem servidos antes dos
outros. A fome, a pressa e a necessidade de evitar ficarem sem comida faz com que a
confusão comece muito depressa. Eram cerca de 20 homens a tentar chegar à panela da
sopa.
Após ter sido servida a sopa começam os pedidos: pão e piri-piri. Apresso-me a
distribuir o pão, tarefa nada fácil, pois, estando já o prato do pão cheio, continuam a
pedir que ponha mais, tendo eu de permanecer firme no não apesar das suas várias
justificações para receberem mais um pedaço de pão.
O almoço prossegue. Depois da sopa entregam os pratos para serem lavados e
aguardam pelo segundo prato. Com o segundo prato vêm os burburinhos e algumas
caras desapontadas com o menu. No entanto, a ordem mantém-se: comem, falam, riem.
À medida que o tempo passa rapidamente os 20 homens se transformam em 30,
40 homens. Os almoços continuam a sair; a louça a ser lavada; as caixas a serem
lavadas, enchidas e entregues; as conversas, a televisão, os telemóveis – quase nos
perdemos com tanta coisa ao mesmo tempo.
As voluntárias que já conhecem os utentes dizem “ah é o x, é normal” ou “ah lá
vem este ou aquele outra vez” – conversam entre si com um código de linguagem já
criado para falar de alguns utentes.
184
Chega o momento de repor o stock de pão. Lá vou com a caixa do pão de mesa
em mesa e começo a notar olhares, cotoveladas, risos e conversas sobre “a menina” que
“gostou de ti” ou dedos a apontar e segredos e risos. Senti como se fosse eu que estava a
ser estudada, analisada, observada, quase como sendo uma espécie diferente… Se calhar
por não ser freira ou um dos noviços…
Continuámos a servir almoços até por volta das 14h30 quando já não havia o
“prato do dia” e começaram a sair salsichas com arroz que foram sendo rejeitadas por
não ser comida de jeito. Foi já quase no fim que um dos utentes enganou os voluntários
dizendo que ainda não tinha almoçado e acabando por comer a dobrar. Outra situação
interessante foi o facto de um dos utentes fazer questão de dizer “até amanhã” a cada
pessoa da equipa de voluntários. Ainda o facto de ao repetirem trocarem o prato sujo
por um lavado, atitude que foi repreendida pela Irmã; a resposta da Irmã a quem se
queixava das salsichas ser “viesses mais cedo”; um senhor ter mencionado que o pão
preto era para pretos e o pão branco para brancos; haver utentes com uma imagem
muito bem cuidada; ter aparecido um senhor ao qual a Irmã disse que só pode ir ao
Refeitório quem aparece sempre, ou seja, a ideia de ordem mais uma vez; e ainda ter
sido dito, quase num tom de ordem maternal, para um dos utentes ir tomar banho.
Acabando os seus almoços os utentes foram indo embora; aparentemente não
podiam perder tempo. As conversas foram diminuindo ficando apenas cerca de três
utentes que, segundo a Irmã, ficam para arrumar tudo.
14h40 sou dispensada.
Dia 24.10.2016 – 3ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei à instituição às 11h30 e estava lá apenas a Irmã Celeste e um dos
utentes. Comecei por preparar os lanches enquanto a Irmã tratava dos últimos
preparativos para o almoço (tortilha com esparguete) e o utente punha a mesa.
Conhecei o senhor X logo no primeiro dia em que fui à instituição e, uma
semana depois, ainda se lembrava de mim. Soube que se lembrava por causa do sorriso
com que me recebeu; parecia estar feliz por me ver ali.
Um pouco depois chegou o senhor Mário. Vinha a queixar-se de um dente
inflamado e das dores que tinha e parou para me dizer bom dia; mais uma vez parecia
contente de me ver ali tendo vindo falar comigo enquanto eu despachava as minhas
tarefas. Falámos sobre anti-inflamatórios e como deviam ser tomados. Falei-lhe do
185
programa The Voice de ontem porque cantaram a música que o Francisco tinha cantado
na quarta-feira, o que me fez lembrar dele. Ele disse-me que ia pôr o Francisco a cantar
só para mim hoje.
Pouco depois chegaram dois senhores que penso serem russos porque se
sentaram numa mesa separada (o senhor Stepan e um outro senhor). Ficaram os dois a
conversas apenas um com o outro, o que me levou a pensar na distinção que existe entre
os utentes do Refeitório, o facto de escolherem sentar-se ao pé das pessoas com quem
partilham a etnia ou o país de origem, a separação física tão bem visível neste espaço
intriga-me. Será que se dá a apropriação de um dado lugar naquele refeitório por
cada uma daquelas pessoas? O que aconteceria se lhes trocássemos os lugares?
Será aquele lugar naquela mesa, ao pé daquela e daquela pessoa, uma forma de
afirmação não possível noutro sítio além do refeitório? Como pensar a situação de
vulnerabilidade-autonomia na escolha de um lugar à mesa? Como associar esta
clara marcação do espaço à identidade dos utentes do refeitório?
Quando o Francisco chegou dirigiu-se logo à “sua” mesa para falar com o senhor
X e só depois notou que eu estava no Refeitório a cortar pão. Mal me viu foi falar
comigo. Primeiro disse-me bom dia a sorrir, depois ficou a olhar para o comando da
televisão muito pensativo. Passado um pouco disse algo como “Eu é que devia ter um
comando para me apagar as memórias todas…não podiam ser tiradas com água porque
depois ia tudo atrás mas devia haver um comando para me apagar as memórias…” Ao
que eu respondi: “Mas assim não te lembravas de nada, nem do teu nome” e ele pensou
e acabou por dizer que também não fazia mal. Passámos deste tema mais filosófico para
os dias em que eu ia à instituição (“Tu vens só às segundas, não é?”) e o meu propósito
para ir lá. Ele contou-me as suas táticas para cabular quando andava na Escola nº. 1 da
Baixa da Banheira (entre o Barreiro e Setúbal), escola essa onde ele se “desenvolveu”
(termo interessante). Falou-me das cábulas que fazia para os colegas, da forma como
tinha acesso aos enunciados das provas, como enganava as contínuas… E, de repente, já
estávamos a falar de álbuns de família, de como estava fisicamente muito diferente que
ninguém na terra dele o reconhecia, do cigano que lhe tinha roubado tudo até a pulseira
e o colar que tinha desde bebé…
O senhor Mário chegou e ficámos os três a conversar sobre o programa The
Voice e da forma como me tinha lembrado do Francisco com a música, ao que o senhor
186
Mário disse logo “lembras-te dele mas não te lembras de mim”. Pouco depois eles
foram sentar-se e cantaram; hoje cantaram muito.
Por volta do meio-dia, a Irmã foi almoçar e deixou-me sozinha. Fui ter com os
utentes e fiquei a saber que o senhor Mário viveu 14 anos no Brasil (“Conheço melhor o
Brasil que este Portugal e já cá estou há 20 anos”), que gosta de música brasileira. Tanto
ele como o Francisco contam histórias que demonstram o desligamento e o egoísmo das
pessoas atualmente que não param para ajudar alguém que cai na rua.
Começam a chegar mais utentes e uma das voluntárias da segunda-feira também
chega.
Por volta das 12h45 chega a Irmã e começa a preparar tudo para servir primeiro
as sopas, depois o segundo prato.
Sou encarregue de ir à lavandaria dar uma toalha a um utente que queria ir tomar
banho e entregar a roupa a outro utente. Quando cheguei lá, além de entregar a toalha o
senhor queria champô que eu não sabia onde estava e aí o utente, que falava mais inglês
que português, começou a apontar para as prateleiras que a Irmã me tinha dado ordem
específica para só eu mexer. Não via champô nenhum e o utente já impaciente chegou à
prateleira e começou a remexer um saco. Percebi que era ali que estavam os champôs e
logo o afastei para cumprir as ordens da Irmã. Dei-lhe um champô e uma lâmina de
barbear.
Lá dentro estava também um outro utente à procura das suas calças no meio da
grande quantidade de calças aparentemente todas iguais… Mas o senhor sabia
exatamente quais eram as suas calças, pelo que pegava, olhava, media usando os seus
braços, tudo até encontrar “as” calças. Depois procurou o seu casaco verde e pediu uma
lâmina de barbear e espuma que lhe dei logo.
Enquanto ainda estava lá dentro algures na altura em que o senhor via as várias
calças à procura das suas calças, apareceu o senhor Mário – estava preocupado comigo
e foi só ver se estava tudo bem porque eu já tinha ido para a lavandaria há algum tempo,
disse-me depois de me pedir desculpa por ter ido à lavandaria – Mais um sinal dos
laços de confiança estabelecidos em apenas três dias que vem corroborar a ideia de
que estas pessoas não são isoladas da sociedade em geral, nem desvinculadas, mas
sim pessoas bastante educadas, simpáticas, agradecidas, preocupadas com o outro.
187
Começámos a servir os almoços; primeiro as sopas, o pão, a todos os utentes que
estavam no refeitório.
Um dos utentes estava à espera das assistentes sociais – três novas personagens
que deviam ter chegado às 13horas para ajudar os utentes com os vários problemas, mas
só apareceram no fim dos almoços quando já quase ninguém estava no Refeitório, para
grande descontentamento não só da Irmã como dos utentes que tinham ido lá para
almoçar e falar com as assistentes, que num dos casos tinham dado as informações
erradas ao utente.
Uma vez mais houve muitos pedidos por mais pão e um dos utentes quis comer
apenas massa sem tortilha.
Ao fazer o lanche de outro utente, o Jallah, fui avisada de que se tratava de uma
pessoa de “muito alimento” – Curioso como se faz estas pequenas distinções entre
tantas pessoas que vão àquele refeitório.
Hoje foi também a segunda pessoa do sexo feminino: primeiro tinha sido uma
senhora, hoje foi uma rapariga com os seus 20-30 anos.
Por volta das 13h30 já tinham acabado praticamente todos os almoços, chegaram
as assistentes sociais e a Irmã disse que eu podia ir andando para almoçar.
Dia 28.10.2016 – 4ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei à instituição por volta das 11h45 e lá estava o senhor X, que vim a
descobrir que se chama Galvino, sempre sorridente. Além dele estava um dos senhores
russos, um senhor à espera e a Irmã Celeste. Fui deixar as minhas coisas e procurar a
Irmã. Encontrei-a na lavandaria com um utente, dos que fala pouco português; estavam
a tratar da roupa que tinha acabado de lavar. A Irmã disse logo que achava que eu já não
ia (por causa do meu atraso). Perguntei o que podia fazer e fiquei encarregue de
estender a roupa lavada.
Pouco depois fui ter com a Irmã à cozinha onde reparei que ela não parecia estar
muito bem fisicamente. Perguntei o que se passava e disse-me que andava mal com uma
virose há cerca de dois dias mas que hoje estava um pouco melhor, embora ainda não se
sentisse completamente bem.
188
Fiquei encarregue de dar as toalhas, encher os garrafões de água, cortar o pão e
tratar dos tupperwares antes de darmos o almoço, que hoje era um aproveitamento de
alguma carne, batatas e grão.
Entretanto chegou o senhor Mário que quis mais uma vez pedir desculpa por no
outro dia ter ido ver se estava tudo bem na lavandaria. Disse-me também que qualquer
favor que eu alguma vez precisasse na minha vida que podia ir ao bairro dele e
perguntar por ele, o Mário cigano (“Não me importo que digas mesmo cigano, porque
Mários há muitos mas cigano sou só eu”).
Estava lá também o Nicolay, o Stepan e outros senhores russos.
Dei algumas toalhas aos utentes para tomarem banho e lâminas de barbear.
Quando a Irmã saiu para ir almoçar fiquei a falar com o senhor Mário, o
Galvino, o Camara e um senhor que conheci hoje: o Camara 2 (para distinguir do
Camara que já conheço). Este senhor Camara 2 falou comigo em francês: perguntou
como é que me chamava, falou da ligação à igreja (“J’adore l’eglise”), perguntou a
minha idade, se era casada, se tinha filhos; como respondi que não às duas últimas
perguntas o senhor ficou feliz dizendo que eram boas notícias para ele.
Começaram a chegar mais utentes mas, mesmo assim, eram muito poucos a
comparar com os outros dias e havia muito mais utentes a quererem tomar banho do que
nos outros dias, talvez por ser sexta-feira…
Falámos sobre as notícias acerca da violência nas escolas entre pessoas novas
(13-15 anos) e foram percetíveis alguns discursos de incredulidade, de como é que é
possível crianças fazerem assim mal às outras, falámos dos pais e do excesso de
trabalho e falta de atenção para as crianças.
Com o passar do tempo tanto os outros utentes como o senhor Mário, o Galvino
e eu começámos a ficar preocupados com a ausência de Francisco que, segundo o
senhor Mário, nunca se atrasa. O senhor Mário dizia, preocupado, se a Irmã não saberia
nada, se ele não se teria metido em alguma confusão. O Galvino para aliviar o ambiente
disse que ele estava atrasado por ter passado a noite a cantar.
Com a ausência do Francisco o Refeitório estava calmo e silencioso.
189
Por volta das 12h50 chegou a Irmã e as outras voluntárias, a Isabel e a Fátima. A
Irmã estava pior pelo que ficou sentada apenas a dar indicações de como deviam ser
feitas as coisas.
Começámos a servir as sopas e a fila com os pratos nas mãos começou, bem
como a distribuição de pão e os vários pedidos: uma caixa para levar, lanche para não
me esquecer, pão, um par de calças novo, fruta.
Já o segundo prato estava a ser servido quando o Francisco chegou: vinha
apressado e sem o bom humor habitual.
Passado algum tempo fui chamada como testemunha da preocupação de Mário
com o atraso do Francisco – interessante como o zelo e a preocupação com o outro se
tornam importantes neste contexto de vulnerabilidade – Será possível articular as
pessoas em situação vulnerável do Refeitório com as pessoas sem-abrigo da João13
que abre em Janeiro?
Continuei a servir almoços e a distribuir pão; muito pão para a mesa dos
senhores russos fez com que “ganhasse” a simpatia do grupo com quem é mais difícil
comunicar.
Fui chamada novamente à mesa do Francisco, do senhor Mário e do Galvino.
Desta vez era o Francisco que queria saber se eu tinha ficado mesmo preocupada com a
ausência dele. Disse-lhe que sim e ele respondeu que não era preciso, a sorrir, e que já
tinha lá em casa uma assim como eu mas com a cara chapada dele, com os mesmos
olhos que ele. Calculei que falasse da filha. ( Mas não era a filha porque ele não tem
filhos Informação a posteriori)
Ao ouvir uma conversa juntamente com outra conversa que tive com o Francisco
consegui entender que ele vive num quarto alugado à noite na Ameixoeira. Ouvi-o falar
de algo relacionado com ter outras pessoas no seu quarto antes de ir para lá ele (tenho
de averiguar esta informação!)
Quando já era altura de lavar a loiça porque os almoços já estavam quase a
acabar chegaram as assistentes sociais; ficaram a lavar a loiça.
Por volta das 13h40 disse à Irmã que tinha de ir embora.
Dia 7.11.2016 – 7ª ida ao voluntariado
190
* Nota prévia: Nas duas últimas idas ao voluntariado não escrevi diário de
campo porque o meu trabalho foi, de certa forma, perturbado pelos utentes do
Refeitório. Criou-se uma proximidade excessiva, muito perto do intolerável (cf. Marc
Breviglieri) que fez com que estas pessoas em situação de vulnerabilidade se apegassem
em demasia e me tratassem com termos que não me deixavam à vontade e capaz de
prosseguir o meu trabalho quer como investigadora quer como voluntária. Cheguei
mesmo a ter companhia indesejada até ao meu local de estudo (FCSH) e toda essa
situação fez com que quisesse, de facto, abandonar não só a instituição como a própria
ideia de estudar estas pessoas em situação de vulnerabilidade. No entanto, depois de ter
falado com a Irmã Celeste sobre o que se estava a passar e de ter deixado de falar com
os utentes mais “complicados” as coisas acalmaram e penso poder manter-me na
instituição com o tema que quero estudar.
Hoje cheguei à instituição por volta das 11h30 e estava lá a Irmã Celeste e a
Isabel. De utentes estava o Galvino, o Francisco e o Nicolay.
Quando cheguei a Irmã disse-me que faltava só tratar do pão e para eu fazer isso
enquanto ela ia tratar de um trabalho com a Isabel. Disse-lhe que ia só deixar as minhas
coisas e ia tratar do pão. Quando fui pôr as coisas aproveitei para contar à Irmã que o
Francisco tinha voltado a ir comigo de metro e que isso me deixava muito
desconfortável e a Irmã disse que se isso se repetisse hoje ela falava com ele para o pôr
na ordem mas que eu não ficasse assustada porque são apenas pessoas carentes de
afetos (pobres de afetos) que querem chamar a atenção mas que não fazem mal a
ninguém. – Termos e situação interessante para pensar os laços de confiança e o
apego neste trabalho, neste caso através da relação pessoa vulnerável-voluntário.
Depois fui cortar o pão e o Francisco e o Galvino vieram falar comigo – um veio
dizer parvoíces que ignorei e o outro veio dizer olá.
Continuei a cortar pão enquanto os utentes falavam entre si. Quando acabei fui
ter com a Irmã e a Isabel de forma a evitar mais conversas com os utentes numa
tentativa de distanciamento da minha população de estudo.
Entretanto tratei de distribuir toalhas, sabão, lâminas de barbear a quem pedia e
notei uma situação nova: um dos utentes tinha na lavandaria uma mala grande. Quando
me pediu para lá ir buscar umas roupas pensei que seria como das outras vezes: chegar,
entregar uma toalha, um sabão e fechar a porta. Mas desta vez não. O senhor Eudízio
191
tirou dos bolsos uma chave minúscula, agarrou uma mala azul que estava escondida na
lavandaria e abriu o seu cadeado. Lá dentro estavam roupas bem dobradas, sapatos,
roupa interior… Abriu a mala que trazia consigo e tirou da mala azul algumas coisas
colocando-as na mala que tinha consigo. Depois começou a justificar-se de toda aquela
situação; disse-me para dizer à Irmã que ainda não ia conseguir tirar as suas coisas dali
porque ainda não tinha conseguido encontrar um “sítio” e só quando conseguisse é que
podia levar as coisas dali para fora. Parecia preocupado com a necessidade de tirar as
coisas dali. Aquela mala era importante para ele: além de ter um cadeado estava num
espaço que ele considerava seguro: o que é interessante quando pensamos as relações
destas pessoas com o espaço em que se encontram; a ideia de confiança e
segurança associada ao Refeitório.
Algum tempo depois fui novamente cortar pão, tratar das caixas e fiquei a saber
que a Irmã ia ficar oito dias fora, o que me preocupou por ficar sem a “proteção” dela
enquanto figura de autoridade…
Entretanto chegou o senhor Mário, o Jallah, o Camara e mais alguns utentes. O
senhor Mário disse-me que estava bonita e perguntou-me se tinha namorado – Mais
uma vez tive de me distanciar porque a linha entre o meu “eu” e os outros estava a
ser pisada mas, de certo modo, consegui através desta conversa afastar-me de
todas as conversas e provocações que até então começaram a ser cada vez mais
frequentes.
Os almoços hoje foram caóticos. Apareceu muita gente ao mesmo tempo. Pela
primeira vez desde que lá estou faltaram lugares e pratos para toda a gente. Houve uma
grande necessidade de afirmar a ordem, seja através de pedidos para que os utentes
ficassem no lugar, seja mesmo através de um reforço das ordens com a consequência de
não comerem.
Houve muitos utentes descontentes hoje, ou por ainda não terem comido ou por
não haver pão nas mesas ou por terem pressa de receber as caixas.
Mais para o fim a Irmã teve de pedir a alguns utentes que ficassem a ajudar a
lavar os pratos e a arrumar tudo porque estava mesmo muito caótico. – Interessante
quando a Irmã pede que ajudem eles mesmo tendo coisas para fazer ficam lá a
ajudar – dar, receber, reciprocar?
192
Ainda fiquei a distribuir caixas e a preparar lanches algum tempo e depois por
volta das 13h30 fui embora.
Dia 18.11.2016 – 9ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei à instituição por volta das 11h20. Estava lá já a Irmã Celeste e a
senhora Ermelinda. Estavam a conversar. A Irmã perguntou como tinha corrido a
semana passada, uma vez que tinha estado fora em retiro.
Fiquei encarregue de fazer os lanches e separar as peras de uma caixa para outra.
Hoje o almoço era “comida vegetariana”, apesar de ter frango e salsichas na
receita.
Depois de preparar os lanches fui com a Irmã para a lavandaria tratar da roupa.
A Irmã estava um pouco chateada porque na sua ausência tinham deixado as coisas
arrumadas numa ordem diferente – Mais uma vez a questão da ordem como algo
importante para o bom funcionamento do Refeitório.
Quando estávamos a tratar da roupa apareceu o Jallah a pedir umas meias. A
Irmã deu-lhe umas quentes e ele devolveu-lhas porque tinham borbotos – Esta situação
de alguma tensão levou-me a formular alguns juízos de valor e a questionar o
papel do utente na dicotomia necessidade-autonomia, por serem pessoas
vulneráveis e com necessidades mas que recusam a ajuda por não corresponder
aos seus “padrões de qualidade”.
Fomos para a cozinha acabar de tratar do almoço e depois conhecemos a
situação de um novo utente que estava à espera de um rim há quatro meses enquanto faz
hemodiálise.
Entretanto a Irmã foi almoçar e encarregou-me de aquecer comida no micro-
ondas e tratar das caixas. Fiquei sozinha no Refeitório, situação que não me tem deixado
confortável ultimamente porque fico um pouco vulnerável.
Foram chegando os utentes e as caixas e os vários pedidos que cada um tem, seja
em relação aos lanches, seja em relação às caixas. É interessante ver como cada um
deles já sabe que a Irmã conhece os seus gostos e os seus vários pedidos quando
dizem “a Irmã já sabe o que é para pôr” – De certa forma cria-se ali uma
separação entre a figura da Irmã Celeste que está todos os dias no Refeitório desde
que o espaço abriu, por isso já conhece as pessoas e as histórias de cada utente,
193
tendo já criado e consolidado um laço de confiança; e, por outro lado, a figura
das/os várias/os voluntárias/os que vão apenas alguns dias por semana e com quem
a postura adotada pelos utentes já varia em alguns detalhes tais como a forma de
tratamento e a seriedade com que aceitam os pedidos ou ordens.
Quando chegou a Irmã começámos a servir os almoços com a seguinte ordem:
primeiro os pratos “especiais” (peixe para os muçulmanos e arroz em vez de massa para
um utente que estava a fazer hemodiálise) e depois o “prato do dia”. Logo que
começámos a distribuir o “prato do dia” começaram as reclamações: ou queriam peixe,
ou queriam arroz, ou queriam só massa. Esta situação causou alguma instabilidade e
incómodo, uma vez que eu, ao ser a pessoa que estava a entregar os pratos, também tive
de ser a pessoa a manter o não firme face às reclamações. – Os papéis que
desempenho na instituição entraram novamente em conflito, na medida em que se,
por um lado, estas várias reclamações, críticas e pedidos são algo de muito
interesse para contrapor com a teoria da Sociologia Pragmática, nomeadamente
com as ideias presentes e defendidas em De la justification; por outro lado, o papel
de voluntária, de pessoa que tira tempo do seu tempo para ajudar o outro, este tipo
de reações por parte dos utentes faz com que se reconsidere afinal o que estamos lá
a fazer ou como se ajuda quem não quer ser ajudado, na medida em que se parte
do princípio (talvez errado) de que quem tem fome aceita a comida que se lhe dá,
independentemente de ser a que mais lhe agrade ou não. Ora aqui neste Refeitório
tivemos a prova de que não é bem assim, que as pessoas vulneráveis continuam a
ter a capacidade e o “poder” de formular uma crítica, uma justificação pública dos
seus atos através da recusa em comer por não lhes agradar a comida.
Distribuí as caixas, os lanches e a fruta e às 13h20 fui embora.
Dia 25.11.2016 – 10ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei à instituição por volta das 11h15. Estava lá a Irmã Celeste e alguns
utentes. Quando cheguei perguntei onde podia ajudar e a Irmã disse-me para ir tratar de
secar os tupperwares e o Francisco veio logo falar comigo e ajudar-me a secar os
tupperwares. A Irmã percebeu que a situação não estava a ir lá muito bem e disse para o
Francisco se ir sentar e me deixar em paz. Depois fui com a Irmã para a lavandaria
arrumar as calças e as toalhas da máquina que tinha acabado de lavar.
O almoço hoje era massa com carne picada e peixe para os muçulmanos.
194
Enquanto a Irmã foi almoçar fiquei encarregue de tratar de aquecer o peixe e de
arrumaras caixas. O tempo demorou a passar porque não havia grande coisa para fazer.
Entretanto chegou a Fátima e estivemos a falar um pouco antes de ser hora de servir os
almoços. Quando a hora chegou estavam muito poucos utentes ainda e por isso fomos
esperando. Às 13h10 começámos a servir os almoços e às 13h20 fui embora.
Dia 19.12.2016 – 13ª ida ao voluntariado
Cheguei por volta das 11h30 e já estavam muitos utentes no Refeitório: o
Francisco, o senhor Mário, o Nicolay, o senhor João, o senhor novo, a Irmã Celeste, a
Isabel e uma outra senhora.
Como está perto da época do Natal começa a ser percetível por um lado um
maior número de utentes e, por outro lado, um maior número de voluntários.
Foi também interessante ver como, por exemplo, o Francisco aproveitou para
desejar logo que o próximo ano me corra bem e melhor que este ano.
Inicialmente fui com a Irmã tratar de preparar os cabazes para as famílias e, em
seguida, regressámos para o Refeitório. Fiquei a dobrar sacos enquanto a Irmã ia
almoçar e o Refeitório ia enchendo.
Quando chegou a hora de servir os almoços o Refeitório já estava cheio, o que
tornava tudo numa situação caótica. A passagem para as mesas estava complicada, os
pedidos de pão, de comida especial, de lanches especiais, de um serviço mais rápido
porque tinham pressa, tudo isto acontecia hoje ao mesmo tempo.
Houve algumas reclamações em relação aos lanches e ao almoço. Chegou
mesmo a haver quem tivesse de esperar pelo almoço em pé por não haver lugar sentado.
Os utentes mais recentes já se integraram relativamente bem e mantêm-se
sempre sentados juntos.
Foi interessante ver como os próprios utentes se apercebem dos dias mais
conflituosos e complicados, nomeadamente quando, por exemplo, o Camara 2
perguntou se hoje o trabalho tinha sido mais complicado.
Hoje apareceram duas novas senhoras como utentes. Ambas de origem africana.
Disse à Irmã que brevemente iria ter de começar a fazer as entrevistas e ela
indicou-me o nome do senhor Ivan, do senhor Stepan e mencionou que haveria
195
algumas pessoas com quem seria mais fácil falar. Perguntei se as pessoas que
indicou eram todas sem-abrigo, tendo em conta o tema do meu trabalho e ela disse
que sim, mesmo os que tinham casa nunca era sustentada por eles nem tinha as
condições mínimas (cf. definição de sem-abrigo da ETHOS).
Dia 20.12.2016 – 14ª ida ao voluntariado
Hoje fui apenas à hora de servir os almoços. Cheguei eram 13horas. Mais uma
vez notei que tanto o número de utentes como o número de voluntários aumentou. Desta
vez notei também que o aumento de utentes veio trazer uma alteração na disposição dos
lugares, o que levou também a uma alteração na harmonia e na forma de convívio do
Refeitório com as personalidades e características de cada um a ganhar nova ênfase. O
Francisco diz que está afónico mas quando me vê canta; agora tem ao seu lado não o
Galvino e o senhor Mário mas uma senhora (ucraniana ao que parece a Jennifer
informação a posteriori) que diz que ele é o seu amigo, e as outras duas senhoras novas
que tenta enturmar, e o Dumitru que mantém o seu lugar. A mesa do canto varia entre
os muçulmanos Omar e Jallah, ou utentes novos como hoje (dois senhores e uma jovem
mãe com a filha de 5-6 anos, falava só inglês). A mesa do meio mantém o senhor Ivan,
o outro senhor Ivan, o senhor Stefan e hoje também o Norberto (que tem sempre muita
pressa). A mesa da porta mantém os senhores ucranianos (o Alexandre, o Valery, o Igor,
o Nicolay, o Iury). E a mesa da frente com os novos utentes que continuam a tentar
impor a sua própria ordem através de vários pequenos pedidos e chamadas de atenção;
penso que se trata de uma forma de adaptação às regras pré-estabelecidas pelo
Refeitório; este grupo repete muitas vezes a comida, pede um certo tipo de lanche, pede
mais pão e fica no Refeitório depois de almoçar a conviver entre conversas, ver
televisão e comer pão.
Hoje foi interessante a resposta de um dos utentes quando a Irmã perguntou
como ele estava. Disse que estava bem, que o único problema era não ter trabalho, que
só faltava arranjar trabalho e que agora ia ficar cada vez mais difícil.
Também fiquei a saber que o Dimutru tem um filho com 20 e tal anos e a
senhora nova ucraniana tem um filho de 25 anos – Importância da família talvez por
ser a época do Natal; conversa nostálgica sobre os filhos e características dos
mesmos.
Dia 27.12.2016 – 16ª ida ao voluntariado
196
Hoje foi um dia relativamente calmo. Só apareceram certa de 30-35 utentes.
Todos perguntaram como tinha sido o Natal.
Éramos cerca de 6 voluntários para os poucos utentes que apareceram pelo que
por volta das 13h15 já tínhamos servido os almoços todos.
Dia 28.12.2016 – 17ª ida ao voluntariado
Hoje tornaram a aparecer poucos utentes. Aparentemente, de acordo com o que a
Irmã disse, é por ter sido Natal há pouco tempo e ainda têm sobras da comida do Natal e
nesta época andam mais “perdidos” e “metidos no álcool”, por isso vão menos ao
Refeitório.
Outra questão curiosa foi a Irmã ter dito que “eles” têm o “nosso” Natal e
depois, noutro dia diferente, têm o “Natal deles” – Aparentemente podemos pensar
esta afirmação como relevante da perceção que a Irmã tem dos códigos e da ordem
das pessoas sem-abrigo surgindo aqui como diferente/separada daquela que é a
norma do cidadão “normal”, ou seja, trata-se de um exemplo prático de que estas
pessoas têm a sua própria ordem, o seu ritmo, a sua forma de criar uma norma
através e no desvio em que vivem.
Tal como aconteceu ontem notou-se um aumento na exigência de alguns utentes
em relação à comida: uns perguntando se não havia outra coisa para comer, outros
recusando-se a comer, outros queixando-se de ser pouca comida no prato – Em relação
aos dois primeiros casos não posso deixar de pensar, por um lado, na existência de
uma crítica que surge como passível de ser formulada naquele contexto, apesar de
serem pessoas vulneráveis quem formula estas críticas e queixas, levando-me, por
outro lado, a pensar que para estas críticas serem formuladas neste contexto em
específico tal deve significar que ali sentem uma pertença, um estatuto, uma forma
de serem pensados e tratados, levando a uma auto-caracterização enquanto
pessoas, seres humanos, possuidores de dignidade e poder de crítica/julgamento,
que não deve ser, penso eu, algo muito presente nas suas vidas quotidianas.
Hoje como eram poucos utentes os almoços tornaram a acabar cedo. Aproveitei
para falar com a Irmã Celeste sobre qual seria a melhor abordagem na fase seguinte do
trabalho – as entrevistas – e ela disse-me que era capaz de ser mais fácil conseguir falar
com eles se fosse depois de almoço, porque a hora de almoço é sempre muito agitada;
também me aconselhou a não utilizar o termo “pessoas sem-abrigo” por ser muito
197
carregado de conotações, devendo substituí-lo por “pessoas em condições de habitação
carenciadas”; disse, por fim, que em princípio haveriam de colaborar comigo sem
qualquer problema porque já me conheciam – Ideia da “confiança” como base dos
laços sociais – Sem ter estabelecido este laço de confiança prévio com as várias idas
ao Refeitório no papel de voluntária, não seria possível entrar no “mundo” deles,
pedir-lhes que falem comigo e me contem a sua história.
Dia 29.12.2016 – 18ª ida ao voluntariado
Hoje estavam novamente poucos utentes – facto que mais uma vez foi referido
pelos voluntários.
Apareceu o Camara que já não via há algum tempo e ficou contente de me ver.
Perguntou como eu estava e como estava a faculdade.
Falou-se sobre a passagem de ano.
Tive uma pequena conversa com o senhor João que me dizia que eu sou
obediente mas que não devíamos obedecer cegamente,
Falei com um dos Alexs que me perguntava pela faculdade com algum interesse
e ficou surpreendido ao saber que eu já estava no 5º ano de faculdade e ainda ia fazer
mais quatro anos.
Hoje o Francisco falou muito sobre a forma como as pessoas o julgam com base
no seu aspeto. Contou-nos uma história de quando apanhou ladrões na Gulbenkian e as
pessoas que tinham sido assaltadas julgaram que ele também era um ladrão pelo que
quando apareceu a polícia ele foi julgado tal como os verdadeiros ladrões, tendo de
explicar que não tinha roubado nada mas apenas tentado ajudar as pessoas que estavam
a ser assaltadas. O Francisco contou algumas histórias semelhantes.
Um ponto interessante foi as várias reações ao aviso na porta que dizia que no
domingo, dia 1 de janeiro, o Refeitório iria estar fechado. Houve vários utentes
surpreendidos, vários preocupados por não saberem onde ir comer e alguns revoltados e
chateados porque o Refeitório não podia fechar assim. – Podemos aqui ver a forma
como aparece a crítica e a justificação nesta população vulnerável cuja rotina, ao
ser quebrada, quebrando assim a ordem instituída já há alguns anos, leva a um
despoletar de várias sensações e reações reveladoras da importância não só do
Refeitório como da ordem, da rotina, das regras na vida destas pessoas que, à
198
partida, vivem à margem da sociedade em várias formas, nomeadamente no que
concerne a rotina dentro de uma ordem com imposição de regras, princípios e
valores.
Dia 2.1.2017 – 19ª ida ao voluntariado
Hoje como estava frio e chuva estavam logo muitos utentes de manhã quando
cheguei – mudança muito significativa em relação à semana passada com dias mais
amenos e menos utentes.
Todos fizeram questão de deseja bom ano novo e as conversas entre os utentes
eram sobre como tinha sido a passagem de ano (entre álcool e boa comida e quem
passasse a meia-noite a dormir).
À hora de almoço o Refeitório já tinha um número considerável de utentes e
notava-se um nervosismo e tensão muito grandes na Irmã Celeste e nos voluntários que
tentavam alimentar toda a gente.
Hoje apareceu, como já tem vindo a aparecer, a primeira criança que vejo como
utente do Refeitório: uma menina com cerca de cinco anos, a Natália, neta do senhor
Septan. – É interessante ver como fala com os senhores russos, como se senta e
come junto deles e é quase “protegida” de forma carinhosa pelos senhores russos
em relação aos restantes utentes e à confusão que pode existir no Refeitório.
Dia 3.1.2017 – 20ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei intencionalmente depois do almoço (13h30) com o objetivo de
realizar a primeira entrevista.
O ambiente estava muito animado; os noviços tinham levado “Champomy” por
ser ano novo e os utentes estavam contentes de poderem beber “champanhe” à refeição.
Fiquei algum tempo a ajudar a tratar da loiça e depois perguntei à Irmã Celeste
se me podia indicar alguém que fosse ficar ainda um bocadinho no Refeitório e que não
se importasse de falar comigo. A Irmã indicou-me o Marcelo, foi ter com ele e
perguntou se ele me podia ajudar num trabalho para a faculdade respondendo a algumas
questões, ao que ele disse que claro que teria todo o gosto em ajudar.
Para fazer a entrevista fomos lá para fora para uns banquinhos (espaço sugerido
por Marcelo) e enquanto caminhávamos fui explicando o tema do trabalho e o porquê
de querer falar com ele; disse também que o mestrado era na área da Sociologia.
199
Respondeu que já tinha ouvido algumas em conversas que eu estaria na faculdade mas
que tinha achado melhor não se pronunciar, disse que tinha muito interesse na área da
Sociologia, embora só soubesse um pouco que aprendeu no início do curso de Direito.
Durante a entrevista não manteve qualquer tipo de contacto visual; olhava
apenas para a Igreja que estava à nossa frente ou para o vazio; sempre que tocava o sino
para dar as horas Marcelo parava de falar e benzia-se; quando o questionei acerca dos
objetos que trazia consigo no dia-a-dia falou da mochila que tinha nas mãos e fez
questão de abrir a mochila e mostrar o que tinha no seu conteúdo; viu-se pela forma
como as mãos tremiam, pelas pausas e pela expressão séria, emocionada e quase de uma
revolta impotente, que o tema “relações” no geral e “as filhas” em particular o afetam
bastante, tal como quando fala dos albergues em que vive/já viveu e na situação social e
política vivida no Brasil.
Dia 4.1.2017 – 21ª ida ao voluntariado
Entrevista a Francisco. Levou a ideia de entrevista muito a sério não deixando
ninguém falar perto dele para que não perturbasse a gravação. A entrevista decorreu no
Refeitório na mesa onde se senta habitualmente. Ficou claramente afetado ao falar de
temas como as relações, a família, o futuro e a sua situação de pessoa sem-abrigo.
Houve momentos de silêncio, de inquietação, de não resposta às questões. Depois da
entrevista ficou nervoso, a pensar alto.
Dia 6.1.2017 – 23ª ida ao voluntariado
O senhor João refere-se a si e à sua irmã como sendo um casal à medida que
relata algumas histórias como a frequência de um colégio de freiras e a partilha de casa
já em idade adulta. Fala da irmã com algum ressentimento misturado com orgulho.
Dia 10.1.2017 – 25ª ida ao voluntariado
Entrevista a Isabel S. realizada no escritório do Refeitório.
Dia 12.1.2017 – 27ª ida ao voluntariado
Há um grande aumento do número de utentes a irem, de facto, ao Refeitório.
Como o tempo arrefeceu chegam mais cedo do que antes. Tentei falar com o senhor
João mas ele não quis dizendo que iria ser apenas estar a repetir histórias que eu já tinha
ouvido e que a história dele não tem interesse para mim.
Dia 13.1.2017 – 28ª ida ao voluntariado
200
Situação interessante: o senhor Marcelo ia a uma entrevista (de trabalho?) e
estava a reunir um conjunto de roupa mais formal para que fosse “levado a sério” e
fosse apresentável, pelo que estava de blazer a ensinar ao senhor Lincoln e restantes
utentes a fazer os diferentes nós de gravata que conhece.
Os utentes pensam que sou advogada, psicóloga, assistente social, sem que
eu nunca lhes tenha dito tal coisa, o que leva a pensar nas questões da
aprendizagem, sendo o que um diz repetido e alterado para os outros, passando,
assim, uma mensagem que, apesar de ser errada, se propagou.
Dia 16.1.2017 – 29ª ida ao voluntariado
Hoje a Irmã Celeste já não estava no Refeitório, foi para França para uma
conferência sobre refugiados.
Chegou um novo utente, um refugiado sírio (?) que só fala inglês e queria
almoçar no Refeitório. Foi interessante ver os olhares dos outros utentes para com o
refugiado num misto de desconfiança e curiosidade. À hora de almoço foi também ver o
processo de aprendizagem da ordem e dos comportamentos do Refeitório durante o
almoço.
Dia 20.1.2017 – 30ª ida ao voluntariado
Hoje foi um dia muito caótico. Foram muitos utentes, os voluntários estavam
pouco agilizados e os utentes estavam particularmente agitados/carentes. O senhor
Nicolay estava um pouco alterado, chegando a abraçar-me. O senhor Dumitru dizia que
uma das voluntárias era minha mãe e estava muito chateada com ele, tendo repetido isto
o almoço inteiro, chamado por mim e agarrado o meu braço até eu ter de me chatear
com ele para que parasse.
Temos um novo utente nepalês.
Dia 23.1.2017 – 31ª ida ao voluntariado
Hoje foi um dia igualmente caótico. Muitos utentes, voluntários pouco
agilizados e grande confusão na entrega das caixas e dos lanches. Muitos pedidos
especiais e reclamações de não gostarem da comida ou do que ia na caixa.
Dia 6.2.2017 – 34ª ida ao voluntariado
201
Conversa com Francisco sobre o novo sítio onde vive. Agora, em vez de viver
na estação do Oriente, vive numa fábrica abandonada com um “colega de quarto” –
Expressão interessante tendo em conta que uma fábrica abandonada e a
continuidade da situação de pessoa sem-abrigo não implicariam à partida a ideia
de um “colega de quarto”.
Dia 10.2.2017 – 35ª ida ao voluntariado
Hoje estive algum tempo a conversar com dois rapazes nepaleses que
começaram a ir ao Refeitório há pouco tempo. Falámos em inglês porque, apesar de já
estarem em Portugal há 2 anos, dizem que a língua é muito diferente, é como se eu
tentasse aprender chinês… A conversa começou com eles a mostrarem a bíblia em
nepali (a língua que falam), falaram das reuniões que têm numa escola primária nos
Anjos para rezarem a missa em nepali porque nos outros sítios não percebem nada do
que é dito. Falámos também acerca das diferenças entre as várias culturas, falaram-me
da cultura na religião, na língua, na comida, no ensino. Disseram-me que estiveram em
Copenhaga, um deles fez Economia e Gestão com boas notas e gostava de continuar a
estudar na faculdade de Marketing mas como não é da Europa ficava muito caro, que
nós europeus temos muita sorte porque a nossa educação é barata e temos muitos
apoios.
Este rapaz estava muito contente e com muita energia a falar sobre a educação e
de como tinha gostado de estudar. No fim da conversa disseram que tinha sido uma boa
conversa.
Dia 13.2.2017 – 36ª ida ao voluntariado
Hoje quando cheguei o Nicolay estava muito feliz, abraçou-me e pela primeira
vez deu-me um beijo na cara o que, estranhamente, não me fez impressão ou confusão.
Aparentemente, com a ajuda das voluntárias, a situação dele está a resolver-se: já
trabalha, está a fazer os seus documentos e tudo parece estar a melhorar para ele e para
o Iury que também anda mais tranquilo e feliz.
Um dos rapazes nepaleses hoje estava com muitas dores de dentes e lá lhe
arranjei um comprimido para tomar depois de reforçar que tinha de comer primeiro.
O senhor Marcelo leu-me uma oração que escreveu depois de um pesadelo que o
deixou em sobressalto e contou-me que tinha encontrado um comprador para a sua casa
no Brasil.
202
Estive a falar com a Irmã Celeste sobre algumas histórias e o Francisco ia
ouvindo pela janela que às vezes fecha para nós não ouvirmos o que falam entre eles.
Servimos o almoço tendo em conta os vários pedidos de cada um, situação que
me deixa sempre desconfortável.
Dia 17.2.2017 – 37ª ida ao voluntariado
Hoje estive a falar com o Nicolay que já tem “autorização” para entrar dentro da
cozinha e já fica a ajudar com a loiça – Penso que é sinal de que, de facto, as coisas
estão a começar a encaminhar-se, seja a nível de ter um trabalho fixo, seja a nível
da documentação e, provavelmente, tanto ele como o Iury em breve deixarão de
ser pensados como pessoas sem-abrigo ou sem teto; talvez sejam os dois primeiros
casos que acompanho ao longo deste percurso evolutivo.
Falei, então, com o Nicolay sobre o seu trabalho à noite, sobre a dificuldade que
tem em dormir de manhã e sobre os prejuízos da falta de sono; ele parecia cansado mas
bem por ter um trabalho.
Também falei com o senhor Casimiro enquanto apanhava sol, queria saber se
moro sozinha, onde moro, se estudo e, como me tenho vindo a aperceber que se não lhe
responder é pior, acabei por inventar as respostas às perguntas que me foi fazendo.
Hoje foi um dia com muita gente e, como estava calor, para sobremesa havia
fruta e gelado o que gerou alegria e algumas tentativas de ficar com dois gelados.
Durante o almoço continuaram os pedidos especiais seja de pão branco como do tipo de
comida.
Hoje veio um senhor novo romeno que, como não foi logo servido, disse que
éramos racistas adotando uma postura claramente defensiva.
Dia 20.2.2017 – 38ª ida ao voluntariado
Hoje estive novamente a falar com o Nicolay que estava claramente muito
cansado do trabalho que tem à noite. Falei também com uma das Irmãs do Colégio e
com uma das voluntárias que muitas vezes têm o papel de me manter na realidade em
relação ao que os utentes me vão contando, o que me deixa numa posição um pouco
ambígua entre o acreditar no que os utentes me dizem e as chamadas de atenção sobre
nem tudo o que me dizem ser “verdade” porque alguns dos utentes ou por vergonha ou
por problemas mentais vão alterando a sua história.
203
Também apareceu lá o senhor Dumitru com o seu cão – um pastor alemão com
cerca de um ano extremamente bem tratado –, foi apenas buscar água para o cão e
apresentá-lo.
Hoje à hora de servir almoço houve muito mais contacto físico da parte dos
utentes comigo: uns agarravam-me os ombros a dizer olá, outros o braço, outros davam-
me abraços, hi5’s, fist bumps, mais do que normalmente acontece hoje estavam muito
dados aos afetos e muito sorridentes e brincalhões.
Dia 24.2.2017 – 39ª ida ao voluntariado
Hoje quando cheguei não estava quase ninguém de utentes no Refeitório, talvez
por estar bom tempo, talvez por ser época do Carnaval…
Falei com o Nicolay e pedi-lhe ajuda para o meu trabalho perguntando se lhe
podia fazer algumas questões simples, nada de mais, para depois pôr no meu trabalho
para a faculdade. Ao início estava apreensivo por não saber o que lhe poderia querer
perguntar para o meu trabalho, depois aceitou mas encarou como sendo uma brincadeira
e foi só quando fiquei séria e lhe disse que era importante para o meu trabalho final do
mestrado e que também já tinha falado com o Francisco e o senhor Marcelo é que ele
disse que então ia dar “respostas a sério” e claro que podia contar com ele. Ficou para
terça-feira depois do almoço.
A Irmã pediu-me para ir limpar os tupperwares e o Nicolay veio imediatamente
ajudar-me insistindo como sempre faz que eu devia era estar na escola e não ali.
Acabados os tupperwares a Irmã foi almoçar e começaram a chegar mais utentes
e fiquei a falar com o Francisco que estava muito feliz porque tinha recuperado a
namorada (20 anos mais nova que ele) e além de ter contado detalhadamente a forma
como ela lhe apareceu a meio da noite dentro dos seus lençóis e como fizeram as pazes
e ela passou a ser sua e a estar “marcada” por si, acrescentou algo que já há algum
tempo me tem vindo a dizer mas nunca de forma tão explícita: disse-me que tudo só
tinha sido possível pela forma como eu o ajudei com a nossa conversa, a importância
que teve para ele o facto de eu calmamente lhe ter perguntado se podíamos falar, de eu
lhe ter feito questões sobre a sua vida e o seu percurso, de eu o ter ouvido e sem ter dito
muito o ter deixado a pensar e a querer mudar e ser melhor pessoa. Disse que foi como
se Deus tivesse agido através de mim para o ajudar a mudar e que o resultado de tudo
204
isso era ele agora estar tão feliz e com a sua namorada – Questão da importância do
olhar, da atenção e do afeto/afetar.
Hoje houve muitos pedidos especiais, quase podia dizer que houve um prato
diferente para cada utente, situação que pode gerar o mau hábito de pedirem sempre
comida especial…
O Nicolay e o Iury ficaram a ajudar a servir a comida e a lavar a loiça comendo
só no fim.
Veio muita gente almoçar, foi muito caótico porque havia poucos voluntários.
Dia 27.2.2017 – 40ª ida ao voluntariado
Hoje quando cheguei já lá estavam alguns utentes mas não falámos muito
porque fiquei a dobrar sacos de plástico conforme foi pedido pela Irmã.
Entretanto falei com o Iury e o Nicolay que tinham de se despachar porque iam
trabalhar depois do almoço.
Quando a Irmã estava a ir almoçar apareceram três senhores angolanos novos, o
que me permitiu assistir ao acolhimento destes novos utentes de perto: vinham com um
documento da JRS a sinalizar que poderiam ir ao Refeitório e foi-lhes dito que não
perdessem esse papel e dessem os seus documentos de identificação (no caso os
passaportes) para que fossem fotocopiados para depois serem devolvidos – Pergunto-
me que tipo de explicação/justificação terá aqui a JRS para que tenham dado os
documentos de identificação (uma das coisas mais importantes das pessoas sem-
abrigo) assim tão prontamente a uma pessoa desconhecida… - De seguida, foi-lhes
explicado o horário do Refeitório, as refeições, as instalações e as possibilidades de
usufruto deste espaço acabando com “mas como vocês vêm da JRS já devem saber isto
que vos estou a dizer”.
A Irmã foi almoçar e fiquei a falar com uma das voluntárias sobre o Carnaval e
os próximos passos do meu trabalho, nomeadamente quem é que eu pretendia
entrevistar para o trabalho. Quando disse que gostava de falar com o Iury a resposta foi
a de que irá ser algo muito complicado porque a história dele é muito triste e ele
raramente se abre com alguém porque tem vergonha da sua história…
Houve uma pausa de silêncio e a voluntária contou-me a história do Iury: tem 30
anos, vivia com a sua mulher na Ucrânia de forma estável economicamente e vendeu
205
tudo o que tinha para vir para Portugal com a mulher, tendo entrado legalmente no país.
Estando cá há apenas duas horas sofreu um acidente no qual partiu a coluna; teve de ser
operado de urgência e este um mês em recuperação. Quando saiu do hospital descobriu
que a mulher se tinha casado com um português e iniciou-se uma grande revolta: estava
a viver num albergue em Xabregas com péssimas condições cujos utentes são tratados
como animais e, como se recusava a tomar os medicamentos (porque na Ucrânia era
desportista, praticava kickbox), foi expulso do albergue e passou a dormir na rua.
Quando chegou a primeira vez ao Refeitório ainda tinha pontos nas costas e não falava
com ninguém nem em português nem em inglês, o que foi bastante complicado ao
início. Agora, segundo esta voluntária que o acompanha nas consultas, já está mais
calmo apesar de ter descoberto que tem hepatite C – o que na altura acordou a revolta
contra a ex-mulher. No entanto, tem muita vergonha da sua história por isso raramente
fala disso. Esta voluntária contou-me ainda que o Iury lhe tinha dito que nunca passava
fome uma vez que em caso de fome havia muitos pombos no sítio onde dormia podendo
matá-los e alimentar-se deles…
A Irmã chegou e servimos os almoços. Hoje chegou ainda mais um senhor novo,
o David, amigo do Vladimir. Hoje houve Pepsi ao almoço, uma garrafa para cada um, o
que os deixou felizes e fez com que nenhum quisesse ficar sem aquilo que lhe era
devido, exigindo a sua Pepsi. Hoje não houve reclamações da comida ou pedidos
especiais.
Dia 28.2.2017 – Entrevista a Nicolay
A entrevista realizou-se num café na estação de metro do Campo Grande.
Nicolay insistiu que não queria falar no espaço do Colégio e que me queria pagar um
café. Durante a entrevista sempre que falávamos do espaço onde vivia fazia “shiu”
depois de responder, o que me deixou a pensar que não haveria de ser propriamente a
forma mais legal de habitação. Depois da entrevista insistiu em pagar-me ainda mais um
café e contou-me que por dia consome cerca de 17-18 cafés e que não dorme há 3 dias
por causa do trabalho. Quando terminámos o café disse que ia trabalhar agora às
15horas e só saía às 6horas da manhã.
Dia 31.3.2017 – 41ª ida ao voluntariado
206
Depois de um mês sem ir ao Refeitório por motivos académicos (Doutoramento)
voltei a ir mas para recomeçar fui só à hora de almoço para servir os almoços e lavar a
loiça.
Notei algumas diferenças no ambiente do Refeitório: estavam mais utentes e
alguns utentes novos, um senhor Nuno, um senhor Dodi; alguns utentes estavam
diferentes ou porque tinham cortado o cabelo ou porque estavam mais alegres ou porque
não estavam bem mentalmente, como o caso do senhor Luís.
O senhor Ivan, o Marcelo e o Francisco ficaram contentes de me verem e
perguntaram como é que eu estava.
Servi os almoços e chegou o Iury. Vinha ajudar, não queria almoçar, veio ao
Refeitório porque é o seu “lugar seguro” disse ele a uma das voluntárias. Está feliz
aparentemente e a dormir num centro de recuperação/reinserção – Ideia: falar com ele
por já ter sido sem-abrigo e agora estar em processo de recuperação.
Fiquei a lavar a loiça e depois fui embora.
Dia 3.4.2017 – 42ª ida ao voluntariado
Quando cheguei ao voluntariado estava lá o Francisco e o Marcelo; um pouco
depois chegou o Jallah e foi pôr a mesa. O Marcelo contou-me que a sua situação com o
Brasil não tinha melhorado, ia ter de ir lá para uma reunião de 5-10 minutos para não ser
dado como tendo abandonado o seu trabalho. Falou-me da dificuldade de ter perdido a
sua brasilidade porque tem sido melhor acolhido e ajudado por Portugal do que pelo seu
país de origem e de como tem sido um processo muito lento e complicado.
O Francisco falou-me de como estavam as coisas com a sua namorada e com a
sua vida no geral.
Quando chegou o senhor Ivan pediu-me que o ajudasse a preencher os papéis do
passe porque ele não percebia bem aquilo que era pedido.
Entretanto a Irmã foi almoçar e os utentes foram chegando.
Servimos os almoços, distribuí as caixas e depois fui embora.
Fiquei a saber que o Iury, o Nicolay e um dos senhores nepaleses estão todos no
centro de reinserção/recuperação.
Dia 10.4.2017 – 43ª ida ao voluntariado
207
Hoje quando cheguei ao Refeitório já estava a maioria das coisas feita e tive um
desentendimento com a Irmã Celeste.
Esperei pela hora do almoço enquanto falava com o Marcelo e o Francisco e
depois servi os almoços e entreguei as caixas.
Hoje veio uma senhora nova para passar a usufruir dos serviços do Refeitório e
pude observar como é a receção aos novos utentes. A senhora vinha com um papel da
JRS assinado por uma das assistentes sociais que comprovava que poderia ter acesso ao
Refeitório e a Irmã perguntou se na JRS já lhe tinham explicado todo o funcionamento
do Refeitório e as regras, ao que a senhora respondeu que sim, tinham-lhe dito que o
almoço era às 13horas. A Irmã acrescentou que domingo estava fechado, que sábado só
abria das 10horas às 11/11h30 e que poderia levar no sábado algo que precisasse para
domingo e que no Refeitório também poderia tomar banho e ter acesso a roupa lavada.
Também foi interessante hoje conversar com dois rapazes novos, angolanos, o
Calisto e o outro que não cheguei a saber o nome e que me falaram sobre a sua procura
de emprego, nomeadamente sobre como funciona a JRS e o seu apoio nessa área, que se
pode resumir, nas palavras de um deles, do seguinte modo: “Aquilo abre às 10horas, tu
chegas cedo e ficas à espera que te chamem durante muito tempo. Depois dão-te uma
lista, um telefone e dizem «Tens a lista, o telefone, agora liga» e tu ficas a ligar até
conseguires." Dizem ser uma perda de tempo. Procuram trabalho na área da restauração
para terem um contrato ou uma promessa de contrato e assim conseguirem os
documentos. É um ciclo em que muitos dos utentes se encontram e em relação ao qual
alguns já nada fazem. Estes dois rapazes, agora que já têm passe de metro, têm andado
por Lisboa toda à procura de trabalho.
Dia 14.4.2017 – 44ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei mais cedo do que o habitual e fiquei a conversar com a Irmã
enquanto ela fazia o almoço. Tratei de separar as bananas e pôr a loiça na máquina.
Quando cheguei estavam só lá o Nicolay e o Iury, sendo que o Nicolay não
almoçou porque tinha de ir trabalhar mas tivemos tempo para falar. Disse que já não me
via há algum tempo, perguntou onde é que eu tinha estado e eu respondi-lhe que tive de
me ausentar por um mês por causa da preparação para o Doutoramento. Ele ficou
espantado e disse que eu estudo muito e que devia começar a pensar em trabalhar.
Perguntou-me depois se eu já tinha falado com toda a gente que precisava para o meu
208
trabalho (colocando o braço em cima dos meus ombros num gesto de afetividade). Eu
disse-lhe que não, que estava a ser difícil falar com as pessoas e ele chamou um dos
seus amigos, o Igor, e disse-lhe para falar comigo e disse-me para explicar ao Igor o que
eu precisava. Assim o fiz e marcámos uma entrevista para terça-feira que terá de ser
mantida numa linguagem muito simples porque o Igor não fala muito português.
Fui preparar a caixa com o almoço do Nicolay e entreguei-lha. Ele agradeceu e
riu-se um pouco com uma piada que tem em relação a mim. Antes de ir embora disse
que quando não tivesse trabalho aparecia no Refeitório para conversar mais um
bocadinho comigo porque gostava de conversar comigo e deu-me um abraço e um
beijinho na cabeça como sinal de afeto.
Voltei a ajudar a Irmã, a outra Irmã e a Viviana (que é uma utente mas hoje
estava como voluntária a ajudar a tratar do almoço). Fui tratar da loiça e entretanto
chegaram os dois rapazes angolanos que ficaram a falar com a Irmã e a Viviana sobre a
barba e a sua pele. Seguiram da pele para a diferença entre a pele dos homens e das
mulheres, dos pretos, dos “latons” (mulatos) e dos brancos, para as questões do racismo
ser mais forte nos “latons”, para mostrarem fotografias da família e falarem das
semelhanças e da cor da pele.
Fui tratar do pão e quando voltei à conversa estavam a falar do Trump e da III
Guerra Mundial. Disse-lhes que esperava que não acontecesse pois seria chamada para
combater e eles ficaram espantados porque na Angola só os homens é que iam à tropa e
combatiam em guerras. Começaram os três a falar do seu país e a imagem que passaram
foi bastante negativa. Falaram da obrigatoriedade de ir à tropa, tendo um deles ido e o
outro sendo considerado “faltoso” por não ter ido, sendo que acabou por “fugir” para cá;
falaram das mortes que há lá, da pobreza, dos preços excessivos de bens básicos como o
leite face ao álcool que é muitíssimo barato, o que resulta bem em tempo de eleições,
segundo eles, porque é um “povo de bebedeiras”; falaram das tentativas de
manifestações para mudar as coisas mas que rapidamente dispersam devido à força
policial. Falaram ainda das questões climatéricas e ainda teriam falado mais das más
condições do seu país de origem se não tivesse chegado a hora de servir os almoços.
Perto do momento de servir os almoços chegou o senhor Agostinho que me
perguntou pela Isabel porque lhe tinha dado o seu currículo na esperança de arranjar
trabalho na área da metalúrgica que era a sua especialidade. Disse-lhe que a Isabel não
209
estava. Chegou também o senhor Casimiro que perguntou por mim e chegou ainda o
Francisco.
Servimos os almoços, entreguei as caixas e os lanches e fui embora.
Dia 17.4.2017 – 45ª ida ao voluntariado
Quando cheguei hoje ao Refeitório estavam lá a Viviana e o Nicolay a ajudarem
a Irmã a descascar alhos e cebolas. Fui ajudá-los enquanto o Francisco assistia ao
trabalho dos outros – motivo para a Irmã dizer ao Nicolay que ele é o “único que se
aproveita dali”, ele e o Iury, por isso é que ela lhes pede ajuda. O Nicolay perguntou
pelo meu trabalho e pela Páscoa e eu retribui as perguntas, disse-me que passou a
Páscoa a trabalhar.
Enquanto a Viviana e o Nicolay acabavam de descascar as cebolas apareceu um
senhor novo, o senhor António. Trazia um “papel da técnica” que apesar de ter data de
março ele insistiu que a técnica tinha dito que ele podia entregar na mesma. Aproveitei
para perguntar à Irmã como funciona a autorização/admissão de novos utentes e ela
explicou-me que eles em princípio devem vir sempre acompanhados de um papel
preenchido pela JRS, no caso de serem estrangeiros, ou por uma técnica, caso sejam
portugueses. Diz que muitos invertem o processo e que aparecem primeiro no Refeitório
e só depois é que são encaminhados para as técnicas que devem descrever
resumidamente cada situação de cada utente nessa declaração que emitem
demonstrando a necessidade do utente usufruir do Refeitório. A Irmã diz também que é
uma questão de segurança e organização para se saber que o utente está a ser
acompanhado. Perguntei-lhe, ainda, se o regulamento do Refeitório era o conjunto de
regras que estava colado na parede. Disse que sim e tirei uma fotografia a esse
regulamento.
Depois das tarefas feitas o Nicolay agarrou-me num braço e levou-me até ao
café no fim da rua, apesar de dizer e demonstrar que não queria ir nem queria café.
Insistiu e levou-me por um braço com ele dizendo que eu devia beber um “suminho” e
comer um “bolinho”. Aproveitei para lhe perguntar pelo trabalho e pela questão dos
documentos. Disse-me que lhe tinham roubado tudo e que está à espera que chegue o
passaporte. Já está à espera há 18 anos e diz que como esteve sem título de residência
tanto tempo vai ter de pagar uma multa de 900€. Diz que a culpa de tudo é do SEF e que
sempre que é apanhado pela polícia já tem um cartão com o nome e o número de
210
telefone de dois agentes da polícia do Campo Grande – Penso que este café não foi só
um gesto ou uma tentativa de demonstração de afeto mas também uma forma de
continuar o discurso/conversa que tinha tido na entrevista que lhe fiz na terça-
feira de Carnaval. De certa forma, todos aqueles com quem falei para o trabalho
fazem questão de me ir mantendo a par da evolução das suas
situações/problemática com que se deparam: o Francisco fala-me da mudança do
sítio onde dorme (da estação do Oriente para uma fábrica abandonada, há já
quatro meses), bem como das suas relações de amizade e amor; o Marcelo fala-me
da dificuldade em vender a casa que tem no Brasil, bem como da obrigatoriedade
de se apresentar para uma avaliação médica no Brasil, situação que gerou uma
grande revolta chegando à negação da sua cidadania brasileira, preferindo e
querendo obter a cidadania portuguesa; o Nicolay fala-me da questão dos
documentos e do seu trabalho.
Acabado o café regressámos ao Refeitório e os ânimos estavam exaltados: um
dos utentes tinha tentado agredir um outro utente por causa da ordem dos banhos e a
Irmã teve de intervir e chamar a segurança e deu ordens para que todas as portas
ficassem trancadas até ao seu regresso e que não se desse nada aos utentes, nem toalhas.
O utente que queria agredir o outro utente regressou e depois de uma conversa com a
Irmã e a Isabel foi embora. Os ânimos acalmaram e servimos os almoços. Entreguei as
caixas e fui embora.
Dia 21.4.2017 – 46ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei um pouco mais tarde ao Refeitório e quando cheguei estava lá a
Irmã, uma rapariga com cerca de 10-12 anos e alguns utentes: o senhor Mário, o Jallah,
o Galvino (que regressou aparentemente ao Refeitório) e o Nicolay.
Quando cheguei, ainda não tinha entrado no Refeitório e o Nicolay já estava a
falar comigo e a querer saber de mim.
Estive a conversar com a Irmã sobre a forma como vai o trabalho e a arrumar as
caixas e depois o Nicolay recebeu um telefonema do seu “patrão” a pedir que fosse
trabalhar hoje à 1hora da manhã. Terminou o telefonema bastante revoltado. Diz que
recebe apenas 5€ à hora seja um trabalho durante o dia ou durante a noite mas que
pagam cerca de 10/12€ ao seu patrão por hora e que ele apenas dá 5€ aos seus
empregados. A Irmã perguntou a que horas acabava o trabalho e ele disse que não sabia,
211
que acabava quando acabasse e que se ele não fosse chamavam outro. Ficámos os três a
discutir sobre essa questão de um enriquecimento de uns e do empobrecimento de
outros, bem como da forma desumana como estas pessoas empregadoras se
aproveitavam de quem está sem documentos e desesperado para arranjar trabalho
porque caso um não fosse trabalhar tinham muitos outros a quem chamar.
Depois desta revolta tentou novamente que eu fosse beber café com ele e eu
tornei a recusar, não é uma situação com que me sinta bem e achei melhor distanciar-me
apesar de toda a ajuda recebida em relação às entrevistas e esperando não ter causado
mau ambiente no futuro. Ele não aceitou que eu tivesse recusado e continuou a insistir
que íamos beber um “cafezinho” até que a Irmã interveio e disse que eu não podia
porque era comprometida, ao que ele respondeu “também não seria para casar…” e
depois deixou de insistir indo embora do Refeitório durante bastante tempo.
A Irmã esteve a contar-me que ontem houve uma grande confusão no Refeitório
que resultou na expulsão permanente de um dos utentes, o senhor Norberto. Contou-me
que ele e o senhor Luís se tinham pegado um com o outro incluindo cadeiras nesse ato
de violência que decorreu no momento em que o Refeitório estava cheio com os
almoços a serem servidos. Relatou-me tanto o conflito como o papel de cada
interveniente: uma das voluntárias levou imediatamente o carrinho com a comida para
dentro e recolheu todas as facas; um dos voluntários mais jovens recolheu-se no
escritório para fugir à confusão; os noviços tiveram de separar os dois utentes que
estavam numa luta aguerrida; a Irmã pôs um deles dentro da cozinha para separar os
dois, acabando esse utente que foi para a cozinha por pular a janela para voltar ao
conflito. No fim foi necessário chamar a polícia e os documentos do senhor Norberto
foram enviados “lá para baixo” (provavelmente para a entrada do Colégio como aviso
de não deixarem que entre nas imediações; ou então para as assistentes sociais para
tomarem conhecimento do sucedido), deixando ele de poder frequentar o Refeitório.
Aparentemente todo este conflito começou porque o senhor Luís tinha
alimentado o cão do senhor Norberto há uns dias, situação que causou grande confusão
ao senhor Norberto que estima muito o seu cão e só ele o pode alimentar, a partir daí
teria sempre havido um clima de tensão até que ontem terá sido a gota de água.
Perguntei à Irmã porque é que tinha sido só o senhor Norberto a ser expulso
quando estava também o senhor Luís no conflito. Disse-me que o senhor Luís é pobre
mesmo, enquanto o senhor Norberto se não for comer ali tem mais onde se alimentar.
212
Também questionei o papel dos outros utentes no meio de tanta confusão. Diz que uns
ficaram quietos, o Iury interveio para separar os dois que lutavam e que no fim lhe
disseram que ela tinha sido muito forte e agido muito bem.
Entretanto a Irmã foi almoçar e chegou o senhor Ivan com o seu saquinho para
eu encher com pão e bolos e pediu-me uma caneta para apontar algo que não entendi o
que seria. Quando veio devolver a caneta disse spasibo, explicando que era como se
dizia obrigado em russo. Repeti a palavra e perguntei-lhe como se dizia “de nada” ou
“you’re welcome” ao que ele respondeu que não existe, não é preciso lá.
Ligaram da entrada a dizer que estavam a ver o Eudízio (o utente que tinha
causado confusão na segunda-feira por estar embriagado) a circundar os prédios ao pé
do Colégio com uma garrafa na mão e que parecia um pouco alterado, se o deviam
deixar entrar ou não. Disse ao senhor da entrada que a Irmã não estava porque tinha ido
almoçar e devia voltar daí a cerca de 20 minutos mas que se o Eudízio parecesse estar
bem que deixasse entrar mas se parecesse alterado que não permitisse a entrada no
Colégio. – Esta situação dos conflitos no Refeitório tem vindo a deixar uma
sensação de falta de segurança. Esta semana aconteceu por duas vezes momentos
de conflito - segunda-feira e quinta-feira – deixando tanto os utentes como os
voluntários em sobressalto. É intrigante o porquê de terem acontecido estes
conflitos só agora e o que os motivou e a forma como foram resolvidos os dois de
forma diferente. Revela um pouco o que é importante para estas pessoas sem-
abrigo ao ponto de porem em jogo a ida ao Refeitório – espaço onde podem contar
com alimentação, banho, roupa e relações sociais mantidas, bem como com algum
tipo de proteção associado ao acompanhamento por parte das técnicas e das
voluntárias.
Chegaram também o outro senhor Ivan, o Igor e mais um dos senhores
ucranianos que aparentemente conduz um carro (com bom aspeto e recente) e dá boleia
ao senhor Ivan por este ter mobilidade reduzida (anda sempre com uma muleta).
Hoje houve grande agitação com o grupo dos senhores ucranianos. Falavam
entre eles com caras muito zangadas e numa língua que não reconheci (presumo que
seja ucraniano), apontavam para papéis e para os telemóveis, liam sms’s uns aos outros,
sempre num tom de voz conflituoso…
213
O Igor veio falar comigo. Foi uma situação nova. Ao início ele não sabia muito
bem o que me vinha dizer e parecia um pouco atrapalhado mas lá acabei por perguntar
como ele estava hoje, disse-me que mais ou menos e quando perguntei o motivo ele
limitou-se a encolher os ombros. Falámos do programa sobre animais da National
Geographic que estava a dar na televisão que ele disse ser “impróprio” para passar na
televisão por causa das crianças que poderiam assistir. Mostrou-se particularmente
preocupado com a rapariga pequena que tinha estado no Refeitório de manhã, se ela
tinha assistido ao programa, se não lhe faria mal ver aquelas imagens. Disse-lhe que a
rapariga já tinha ido embora e que não tinha assistido a nada mas que pelo menos cá em
Portugal aquele tipo de programas passava abertamente na televisão. Ficou descansado
e calado a olhar para mim enquanto acenava com a cabeça. Depois iniciou conversa
novamente mas desta vez a falar do conflito do dia anterior. Disse que eles eram os dois
malucos, que a culpa tinha sido do senhor Norberto, o “marquês”, que tinha tomado
“picada drunfada” (portanto presumo que estaria a dizer-me que o senhor Norberto
estava sob efeito de drogas) e que a Irmã tinha ficado muito chateada com eles porque
ninguém a ajudou e a tinham deixado sozinha. Diz que não foi bem assim e que às
vezes se chateia com a Irmã porque lhe pede sabão e ela tendo o sabão diz que não tem
e não lhe dá porque ele se “porta mal” – ele concorda com essa afirmação, diz que
quando se chateia com a Irmã também não fica lá muito bem, que não são só os dois
utentes do conflito do dia anterior que eram malucos, que ele também era às vezes,
quando se chateava e depois ia para as picadas. Disse que de facto às vezes ele também
não estava bem e se portava mal como a Irmã dizia. Ficou pensativo. Para o sossegar
disse-lhe que toda a gente às vezes se chateia e se porta menos bem mas o importante é
entender isso e passar a portar-se bem. Avisou-me que vinha aí a Irmã e perguntou se
ela fazia orações muitas vezes – Como o português dele ainda não é muito bom e a
pergunta foi tão espontânea ao início não entendi o que queria dizer mas é
interessante que este tipo de pensamentos lhe ocorram e que os partilhe comigo.
Mais uma vez noto a importância para estes utentes do Refeitório de haver alguém
que os ouça, que lhes pergunte pela sua vida, pelas suas ambições, pelo seu futuro,
pelo passado, que queira saber deles enquanto pessoas e não como um conjunto de
sem-abrigo, que disponha de tempo para ouvir o que os preocupa e o que escolhem
partilhar acerca das suas vidas. – Disse-lhe que sim, que a Irmã deve rezar muitas
vezes ao que ele me respondeu que ele não, só quando as coisas estão mal é que reza
dizia rindo-se.
214
A Irmã chegou e servimos os almoços. Pediram muito pão, o que já era
expectável porque o almoço tinha muito molho. Pediram lanches especiais, quase como
quem me ensinava como escolher os lanches para cada um ou então como dando um
conselho ou fazendo um pedido “às escondidas” da Irmã.
Um momento interessante foi quando chegou o senhor Rogério que anda sempre
de phones a ouvir música. Chamei-o várias vezes para lhe perguntar onde devia colocar
o seu prato, qual seria o seu lugar. De todas as vezes não obtive resposta. Um dos
utentes que estava perto dele puxou-lhe a manga do casaco para informar que eu o
estava a chamar e ele respondeu: “Eu sei, eu ouvi”. Esta sua defesa de como está a ouvir
música à partida não nos ouve logo não tem de nos responder é interessante; o poder de
escolha de ignorar alguém apesar de ter ouvido as várias chamadas.
Entreguei as caixas e os lanches e fui embora. Encontrei o senhor Ivan e o outro
senhor Ivan lá fora que se despediram de mim a sorrir, dizendo também algo que não
entendi bem.
Dia 28.4.2017 – 47ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei novamente um pouco mais tarde ao Refeitório. Quando cheguei
estava lá uma senhora que costuma ir ajudar de manhã e a Irmã que me disse que iria
ficar a dobrar sacos. Já estavam alguns utentes: o senhor Mário, o Francisco, o Iury, o
Dody, o Galvino e o Paulo que estava a lavar a loiça enquanto os restantes viam um
programa sobre a vida animal na televisão.
Comecei a dobrar os sacos como a Irmã tinha pedido e, como eram muitos, a
Irmã chamou também o Iury para vir aprender como se dobra os sacos e ajudar-me. Foi
interessante ver a reação do Iury a esta situação de aprendizagem: como era um
processo um pouco complicado e com alguns passos fui explicando calmamente até que
ele me disse primeiro em inglês e depois em português que não era burro. Eu disse-lhe
que sabia que ele não era e que não tinha insinuado isso, estava apenas a ensinar-lhe
uma coisa nova.
Depois começou a enrolar os sacos e disse que pareciam “mortalhas”, brincando
como se estivesse a fumar o saco. Perguntou-me se eu sabia o que eram mortalhas e eu
disse que sim, o que o deixou espantado.
Já quase no fim de dobrarmos os sacos todos chegou um dos rapazes nepaleses e
o Iury chamou-o apenas com gestos dizendo para ele o observar e aprender como se
215
dobram os sacos. Executou o processo e depois disse ao rapaz nepalês para fazer no
saco seguinte É interessante como estas pessoas que não falam a mesma língua
partilham o que aprendem uns com os outros sem terem de usar palavras; a língua
aqui não serve de impedimento da comunicação e da aprendizagem que se faz
observando e repetindo.
Uma situação interessante de hoje foi a reação da Irmã e de uma das voluntárias
ao facto de o Francisco entrar pela “porta dos voluntários” quando vai buscar os sacos
com caixas de comida à entrada. A conversa que se seguiu foi a voluntária a perguntar
porque é que ele (o Francisco) entrava por aquela porta quando trazia os sacos com a
comida e a Irmã a dizer que não sabia porquê mas que era assim; a voluntária riu-se e
disse que pronto nesse caso era assim mas que ele deveria entrar pela “porta deles”
Vemos aqui uma situação caricata de separação entre o “eles” pessoas sem-abrigo
utentes do Refeitório e o “nós” equipa de voluntários que se observa a nível físico
na distinção entre os dois tipos de entradas no Refeitório e levanta inquietações
quando um “deles” usa o “nosso” meio de entrada no Refeitório, algo que, à
partida não seria estranho, nunca antes tinha ouvido alguém a levar essa questão
ou a olhar essa situação como problemática mas neste caso vemos então como não
só houve um estranhamento como mesmo uma inquietação face a esta alteração da
ordem de entradas no Refeitório.
A Irmã foi almoçar e eu fiquei a ver um pouco de televisão com os utentes.
Entretanto também chegaram os dois senhores Ivans e mais alguns utentes.
Quando a Irmã e a Isabel chegaram aproveitei ser ainda cedo para começar a
servir os almoços para ir falar com o Galvino para lhe pedir ajuda para o meu trabalho.
Perguntei-lhe se se importaria de responder a algumas perguntas simples para me
ajudar, disse que não lhe tomaria muito tempo e perguntei que dia e hora lhe dariam
mais jeito para falarmos. Disse-me terça-feira depois do almoço, às 13h15 e que me
ajudava sim, embora tivesse ficado um pouco desconfiado e sem entender como poderia
ele ajudar-me no meu trabalho.
Servimos os almoços de forma calma pois estavam poucos utentes. A Irmã disse
que só estavam poucos porque faltavam muitos que estariam atrasados, o que a deixava
chateada É curioso como os almoços passaram de ser servidos pontualmente às
13horas para passarem a ser servidos muito mais cedo, por volta das 12h45 ou
mesmo antes, e, no entanto, a Irmã reage à falta de pontualidade dos utentes.
216
Quando acabei de distribuir os almoços, os lanches e as caixas fui embora e vi
como iam chegando cada vez mais utentes e o Refeitório se ia tornando caótico.
Quando saí vi o Galvino e mais alguns utentes a falarem e ele perguntou-me
sobre o que seria a tal conversa para o meu trabalho. Expliquei-lhe sucintamente o meu
tema de estudo e os tópicos da conversa e ele não pareceu muito convencido mas disse
que nesse caso falávamos na terça-feira.
Dia 2.5.2017 – 48ª ida ao voluntariado
Hoje, tal como combinado previamente com o Galvino, apareci no Refeitório às
13h15. Perguntei por ele e expliquei à Irmã que tinha ficado de ir falar com ele para o
meu trabalho às 13h15. A Irmã disse-me que ele já tinha estado no Refeitório, se calhar
estava lá fora. Fui lá fora, procurei e não o encontrei. Regressei ao Refeitório e a Irmã
disse-me que nesse caso se deve ter ido embora.
Foi uma situação bastante desconfortável e frustrante esta perda de uma
entrevista numa fase já avançada do trabalho; levou-me a questionar a
responsabilidade e comprometimento do utente em questão, entre outras coisas;
não deixei de pensar um pouco naquelas definições de alguns autores acerca da
instabilidade das pessoas sem-abrigo, se bem que mesmo as pessoas que não são
sem-abrigo têm momentos de esquecimento e não posso à partida rotular este
utente só por não ter aparecido para a entrevista que tínhamos marcado há mais
de uma semana atrás.
Dia 5.5.2017 – 49ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei ao Refeitório por volta das 11h30. Estava lá a Irmã, a Mariama e a
Isabel, bem como o Francisco. Quando cheguei estive algum tempo a falar com a Irmã
sobre a evolução do trabalho e depois fui tratar de secar a louça com a ajuda do
Francisco que quando chegou disponibilizou-se logo para ajudar.
Ficando o Francisco a tratar da louça fui encarregue de espremer limões.
Enquanto fazia a minha tarefa fui falando com o Francisco que me contava algumas
histórias, cantava algumas músicas para mim ou limitava-se a ficar à janela a passar
tempo.
Quando chegou o senhor Mário chamou-me baixinho a pedir um saco dos
maiorzinhos para levar uns brinquedos que estavam lá fora para os seus netos. Disse-me
217
que se fosse pedir à Irmã ela diria que não e por isso estava a falar comigo. Assim o fiz,
dei-lhe o saco e ele voltou com ele cheio de brinquedos Não deixam de ser
interessantes as formas que os utentes do Refeitório têm de escapar à figura
autoritária da Irmã, ou seja, recorrem muitas vezes a mim ou às outras voluntárias
para receberem ou mais comida ou sacos de plástico (que por norma são raros e
não devem ser dados aos utentes) ou lanches especiais (com mais bolos ou com um
tipo de comida que preferem) numa situação muito de interessante ao nível dos
dispositivos de que se servem para obterem um maior proveito da situação em que
se encontram.
Fiquei até à hora de servir o almoço a espremer limões mas aproveitei que
estavam poucos utentes para perguntar ao senhor Mário se poderia falar com ele na
próxima terça-feira por causa do meu trabalho para a faculdade. Ele disse que sim e
combinámos às 13h15 na terça-feira. Entretanto também me explicou que o Galvino
nesta terça-feira se tinha desencontrado de mim, ou seja, quando ele saiu estava eu a
chegar ao Refeitório.
Quando a Irmã chegou dispensou-me de continuar a espremer limões e fomos
servir os almoços. Quando estávamos a meio desse processo chegaram duas novas
voluntárias que distribuíram as caixas de forma atabalhoada por ainda não saberem o
nome dos utentes. Perguntei à Irmã se podia ir embora e fui embora.
Dia 9.5.2017 – 50ª ida ao voluntariado
Hoje fui até ao Refeitório às 13 horas com o objetivo de entrevistar o senhor Mário.
Tínhamos combinado às 13h15 mas para não haver desencontros cheguei mais cedo,
tendo de esperar um pouco que ele acabasse de almoçar.
Terminado o almoço o senhor Mário disse que estava pronto para falar comigo mas que
tinha alguma pressa, pelo que tentei ser breve na entrevista. Foi ele que escolheu o local
onde falar, acabando por ir para o mesmo sítio onde tinha falado com o Igor. Tendo em
conta uma vez anterior em que a televisão foi ao Refeitório para falar com alguns
utentes e fazer uma reportagem sobre o Refeitório e o senhor Mário disse
assertivamente que não queria aparecer na televisão para não ter problemas, fiz questão
de lhe pedir para gravar (tal como tenho pedido a todos os meus interlocutores) e de lhe
explicar que a gravação tem como única finalidade o trabalho da tese e que a sua
218
identidade será protegida, pelo que não se saberá que foi ele que falou comigo. Ficou
mais descansado e falou comigo.
Notou-se claramente ao falar do tópico “relações e família” que o senhor Mário ficou
bastante comovido e perturbado, tendo ficado em silêncio e com as lágrimas nos olhos
ao falar da sua mãe.
Foi interessante também notar a forma como culpa a Câmara Municipal de Lisboa pelos
seus problemas de habitação e como fala de noções como “orgulho” e “desconfiança”.
No fim da entrevista perguntou-me se já tinha falado com muitas pessoas do Refeitório.
Disse-lhe que sim e que ainda me faltavam mais quatro pessoas. Ele falou logo com o
Jallah e o seu amigo para ver a disponibilidade deles de falarem comigo amanhã e se
falavam e compreendiam bem o português. Disseram que sim e combinámos amanhã às
13h15 no Refeitório para falar com cada um deles.
Dia 10.5.2017 – 51ª ida ao voluntariado
Hoje cheguei ao Refeitório às 13horas com o objetivo de entrevistar o Jallah e o
seu amigo Yassine. Uma vez mais cheguei cedo para evitar desencontros.
Quando cheguei eles os dois ainda estavam a almoçar pelo que fui ajudando
enquanto esperava. Tratei da loiça, de distribuir caixas e de entregar gelados.
O senhor Mário arranjou-me mais uma entrevista, com o Paulo na próxima
semana Parece ficar contente de me estar a ajudar no meu trabalho. Penso que
talvez seja porque no outro dia o ajudei, sem a Irmã saber, a levar um saco com
brinquedos para o seu neto. Na entrevista dizia-me que não se dá com a família
por ser demasiado orgulhoso e não querer que um dia lhe atirem à cara que
precisou da ajuda deles mas aparentemente as suas ações contradizem as suas
palavras (situação que tem vindo a ser recorrente entre os utentes com quem tenho
falado).
Na entrevista, foi interessante ver com o Yassine falava bem português e baixou
a voz para falar sobre a sua entrada clandestina em Portugal e como Jallah transpirava
imenso mas não tirava uma única peça de roupa…talvez só tenha aquelas e precise delas
para aguentar o frio da noite…
Dia 12.5.2017 – 52ª ida ao voluntariado
219
Hoje quando cheguei ao Refeitório estava lá a Irmã Celeste, o Francisco e o
senhor Mário que encontrei a meio do caminho e que estava a olhar para imagem de São
Vicente como se estivesse a prestar adoração ao santo e depois veio a falar comigo
sobre as suas crenças.
Como foi o dia em que o Papa chegou a Fátima a televisão estava ligada na TVI
para a Irmã ir seguindo os acontecimentos. Falou-se dos vários perigos de grandes
multidões a assistir à vinda do Papa a Fátima e o Francisco disse várias vezes que “esses
malucos” se quisessem poderiam fazer tudo em situações como esta.
O Francisco mudou, a pedido do senhor Mário, de canal para a RTP2 para verem
o habitual programa sobre animais e a Irmã ficou muito chateada dizendo que hoje não
era para mudar de canal porque ela tinha dito especificamente que não se mudava e que
tem de haver respeito Interessante como a questão do respeito assume tantas
ideias no Refeitório, indo da forma como os utentes são tratados, como respeitam
as regras, como respeitam os voluntários e a Irmã, até à mudança de canal num
dia em que tal não deveria acontecer.
Quando cheguei fui tratar de arrumar a loiça e o Francisco veio ajudar, levando a
Irmã a dizer que tenho de ir eu tratar da loiça para ele ajudar com alguma coisa
Interessante a influência de uma pessoa num dos utentes do Refeitório. Estivemos a
conversar sobre vários temas desde Fátima até à confusão que vai ser à noite com a
procissão das velas, até aos riscos que há nesta ida do Papa a Fátima. Ele falou nas suas
crenças, disse que acreditava apenas “naquele que estava pregado na cruz” e que tudo o
resto era considerado um disparate.
Entretanto outros utentes foram chegando: o Jallah e o Yassine, o senhor
Osvaldo, alguns dos senhores russos, os senhores Ivan, e o tema de conversa era
mantido: as crenças de cada um, várias questões sobre Fátima e a ida a Fátima É
interessante ver como pessoas de religiões diferentes e alguns não crentes ficaram
um período de almoço inteiro a falar sobre aquele tema partilhando várias
opiniões sobre não só as suas crenças como também sobre o evento que estava a
acontecer.
Também foi interessante ver, mais uma vez, como as pessoas com quem vou
falando nas entrevista se tornam mais conversadoras comigo nas vezes seguintes,
cumprimentam-me de modo mais individual, fazem um bocadinho de conversa,
220
quase como se ao ter falado com eles os tivesse separado do restante grupo dos
“utentes” e eles fizessem o mesmo comigo em relação ao restante grupo dos
“voluntários” numa dialética que se tem vindo a manter desde a primeira
entrevista que fiz até agora quando falei com o Jallah e o Yassine.
Entretanto a Irmã foi almoçar e eu fiquei a ver televisão com os utentes que
estavam no Refeitório. O senhor Luís falava muito, como costume, sozinho e
ininterruptamente. O senhor novo (Miguel?) fazia perguntas sobre o que estava a
acontecer e os restantes mantinham-se ou em conversas entre si ou estavam em silêncio
a ver televisão.
Falei com o Paulo para combinarmos o dia e a hora da nossa entrevista. Ficou
para terça-feira às 13h15. Mais uma vez falei com o senhor Mário sobre tentar
entrevistar o Galvino e ele respondeu o que ultimamente tem respondido, que ele ou
está bêbedo por aí ou em algum hospital em coma alcoólico.
Quando a Irmã regressou começámos a servir os almoços e depois apareceram
mais voluntárias e a Irmã disse que se eu quisesse podia ir indo e eu assim fiz.
Dia 16.5.2017 – 53ª ida ao voluntariado
Hoje fui ao Refeitório com o objetivo de falar com o Paulo, tal como combinado
na sexta-feira. Cheguei mais cedo e por isso fiquei a ajudar a distribuir os almoços e a
lavar e secar a loiça.
O senhor Mário perguntou-me quantas entrevistas me faltavam depois da do
Paulo e eu disse que faltaria apenas uma e ele mais tarde disse que a Susana podia falar
comigo mas que teria de ser rápido porque ela entrava às 14h30. Assim, falava primeiro
com a Susana e depois com o Paulo.
Falei com a Susana numa entrevista muito breve e depois falei com o Paulo,
sendo que a Susana teria ido embora e depois regressou e ficou a ouvir a entrevista do
Paulo.
Quando estava a ir embora depois das entrevistas vi o Jallah a dizer adeus aos
voluntários e reparei que estava descalço, o que em dias frios e tendo de caminhar muito
ainda até Sete Rios (local onde dorme) é muito mau.
Dia 19.5.2017 – 54ª ida ao voluntariado
221
Hoje cheguei ao Refeitório um pouco mais tarde. Quando cheguei estava lá o
Francisco, um dos senhores russos, um senhor angolano, o Cris que estava na casa de
banho a rapar o cabelo e a Irmã que estava na lavandaria.
Fiquei a tratar de secar e arrumar a loiça e o Francisco ficou a ajudar enquanto
falava de um conjunto de histórias sem grande ligação entre elas e sem grande nexo.
O senhor Mário entretanto chegou e perguntou como estava o meu trabalho. Eu
disse que agora tinha apenas de o escrever porque já tinha a informação toda recolhida e
ele contou-me que tinha estado a falar com o Paulo sobre a entrevista que lhe fiz.
Entretanto chegou a Bibiana e como trazia um decote mais pronunciado causou
grande impacto e reação junto dos utentes e da Irmã que fez questão de lhe dizer para se
tapar e que não a deixava andar assim no Refeitório porque era demasiado provocadora
e depois “já se sabe como eles são”.
Pouco depois estava na cozinha a arrumar a loiça e chegou o Iury que tinha
passado a manhã no médico, no dentista e fez questão de nos explicar (a mim, à Irmã e à
Bibiana) todo o procedimento de tratamento do abcesso que tinha na boca em inglês,
pedindo-me para traduzir para português, e com um vídeo do youtube a acompanhar
caso nós não entendêssemos a explicação. É interessante ver como o Iury já fala um
pouco de português.
A Irmã foi almoçar e eu fiquei na cozinha à espera que regressasse.
Por volta das 12h30 o Francisco foi buscar os sacos e disse à Bibiana que queria
bater nos russos porque o estavam a chatear. A Bibiana depois de ele ir embora
confidenciou-me que é mais emocional do que de força física.
Quando a Irmã chegou houve alguma confusão entre o Francisco e os utentes
russos e a Irmã acabou por tomar o partido dos utentes russos dizendo aa Francisco para
se sentar e ficar sossegado, o que provocou alguma revolta nele e levou a Bibiana a falar
com a Irmã e a defendê-lo.
Foi interessante ver como a Isabel perguntou ao Iury como ele estava e ele disse
“normal”, o que levou a Isabel a dizer-lhe que ele estava bem para ele não inventar
porque agora estava bem por estar medicado para as dores.
Nos almoços houve alguma confusão por haver demasiados utentes e
demasiados pedidos especiais.
222
Outra situação de notar foi quando o Eudízio falou mal com a Isabel e com os
restantes e esta voluntária disse que se recusa a servi-lo depois disso, fazendo com que
fosse Irmã servir-lhe o almoço e dizer que se ele não se porta bem deixa de lá ir.
Quando acabaram os almoços fui embora.