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MODALIDADES DE INTERAÇÃO ADOTADAS NA SALA DE AULA E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO 1º CICLO Solange Alves de Oliveira Mendes 1 Resumo Esse estudo buscou investigar, em turmas do 1º ciclo da Secretaria Municipal de Ensino de Recife, a presença (ou não) de cooperação entre as professoras e os alunos, assim como entre eles, nas diversas proposições de atividades vinculadas aos eixos de ensino de língua portuguesa. Para isso, acompanhamos, ao longo de um semestre letivo, através de observações de aula, a prática de nove docentes, de três instituições de ensino, sendo três de cada escola, dos três anos do ciclo I. Recorremos à análise de conteúdo temática para o tratamento dos dados (BARDIN, 1977). Os resultados apontaram para uma predominância de uma prática pautada na cooperação entre as turmas de primeiro e terceiro anos, se comparadas às do segundo. Somente em uma das instituições pesquisadas, se considerarmos esse aspecto, verificamos proximidade entre as turmas de segundo e terceiro anos, apontando, portanto, para uma não homogeneidade nas escolhas didáticas e pedagógicas (CHARTIER, 2000). Apreendemos, também, durante as aulas observadas, espaço dado pelas professoras aos alunos com e sem dificuldades de aprendizagem, resguardadas algumas exceções. Por outro lado, não registramos uma frequência significativa de disputas dos educandos por participarem efetivamente das aulas. Não observamos, ainda, uma preocupação das professoras em criar alternativas de interação na sala de aula entre os alunos mais avançados para a contribuição com o aprendizado dos colegas com dificuldades. Do mesmo modo, não notamos uma transgressão das normas, por parte dos alunos em “vantagem” no aprendizado, frente aos alunos em dificuldade. Como dado geral, realçamos que as interações, quando ocorriam, predominavam entre as mestras e o grupo-classe, se contrastarmos com o alcance das trocas entre os próprios alunos. O planejamento parecia estar intimamente articulado a essa postura em sala de aula, visto que as mestras optaram, em sua maioria, por atividades individuais e/ou coletivas, ao compararmos com os trabalhos em duplas e/ou grupos. Palavras-chave: ciclo ensino de língua interação. Introdução Em decorrência do processo de transição do sistema seriado para o sistema de ciclos de aprendizagem, a partir de 2001, a Secretaria Municipal de Ensino de Recife (doravante SMER) passou a priorizar pressupostos teórico-metodológicos orientadores 1 Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola EdUECE- Livro 1 02812

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MODALIDADES DE INTERAÇÃO ADOTADAS NA SALA DE AULA E

ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO 1º CICLO

Solange Alves de Oliveira Mendes1

Resumo

Esse estudo buscou investigar, em turmas do 1º ciclo da Secretaria Municipal de Ensino

de Recife, a presença (ou não) de cooperação entre as professoras e os alunos, assim

como entre eles, nas diversas proposições de atividades vinculadas aos eixos de ensino

de língua portuguesa. Para isso, acompanhamos, ao longo de um semestre letivo,

através de observações de aula, a prática de nove docentes, de três instituições de

ensino, sendo três de cada escola, dos três anos do ciclo I. Recorremos à análise de

conteúdo temática para o tratamento dos dados (BARDIN, 1977). Os resultados

apontaram para uma predominância de uma prática pautada na cooperação entre as

turmas de primeiro e terceiro anos, se comparadas às do segundo. Somente em uma das

instituições pesquisadas, se considerarmos esse aspecto, verificamos proximidade entre

as turmas de segundo e terceiro anos, apontando, portanto, para uma não

homogeneidade nas escolhas didáticas e pedagógicas (CHARTIER, 2000).

Apreendemos, também, durante as aulas observadas, espaço dado pelas professoras aos

alunos com e sem dificuldades de aprendizagem, resguardadas algumas exceções. Por

outro lado, não registramos uma frequência significativa de disputas dos educandos por

participarem efetivamente das aulas. Não observamos, ainda, uma preocupação das

professoras em criar alternativas de interação na sala de aula entre os alunos mais

avançados para a contribuição com o aprendizado dos colegas com dificuldades. Do

mesmo modo, não notamos uma transgressão das normas, por parte dos alunos em

“vantagem” no aprendizado, frente aos alunos em dificuldade. Como dado geral,

realçamos que as interações, quando ocorriam, predominavam entre as mestras e o

grupo-classe, se contrastarmos com o alcance das trocas entre os próprios alunos. O

planejamento parecia estar intimamente articulado a essa postura em sala de aula, visto

que as mestras optaram, em sua maioria, por atividades individuais e/ou coletivas, ao

compararmos com os trabalhos em duplas e/ou grupos.

Palavras-chave: ciclo – ensino de língua – interação.

Introdução

Em decorrência do processo de transição do sistema seriado para o sistema de

ciclos de aprendizagem, a partir de 2001, a Secretaria Municipal de Ensino de Recife

(doravante SMER) passou a priorizar pressupostos teórico-metodológicos orientadores

1 Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

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de uma prática de ensino que considerasse as diferentes demandas de aprendizagem dos

educandos.

Nesse trabalho, nos propomos a analisar, a partir da lógica de escolarização por

ciclos de aprendizagem, se as práticas vinham priorizando diferentes formas de

interação nas aulas de língua portuguesa, a fim de assegurar as aprendizagens esperadas

para cada ano do ciclo I.

Ciclos de aprendizagem, interação na sala de aula e ensino de língua: eixos que se

entrecruzam

É Sabido que a organização do ensino por ciclos integra uma série de

desdobramentos que culminam em várias propostas as quais, embora sejam dotadas de

determinadas especificidades, comungam de uma concepção de organização do ensino

que assegure a continuidade das aprendizagens, a flexibilização do currículo, a

ampliação do tempo de aprendizagem, entre outros aspectos.

Mainardes (2007b) pontua que foi a partir da década de 1980 que houve uma

contribuição mais significativa da literatura acerca da organização dos sistemas de

ensino por ciclos e seus desdobramentos.

De acordo com Fernandes (2009, p. 85), a proposta dos ciclos “pressupõe a

ruptura com a ideia de uma programação ou planejamento de atividades curriculares

anuais, sob a qual todos os estudantes deveriam „dar conta‟, ao final de um único ano

letivo, de forma mais ou menos homogênea”. Entretanto, Mainardes (2007b, p. 117)

realça que a “mera expansão do tempo não significa a solução do problema da

aprendizagem dos alunos e elevação da qualidade da escola”. O autor segue enfatizando

que a implantação dessa proposta precisa ser conjugada com uma mudança, revisão nas

“concepções de conteúdos, metodologias e gestão da escola” (MAINARDES, 2007b, p.

117).

Segundo documento produzido em 2001 (PCR, 2001), a rede municipal de

ensino de Recife fez a escolha pela substituição do ensino fundamental em séries por

sua estruturação em quatro ciclos, o primeiro com duração de três anos e os

subsequentes com dois anos. Dessa forma, além de ampliar para nove anos de duração o

ensino fundamental, aquela rede, diante do desafio a que todos os sistemas públicos de

ensino estão submetidos, pretendia enfrentar o quadro alarmante que estava instalado na

educação escolar: a repetência.

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Essa e outras experiências, vivenciadas no cenário brasileiro, nas últimas

décadas, apontam para a relevância de analisarmos a proposta dos ciclos em articulação

com formas de operacionalização do ensino, a fim de apreendermos algumas das

implicações desse modelo nas práticas pedagógicas. Estariam as práticas favorecendo

maior interação na sala de aula, frente às atividades propostas, objetivando assegurar as

aprendizagens esperadas?

Como já dito anteriormente, um dos desafios postos pela escolarização ciclada é a

inserção dos aprendizes nas situações de ensino, intentando-se assegurar a aprendizagem de

todos (MAINARDES, 2009a; 2009b; 2007a; 2007b; 2001; LÜDKE, 2001).

Nesse estágio de nossa sistematização, cabe considerar alguns aspectos que

permitiriam maior alcance daquele objetivo, recorrendo à discussão da interação professor-

aluno na sala de aula (COLL; SOLÉ, 1996). De acordo com esses autores, anterior à década de

1950 essa análise não se constituiu numa prioridade a ser perseguida nem pelos pesquisadores

da área, nem tampouco pelos sujeitos protagonistas do processo educativo.

Os autores trazem à tona a defesa de conferir atenção não só para o processo de

interação quanto para os diversos fatores contextuais que convergiriam com essa perspectiva.

Passou-se, a partir de então, a valorizar a atividade construtiva do aluno, o papel atribuído ao

professor e, mais, a consideração da estrutura comunicativa do discurso educacional (COLL;

SOLÉ, 1996, p. 287). Com isso, atribuiu-se maior relevância aos ajustes que o professor

precisava lançar mão no ensino prestado, a fim de minimizar as dificuldades dos alunos. Esse é,

em nossa compreensão, um pressuposto claramente defendido numa escolarização por ciclos

(MAINARDES, 2001; ALAVARSE, 2009).

Em se tratando do ensino de língua, sublinhamos que a partir das décadas de

1980 e 1990, as discussões e concepções de alfabetização se ampliaram, desencadeando

uma reflexão sobre os usos e práticas da leitura e da escrita na escola. Segundo Soares

(1998), migrou-se “do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de fazer uso da

leitura e da escrita”. Com isso, gradativamente, o conceito de alfabetização vem sendo

articulado ao de letramento.

Assumindo a concepção de alfabetizar numa perspectiva para o letramento,

defendemos, no 1º ciclo, a articulação do ensino e do aprendizado do sistema de notação

alfabética (SNA) aos eixos de leitura, compreensão e produção textuais. Conforme

apontam Maciel e Lúcio (2008), essa nos parece, primeiramente, uma opção política.

Ao priorizar, nas aulas de língua, a interpretação e a produção textuais, questões como

“quem escreve e em que situação escreve? O que se escreve e a quem o texto se dirige”?

são suscitadas, no ato daquelas práticas.

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Os encaminhamentos didáticos, bem como as intervenções realizadas pelas

professoras expressam a articulação (ou não) com as diversas possibilidades de

cooperação em sala de aula. Analisar esse aspecto no contexto do ensino de língua e dos

ciclos de aprendizagem é o objetivo desse trabalho.

Encaminhamentos e instrumentos adotados na pesquisa

Realizamos um estudo transversal, no qual acompanhamos a prática de nove

professoras, dos três anos do 1º ciclo, de três instituições da Rede Municipal de Ensino de

Recife, durante um semestre letivo. Realizamos, em cada turma, oito observações,

totalizando 72 protocolos. Ao final do ano letivo, entrevistamos cada uma das docentes.

As práticas pedagógicas, ora tratadas, estão ancoradas em vários eixos de ensino

de língua. Para o presente trabalho, nos propomos a analisar algumas das modalidades de

cooperação adotadas em sala de aula nas atividades de língua portuguesa.

Recorremos, para o tratamento de nossos dados, à análise de conteúdo temática

(BARDIN, 1977), seguindo as etapas sugeridas por aquela autora: pré-análise, análise

do material (codificação e categorização da informação) e tratamento dos resultados,

inferência e interpretação.

Alguns Resultados

Nesse trabalho, priorizamos a discussão da presença (ou não) de cooperação

entre as professoras e os alunos, assim como entre eles, nas diversas proposições de

atividades vinculadas aos eixos de ensino de língua.

No universo dos dados obtidos, verificamos que houve predominância de uma

prática pautada na cooperação entre as turmas de primeiro e terceiro anos, se

comparadas às do segundo. Esse trabalho implicou numa visível prioridade à explicação

prévia das atividades propostas. Se, por um lado, apreendemos um espaço dado pelas

mestras às contribuições dos educandos com e sem dificuldades de aprendizagem,

resguardadas algumas exceções, por outro, não registramos uma frequência significativa

de disputas dos educandos por participarem efetivamente das aulas.

No conjunto das observações, não registramos uma preocupação das mestras

em autorizar a contribuição dos alunos mais avançados para o aprendizado aos colegas

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em dificuldades. Do mesmo modo, poucas foram as intervenções que aqueles deram a

esses últimos, ao optarem pela transgressão das normas estabelecidas pelas professoras.

Considerando, no universo das práticas acompanhadas, a predominância (ou

não) de um trabalho cooperativo da mestra com o grupo-classe, identificamos, de

imediato, uma postura semelhante por parte das professoras do primeiro e terceiro anos

da escola A, no que se refere a esse aspecto. Em sete das oito aulas observadas,

verificamos a presença de algum tipo de cooperação, no decorrer das atividades

propostas. Vale ressaltar, entretanto, nas duas turmas, que prevaleceram as interações

entre as mestras e o grupo-classe, se compararmos ao alcance das trocas entre os

próprios alunos. Acreditamos que esse dado estava vinculado, também, ao que se

priorizava, já que, a nosso ver, as atividades pareciam sinalizar para opções de

determinados encaminhamentos adotados em sala de aula, que privilegiavam aquela

modalidade de interação predominante. A fim de embasar essa hipótese, salientamos

que, nas duas turmas, houve dominância de tarefas individuais e coletivas, se

contrastadas às atividades em duplas e/ou em pequenos grupos.

A despeito desse assunto, Coll e Colomina (1996, p. 298) apontam que a

predominância dessas relações estabelecidas entre professor e alunos desencadeou, por

um longo tempo, um real desinteresse pelas interações entre os alunos, assim como

pelas implicações que essas últimas assumiam quanto aos resultados dos objetivos

educativos.

Parece coerente apontar que essa modalidade de cooperação (professora-

alunos), no exemplo do primeiro ano da escola anteriormente referida, atingia, de forma

mais sistemática, o grupo de aprendizes que se destacava no acompanhamento das

atividades sugeridas pela professora. Nessa mesma turma, também pudemos observar

momentos em que esse diálogo não ocorreu nem com aquele grupo de alunos.

Entendemos que a ausência de inserção dos alunos dessa turma, em sua

maioria, na realização da atividade proposta na quinta observação, cujo enfoque foi o

sistema de notação alfabética, após leitura de texto pela professora, mobilizou essa

profissional a impor outra tarefa que, do ponto de vista de sua operacionalização,

funcionou como mecanismo de controle, mesmo que provisório, do comportamento dos

aprendizes: o ditado de palavras. Essa opção corrobora com o que assinala Perrenoud

(1994, p. 122) ao enfatizar que “as tarefas consignadas aos alunos resultam,

essencialmente, de uma lógica de controle”. Embora a professora reconhecesse a não-

conclusão da tarefa precedente por parte deles, recorreu a essa alternativa.

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Em alguns momentos, os próprios educandos, burlando as regras da tarefa,

ajudavam-se entre si. Essa alternativa reflete o que Perrenoud (1994) sublinhou quanto

às estratégias2 defensivas adotadas pelos educandos, a fim de “jogarem com e não

agirem conforme as regras”. Um exemplo de ajuda ao colega ocorreu durante a escrita

das palavras “anta e canta” em que um dos alunos admitiu não saber grafá-las e, de

imediato, o outro realizou a partição oral da palavra em letras, no intuito de cooperar.

O tempo disponibilizado para conclusão das atividades, durante as aulas

acompanhadas, era insuficiente. Diante das limitantes condições de produção, os

aprendizes costumavam aguardar o momento da correção, a fim de copiar as palavras,

as respostas, visto que a mestra, habitualmente, corrigia as atividades no quadro. Ao

mesmo tempo em que essa revelou ser uma tática (CERTEAU, 1994; 1985) constante,

por parte de alguns aprendizes, a mestra parecia ter clareza de que essa realidade estava

presente, entretanto, não demonstrava incômodo em intervir, dada a baixa expectativa

que ela parecia ter quanto à aprendizagem de alguns alunos, especialmente os que

apresentavam dificuldades.

Remetendo-nos à turma do terceiro ano, da mesma instituição (escola A),

assinalamos que, ao contrário do primeiro ano, a professora buscava encaminhar as

atividades objetivando a inserção de todos os aprendizes em sua realização. Tratava-se

de um grupo de alunos com histórico de retenção, de uma evidente dispersão na sala de

aula. Por vezes, reconhecemos o esforço da mestra em inseri-los, mesmo que, para isso,

houvesse uma flexibilidade tal, que comprometesse o objetivo da tarefa.

Um exemplo desse procedimento ocorreu na primeira observação de aula em

que a mestra enfocou o tema: folclore. O objetivo inicial, com o uso do dicionário, foi

assegurar a exploração da ordem alfabética, localizando a palavra folclore. Entretanto,

após várias tentativas, a mestra percebeu que poucos alunos localizaram. Com isso,

rompeu com o objetivo inicial e apontou, oralmente, a página em que a palavra se

encontrava. Com isso, ficou fácil dar conta da outra etapa da atividade: copiar no

caderno o significado da palavra enfocada.

Reportando-se à ferramenta didática phono voltada ao desenvolvimento de

competências fonológicas na grande section,3 Goigoux (2003) destaca que é crucial o

desenvolvimento de uma planificação do ensino, ou seja, entre outros critérios, o autor

2 O sentido atribuído à “estratégia” aqui se assemelha ao conceito de “tática” desenvolvido por Certeau

(1985). 3 A “grande seção” é o último ano da educação infantil na França.

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defende, no planejamento, a antecipação das operações intelectuais a serem mobilizadas

pelos educandos durante a atividade. Conforme observamos na prática da professora do

terceiro ano da escola A, naquela aula em específico, houve uma ruptura nesse processo

que, na nossa compreensão, comprometeu não só o objetivo da atividade, quanto o

resultado alcançado pelos alunos.

Em se tratando da mesma professora, admitimos a relevância de tentar inserir

alunos que não tinham autonomia, ainda, na leitura de textos, enunciados; na atividade

mencionada anteriormente. Essa foi uma postura mantida ao longo das observações.

Embora recorresse à participação dos educandos que demonstravam um nível avançado

quanto ao desempenho nas atividades que envolviam os diversos eixos de ensino de

língua, buscava, de início, engajar aqueles que, visivelmente, tinham dificuldades.

Diferentemente das professoras anteriormente mencionadas, não verificamos,

no caso da mestra do segundo ano (escola A), esse trabalho de cooperação, por ocasião

das observações. As atividades sempre eram realizadas com intervalos curtos e, assim

como no caso das professoras do primeiro e terceiro anos, privilegiou-se a correção

coletiva.

No que se refere ao trabalho cooperativo na escola B, realçamos que houve

semelhança com a escola A nas formas de proceder das professoras do primeiro e

terceiro anos. Elas buscavam inserir os educandos nas atividades, de modo a assegurar a

participação efetiva de todos, em todas as aulas observadas, reconhecendo, claro, as

especificidades dos anos-ciclo.

Ao contrário do primeiro e terceiro anos dessa escola, identificamos, no

segundo ano (escola B) uma tímida, mas real diferença de predominância de um

trabalho não cooperativo em cinco das oito aulas acompanhadas. No caso desse

ano/turma, notamos, de início, uma evidente preocupação em dar continuidade a um

trabalho de reescrita de contos, o qual já vinha sendo realizado desde o final do primeiro

semestre. Porém, na medida em que avançávamos nas observações, notamos um

“descompromisso”, por parte da professora, em planejar, inserir os educandos na

dinâmica das atividades.

Na Escola C, somente a professora do primeiro ano conseguiu estabelecer, em

todas as aulas observadas, uma prática de cooperação com os alunos (COLL; SOLÉ,

1996). Em alguns momentos, inclusive, agrupava-os por níveis de escrita, a fim de

melhor propiciar a aprendizagem (OLIVEIRA, 2006; 2004). A atividade de cruzadinha

com e sem o banco de palavras, expressou um pouco essa preocupação da mestra com a

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inserção de todos os alunos. Nessa turma, apesar de alguns destaques quanto à leitura e

escrita de palavras e até de textos, nesse último caso, dominado por um grupo

minoritário, em momento algum a professora sinalizou para um prediletismo para com

alguns dos educandos. Algo curioso, que ocorreu nessa turma, foram as escassas

oportunidades que eles tiveram de registrar a atividade no caderno, já que, geralmente, a

mestra recorria a tarefas mimeografadas ou fazia as tarefas oralmente.

Na nossa compreensão, a atitude de explicar previamente as atividades

propostas indicava a preocupação das professoras em inserir os aprendizes na

operacionalização das mesmas. No conjunto das aulas observadas, apreendemos,

majoritariamente, um investimento, por parte daquelas profissionais, nesse aspecto.

Esse procedimento tendia a ser conjugado com a leitura dos enunciados, nos terceiros

anos. Apenas nas turmas do segundo e terceiro anos da escola C, em uma ocasião, não

verificamos a garantia da explicação das tarefas a serem realizadas.

Ao analisarmos se as mestras oportunizavam aos alunos mais avançados

darem suas contribuições durante as aulas, chamou-nos a atenção a ausência dessa

preocupação por parte da professora do segundo ano da escola A. Nessa turma

específica, o contrário também se aplicou, ou seja, o espaço para os alunos com

dificuldades de aprendizagem participarem da aula também não foi priorizado.

Em geral, houve um equilíbrio quanto ao espaço dado para os alunos com real

avanço no aprendizado e aqueles que tinham dificuldades de participarem das aulas.

Apenas nas turmas de primeiro e segundo anos da escola A, as mestras não priorizaram

a participação daqueles que demonstravam visíveis dificuldades no aprendizado. No

caso da primeira turma, o “prediletismo” por alguns alunos predominou. Já no segundo

ano, a mestra não contemplou esse procedimento para nenhum dos grupos de alunos.

Costumava direcionar, monopolizar as leituras e individualizar a compreensão e

produção escrita. Nos raros momentos em que permitia a colaboração deles, demonstrou

controlar de maneira exacerbada, a exemplo da leitura alternada. Corrigia-os

constantemente, além de tratá-los de forma pejorativa, chamando-os de “bebê”, nas

ocasiões em que tentavam burlar as regras estabelecidas por ela (CERTEAU, 1994).

No conjunto das observações, verificamos uma baixa frequência de disputas

entre os alunos por participarem das aulas. Em geral, como já fora realçado, esperava-se

a resolução das tarefas pelas mestras ou os aprendizes costumavam participar da

resolução coletivamente. No entanto, a participação individual era quase que imposta

por algumas professoras que tinham o anseio de assegurar a participação de seus alunos

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na aula. Havia, sim, em alguns casos, como na turma da professora do segundo da

escola A, coerção para prender a atenção dos alunos. Contudo, não havia a preocupação

em estimulá-los, por si próprios, a participarem da aula. O curioso foi que, mesmo com

esse traço da professora, verificamos, em duas das oito aulas observadas, tentativas de

disputas entre os aprendizes, na intenção de se inserirem na aula.

Passando a focar, especificamente, a preocupação das mestras em oportunizar

as interações entre os alunos com bom nível de aprendizagem e aqueles que estavam em

“desvantagem” no aprendizado, apontamos que na escola A houve apenas uma aula em

que a professora do primeiro ano viabilizou tal procedimento, assim como em três das

oito aulas observadas no terceiro ano da mesma instituição.

No que diz respeito à escola B, localizamos, em duas das oito aulas observadas

no primeiro ano, a autorização da mestra para dispensar ajuda ao colega em dificuldade;

uma aula no segundo e duas no terceiro ano dessa mesma escola. No caso da segunda

observação do terceiro ano, a mestra solicitou a escrita de uma propaganda, explorando

previamente as características desse gênero textual. Alguns alunos, espontaneamente,

organizaram-se em duplas e interagiram entre si, na presença da professora. A maioria,

mesmo organizada em duplas, produzia individualmente, sem estabelecer trocas. Mas o

que interessa destacar foi o fato de as trocas ocorrerem com a permissão da professora.

No exemplo de uma das aulas do primeiro ano dessa instituição, no momento da escrita

de uma mensagem para os pais, a mestra autorizou a ajuda entre os alunos na escrita das

palavras “pai ou papai”: “vocês vão escrever sozinhos, um pode ajudar o outro, mas

ajudar não é fazer pelo outro não”.

Ao nos remetermos à escola C, localizamos ajuda ao colega com autorização

da professora em duas das oito aulas observadas no primeiro ano; em quatro no segundo

e apenas uma no terceiro ano. Em uma das aulas do segundo ano, o aluno leu um

enunciado referente à compreensão escrita de um texto, a fim de ajudar seu colega, na

presença da professora. No caso do terceiro ano, a dúvida foi na escrita da palavra

“jardim”, em que um dos educandos confirmou que se escrevia com a letra “J”.

É importante destacar, por outro lado, a ausência de uma atitude sistemática,

por parte dos aprendizes, em burlar as regras, a fim de ajudar o colega com dificuldade

(PERRENOUD, 1994; CERTEAU, 1994; 1985). No universo das três escolas, não

verificamos uma frequência significativa desse procedimento, apenas no segundo ano

da escola C, os alunos recorreram a essa alternativa em três das oito aulas

acompanhadas.

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Em uma das aulas daquela turma, a mestra desenvolvia um trabalho

semelhante ao primeiro ano da mesma escola, dado que se tratava de um projeto

articulado em torno do tema “frevo”. Enquanto passava uma música, escolhia alguns

trechos e parava. A tarefa dos alunos era circular, identificar a última palavra e circular.

Uma das alunas ajudou seu colega que estava com dificuldades em identificar a palavra

“segura”, sem que a mestra autorizasse.

A professora do primeiro ano da escola C propôs uma atividade com

“cruzadinha”, agrupando os alunos por níveis de escrita. Os que estavam em estágios

mais avançados na escrita, não tinham como apoio o banco de palavras. A orientação da

mestra era de que não ajudassem os colegas, mas os deixassem refletir individualmente,

porém, uma das alunas prestou ajuda, sem que a mestra percebesse, na grafia da palavra

“anjo” (PERRENOUD, 1994). O problema foi que deu a informação errada, já que

afirmou que “anjo” se escrevia com a letra “g”. Nesse caso, como a professora não

tomou conhecimento, nenhuma intervenção foi realizada.

Surpreendentemente, em uma das aulas da professora do segundo ano da

escola A, dois alunos conseguiram interagir, sem que a mestra percebesse. Tratava-se da

partição escrita de algumas palavras em sílabas. Enquanto um dos alunos afirmou que a

palavra “boi” não se separava, o outro declarou que somente o “i” constituía uma sílaba.

Tudo isso transcorreu sem que a mestra percebesse.

Algumas considerações

Ao retomarmos os dados reveladores da presença ou ausência de uma prática

de cooperação nas aulas observadas, sublinhamos que não houve uma homogeneidade

quanto a esse aspecto no universo das três escolas. Se, por um lado, as professoras dos

primeiro e segundo anos das escolas A e B optaram por esse encaminhamento, no caso

da escola C, houve proximidades das turmas de segundo e terceiro anos. As escolhas

didáticas e pedagógicas variavam, como vimos, ao longo da análise.

Em quatro das nove turmas acompanhadas, resguardadas as especificidades de

cada uma, observamos um tipo de encaminhamento que, na nossa compreensão, pouco

ajudou os educandos a desenvolverem uma atitude reflexiva e compromissada diante

das atividades propostas. Tratou-se das tarefas aligeiradas como o ditado, em que a

maioria dos aprendizes, que não se ajustava ao ritmo da mestra, esperava as respostas no

quadro. O mais grave foi que esse procedimento ocorreu com a concordância, não

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declarada, das professoras. Esse dado nos ajuda a entender, concretamente, que o

atendimento à diversidade, sem um planejamento específico que atenda às reais

necessidades dos educandos, pode comprometer mais ainda seu aprendizado.

Ao nos reportarmos à prática de um planejamento prévio, observamos que

quatro das nove professoras demonstravam planejar sistematicamente. Nas outras

turmas, vimos que essa prática parecia ter sido contemplada algumas vezes, limitando-

se, em alguns casos, à escolha do texto a ser lido. Essa última opção se distancia (e

muito!) da concepção defendida por Leal (2009).

Por fim, acreditamos que, em função da predominância das formas de

cooperação terem sido mais presentes partindo da professora para com o grupo-classe,

não verificamos um investimento significativo, por parte das mestras, quanto às

oportunidades de interação entre os alunos com diversos níveis de aprendizagem.

Cremos que, por esse motivo, houve uma tímida colaboração das crianças com bom ou

médio desempenho no aprendizado dos colegas com dificuldades de aprendizagem.

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