missões de chiquitos e moxos

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Missões de Chiquitos e Moxos

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  • A investigao mais ampla que deu origem a esta co-municao diz respeito aos interesses das Coroas ib-ricas relacionados demarcao de fronteiras no sculoXVIII no territrio do centro oeste sul americano, maisespecificamente o da Capitania de Mato Grosso, criadapela Coroa portuguesa em 1748.

    Desde incios do sculo XVI que parte desse territ-rio j era visitada por navegadores e cronistas espa-nhis; no entanto, por no encontrarem nele metaispreciosos, os espanhis preferiram se concentrar no es-pao andino. Essa situao se alterou com a movimen-tao bandeirante na bacia do rio Paraguai procura dendios para escravizar, e a disputa se acirrou com as no-tcias sobre a descoberta de ouro em Cuiab, por voltade 1719. A preocupao dos espanhis, alm da ocu-pao de terras que a eles tinham sido conferidas porTordesilhas, tinha a ver com o receio de que os luso-brasileiros alcanassem as riquezas andinas, por meiodo rio da Prata ou do rio Paraguai.

    Houve intenso crescimento populacional em tornodessas primeiras minas exploradas, e anos mais tarde,com a descoberta e explorao do ouro na regio dosdivisores de guas das bacias Paraguai-Guapor-Juruena, no mato grosso do rio Jauru, os portugue-ses se organizaram para garantir sua posse. Uma aoconcreta foi a do Conselho Ultramarino que deliberou,por intermdio de Alvar, em 9 de maio de 1748, pelacriao da Capitania de Mato Grosso. Essa recm

    As misses jesuticas deChiquitos e Moxos

    representaram um modelode evangelizao que

    contava com presenapermanente de religiosos,ao contrrio das misses

    volantes iniciais, a partir da organizao

    de grupos indgenas a serem convertidos

    e doutrinados, enfim, civilizados.

    Mltiplas tambm foramas prticas culturais que essa experincia

    colocou em ao. Os portugueses

    referiam-se a esse sistemacomo aldeamento.

    Leny Caselli AnzaiDoutora em HistriaUniversidade Federal

    de Mato Grosso (Brasil)

    Misses de Chiquitos e Moxos e a capitania de Mato Grosso

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES ANO VII, 2008 / n. 13/14 253-262 253

    M I S S I O N A O

  • LENY CASELLI ANZAI

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    criada capitania, composta por 65 mil lguas quadradas, limitava-se ao norte com oGro-Par, ao sul com a capitania de So Paulo e a capitania de Gois, e a oeste comas possesses castelhanas. A base de sua populao era predominantemente ind-gena, com presena significativa do escravo negro trazido para as lavras de ouro queforam sendo descobertas (Silva, 1995, p. 21).

    Para confirmar a presena lusa nessa fronteira, o primeiro capito general no-meado, Antonio Rolim de Moura fundou a vila capital, Vila Bela da Santssima Trin-dade, em maro de 1752, margem direita do rio Guapor. O ncleo urbano passoua abrigar uma populao de burocratas, tornando-se tambm sede militar da capi-tania. O ato poltico de fundao da vila assegurava a Portugal a posse de MatoGrosso e de parte da bacia amaznica, j legalizada pelo Tratado de Madri, e con-solidava a ocupao portuguesa no extremo-oeste das possesses luso-americanas(Ges Filho, 1999, p. 152). Rapidamente se intensificou o movimento de defesa paraconter a reao castelhana; encontravam-se, a oeste, as duas frentes colonizadorasibricas: uma para garantir a posse que lhe havia sido conferida por Tordesilhas, ea outra, no movimento de garantir e ocupar aquilo que lhe seria concedido via utipossidetis, aumentando ainda mais a elasticidade da imaginria linha demarcadora.

    Tomando como ponto de observao Vila Bela da Santssima Trindade, a poucaslguas da outra margem do Guapor, estrategicamente plantadas encontravam-semisses religiosas, as de Moxos e as de Chiquitos, parte de uma poltica de ocupa-o castelhana do territrio.

    Foram diversas as experincias missionrias por reduo na Amrica, praticadapor ordens religiosas, como a dos jesutas, dos franciscanos e dos mercedrios. Damesma forma, foram mltiplas as prticas culturais colocadas em ao pela polticareducional, pois, embora no geral os jesutas observassem determinadas normas, asprticas nas redues diferiam entre si, de acordo com as circunstncias histricas,as particularidades tnicas e regionais, e as intenes dos grupos envolvidos (Meli,1989, p. 24).

    O estabelecimento das misses de Moxos e Chiquitos fizeram parte de uma es-tratgia castelhana para controlar suas fronteiras, em especial aquelas mais distan-tes dos ncleos coloniais mais importantes. Ao mesmo tempo em que mantinha osmais diversos grupos indgenas concentrados, a administrao castelhana lanavamo do trabalho dos religiosos para instalarem novos padres de territorialidade aoqual deveriam se conformar os ndios. A localizao de Moxos e Chiquitos atendiaaos interesses da Coroa espanhola ao se localizar em reas de fronteira, e tambmaos interesses dos jesutas, que desejavam manter os ndios afastados das influnciasda sociedade circundante.

    A Companhia de Jesus possua um projeto missionrio e civilizador para a Am-rica e, por intermdio das redues, os inacianos estabeleceram instrumentos de con-trole ao mesmo tempo em que tambm instituam uma mediao civilizatria, ao ofe-recer ao ndio recursos de sobrevivncia em uma conjuntura que lhes era hostil. Porsua vez, os grupos indgenas distribudos pelo territrio estavam ameaados pelosataques de encomenderos e de bandeirantes, situao que os deixava sem escolha:ou aceitavam a reduo que lhes garantia a segurana fsica ou corriam o risco deserem absorvidos por uma das duas frentes colonizadoras. Concorreu para o sucessodo sistema reducional o fato dos jesutas, cuja formao se baseava em princpios mi-litares, organizarem a resistncia indgena nas redues repassando aos ndios es-

  • tratgias de guerra, ensinando-lhes o uso de armas de fogo. Sem outra alternativamelhor, sujeitos captura por paulistas ou por encomenderos, nas redues os n-dios foram estabelecendo seus espaos e firmando tambm suas fronteiras, reterri-torializando-as.

    As misses por reduo de Chiquitos e MoxosDesde fins do sculo XVII que missionrios da Provncia Jesutica do Paraguai fre-

    qentavam as terras do Chaco, no atual oriente boliviano. A regio de Santa Cruzde la Sierra havia se transformado em foco de expedies escravagistas, e o apresa-mento de ndios alcanou tamanha proporo que o governador solicitou o envio demissionrios da Companhia para fundar misses que protegessem os ndios, aomesmo tempo em que povoassem as fronteiras. Portanto, interessava administra-o espanhola o estabelecimento de misses em postos avanados, e era interessantes autoridades estatais valerem-se do zelo missionrio para tomar posse efetiva deregies distantes e politicamente importantes ao Estado espanhol. Portanto, a orga-nizao das misses no se desenvolveu margem da esfera da administrao co-lonial espanhola nem em contradio com o sistema de governo da Coroa. Jesutasforam indicados por autoridades coloniais por intermdio de ordens reais, e conta-ram com auxlio do Estado para a criao das redues (Konetzke, 1984).

    Com o convite aos jesutas, o governador de Santa Cruz de la Sierra esperava queos padres apaziguassem os grupos indgenas e os protegessem das perseguies quesofriam (Moreno & Salas, 1992, p. 65-66). Foram, ento, escolhidos pontos estratgi-cos, ambos localizados no territrio constitudo atualmente pelo oriente boliviano,para o estabelecimento de dois grupos de misses Chiquitos e Moxos , organiza-das nos mesmos moldes das misses Guaranis 1, ambas prximas a rios navegveis,mas geograficamente isoladas das misses do Paraguai, principalmente pela inter-posio do Chaco. Chiquitos chegou a contar com dez misses, e Moxos quinze.

    A capital da misso de Moxos, San Pedro, localizava-se a duas lguas da margemoriental do rio Mamor, e no tempo dos jesutas chegou a ter trinta mil habitantes,dos quais, em fins do sculo XVIII restavam apenas vinte mil, nas 11 misses queento sobreviveram.

    Do ponto de vista administrativo, as misses de Moxos dependeram da Provn-cia Jesutica do Paraguai, e a de Chiquitos, da Provncia Jesutica do Peru, isso at1776, quando ento passaram a depender do Vice-Reino do Rio da Prata. Ambas asmisses localizavam-se na bacia do rio Paraguai, e por Chiquitos passava o divisorde guas das duas maiores bacias hidrogrficas da Amrica do Sul: a do Amazonase a do Prata (Finot, 1978, p. 336-341). Jesutas espanhis tentavam passar para a mar-gem direita do Guapor, estratgia para se alcanar o rio Paraguai, e havia tambmo desejo dos missionrios de atravessar o Chaco de norte a sul, at chegar ao Pilco-mayo, consolidando as possesses da provncia de Chiquitos. Por isso, a fundaode San Inacio, no centro do Chaco. A regio de Chiquitos seria o ponto-chave parao domnio da bacia do Paraguai e a comunicao de Mato Grosso com o alto Peru eo Amazonas.

    MISSES DE CHIQUITOS E MOXOS E A CAPITANIA DE MATO GROSSO

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    1 As misses Guaranis localizavam-se em trechos das bacias dos rios Uruguai, Paran e Paraguai.

  • A capital da misso de Chiquitos San Ignacio de Velasco , ficava no centro doChaco 2, e nelas os jesutas desenvolveram a produo de algodo, assim como nasmisses do Paraguai desenvolveram a produo de erva-mate, e de cacau em Moxos.Exploravam-se tambm, nas misses, riquezas extrativas dos diversos ambientesprprios a cada uma delas. Os missionrios obtiveram excedentes que, comerciali-zados por eles prprios, aumentaram a riqueza da Ordem e os recursos econmicosdas reas ocupadas.

    As redues estabelecidas na provncia de Chiquitos, correspondem atualmentea cinco provncias bolivianas do Departamento de Santa Cruz de la Sierra 3. Dentreestas, destacaremos as redues que mais contatos mantiveram com a capitania deMato Grosso, que foram aquelas situadas na atual provncia de Velasco, pela proxi-midade que havia entre elas e as vilas principais da capitania de Mato Grosso: SanIgnacio, Santa Ana, San Rafael, San Miguel.

    At a chegada dos jesutas em sua regio, os Chiquitos haviam tido muito poucocontato com o conquistador espanhol, se comparados aos Guarani. A palavra chi-quito, pequeno, designava diversos grupos localizados entre os 14 e 19 de lati-tude Sul, no Oriente boliviano, zona de transio entre o Chaco Boreal e as selvaspantanosas que se estendem desde o Amazonas. Chiquitos, povos do planalto,foram assim chamados devido suposio de que se tratava de uma povoao depessoas pequenas, equvoco provocado pela pouca altura das entradas de suas casas.

    As vilas e arraiais da Capitania de Mato Grosso e as misses

    Quando os paulistas e portugueses descobriram ouro no vale do Cuiab (1719) edo Guapor (1734), os espanhis j ocupavam reas mais ou menos prximas que-las minas desde o sculo XVII, e a documentao comprova o trfego intenso de pes-soas de origem ibrica no vale do Paraguai. No entanto, durante todo o sculo XVIIfoi impossvel estabelecer povoamento alm Chaco, fosse pela ao guerreira dospovos indgenas ou pela ao dos bandeirantes paulistas (Bastos, 1978). A situaolevou, em fins do sculo XVII, a um deslocamento de recursos da Provncia Jesuticado Paraguai para as misses orientais de Chiquitos, com a inteno de proteger dosportugueses as minas de Potosi. A nordeste da Provncia de Santa Cruz de la Sierra,os jesutas de Lima j haviam estabelecido, na plancie, as Misses de Moxos (Ca-navarros, 2004, p. 253). Entre estas provncias havia o Chaco, com suas populaesguerreiras e o impedimento explcito da Coroa espanhola de abertura de caminhoque as ligassem.

    Do lado luso da fronteira, vilas e arraiais do ouro passavam sazonalmente por pe-

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    2 Sobre as misses de Chiquitos ver: Costa, Jos Eduardo F. Moreira da. A coroa do mundo: territrio eterritorialidade Chiquitano. Cuiab: EdUFMT/Carlini & Caniato, 2006.

    3 As cinco provncias atuais do Departamento de Santa Cruz de la Sierra so: a) provncia Nuflo deChavez, qual correspondem as antigas redues de Concepcin e de San Javier; b) provincia de Velasco, qual correspondem as antigas redues de San Ignacio, Santa Ana, San Rafael, e San Miguel; c) provnciade Chiquitos, qual correspondem as redues de San Jos, San Juan, e Santiago; d) provncia Angel San-doval, qual corresponde a reduo de Santo Corazn; e) Provncia Germn Busch. Cf. MORENO, Alci-des Parejas, p. 22-24.

  • rodos de escassez de gneros de primeira necessidade. Inicialmente Cuiab tentoutrs rumos de comunicao para se abastecer: uma terrestre para Gois, uma paranoroeste, pretendendo chegar ao Par, e outra para o oeste, abrindo caminho paraChiquitos. O caminho de Chiquitos poderia abastecer as minas com bois e cavalos,tecidos, alm de possibilitar que os luso-brasileiros chegassem a Santa Cruz de laSierra para se abastecerem de instrumentos de minerao, lavoura, sal e gneros ali-mentcios. Considere-se que a maioria das redues de Chiquitos ficava mais pr-xima das vilas da Capitania do que So Paulo, Par ou mesmo Gois e, apesar da ne-gativa das autoridades castelhanas, foram intensos os contatos clandestinos entre asaldeias de Chiquitos e a Capitania de Mato Grosso (Lobo, 1960, p. 427).

    Os dois grandes grupos de redues da fronteira eram auto-suficientes economi-camente, e a documentao oficial existente, tanto a dos arquivos histricos deCuiab, como os do Arquivo Histrico Ultramarino e do Archivo General de Indiasso prdigos em informaes sobre as tentativas feitas pelos portugueses de abas-tecer a capitania mineira de Mato Grosso com seus produtos, principalmente cereais,txteis e gado. Um ponto sobre o qual a documentao rica diz respeito ao grandenmero de ndios cooptados para desertarem para o Mato Grosso apoiados pelos ca-pites generais portugueses, que mantinham funcionrios com o fim exclusivo deorient-los no caminho, pois havia necessidade de famlias para povoar as terras queiam sendo incorporadas, por simples ocupao ou por intermdio de tratados. Con-sideravam que os ndios das misses eram os ideais, por j estarem domesticados.Essas intenes so mais visveis na documentao aps a expulso dos jesutas(1767), na administrao desastrada dos curas, embora existam documentos indi-cando que isso j ocorria desde antes da expulso dos inacianos.

    Os jesutas transformaram suas 11 redues de Chiquitos e 15 de Moxos em ver-dadeiras instituies de defesa da fronteira do territrio espanhol, e essa atuao eravista com preocupao pelo lado portugus. Moxos e Chiquitos transformaram-se,no dizer de Denise Maldi Meireles, em verdadeiras guardis dos territrios de Cas-tela, barrando a entrada de portugueses, principalmente dos capites generais da ca-pitania de Mato Grosso, nos caminhos que levavam s minas do Peru.

    Os grupos de misses apresentavam muitas caractersticas comuns, como o fatode estarem todas localizadas nas nascentes de grandes rios e em terras de pouca al-titude, embora nem sempre fossem interligadas. Em Chiquitos e em Moxos, regiesque hoje tm seus limites com o Paraguai, o Brasil e o Peru, habitadas pelos ndiosmoxos, baures, pampas e chiquitos, os jesutas aplicaram o mesmo mtodo das mis-ses do Paraguai (Medrano, 1997, p. 263).

    Estrutura bsica do trabalho jesutico, no dizer de Montoya, as redues eram for-madas por povoados de ndios que:

    ... vivendo sua antiga usana em selvas, serras e vales, junto a arroios es-condidos, em trs, quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros emquesto de lguas duas, trs ou mais, reduziu-os a diligncia dos padres apovoaes no pequenas e vida poltica (civilizada) e humana. (Montoya,1985, p. 34)

    Experincia plural, as misses jesuticas de Chiquitos e Moxos representaram ummodelo de evangelizao que contava com presena permanente de religiosos, ao

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  • contrrio das misses volantes iniciais, a partir da organizao de grupos indge-nas a serem convertidos e doutrinados, enfim, civilizados. Mltiplas tambm foramas prticas culturais que essa experincia colocou em ao. Os portugueses referiam-se a esse sistema como aldeamento (Hernndez, 1913, p. 280).

    Houve sempre muito cuidado, por parte da Ordem, quanto escolha desses lo-cais de instalao das redues tipo de solo, qualidade das guas, existncia de pei-xes, clima adequado. Esses locais concentrariam todo o complexo missional, do qualfaziam parte o cemitrio, as oficinas, o colgio e os armazns, distribudos de modoa oferecer ao ndio um modelo de reordenamento espacial e social que buscava re-duzi-lo racionalidade crist. Nesse processo foi importante o ensino da msica, apro-veitando-se do talento musical dos ndios (Montoya, p. 138). As misses foram gran-des produtoras de instrumentos musicais, e seus corais foram elogiados pelos via-jantes que as visitavam, mesmo aps sua decadncia. As festas representavam ins-trumento educativo importante, principalmente as procisses, durante as quais as ruaseram enfeitadas e eram servidas comidas, acompanhadas de apresentaes de can-tos e danas, em um processo de mediao entre os costumes cristos e os indgenas.Momentos festivos legitimavam a ao missionria, e deles os ndios elaboravam no-vos significados, matizando suas prticas com elementos da cultura hispnica.

    No interior da reduo, uma hierarquia de poderes cooptava as lideranas ind-genas, aproveitando sua experincia para o desenvolvimento da ao missionria.Desse modo, a organizao social dos grupos reduzidos sofreu profundas modifi-caes, reforadas pela introduo de smbolos e valores cristos. No entanto, o in-verso tambm se operou, por confrontos entre as duas partes (Oliveira, 2003). No es-pao da reduo, ndios e jesutas atriburam significados cultura do outro e ree-laboraram elementos culturais, em convivncia muitas vezes conflituosa, na qualreinterpretavam suas relaes cotidianas. Muitas dessas prticas esto contidas nasCartas nuas, correspondncia escrita pelos padres das misses e enviadas em in-tervalos de tempo que poderiam ser de um ano ou mais, ao Superior da Provnciado Paraguai. Esse superior juntava as informaes enviadas pelos diversos padresmissionrios, s quais acrescentava outras informaes, como relatos de viagens eeventos considerados importantes. Em seguida, o Superior da Provncia as enviavaao Geral da Companhia de Jesus, em Roma (Martins, 1999, p. 149-159).

    Algumas aes postas em prtica na fronteira oeste luso-espanhola da Amrica doSul, mais especificamente na regio do atual oriente boliviano, nos indicam prticasprprias de um viver em reas nas quais a defesa do territrio andava a par com anecessidade de sobrevivncia de seus moradores. Nessas relaes fronteirias se in-terpunham preocupaes militares com a necessidade de intercmbio comercial e depovoamento, muitas vezes revelia dos tratados entre as metrpoles ibricas. Dis-tantes dos ncleos urbanos mais densamente povoados, os jesutas transformaramsuas redues em verdadeiras instituies de defesa do territrio espanhol. Essaatuao era vista com preocupao pelo lado portugus, e deve ser analisada comopea fundamental no jogo que ento se estabeleceu para a demarcao de limites nafronteira oeste luso-castelhana, no sculo XVIII.

    Eram conhecidas as incurses de colonos luso-brasileiros no territrio das misses,como algumas das pessoas que das minas de Mato Grosso tinham passado para aspovoaes que habitam os espanhis naquela vizinhana e que haviam retornadocom cargas de acar, sabo, pano de algodo e aguardente de cana (AHU, 1743).

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  • Essa notcia faz parte da carta que o Provedor e Intendente da Fazenda enviou, emabril de 1743, ao rei D. Joo V.

    A produo interna das misses esteve sempre na mira das autoridades lusas. D.Antonio Rolim de Moura, fundador de Vila Bela da Santssima Trindade, Vila Ca-pital, em carta escrita em 1752 a Diogo de Mendona Corte Real, informava que deVila Bela at a misso chiquitana de San Rafael eram 25 dias de viagem, e que delaat Santa Cruz de la Sierra seriam mais 25 dias. E completava o governador: cami-nho freqentado por alguns moradores destas minas com o intuito de comprargados dita misso, de que muito abundante, apesar das negativas do superior emfazer comrcio. As redues de Chiquitos no possuam uma pecuria forte, em-bora fosse suficiente para suprir suas necessidades de carne e transporte. No mo-mento da expulso dos inacianos seus pueblos contavam com 45.749 cabeas de boise 5.749 de cavalos (Moreno & Salas, 1992, p. 155).

    Rolim se mostrava impressionado com as misses espanholas de Chiquitos e deMoxos, principalmente a de So Pedro, que dizia ser cabea de todas, onde re-side o superior, que me asseguram ser uma cidade em que h at fbrica de sinos.Rolim registrou que, embora houvesse milhares de ndios, estes no eram guerrei-ros, utilizando apenas arco e flexa, apesar dos comentrios sobre o fato de que deSanta Cruz de la Sierra tinha vindo um oficial aldeia da Exaltao da Cruz, que estno rio Mamor junto barra, para ensinar os ndios a servirem-se das armas de fogo.

    Ao contrrio do esperado, a expulso dos jesutas no destruiu os pueblos missio-neiros, conforme ocorreu no Paraguai. Em Chiquitos, a administrao colonial ten-tou manter a mesma organizao imposta pela Companhia nos onze pueblos, maisde vinte estncias e cerca de vinte e cinco mil habitantes das misses. Durante otempo que permaneceram nas misses, os jesutas assumiram a responsabilidade dedefender a fronteira das ambies portuguesas representadas pelas bandeiras pau-listas, que atacavam sistematicamente desde as margens do rio da Prata at os con-fins de Mojos e Baures.

    Com a expulso da Companhia, o imprio espanhol diminuiu drasticamente ocontrole relativo que mantinha sobre a fronteira oriental. As redues, por sua vez,passaram por mudanas administrativas que levaram desorganizao de sua pro-duo e perda de seus bens. O bispo de Santa Cruz organizou um sistema de admi-nistrao ps jesutas, no qual dois curas centralizavam todos os poderes que antespertenciam aos padres da Companhia, sendo um encarregado de todas as ativida-des econmicas e outro das religiosas. No entanto, o despreparo dos novos admi-nistradores levou a toda sorte de desmandos, dentre os quais o desvio de produtosdas comunidades indgenas para Santa Cruz e Cochabamba, e o contrabando comMato Grosso em proveito prprio.

    Desse modo, deu-se como que uma institucionalizao do contrabando pela viadas misses de Moxos e de Chiquitos, prticas que se utilizava de caminhos j exis-tentes, e que contriburam para a destruio completa da capacidade produtiva or-ganizada pelos jesutas. Prticas conhecidas, ilegais, embora no ignoradas, os ne-gcios ilcitos garantiam ampla margem de ao aos negociantes, articuladas com ou-tras formas de negcios coloniais. O contrabando de animais, principalmente demulas, era intenso. Embora proibido na fronteira desde 1764, esse produto continuoua circular, envolvendo administradores coloniais, espanhis, portugueses e ndios,que se articulava em uma rede na qual a reciprocidade e o parentesco representa-

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  • ram importante papel. Tolerado pelas autoridades portuguesas, o contrabando erapraticado por pessoas que eram responsveis pela defesa dos territrios. Dessemodo, fazer vistas grossas funcionava como uma espcie de concesso, em um ter-ritrio de domnio instvel.

    Aproveitando-se da perda de controle do territrio das misses, os capites generaisportugueses avanaram para a margem direita das nascentes do rio Paraguai, e en-tre 1770 e 1778, consolidam sua presena em territrio castelhano, com a fundaodo Forte de Nova Coimbra. Diante das ameaas portuguesas, o rei de Espanha Car-los III criou, em 1776, o Vice-reinado do Rio da Prata e, logo em seguida, em 1777,foram criados os Governos militares de Moxos e Chiquitos, cujo governador foi o Ca-pito Barthelemi Verdugo. Esse governo militar, no tocante a questes poltico-ad-ministrativas dependia diretamente da Audincia de Charcas, mas no aspecto mili-tar estava sujeito ao governador de Santa Cruz de la Sierra. Verdugo havia recebi-do a recomendao de promover comunicao comercial com o Paraguai, cuidandoque no se desviasse de Cuiab, considerando que uma das funes de seu governomilitar era enfrentar el peligro portugus fundando povoados que barrassem o avan-o deles rumo s misses, e que servissem de escala ao comrcio com o Paraguai.

    Aps a expulso dos jesutas, a sada de ndios das misses rumo Capitania deMato Grosso tornou-se mais evidente e mais freqente, a ponto de no termo da fun-dao de Vila Maria do Paraguai, de outubro de 1778, o capito general Luz de Al-buquerque fazer constar que a povoao da vila havia iniciado com 161 pessoas de-sertadas da provncia de Chiquitos (NDIHR, AHU, mic. 273). A posio geogrficaprivilegiada ocupada por Vila Maria lhe conferia importncia militar e econmica;prxima ao rio Paraguai e ao Prata, e tambm da capital da capitania, localizava-setambm muito prxima a uma fronteira litigiosa com as possesses espanholas. Emnovembro do mesmo ano, o capito general enviou carta ao secretrio de EstadoMartinho de Melo e Castro remetendo o termo de fundao da vila e confirmandoa presena chiquitana na Capitania. O governador solicitava o envio de famlias bran-cas, e reclamava dos ndios da capitania, que dizia serem inconstantes, ferozes, in-domveis e indolentes.

    Portanto, enquanto no chegavam os brancos, a preferncia recaa sobre os ndiosdas redues de Castela, como os quarenta vindos das misses de Corao de Jesuse So Joo, da Provncia de Chiquitos, que chegaram montados em cavalos, guas emulas, guiados por pessoas colocadas pelo governador em lugares estratgicos,gente que os descubra [aos ndios] e lhes mostre o caminho destes domnios, li-sonjeando-me, talvez, de poder ainda mais consideravelmente povoar com gente cas-telhana a nova povoao de Vila Maria (NDIHR, AHU, mic.274). Para manter osndios das misses castelhanas em territrio portugus, Luiz de Albuquerque com-prou uma fazenda de gado s margens do rio Paraguai,

    ... pois os ndios sendo criados em pases de imenso gado vacum, como sotodas estas adjacentes provncias de Moxos e Chiquitos [ilegvel] estranha-riam infinito a falta de semelhante socorro, ou continuariam a obrigar a RealFazenda grossa despesa de lhe estar comprando freqentes vezes (comopor necessidade j tinha principiado a executar-se) alguns bois ou carneseca, o que atendido o maior excesso dos preos, seria na verdade bem dif-cil de tolerar. (NDIHR, AHU, mic. 264)

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  • Embora possamos contar com fontes oficiais abundantes sobre os conflitos entreas duas Coroas ibricas na Amrica do Sul, como as do Arquivo Ultramarino de Lis-boa, as do Arquivo Pblico do Estado de Mato Grosso, e dos Anais de Vila Bela, re-centemente publicados, o tema da fronteira e das misses jesuticas do oriente boli-viano ainda muito pouco discutido. Talvez isso possa ter relao com uma histo-riografia que tentasse mascarar as relaes mantidas entre portugueses e espanhispara alm dos conflitos e disputas, obscurecendo um complexo cenrio de trocas re-gionais, que podem explicar as dinmicas subjacentes quele mercado. Os docu-mentos produzidos nos domnios lusos, como os Anais de Vila Bela, mostram a in-tensa participao de espanhis no trato ilcito e, embora fique sub-registrada a aodos sditos portugueses, essa atividade no deixa de estar presente na documenta-o. A anlise do comrcio de gado e as ligaes dos contrabandistas com outros es-paos coloniais podem contribuir para ampliar o quadro de estudos sobre a econo-mia colonial. Nesse contexto, o prprio conceito de fronteira deve ser rediscutido,considerando-se os significados que lhe eram atribudos pelas pessoas da poca, se-gundo seus relacionamentos e experincias.

    Morador de uma regio prxima a territrios de um outro imprio, era no espaofronteirio que se dava a transformao do contrabando em mercadoria, muitasvezes praticados pelos prprios soldados e oficiais. Para os moradores dos doislados dos marcos oficiais, essas relaes eram mantidas mesmo em tempo de guerra,principalmente aquelas relacionadas s trocas de animais, que nesses perodos es-casseavam. Portanto, o contrabandista poderia ser a mesma pessoa que fazia a de-fesa do territrio. Essas prticas eram prprias de um viver em reas na qual a de-fesa do territrio andava a par com a necessidade de sobrevivncia de seus mora-dores. Desse modo, por mais rgidas que fossem as leis das metrpoles ibricas, for-mas hbridas de conduta eram praticadas, principalmente aquelas estabelecidasentre os ncleos de povoamento da capitania de Mato Grosso e as misses jesuticasda fronteira oeste, nas quais se interpunham preocupaes militares com a necessi-dade de intercmbio comercial e de povoamento.

    As proibies legais no conseguiam impedir o intenso relacionamento entre asduas possesses ibricas. Essa intensa movimentao na fronteira congregava espa-nhis, portugueses, ndios, negros e mestios, e sua complexidade nos alerta sobreo cuidado que se deve ter ao analisar esses mltiplos grupos em ao. Nessa linhade interpretao, procuramos refletir no apenas sobre o confronto, mas tambmsobre o convvio entre os diversos grupos. A justaposio de prticas estimula ca-pacidades de inveno e improvisao exigidas pela sobrevivncia em um contextoextremamente heterogneo, em uma situao sem precedentes.

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    LENY CASELLI ANZAI

    262 REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES