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TODA ESTA GENTENos Telecentros de São Paulo, pessoas

simples descobrem o computador e revelam avida dos bairros pobres da cidade.

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Coordenador geralSérgio Amadeu da Silveira

Vice-coordedoraBeá Tibiriçá

Coordenador de projetos especiais e jornalista responsávelJoão Cassino

Edição, redação e chefia de reportagemCassiano JoséReportagensClayton Melo

Luciano EmilianoMarcos Roberto Gonçalves Lúcio

Projeto gráfico e capaRômulo Gomes

FotosPedro Russo

TODA ESTA GENTE

Nos Telecentros de São Paulo, pessoassimples descobrem o computador e revelam

a vida dos bairros pobres da cidade.

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2003 Coordenadoria do Governo Eletrônico da Prefeitura de SãoPaulo

Permitida a reprodução total ou parcial desta obra, desde quecitada a fonte.

Coordenadoria do Governo EletrônicoPavilhão Eng. Armando Arruda Pereira, S/N Pq. do Ibirapuera - CEP: 01060-970 São Paulo - SPTel: (11) 5080-9507 Fax: (11) 5080-9633 E-mail: [email protected]

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"À prefeita Marta Suplicy, pela corageme ousadia de, a despeito das dificuldades,ser pioneira na democratização dastecnologias da informação".

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Apresentação

(ou A Revolução Tecnológica Chega à Periferia) ......... 11

A morte de Carlos de Macedo .................................. 17

Linux no espaço ...................................................... 35

Por trás das rugas, o mesmo velho desejo ............... 45

Dez anos depois ..................................................... 51

Um doutor no meio do povo ..................................... 59

A história do menino que sonha ............................... 65

Em família .............................................................. 75

O japonês voador .................................................... 83

A vida inteira pela frente ........................................ 93

Trinta degraus acima e 50 quilos nas costas ............ 105

Da paz e do barulho ................................................ 113

Inimigos do ócio ...................................................... 123

Na própria pele ....................................................... 129

Procura-se professor de italiano ............................... 139

Sumário

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Está em curso uma transformação silenciosa e muitoprofunda, que muitos estudiosos, no mundo todo, têmchamado de revolução informacional. Ela tem mexido com avida das pessoas, mas atendeu, até o momento, princi-palmente a elite do mundo, os mais ricos, interligados emgrande velocidade pelas redes telemáticas. Nós, co-responsáveis pela administração da cidade de São Paulo,reparamos que essa nova sociedade da informação, privi-legiando a elite, estabelecia mais um fator de desigualdade.Fez-se urgente, portanto, levar o que existe de mais modernona comunicação àquelas pessoas que, há muito, vivemexcluídas de tal possibilidade. Por isso, resolvemos montaruma proposta de inserção das camadas mais pobres dapopulação, a partir do Plano de Inclusão Digital.

No início, muitos diziam que, para tanto, bastavainformatizar escolas e bibliotecas. Outros entendiam que,num país onde muitos passam fome, a inclusão digital não eratão importante. Decidimos mostrar que, para superar o atrasode uma cidade com tamanha dívida social, era necessário nãosó manter as pessoas vivas, com políticas voltadas à sobre-vivência, muitas vezes compensatórias, mas, fundamen-talmente, é indispensável romper a reprodução da miséria,inserindo as pessoas numa sociedade de direitos que nãopodem ser pensados sem um dos mais elementares: o direitoà comunicação.

Comunicar-se, hoje, é comunicar-se rapidamente, comcapacidade de armazenar e transmitir muitas informações,

Apresentação

(ou A Revolução Tecnológica Chega à Periferia)

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para que, a partir do processamento das mesmas, possamostransformá-las em conhecimento. Em função disso,assumimos o propósito de encarar esse grande fosso dastecnologias da inteligência, que permite que as elites seconectem com velocidade e sujeita o povo pobre apermanecer excluído do uso autônomo das transaçõeseletrônicas. A idéia da Prefeitura foi criar Telecentros, locaisque permitem às pessoas usar a Internet livremente, demaneira gratuita, onde todos possam exercer a cidadania eutilizar as tecnologias da informação e comunicação para seusinteresses. Nos Telecentros, também ensina-se informáticabásica e os monitores orientam todos que são novatos emnavegação e pesquisa na rede mundial de computadores. Ascrianças podem usar a rede para brincar, sonhar e aprender.Os adultos podem enviar currículos e acessar os sites dosgovernos. Podem imprimir trabalhos escolares, enviar ereceber e-mails. Os Telecentros são equipamentos de usomúltiplo, comunicacional-cidadão-educativo-cultural, eforam implantados nas áreas de maior exclusão social, naperiferia da nossa cidade.

O sucesso foi tremendo, desde a inauguração daprimeira unidade, no bairro de Cidade Tiradentes, na zonaleste. Em menos de uma semana, tivemos mais de 5 milinscritos, num lugar que era degradado. Muitos diziam que apraça onde foi montado o Telecentro era dominada pelo tráficode drogas. A presença do equipamento público trouxe pessoas,filas e muitos problemas saudáveis. Dezenas de estudantes daregião, por exemplo, preferiam ficar no Telecentro a assistir àsaulas em suas escolas. Começamos a ter de enfrentar essarealidade e exigir que o menor de idade, para freqüentar aunidade, estivesse matriculado numa instituição de ensino enão fizesse uso dos computadores em horário de aula.

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Vimos também surgirem as primeiras críticas ao nossotrabalho. Pessoas da terceira idade começaram a queixar-se deque o projeto privilegiava os mais jovens, nos cursos deinformática básica, o que, para nós, foi uma grata surpresa,pois todos diziam que os mais idosos, acima de 60 anos,jamais se interessariam pelas novas tecnologias deinformação e comunicação. A experiência de implantarTelecentros trouxe um acúmulo de surpresas que, neste livro,pretendemos dividir com vocês, leitores de um país em quepoucos lêem.

É possível começar a mudar toda a nossa sociedade.Pegamos uma tecnologia feita e formada para as elites, com avelocidade que interessa aos especuladores, ao capitalestrangeiro, e a alocamos na periferia, em lugares agoracontrolados por conselhos gestores eleitos pela própriacomunidade. Esse cotidiano transformador de pessoascomuns, esse arrolar de fatos, que não são extraordinários, éo que se pretende mostrar neste livro, que é também umtrabalho coletivo.

O esforço enorme de transformar a inclusão digital empolítica pública, numa época de crise fiscal, de respons-abilidade fiscal, de corte de recursos, não basta. É precisomostrar a importância do compartilhamento de idéias e dainteligência coletiva. Todos os Telecentros da Prefeitura usamsoftware livre, usam o sistema operacional GNU/Linuxporque nós entendemos que as linguagens básicas dacomunicação mediada por computador não devem ser monop-olizadas por nenhuma empresa. Se são linguagens, devem serpúblicas. Em novembro de 2002, mais de 63 mil pessoas naperiferia de São Paulo, utilizavam software livre. Sem dúvida,é uma das maiores redes de usuários de software aberto e não-proprietário da América Latina.

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Se podemos usar um software mais estável,multitarefa, multifuncional, gratuito, por que optar por outro,pago, que acumula enorme envio de royalties ao exterior,prejudicando ainda mais as contas externas do país, um paísque tem o seu nó justamente na dependência externa? Por que,ao contrário, não usar essa experiência com o software livrepara fomentar, na periferia da cidade, o uso do GNU/Linuxem empresas que precisam se modernizar? O exemplo dosTelecentros em software livre pode incentivar cada vez mais oseu uso, o que geraria uma demanda de empresas de suportepara esses programas, ou seja, mais emprego, e de altaqualidade, alta capacitação. Mais importante: empresas quevão gerar empregos sem enviar royalties ao exterior e quecontribuirão para o desenvolvimento da inteligência local, danossa inteligência coletiva.

Outro ponto importante do projeto de inclusão digitalda Prefeitura de São Paulo é que fizemos uma parceria comuma organização não-governamental, a Rede de Informaçõesdo Terceiro Setor (Rits). Com essa iniciativa, conseguimoscontratar pessoas da própria comunidade para orientar otrabalho, dar curso e organizar os Telecentros. Isso permiteque os talentos locais tenham perspectivas cada vez maiores,o que incentiva mais pessoas a aprender, crescer e sedesenvolver a partir do uso das tecnologias da informação.Essa experiência de utilizar monitores e coordenadores daprópria comunidade precisa ser ampliada, pois tem dadoexcelentes resultados, tanto do ponto de vista dos moradoresquanto da estabilidade dos equipamentos públicos, uma vezque a comunidade passa a indicar seus próprios funcionários

Por fim, é importante ressaltar que este livro procuramostrar não o excepcional, mas o cotidiano. Acreditamosnuma sociedade mais justa. Acreditamos poder utilizar uma

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tecnologia e reconvertê-la, para que ela possa estar àdisposição do interesse público e da população carente,ampliar a cultura e as perspectivas de vida, abrir as portas dasociedade da informação, romper o gap cognitivo e aumentaras possibilidades de emprego e de renda dessa população. Éfundamental perceber que a tecnologia é ambígua e, por isso,é preciso brigar para que seja democrática, lutar para que sejainclusiva. A grande lição que este livro traz é mostrar que apolítica pública pode alterar a vida de pessoas comuns, podealterar as nossas vidas.

Sérgio Amadeu da Silveira, sociólogo e coordenador doGoverno Eletrônico da Prefeitura de São Paulo

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Um Fusca da polícia militar, que a população apelidarade "baratinha", dobrou à esquerda na esquina da Avenida Guabacom a Rua Guirapá, na Vila Curuçá, zona leste de São Paulo, eparou em frente ao número 878, a casa de Antônia Maria deSousa. Dois policiais desceram e deram a má notícia à senhora:

— Ele morreu. Viemos aqui para a senhora ir lá pegar aroupinha dele.

Dona Antônia desmaiou, mas, socorrida pelos policiais,pouco depois chegava, de "baratinha", ao Hospital das Clínicas,onde seu filho Carlos Antônio de Macedo, de cinco meses, forainternado. Nos corredores do hospital, deu de cara com ummédico perplexo:

— Eu não sei o que aconteceu... Mas que o menino estavamorto, estava! Agora, está vivo. Eu não sei explicar. Se alguémacredita em milagre, pode dizer que foi Deus — repetia o doutor.

Fora feita a vontada da mãe. Dias antes, ao diagnosticar acontaminação de Carlos pelo vírus da poliomielite, o médico aalertara:

— Se a senhora acredita em Deus, peça para levar omenino porque, se ele viver, não vai sentar, não vai falar,não vai conseguir comer sozinho, vai ter de usar fralda avida inteira e a senhora vai ter de cuidar dele como se fosseum nenê.

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Seis meses após seu nascimento,deram-lhe dois destinos: a morteprematura ou uma vida sem vida.Ele traçou um terceiro.

A morte de Carlos de Macedo

Por Cassiano José

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— Mesmo assim, eu quero que ele viva — respondeu, depronto, a mulher.

Carlos, realmente, nunca andou. Tampouco ficou parado:percorreu quantas distâncias precisou, nas cadeiras de rodas queteve em 44 anos já vividos. Livrou-se da fralda ainda pequeno,come sozinho (e por um batalhão) e fala o tempo todo, sem parar,com gosto e bom humor, emendando uma história na outra.Como essa, do dia em que ele morreu.

Fala tanto e com tal eloqüência, que convence e mobilizapara seus projetos quem lhe cruzar o caminho. Para tanto,dispensa argumentos. Basta uma breve exposição de sua obramais impressionante: sua própria vida, um incansáveltestemunho de entusiasmo com a existência. O que aconteceu noTelecentro Curuçá Velha, desde que, há alguns meses, Carlosapareceu por lá, é um bom exemplo disso.

Embasbacados com seus progressos no aprendizado dainformática e, principalmente, com sua disposição e paciênciapara auxiliar outros usuários, funcionários da unidadepropuseram-lhe um desafio:

— Por que você não monta um projeto para ensinaroutras pessoas especiais?

Desde então, ele não pára de buscar meios de tirarpessoas, especiais e idosos, de suas casas. De mostrar para elasque, do lado de fora das paredes , existe um mundo que vale apena explorar. Que, perto, existe um Telecentro, uma casa comvinte computadores, onde se pode conhecer gente e aprender ausar a tecnologia. "Quem não estiver dentro da era digital vaiestar fora do mundo porque esse é o caminho que ele estátomando", analisa Carlos.

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Carlos (ao centro) com a filha Monique e a esposa Sandra. Atrás, o amigo Alex, a mãe, Antônia, e o padrasto Benedito.

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É possível que, em 2005, o mundo estejalivre da poliomielite (denominada oficialmente, desde 1994,paralisia flácida aguda, segundo o Centro Nacional deEpidemologia do Ministério da Saúde - Cenepi). A OrganizaçãoMundial de Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para aInfância (Unicef) e os Centros Norte-Americanos de Controle ePrevenção de Doenças (CDC) prevêem para esse ano aerradicação completa da doença. Para tanto, será preciso superarbarreiras políticas e geográficas que impedem médicos eassistentes sociais de chegar a crianças carentes de todo oplaneta, antes que o vírus causador da doença as encontre.

Nessa missão de apostar corrida com um vírus, OMS,Unicef e CDC têm tido um sucesso que supera qualquerexpectativa. Em 1988, já quase trinta anos após a vacina começara ser distribuída, 350 mil casos de paralisia foram registrados em125 países. Em 2000, após doze anos de esforços conjuntos deórgãos internacionais e governos nacionais, o número de pessoascontaminadas caiu para 3,5 mil, em 20 países. Nesse mesmo ano,com a oficialização do Dia Nacional de Imunização, em 82países, 550 milhões de crianças puderam ser vacinadas.

No dia 11 de dezembro de 1957, quando Carlos nasceu,o mundo ainda não tinha acesso à vacina oral de Albert Sabin.Foi justamente naquele ano que esse microbiologista polonêscriado nos Estados Unidos e formado em medicina pelaUniversidade de Nova York fez os testes que lhe deram a certezade haver chegado mais longe do que Jonas Salk, que criara avacina intramuscular quatro anos antes. A nova vacina só iriapassar a ser distribuída em larga escala a partir de 1960.

Assim, quando o vírus entrou pela boca de Carlos ecomeçou a percorrer seu corpo via corrente sangüínea, seuorganismo não estava preparado para se defender. Havia, a partirde então, duas possibilidades. Na primeira, o vírus causaria

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Outros tempos

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febre e dores de cabeça e de garganta, mas, em três dias, seriaeliminado, e Carlos ficaria para sempre protegido contra aparalisia. Na segunda, o microorganismo invasor atingiria osistema nervoso central e atacaria os neurônios motores, o quepoderia causar seqüelas permanentes ou mesmo a morte.

O pequeno Carlos estava na sala da casa de seus pais, nosbraços de um amigo da família, quando começou a vomitar, enão parava. No meio do corre-corre de parentes e vizinhos,alguém falou:

— Leva pro hospital, que ele vai morrer!No Hospital das Clínicas, o menino teve convulsão, foi

diagnosticada a paralisia e ele ficou internado. Alguns diasdepois, aparentando melhora, foi levado para casa pelos pais,mas, no longo trajeto entre o hospital e a Vila Curuçá, teve novaconvulsão. Levado de volta ao HC, teve a terceira criseconvulsiva na entrada do hospital e acabou novamente internado.Dona Antônia só foi saber de seu filho alguns dias depois,quando a "baratinha" parou à sua porta.

"Eu não tenho problemas de saúde. Fazdez anos que não vou ao médico". Esse é Carlos, hoje, sentadonuma cadeira de rodas e vendendo saúde, física e mental. "Aspessoas acham que porque você usa cadeira de rodas é doente.Isso não é verdade".

Essa convicção de, excetuada, evidentemente, a limitaçãode não poder caminhar, ser uma pessoa tão capaz quanto qualqueroutra, é uma das que Carlos mais gosta de manifestar. "Fui educadopara olhar nos olhos dos outros e falar com firmeza", explica. Foimesmo. Na Associação de Assistência à Criança Deficiente(AACD), dos 10 aos 13 anos, entre 1967 e 1970.

Se, por um lado, Carlos não teve a sorte de se beneficiarda vacina do doutor Sabin, por outro, teve a felicidade de

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Personalidade

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conhecer um médico que o iria convencer de que a paralisia nãoo paralisava tanto assim: o ortopedista Renato da Costa Bonfim."Ele moldou a minha vida", reconhece Carlos, com gratidão.

Doutor Bonfim nasceu, em 1901, em Espírito Santo doPinhal, interior de São Paulo. Formou-se em medicina pelaFaculdade da Capital, em 1928, dois anos antes de ela serincorporada à Universidade de São Paulo. Após 22 anos de espe-cialização em ortopedia, fundou, em 1950, a AACD, e assumiu apresidência da Sociedade Brasileira de Ortopedia. Faleceu, em1976, sem ter deixado em nenhum momento de exercer aprofissão de médico nem largar a direção da Associação. De suasrecomendações Carlos não se esqueceu até hoje:

— Garoto, preste atenção: lá fora, para quem anda, omundo é difícil. Para quem roda, é duas vezes mais. Então, vocêvai ter de provar, sempre, que é duas vezes melhor.

"Nós éramos ensinados a ser vencedores", recordaCarlos.

Ele fizera tratamento no Hospital das Clínicas até os 5anos. De lá, encaminharam-no para a AACD, mas a vaga e acondição para pagá-la só surgiram quando ele já tinha 10 anos.Sua mãe saía de madrugada da Vila Curuçá e o levava à AACD,na Vila Mariana, zona sul, três, quatro vezes por semana.Trabalhava o dia todo como costureira e pagava cerca de umsalário mínimo para a educação e o tratamento do filho. Alembrança dos sacrifícios de Dona Antônia deixa Carlosindignado, toda vez que ele se depara com uma mãe de criançaespecial que, por preguiça, deixa de aproveitar oportunidades.Aconteceu, recentemente, quando ele tentou levar um menino deseu bairro, deficiente auditivo, ao Telecentro, e descobriu que amãe do garoto está com preguiça de o acompanhar até o local."Tem coisas que me revoltam. O moleque anda! É só para elafazer companhia da praça até o Telecentro. Grande parte dos

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especiais não tem a oportunidade de aprender informática, omenino está louco para fazer o curso e a mãe... Brincadeira!Sendo que a minha mãe... Eu fico bravo com isso", encerra,irritado, deixando as frases pela metade.

Quando saiu da AACD, Carlos não era mais o meninoque a mãe julgava frágil e para quem buscava proteção a todocusto: era um adolescente cheio de opiniões formadas, com umavontade de aço e a firme decisão, já tomada, de nunca mais fazertratamento. Ele não precisava mais disso.

Dentre as certezas que levou consigo da AACD, uma dasmais enraizadas é a de que paternalismo e superproteção sóatrapalham. "Eu sou contra reserva de mercado para quem querque seja. Você tem de dar, sim, oportunidade para que todospossam estudar e ter chances iguais. Eu vou lá, disputo com vocêe, se você for melhor do que eu, você vai levar", defende.

Foi só então, ao voltar a morar na VilaCuruçá, após três anos de AACD, que ele descobriu, de fato,onde havia nascido. Não gostou nem um pouco. "A Vila Marianaé um bairro rico. Na AACD, eu passeava todo final de semana,ia para cinema, andava em lanchas de amigos do Doutor Bonfim,eu tinha uma vida legal. Quando eu voltei para cá, a Curuçá nãotinha asfalto, as ruas eram esburacadas, eu não tinha amigos enão tinha como sair de casa. Como eu ia arranjar amigo"?

Carlos arranjou. Não apenas um companheiro paraaqueles dias tediosos do começo dos anos 70, mas um irmão parao resto da vida. Foi numa tarde, quando, parado na porta de casa,olhava a rua, distraído, e um moleque, mais ou menos da suaidade, vinha andando pela calçada.

— Vem cá, neguinho! Vem aqui um minutinho! —chamou Carlos.

O garoto chegou perto.

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Um achado

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— Onde você está indo?— Vou comprar sabão pra minha mãe.— Compra um doce pra mim! — pediu Carlos, dando o

dinheiro.O menino pegou o dinheiro, foi e voltou, com o sabão e

o doce. — O que você vai fazer depois? — Carlos quis saber..— Nada — foi a resposta.— Volta aí, pra gente conversar.Mais tarde, Mário Aparecido da Silva, o garoto, estava de

volta à casa de Carlos. Ficaram amigos e assim permanecem.Quieto, de fala tranqüila, o comportamento de Mário, até hoje,não tem nada a ver com o do amigo. Diferentes, uniram-se nasidéias, nos valores. Mário tornou-se, naturalmente, ocompanheiro certo para Carlos. Empurra a cadeira de rodas, pegaônibus junto, carrega no colo e abraça como suas as idéias quepipocam na cabeça do outro. "Ele é as minhas pernas, somosinseparáveis", diz Carlos.

Mário queria virar gente grande, amadurecer, assumirresponsabilidades, ajudar a família. A amizade com Carlos foi ocaminho. "Apesar de pré-adolescente, ele era maduro, o quemuito me servia", analisa Mário, hoje, aos 43 anos. "Não sei seretribuí tanto quanto ganhei. Não tenho essa certeza".

Independentemente de Mário conseguir ou não devolverao companheiro tudo o que recebeu, seu filho Alex continuarásua obra de amizade e gratidão. Aos 21 anos, ele é a nova sombrana vida de Carlos, acompanhando-o onde for, para o que se fizernecessário.

Juntos, Carlos e Mário transformaram manhãsabandonadas, sem perspectiva, em dias de grande alegria. Muitasvezes, acordavam às quatro da madrugada e mandavam-se, deônibus, para o Parque Dom Pedro, só para ver o sol nascer entre

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os prédios. Nos finais de semana, quando chegava a noite,pegavam o equipamento de som que haviam adquirido e viravama dupla de DJs que agitava as festas da Vila Curuçá. Quando acadeira de rodas de Carlos quebrou, conseguiram uma bicicleta econtinuaram circulando pela cidade. Mário pedalava, Carlos iade carona e os dois caíam, toda hora, tombos espetaculares.Dinheiro não tinham. Mas também não sentiam muita falta."Fizemos tudo e mais um pouco do que queríamos ter feito",garante Carlos.

Criado, tendo terminado osegundo grau e devidamente acostumado ao dia-a-dia da zonaleste, chegou para Carlos a hora da verdade, quando sua mãe lheperguntou:

— Meu filho, o que você vai fazer da vida? Como gostava de desenhar, decidiu fazer o curso de

arquitetura do Instituto Universal Brasileiro (IUB), por cor-respondência. Quando estava no terceiro ano do curso, o rumo desua vida mudou, de maneira imprevista, encaminhando-se para oque se revelou ser sua verdadeira vocação: trabalhar com arte,desenvolvendo projetos culturais para comunidades pobres.Envolvido numa oficina teatral em seu bairro, aprendeu técnicasde dramatização e colocou-as em prática, fazendo apresentaçõesem escolas, creches, entidades e onde mais fosse possível.

Convenceu amigos, capacitou pessoas e organizou umaautêntica companhia mambembe de teatro: o Teatro Criança(TC), que se deslocava pelas ruas de terra da Vila Curuçá evizinhanças, em uma Brasília azul. Oito pessoas dentro,espremidas, com o figurino nas mãos, e o cenário no capô. Ostemas abordados eram sempre relacionados às questõespresentes no cotidiano dos moradores da região. O enfoque,educativo. O público mais freqüente, crianças. "A gente nunca

Diversão, arte e bolso vazio

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cobrou nada por isso. Quem chamava a gente para representar sótinha de dar um lanche e conseguir um local para os atorestrocarem de roupa", conta. Com a agenda do TC lotada,esqueceu, definitivamente, a arquitetura. Dona Antônia deu omaior apoio:

— Teatro não dá dinheiro. Você vai morrer de fome! —esbravejou, inconformada com os planos do filho.

— Mas é isso que eu quero — encerrou Carlos, referido-se, obviamente, ao teatro, e não a morrer de fome.

Desde então, deu aulas de artes plásticas, trabalhou comportadores do HIV, organizou eventos musicais, deu orientaçãosexual em escolas e, durante o governo Collor, viu-se obrigado a,meio a contragosto, deixar o teatro um pouco de lado e virar-secomo analista de crédito de uma empresa. Tão logo pôde, voltoupara a educação e a arte.

Sua mãe acertou em cheio: o teatro, de fato, nunca deudinheiro. "Trabalhei, lógico, porque precisava, e ganhei dinheiro.Mas, quando eu tinha de escolher entre o prazer e o dinheiro,ficava com o prazer. Espero que minha filha (Monique, de 2anos) seja mais inteligente do que eu e aprenda a ganhardinheiro, coisa que não aprendi", comenta, com bom humor.

Se falta de dinheiro tivesse sido o únicoproblema de Carlos na vida, as coisas até que não teriam sido tãodifíceis. Ele teve outros, maiores. Alguns, ocasionais. Muitos,freqüentes. Ser desrespeitado em transporte público foi quaseuma rotina. Dá sinal para o ônibus, o motorista não pára. Se pára,diz para ele esperar pelo carro adaptado, que "está vindo logo aíatrás". Passam-se duas horas e nada do adaptado.

Em 1978, Embalos de Sábado à Noite (Saturday NightFever, Estados Unidos, 1977) estreou nos cinemas brasileiros.Repetiu, aqui, instantaneamente, o impressionante sucesso que

Na estrada

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tivera no mundo todo, como previra o crítico Paulo Carvalho, narevista Visão de 24 de julho de 1978: "Todos vão gostar destefilme. Quem acha que não pertence ao mundo cuidadosa einteligentemente retratado pelo diretor John Badham terá oprazer de menosprezar a elaborada estupidez dos personagens ede se sentir confortavelmente superior. Mas quem se identificarcom a cafonice ficará feliz com a defesa que o filme faz dos queacham elegante usar roupa de poliéster, sapato branco de saltoalto e cruz de ouro no peito cabeludo".

Embalos de Sábado à Noite produziu vários fenômenos:engordou a conta bancária do desconhecido diretor JohnBadham, transformou a onda da disco music num estilo de vida,as discotecas numa febre mundial, salvou do esquecimento ogrupo musical Bee Gees, meio sumido após o final dos anos 60,e projetou a carreira do ator John Travolta que, até então, aos 23anos, atuava em produções feitas para a TV norte-americana,como O Rapaz da Bolha de Plástico (The Boy in the PlasticBubble, Estados Unidos, 1976). Por sinal, obra do mesmoBadham.

Carlos assistiu ao f ilme no Cine Gazetinha, naAvenida Paulista, acompanhado de Mário, como sempre.Saíram de lá sentindo-se um pouco como Tony, personagemde Travolta. Mas foi só chegar à estação Sé do Metrô, quetoda a ilusão do cinema deu lugar à realidade do transportepúblico de São Paulo. Quando Mário ergueu o corpo doamigo para passá-lo sobre a catraca (as estações, na época,não tinham nenhum tipo de adequação para atender pessoasespeciais), o lugar da batida dançante da música Stayin'Alive, que traziam na cabeça, foi ocupado pelos berros de umfuncionário mal-educado:

— Pode parar aí, ô, negão! Onde é que você vai com ele?Tá achando que isso aqui é o quê?

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— A cadeira de rodas é larga, não passa pela catraca —explicou Mário, com a habitual paciência.

— Problema dele! Vai ter de passar normalmente, comotodo mundo.

— Como? — quis saber Carlos.— Se vira! — gritou o funcionário.Nessa hora, o sangue dos dois amigos esquentou de

verdade. Xingamentos, ameaças, curiosos juntando ao redor,todos os elementos de uma grande confusão estabeleceram-se.Teve de vir o supervisor da estação para acalmar todo mundo eresolver. Ir ao cinema não era simples para eles.

Na verdade, nada era simples. Nunca foi. Nem paraCarlos, nem para sua família, que tem o sofrimento comocompanheiro de jornada pela vida. Dona Antônia cresceu, noPiauí, ouvindo o pai dizer: "Mulher não tem de estudar porquevai casar mesmo"...

Um dia, o pai levou-a à porta de uma igreja e apresentou-a a um homem, dizendo assim:

— Ó, esse aqui vai ser seu marido.Sem direito a dizer não, ela casou. Teve três filhos (dois

homens e uma mulher), os irmãos mais velhos de Carlos. "Comovocê vai amar uma pessoa que nunca viu? Ela não se dava bemcom o marido. Nem podia. Amando, já é difícil", diz Carlos.

A mãe de Dona Antônia via que a filha não era feliz e,por fim, ajudou-a a se livrar do suplício: juntou um dinheiro ecolocou-a num navio com destino a São Paulo. A mulher passouquarenta noites, tempo que o vapor, como era chamado, levoupara fazer a viagem, dormindo numa rede, uma vez que o barconão tinha leitos. Chegou, sozinha, sem conhecer ninguém e,algum tempo depois, estava morando com o pai de Carlos. "Eleera alcoólatra. Só queria saber de beber e maltratar minha mãe",revela Carlos, sem esconder que tem mais apreço pelo padrasto,

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Benedito Sebastião dos Santos, homem com quem Dona Antôniacasou-se pela terceira vez, e com o qual vive até hoje, do quepelo próprio pai. "Pra mim, é o meu pai. Foi ele quem me criou".

Dessa união, nasceu também Iraci, a irmã mais nova deCarlos. Zezé e Chiquinho, os irmãos, não moram em São Pauloe enfrentam problemas com o alcoolismo. Ficou para DonaAntônia, hoje com 72 anos, a companhia de Carlos. "Eu souaquele que ela ajudou mais e em quem ela mais confiou", diz.

O filho mais querido de mãe Antônia passou por mausbocados em 1996, quando pôs fim ao seu primeiro casamento.Embora não fosse casado oficialmente, vivia junto com umamoça que já tinha três filhos de uma relação anterior. Os doismeninos mais novos adoravam-no. O mais velho, adolescente,não o aceitava. Com esse, Carlos discutia freqüentemente.

A gota d'água foi na noite de 19 de dezembro, domingo,após o Programa Silvio Santos. Os dois brigaram, mais uma vez,e Carlos, já cansado do comportamento de sua companheira, queprotegia em demasia o filho, foi dormir decidido a desaparecertão logo o dia clareasse.

No dia seguinte, encontrou Mário, que já estava pordentro dos problemas, na Praça da Sé.

— Levei até onde deu. Não dá mais. Pra casa eu não vouvoltar — falou Carlos, recusando-se não só a continuar ocasamento, como também a voltar para a casa da mãe.

— E o que você vai fazer da sua vida? — quis saberMário.

— Não sei. Não faço a mínima idéia.Por volta das três horas da tarde, pegaram o Metrô, não

com a intenção de chegar a algum lugar, mas unicamente paraescapar de uma garoa que começara a cair sobre a Sé. Foramparar no Terminal Rodoviário Tietê. Lá, Carlos escolheu, arbi-trariamente, o que fazer da vida: tomar um ônibus até Brasília.

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Sete e meia da noite, o ônibus encostou na plataforma. Ajudadopor Mário, Carlos embarcou, levando uma cadeira de rodas, duasluvas de couro e uma escova de dentes.

Quando chegou lá, dia 21 de dezembro, encontrou acidade toda enfeitada, iluminada, e sentiu-se um pouco na pelede João de Santo Cristo, personagem da música FaroesteCaboclo, do grupo Legião Urbana, cuja letra, referindo-se àimpressão que João teve quando chegou à Brasília, diz: "Eleficou bestificado com a cidade. Saindo da rodoviária, viu asluzes de Natal".

Sem saber o que fazer e onde ir, ficou por horas paradona rodoviária, até lembrar-se de um tio que morava na cidade deMimoso de Goiás. Ligou para ele, comprou passagem e foi paralá. "Que lugar lindo! Goiás é um dos lugares mais lindos destepaís", empolga-se ao lembrar a sensação da chegada. "Quando eusaí para a rua, que eu vi... Era cenário de filme. Tucanos,papagaios, garças, todos soltos pela cidade. Para todo lado que sevai, tem rio. Não se anda cinco quilômetros sem cair dentro deum. Fiquei maravilhado". Ainda não havia nem dez anos que opequeno povoado do Rio Maranhão, do Rio dos Mineiros, doMorro São Domingos, da Caverna Barro Vermelho e da Igreja deSão Sebastião fora reconhecido como o município de Mimoso.Atualmente, tem 2,6 mil habitantes, 2 por Km.

Em Mimoso, os conhecimentos de Carlos começaram a ser,finalmente, reconhecidos e remunerados. Organizou apresentaçõesde teatro para a Semana Santa, deu aulas particulares de matemática,ensinou inglês e fez fama rapidamente. Contratado para trabalhar nacampanha de um candidato a prefeito, foi instalado, com conforto,numa casa de cinco cômodos. Vivia bem e feliz, mas não se esqueciada mãe: vinha visitá-la trimestralmente. Numa dessas vindas a SãoPaulo, ficou definitivamente. Encontrou Dona Antônia triste,vivendo um momento de depressão.

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Decidiu permanecer com ela até que essa fase passasse."Fui ficando, mas não estava feliz porque eu queria, na verdade,estar lá em Goiás", admite. Nunca mais foi embora. Deixou paratrás a boa vida de Mimoso e sabe bem o que perdeu: "Se euestivesse lá hoje, estaria bem. Uma cidade onde eu não gastava...Mas minha mãe, pra mim, sempre veio em primeiro lugar. Nadamais justo", diz, convicto de ter feito o certo e de ter perdido umaoportunidade e tanto de livrar-se, para sempre, da vida pobre naVila Curuçá.

O casal Robson e Marina Cenci,funcionários do Telecentro Curuçá Velha, não conheciam ahistória de Carlos quando o convidaram a elaborar um projetopara ensinar informática a pessoas especiais. Apenas apostaram,meio que por intuição, que ele iria gostar da idéia. Acertaram emcheio. Carlos não só aceitou a missão como resolveu ampliá-la,difundindo o Plano de Inclusão Digital da Prefeitura tambémentre os idosos da comunidade, além de divulgá-lo às pessoasespeciais.

Primeiro, convenceu Mário e Alex a entrar no projeto. Depois,procurou o posto de saúde de seu bairro. Lá, falou com Sheila Stiscek,a enfermeira responsável pelo controle da pressão arterial dospacientes da terceira idade. Sheila, ao tomar conhecimento do que sepretendia fazer no Telecentro, aderiu à idéia: passou a comentá-la comos idosos do posto de saúde, tentando motivá-los a conhecer a unidadeda Vila Curuçá. Por fim, Gonçalo da Silva, instrutor de informática doTelecentro Lajeado e auxiliar voluntário do Curuçá, entrou tambémpara o que se decidiu chamar, a partir de então, Programa deIntegração Digital para Pessoas Especiais e da Terceira Idade (Pidpei).Ficou completo o time: Carlos traz pessoas especiais, Mário e Alexajudam esses usuários no que for preciso, Sheila convida os idosos eGonçalo tira as dúvidas de todos referentes à tecnologia.

Mobilização

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Carlos, junto com sua turma de colaboradores, marcouuma reunião com cerca de quarenta idosos, no TelecentroCuruçá. Explicou a importância da tecnologia na sociedadede hoje, mostrou os computadores, tirou dúvidas, eliminoureceios. Principalmente, deu, como sempre faz, seutestemunho empolgado de que, independentemente de idadeou condição de saúde, sempre vale a pena sair de casa, ver omundo, aprender mais, viver intensamente. Não deu outra:convencidos de que são parte dessa nova sociedade dainformação, muitos resolveram incluir-se nela de uma vezpara sempre, cadastrando-se no Telecentro e fazendo, pelamanhã, o curso com a instrutora Jaqueline Oliveira. "A genteteve a sorte de que não só os funcionários, mas até ospoliciais (da Guarda Civil Municipal, responsável pelasegurança nos Telecentros) abraçaram a causa. Tem semprealguém pronto para auxiliar", comenta Carlos.

Ante a possível objeção de que um projeto para ensinarinformática a pessoas especiais necessita da contratação deprofissionais formados, que tenham estudado para trabalhar comalunos cujas necessidades educativas são diferenciadas, Carlosreage com firmeza. "Ninguém vai lá para fazer fisioterapia. Elesvão lá aprender uma técnica. Para isso, tem o Gonçalo, aJaqueline". De qualquer forma, se alguém cobrar a presença de umespecialista, Carlos tem um para apontar: Mário. "A vivência émais importante que qualquer faculdade. Isso, ele tem para mostrara qualquer doutor. Ele me acompanha há mais de trinta anos".

Para os próprios funcionários do Telecentro, o convíviocom Carlos e com todas as pessoas que chegaram à unidade pormeio dele tem sido proveitoso em vários aspectos. "Nuncaestudei nem trabalhei com pessoas especiais. Para mim, estásendo uma ótima experiência", diz Gonçalo. "Antes, os achavadiferentes. Hoje, descobri que essa diferença nunca existiu".

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Carlos já tem uma prova de que o aprendizado dainformática promove mesmo benefícios na vida de pessoasespeciais, abrindo perspectivas que chegam a gerar um novo jeitode pensar e sentir a vida. A prova tem 16 anos, sofre de distrofiamuscular progressiva, gosta de andar em velocidade na suacadeira de rodas motorizada, chama-se Paulo Rosental Filho e éconhecido por todos como Paulinho. A recente mudança nocomportamento do garoto, antes trancado em casa, arredio,ocorrida a partir do momento em que ele aprendeu a usar umcomputador, está servindo até para curar a depressão de sua mãe,Jandira. "As expectativas haviam acabado. Agora, vibramos ecremos no prolongamento de sua vida", afirma a mãe. "Éimportante o relacionamento com outras pessoas, para que osespeciais se sintam independentes e capazes, como qualquer serhumano", completa. Como Sandra de Brito, esposa de Carlos emãe de Monique, sente-se hoje, aos 34 anos. "Tive paralisiainfantil aos seis meses e sempre fui superprotegida pela minhafamília, razão pela qual, muitas vezes, não pude fazer as coisasque realmente queria", lamenta.

Carlos a conheceu numa festa da Federação Cristã deDeficientes (FCD), entidade ecumênica da qual participa.Evangélico da Assembléia de Deus, ele agradece sempre pelavida que leva, por ser filho de Dona Antônia, por ter podidoestudar na AACD, ter conhecido Mário, aprendido teatro e arte,amado Sandra e trazido Monique ao mundo. Pede saúde paracontinuar dividindo com pessoas como Paulinho a alegria comque põe sua cadeira de rodas em movimento, há 44 anos, apesardas não poucas dificuldades do cotidiano.

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Quando Richard Stallman veio ao Brasil, à convite daPrefeitura de São Paulo, visitou alguns Telecentros. Durante aviagem que fez, da Vila Mariana, zona sul, onde estavahospedado, até a unidade Cidade Tiradentes, localizada na zonaleste e distante cerca de 40 quilômetros do centro, só umpensamento em sua cabeça – encontrar alguém que usasse oscomputadores para desenvolver softwares.

A idéia foi transmitida, quase de forma obsessiva, aosfuncionários da Prefeitura que o acompanhavam. Não é paramenos: Stallman é programador formado por uma das principaisescolas de tecnologia dos Estados Unidos, o MassachusettsInstitute of Technology (MIT), e conhecido por ter iniciado oprojeto GNU e o movimento do Software Livre, que daria origemao sistema operacional GNU/Linux, usado nos Telecentros.

Apesar de cursos de programação não serem oferecidosainda nos Telecentros, a resposta ao visitante norte-americanopôde ser positiva. “Sim, há um garoto que está fazendo um jogo”,disse Frederico Camara, o especialista em informática doGoverno Eletrônico, que o acompanhava.

Stallman chegou à Cidade Tiradentes, cumprimentouos funcionários e conheceu a estrutura. Sentou em umamáquina e verif icou a conf iguração e os softwaresinstalados, até por pressão das muitas pessoas que o

É este o nome do jogo desenvolvidopor Cléber Santos, 17 anos,programador autodidata da CidadeTiradentes.

Linux no Espaço

Por João Cassino

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cercavam e da reportagem da TV Cultura, que preparava umamatéria para o jornal do dia.

No primeiro tempo livre que teve, o guru do softwarelivre perguntou: “Onde está o rapaz”?

O rapaz estava lá, observando a movimentação eaguardando o momento de conversar com o visitante. Cléber deJesus Santos, 17 anos, é voluntário da unidade há mais de um anoe, por determinação própria, ultrapassou o limite das atividadesoferecidas e começou a programar. Nas máquinas dosTelecentros, já fez dois jogos, aprendeu linguagem HTML eagora tenta desenvolver softwares mais complexos.

Richard Stallman é alto, cerca de1,80 m de altura, gordo, barrigudo, barbudo, cabelo grande erevolto, olhos claros e penetrantes, branco. Um típico norte-americano de Washington. Cléber é magro, estatura mediana,tem a pele escura, um pequeno bigode, cabelo curtinho, jeito demoleque. Um típico jovem da periferia paulistana.

O encontro dos dois não era possível prever semanasatrás.

Cléber tomou a iniativa do diálogo e perguntou aopróprio Stallman se ele falava espanhol. Então, falando algumaspalavras em espanhol, mas se apoiando no inglês, a conversaentre o menino curioso da zona leste e o inventivo programadornorte-americano começou, dispensando o tradutor.

“Você será um futuro hacker”, disse Stallman, quetambém é um ícone desse movimento. “Continue em frenteporque vale a pena, você vai ter futuro”, continuou.

Talvez espelhando no guru as próprias dificuldades,

Cléber desenvolveu o site Conexão Cidade Tiradentes, cominformações de seu bairro e do Telecentro, onde tornou-se monitor.

Encontro improvável

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Cléber disparou: “Você demorou muito para começar aprogramar, foi muito díficil”?

“Não vou dizer que foi fácil, que foi rápido... Tive quesuar muito para conseguir. E você também terá que trabalharbastante”, respondeu Stallman.

Outras palavras foram trocadas rapidamente, mas outraspessoas esperavam a atenção do visitante.

O papo entre os dois poderia passar despercebido. Noentanto, no dia seguinte, 2 de setembro de 2002, RichardStallman fez uma palestra no Palácio das Indústrias, a sede daPrefeitura de São Paulo. Como em qualquer parte do mundo,profissionais e fanáticos por informática disputam lugares paravê-lo falar.

As trezentas cadeiras do Salão Azul não foramsuficientes para abrigar todo mundo. As inscrições abertas peloportal da Prefeitura (www.prefeitura.sp.gov.br) foram encerradasem dois dias. No evento, estavam secretários da Prefeitura,diretores e representantes de departamentos e empresas detecnologia, públicas e privadas, de outras cidades e estados.

Stallman começou a fazer seu discurso, que no totallevou quase duas horas e meia. Contou o histórico do movimentopelo software livre, afirmou que as pessoas não devem pagar porlicenças de programas de computador, pois não podem colaborarcom um sistema nefasto de aprisionamento de conhecimento eperda de liberdades, e como a tecnologia pode melhorar a vidadas pessoas com educação.

Em um momento chave, no meio de sua palestra, elecitou a experiência que teve no dia anterior, na CidadeTiradentes. Stallman contou a todos que o uso do GNU/Linuxnos Telecentros já tinha feito um programador. Cléber, naqueledia, virou exemplo.

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O gosto do menino da ZonaLeste pelo computador começou aos 7 anos, no laboratório deinformática da escola pública onde cursava o ensinofundamental. “Quando o pessoal deixava, eu ficava lá até o finalda tarde”, diz, com um sorriso aberto.

Ver as aulas pela manhã e usar o laboratório à tardetornou-se uma rotina. Mas o uso do equipamento era muitolimitado. “Havia instalado nas máquinas o Windows 95 e oPaintbrush”, conta.

O Microsoft Windows é o sistema operacional que detémquase a totalidade do mercado. Paintbrush é um aplicativo quevem junto com ele e serve para criação de desenhos simples.Cléber começou com o que tinha em mãos, fazendo o que podia,ou seja, desenhando. “Com o tempo, fui vendo que o computadornão era só aquilo”, diz.

Aos 12 anos, Cléber passou a entender o que erahardware, software e como tudo funcionava. Com um poucomais de conhecimento, ele começou a se interessar pela área deprogramação, mas não tinha computador em casa. Limitado pelaexclusão digital, o garoto ficou dois anos longe da informática.

No ano de 2001, a Prefeitura de São Paulo criou aCoordenadoria do Governo Eletrônico, responsável pelo Planode Inclusão Digital do munícipio. Conhecido pela populaçãocom o nome de e-Cidadania, o projeto consiste em instalarTelecentros nas áreas mais carentes da cidade.

O critério adotado pela coordenadoria foi utilizar o Índicede Desenvolvimento Humano (IDH), um indicador criado parademonstrar a qualidade de vida em cada país, estado, cidade ebairro do planeta. Naquele momento, Cidade Tiradentesapresentava o pior IDH de São Paulo.

A região é caracterizada por ser composta de bairrosdormitórios, em que as pessoas se deslocam para o centro pela

Cléber acha seu lugar

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manhã, para trabalhar, e retornam à noite. O tempo gasto emtrânsito, em um dia, pode chegar a cinco horas, duas e meia parair e o mesmo para voltar.

Pobreza e criminalidade são elementos presentes nobairro. Cléber conta que perdeu um grande amigo, da sua mesmafaixa etária, por uma banalidade. Ele foi visto conversando,apenas “trocando idéia”, com a namorada de um usuário dedrogas da região. No dia seguinte, estava morto, baleado.

Próximo à fronteira com Ferraz de Vasconcelos, oGoverno Eletrônico encontrou prédios da administração quehaviam sido abandonados pela gestão interior. “A rua eraconsiderada perigosa e quem mora por perto evitava passar porali”, relembra Cléber.

O local foi reformado, criou-se um conselho gestor, commembros ativos da comunidade, para ajudar na fiscalização, e oTelecentro começou a funcionar. Em junho de 2001, CidadeTiradentes ganhava a primeira unidade.

“Demorei um pouco para saber da existência doTelecentro”, diz Cléber. Mas em menos de dois meses, em agostode 2001, ele foi chamado para fazer o curso de informáticabásica, que é dado gratuitamente. Terminado o curso, o garotopassou a freqüentar a unidade, para fazer uso livre – navegar naInternet e fazer pesquisas, entre outras atividades possíveis.

Dois meses depois, a curiosidadepela rede mundial de computadores despertou nele a vontade decriar suas próprias páginas. “Eu queria saber como era feito e fuiatrás, aqui mesmo no Telecentro”, conta.

Cléber virou voluntário e passou a freqüentar aunidade de domingo a domingo. Toda tarde, depois das aulasdo ensino médio, ele vai ao Telecentro e f ica até oencerramento das atividades. Além de colaborar com um

Nasce o programador

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projeto em que acredita, ajuda outras pessoas e tem mais tempopara contato com as máquinas.

Com dedicação e dicas de pessoas que já entendiam detecnologia, ele foi estudando até dominar HTML, a linguagempara criação de sites. Cléber se tornou um programador. “Adoreia Internet porque alia ao código outra parte que eu gosto, odesenho (ou design)”, comemora.

Um dos endereços na rede criados por ele é o siteConexão Cidade Tiradentes, que mostra acontecimentos doTelecentro e região.

Vencida essa etapa, ele pensou: “Caramba, eu gosto dejogo! Jogo tem design, jogo tem programação, jogo tem gráfico.Vamos atrás, vamos ver o que é possível fazer”.

Ele passou a ler, pela rede, materiais didáticos deferramentas gráficas, como Photoshop e CorelDraw, e outraslinguagens de programação, inclusive algumas que pouco sãoutilizadas hoje em dia, como Cobol e Pascal.

Encontrou o programa Macromedia Flash, bastanteusado na rede. Essa ferramenta trabalha com uma linguagem deprogramação embutida chamada ActionScript. Seria nela que elefaria seus dois primeiros jogos.

O problema é que esse programa é proprietário, exigepagamento de uma licença caríssima e não existe uma versãopara GNU/Linux. Cléber não poderia instalar tal software noTelecentro. O aprisionamento de conhecimento combatidopor Richard Stallman atrapalhou a capacidade autodidata dojovem programador da zona leste. Novamente seus planosseriam paralisados por um tempo, pela falta de recursos epelo modelo de negócios excludente das corporações multi-nacionais.

Sem desistir, foi atrás de um micro para desenvolverseu projeto. A primeira tentativa foi conversar com sua mãe.

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Pedir para ela comprar um micro. O desejo não era novo e o“não” como resposta já tinha sido ouvido outras vezes.

Sua mãe é faxineira e ganha um salário mínimo. O pai,padeiro de profissão, estava desempregado. Seus outros quatroirmãos também estão fora do mercado de trabalho e da escola,inclusive o caçula. Ele é o único que continua estudando.

Um de seus irmãos teve problemas com o uso de drogas(segundo Cléber, já superado). Outro passou dois anos na cadeia.Cléber conta que seu irmão andava, sem saber, com um ladrão, eestava junto com ele quando a polícia o abordou. Ambos forampresos. “Desta vez a justiça foi cega”, reclama.

Por sorte e persistência, Cléber arrumou um computadorpara sua casa. Um funcionário da Prefeitura que trabalha com eleemprestou uma máquina meio antiga, com processador Pentium200 MHz.

Com um micro à sua disposição, conseguiu instalar oFlash e produzir seus jogos. O primeiro tem o nome Linux inSpace. Neste jogo, o pingüim, personagem-símbolo do Linux,pilota um disco voador e tenta desviar de mísseis que sãodisparados para destruí-lo. Exige do jogador muita destreza como mouse. Seu segundo projeto é mais um brinquedo do que umjogo. Cléber desenhou um homem e o jogador pode mudar seubigode, barba, chapéu etc.

A sorte continua por perto de Cléber. Em outubro de2002, ele já estava atuando como voluntário no Telecentro hámais de um ano. Neste mês, a parceria entre a Prefeitura de SãoPaulo e a organização não-governamental Rede de Informaçõespara o Terceiro Setor (Rits), permitiu a sua contratação comomonitor na unidade Cidade Tiradentes.

Seu pai, no mesmo período, conseguiu uma vaga naconstrução civil, fora de sua área de atuação, as padarias, masque, pelo menos, garante mais dinheiro em casa.

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Cléber pretende agora aprender a programar softwareslivres, usando o GNU/Linux. Vai prestar vestibular no final de2003, para algum curso na área de informática. Apesar dacomprovada capacidade de usar a tecnologia, terá de mostrar, novestibular, que merece estudar numa universidade pública. Suafamília, evidentemente, não tem condição de pagar amensalidade de uma faculdade privada.

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“Um dia, eu gostaria que alguém escrevesse minhahistória”. É o desejo de Mafalda Judith Dal Pozzo, umacatarinense de 74 anos, freqüentadora do Telecentro CidadeTiradentes, no bairro onde mora, sozinha, numa casa daCohab. Ela chegou ao Telecentro procurando distração, umamaneira de ocupar seu tempo, de estar em contato com gentee enfrentar a inimiga que a tem visitado nos últimos anos: asolidão. “Estou isolada aqui. Eu vivo de solidão”, conta.“Moramos num lugar que não tem segurança, que não temdistração alguma, não tem um cinema, não tem nada. É sómolecada brincando por aí, fora o resto, que não dá nem prafalar. Então, onde é que você vai? Você é obrigada a ter umatelevisão, que é tua amiga”. Agora, conta também com ocomputador. “Terças e quintas eu venho para o Telecentro. Eume distraí muito por causa disso”.

Datilógrafa, Dona Mafalda não teve dificuldade parase entender com o teclado e compreender o funcionamentode um micro. Logo aprendeu a usar o editor de texto e o e-mail. Pela Internet, colocou-se em contato com sua família,dispersa por outros estados, como Paraná e Rio Grande doSul. Gosta de trocar mensagens com o sobrinho Lauro, quemora nos Estados Unidos. De seus parentes mais próximos,só uma irmã está em São Paulo.

Sozinha, aos 74 anos, a catarinenseMafalda Dal Pozzo passa o temponum Telecentro, enquanto sonhaviver o amor que nunca teve.

Por Cassiano José

Por trás das rugas, o mesmo velho desejo

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A história que ela gostaria que alguém escrevesse começouna região do Rio Jacutinga, interior de Santa Catarina. Filha degaúchos e neta de italianos nascidos em Mântova (norte do país), sópôde estudar até o 2° ano do primário. “A vida inteira eu tive quetrabalhar”, justifica-se. Ela e os nove irmãos. Mafalda começou atrabalhar aos 9 anos. Adolescente, sentindo-se adulta antes do tempo,por conta das dificuldades da infância, foi-se embora para Curitiba,onde conseguiu serviço e ficou. De lá, saiu para ser empregadadoméstica de uma família da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.Conheceu São Paulo quando a irmã Neusa, que morava na capitalpaulista, teve uma filha. Mafalda, madrinha da menina, veio de aviãopara o batizado. “Quando eu cheguei, me apaixonei pelo aeroportode Congonhas. Falei: É aqui que eu venho morar”, lembra. Até hoje,ainda delicia-se com a cidade. “Eu morei no Rio, uma das cidadesmais lindas que o Brasil possui, mas São Paulo é São Paulo. Nãoconsigo morar longe disto aqui. Não sei a razão. Eu gostaria de ternascido paulista, gosto do povo, sou paulista de coração. Ficoencantada com os prédios, a evolução. Meu Deus, a AvenidaPaulista”, empolga-se, com os olhos arregalados, pensativa.

Mafalda estabeleceu-se em São Paulo pouco tempo apóso nascimento da sobrinha. Arranjou-se numa pensão e conseguiuemprego como atendente de enfermagem no Hospital Nove deJulho, onde trabalhou cerca de 17 anos e chegou a instru-mentadora cirúrgica. “Sei tudo de enfermagem”, garante.

“Tenho três cadernos escritos, que são omeu diário, o diário inacabado de uma pessoa que sofreu demais.Lá, eu digo coisas que não diria aqui. Minha vida, meus amores,tudo. Lá está escrito”, revela Dona Mafalda, com melancolia.

“Amei até ao desespero. Não fui amada”, revela Mafalda.

Esqueci de viver

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Seu diário deve conter os detalhes dos bons tempos queela viveu em São Paulo, na época de empregada do Nove deJulho. Mudou-se para um apartamento, na Rua Peixoto Gomide,a poucos metros do hospital em que trabalhava. Aprendeu adirigir, comprou e trocou de carro algumas vezes. Jovem ebonita, viveu intensamente aqueles instantes e não se preocupoucom o futuro. “O dinheiro que eu tinha, em vez de estudar, euesbanjava”, admite. O futuro estava por conta do namorado. “Fuinamorada de um sujeito muito importante, muito rico. Penseique eu ia casar. Casou-se com outra e fiquei sozinha. Só, só ecada vez mais só”, lamenta. “Eu gostava de viver, era apaixonadapor praia, sol. Muitas vezes, a gente se esquece de fazer algumacoisa de útil, para ser alguém mais na vida. Então, não deu paraser nada, e sou o que sou hoje”, conta, revelando, a cada novafrase, um tanto da mágoa que ainda carrega. “A juventude é bela,nós é que não sabemos aproveitar. Quando perdemos, sabemosque perdemos”.

Dona Mafalda sabe bem o que perdeu. Os anospassaram-se e ela não conseguiu realizar sua grande vontade. “Oque eu mais sonhei foi formar uma família. A maior paixão daminha vida, quando moça. Mas o destino é Deus quem faz. Teudestino está escrito no dia em que tu nasceste, não adianta dizero contrário. Você procura uma coisa, mas Deus escreveu outra”.Deus ao qual ela reza todos os dias e pelo qual vai à missa comfreqüência. Deus ao qual pede mais vida, mais tempo. “Nãoestou pronta para ir. Eu queria ter tido tempo de viver o que euqueria viver, de ser alguém na vida, meu Deus! Eu tenho aimpressão de que eu não vivi a minha vida, que eu esqueci deviver”.

Pouco a pouco, ela vai deixando aparecer a verdade.Aquela chama que ardeu na juventude, parece que, silenciosa,ainda queima. “Talvez seja um pouco tarde... Não será tarde

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demais? Ter um lar para mim, uma coisa em que eu pudesse mesegurar, uma âncora, um grande amor. Não fui amada. Amar euamei até ao desespero. Se eu tivesse sido amada, alguém estariacomigo”. Não há mais como esconder: Dona Mafalda continuaquerendo, hoje, aos 74 anos, o que sempre quis. Primeiro, tentamentir a si mesma: “Hoje, sou uma velhinha. Uma velha nãoarranja mais nada”. Depois, finalmente, fala tudo: “Eu sonho umporto seguro, onde eu pudesse me agarrar. Eu sonho diariamente.O que eu peço a Deus? Que alguém goste de mim e que eu possavir a gostar de alguém novamente”. Para os possíveisinteressados, os requisitos: “simplicidade, honestidade, compa-nheirismo, que se encaixe à minha vida. Pode dar meu telefoneno livro”, brinca, quase transformando a reportagem num clas-sificado de encontros.

Dona Mafalda não parece uma pessoa amargurada. Astristezas, a solidão, a falta de um grande amor não lhe levaram asimpatia, a gentileza e o bom humor. É assim com todos. NoTelecentro, muitas vezes escreve mensagens de agradecimentoaos funcionários. Imprime e coloca num quadro, na recepção daunidade. Com expressão de malandragem, pede um computadora quem passar pela frente. “Vou ganhar um computador para daresta entrevista”?

Ela teve uma vida cultural ativa. Cinema, teatro, bonslivros. “Agora, minha vista está um pouco fraca, mas eu li muito.Tive coragem de ler livros como Os Irmãos Karamazovi (escritoem 1879 pelo russo Fiodor Dostoievski)”.

Quando aposentou-se, mudou-se, meio contrariada, paraa casa na Cidade Tiradentes. Foi assaltada três vezes e, até hoje,não se sente totalmente à vontade no bairro. Dorme às seis datarde, acorda cedo e raramente tira sua Brasília da garagem.“Essa é minha vida, uma vida vazia”, diz, e se contradiz,logo em seguida: “Dá uma história, uma grande história”.

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O andar em ritmo acelerado tem razão de ser: umcompromisso rotineiro, mas executado como se fosse único, umatarefa que se repete de dois em dois dias, mas nem por issocumprida de forma mecânica. Ao contrário, a importância do atoconfere ao ritual um ar de novidade.

Cinco horas. A percepção de Alejandro dispensa anecessidade de relógios. Aos colegas de trabalho, algunscumprimentos seguidos por poucos, porém sinceros sorrisos.Um caminhar bem ritmado leva-o para o Mercado Municipal deGuaianases. Saúda discretamente o porteiro, que espera pelofinal de seu turno em uma guarita de pequenas dimensões,situada na porta do estacionamento. Na entrada do mercado,sente que ainda há tempo para saborear um cigarro, sentado emum dos bancos que se dispõem simetricamente, lado a lado.

A algazarra que toma forma na entrada do estabe-lecimento não desperta em Alejandro mais que um simplesobservar, delineado, no entanto, pelas faculdades de quem saberetirar de um quadro comum, repetitivo, algumas belezas quepassam despercebidas pela maioria das pessoas. Soltando afumaça providencial da sua última tragada, seu andar apressa-seum pouco. Alguns lances de escada antecedem a chegada. Aindahá tempo para lembrar do encontro marcado por volta das oitohoras com a namorada, companheira e amiga, Cláudia.

De Guaianases, onde mora, operuano Alejandro Lara retomacontato com seu país, do qual fugiu,com medo dos ataques terroristas.

Dez anos depois

Por Marcos Roberto Gonçalves Lúcio

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Alejandro, afinal, entra num lugar simples, sem requintealgum. Local que abriga resultados expressivos da união entregoverno e comunidade: uma sala com vinte computadoresconectados à Internet, e que representa para seus usuários, maisque equipamentos e tecnologia, a realização do sonho de fazerparte, de ser parte. Ele está no Telecentro Lajeado.

Alejandro Shuna Lara manuseia o microcomputador coma seriedade íntima àqueles que fazem do trabalho não apenasuma ocupação que se traduz em renda, mas também um campode testes, sempre à procura de novos caminhos que confiramevolução intelectual. O resultado deste trabalho aparentementemecânico nada tem a ver com aquelas mensagens de conteúdofútil que povoam a rede mundial de computadores. As frasesconstruídas agrupam em suas formas importância dupla: afamiliar e a profissional. Tendo percorrido milhares dequilômetros em apenas alguns segundos, o e-mail chega a seudestinatário: Carlos Novoa, primo de Alejandro, jornalista dodiário El Comercio, do Peru. Ele não abre mão das notícias desua fonte mais confiável no Brasil: Alejandro, residente no paíshá mais de dez anos.

No entanto, não é apenas a informação jornalística queinteressa a Carlos. O fato de manter um contato rotineiro com oprimo, considerado por ele como irmão mais velho, o faz alienar-se do ambiente confuso e atrapalhado que caracteriza seutrabalho, e mergulhar nas memórias de seu tempo de criança,quando se encontrava com Alejandro periodicamente. A amizadeque surgiu entre os dois supera a diferença etária existente entreeles: Carlos é dez anos mais novo.

Há uma década, Alejandro deixou para trásseu país, laços afetivos, materiais e espirituais. Lembrando daépoca em que partiu, ele esfrega as mãos sobre as pernas

Terror e medo

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cobertas por uma calça jeans já gasta, fixa os olhos em algumponto a seu redor, franze a testa, com ar de introspecção, edesabafa:

— Foram tempos difíceis. Vivíamos apreensivos. Quandodeixávamos nossas casas, o fazíamos sem a certeza de voltar.

O sentimento de saudades da pátria não podia ser sentidotranqüilamente: logo assaltavam sua mente as lembranças dosatentados terroristas promovidos pelo grupo guerrilheiroSendero Luminoso, que tinha por objetivo desestabilizar ogoverno. A fase mais crítica das ações praticadas pelomovimento extremista ocorreu no final do governo de AlanGarcia e início do mandato de Alberto Fujimori. O palco dosatentados era preferencialmente o centro da cidade de Lima, masas pequenas províncias próximas à região dos Andes tambémexperimentaram ataques terríveis. O horário das investidas: ahora do rush, de grande fluxo de pessoas. Alejandro conta que,para continuar a viver em solo peruano, era necessário muitacautela. As situações de risco eram várias. Não raro alguém eraliteralmente eliminado por ter expressado, diante de um executor(pessoa disfarçada no meio da população, que exercia a funçãode espiã dos grupos paramilitares), sua indignação em relação àsinvestidas terroristas. A sensação de imprevisibilidade quedominava não só Alejandro, mas também todos os moradores dacidade, foi mais que suficiente para que este peruano de 39 anosdecidisse ir em busca de ares mais seguros. Mas essa não foi umadecisão fácil. Não foram poucos os dias em que Alejandro seconcentrou em analisar friamente o motivo que o levaria paraoutro país. De um lado, crescia dentro dele a vontade de viversem ter que pensar todas as manhãs se aquela seria a última. Deoutro, o medo de abandonar tudo e passar a viver em terradistante, tendo que lidar com um forte sentimento de angústiapor não estar perto de seus familiares. Era complicado, mas tinha

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de escolher. Como fazê-lo, já não sabia. Precisava de algo mais,fosse para mantê-lo em Lima, fosse para partir. Esse algo veio nadireção de Alejandro, nas palavras de sua avó:

— Menino, se você tem que ir embora, vá. É a sua vida.Estava decidido. A frase da avó, recordada por ele com

profundo carinho, encerrou a questão. Deixaria o Peru. Seudestino: o Brasil. Alejandro optou pelo Brasil por dois motivos:desde criança tinha certa curiosidade por conhecer de perto asterras brasileiras e, segundo, porque tinha aqui alguns amigos,instalados já há algum tempo. Fez contatos e conseguiu um lugarpara morar, em um apartamento no centro da cidade de SãoPaulo.

O início de seus dias noBrasil foram marcados pela euforia de quem necessita adaptar-sea um novo contexto social. Bem sabia Alejandro que, quantomais empenho empregasse na tarefa de assimilar os traços ecaracterísticas de sua nova pátria, principalmente a língua, tidapor ele como um dos fatores que mais lhe exigiram esforços,mais rápido chegaria o fim do processo. Mas não seria tãosimples assim. Desde o momento em que saiu do Peru, Alejandrocomeçou a preparar-se para lidar com a dor de estar longe decasa, a fim de não dificultar ainda mais sua vida em soloestrangeiro. Suas palavras bem traduzem este sentimento:

— Parte de mim ainda está por alguns cantos da minhacasa em Lima, nos lugares e nas pessoas que me eram muitopróximas.

Não demorou a concentrar esforços para promover aadaptação e minimizar a saudade. Passou a visitar museus,teatros, centros culturais e até mesmo comícios políticos. Semprealternando as conduções (trem, metrô e ônibus) para chegar a taislugares. Desse modo, adquiriu a condição de transeunte hábil.

De Einsenstein a Vargas Llosa

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Mais: passou a ser um profundo conhecedor da história de SãoPaulo. Contribuiu para isso sua sede de conhecimento.

O gosto pela arte apareceu já no tempo em que cursava oprimeiro grau, e intensificou-se nos anos de faculdade(Alejandro fazia o curso de administração de empresas naUniversidade Nacional do Peru). Nessa época, costumava lançar-se na cidade de Lima em busca de tudo o que pudesse lheproporcionar aumento de sua bagagem cultural. Lembra-se dasvezes em que faltava às aulas para ir ao cinema, sempre privi-legiando filmes de rótulo cultural, em detrimento das produçõesde Hollywood. Mesmo não tendo conseguido o diploma, poisabandonara o curso no terceiro ano, a universidade fez crescernele a vontade de ampliar seus conhecimentos. Filmes degrandes diretores do cinema europeu e asiático, como o russoSergei Einsenstein, o sueco Ingmar Bergman e o italiano PierPaolo Pasolinni, passaram a ser parte indispensável de sua rotina.Conta que, não raro, assistia a um mesmo filme mais de uma vez.Estando no Brasil, sua vida cultural tornou-se ainda mais intensa.Era comum Alejandro dirigir-se ao Centro Cultural São Paulo,Itaú Cultural, Espaço Unibanco de Cinema, entre outros, embusca de elementos que pudessem solidificar ainda mais suaformação. A literatura também desempenhava forte papel nesseprocesso. A lista dos autores que prendiam a atenção deAlejandro é extensa e diversificada em gêneros: Mario VargasLlosa, Pablo Neruda, Umberto Eco, Carl Sagan, FrancescoPetrarca, Jorge Luis Borges e outros tantos.

— O cinema e a literatura são minhas paixões — revela.

Apesar da preocupaçãocom sua formação cultural, a prioridade de Alejandro era outra:ter uma residência definitiva. Desde que aqui chegou, teve deconviver com o fato de estar sempre mudando. Trocou de

O Peru chega a Guaianases

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endereço cinco vezes, até instalar-se em Guaianases, onde morahá cinco anos. Ao chegar no bairro, conseguiu um emprego nafábrica G-Plastic, fabricante de brinquedos, como encarregadoda seção de impressão. No trabalho, não houve maioresproblemas para Alejandro, que aprendeu sua funçãorapidamente. Quanto aos seus colegas de emprego, também nãoteve muitas dificuldades, fora uma ou outra provocação, porparte de uns poucos, gerada por uma mistura de nacionalismoexacerbado com xenofobia mal disfarçada.

— Sei lidar com isso sem perder a esportiva — garante.Com um emprego mais estável e já há algum tempo

morando em Guaianases, Alejandro percebeu que um ciclo haviaterminado. Ainda existiam muitas coisas para se saber a respeitodo Brasil, mas isso viria com o tempo. A fase mais aguda daadaptação havia findado. Foi então, nessa época, quatro anosatrás, que conheceu Cláudia. Tinha ela 24 anos. Houve logo umaforte identificação. Após encontrarem-se algumas vezes, tiverama certeza de que deveriam se juntar. Não deviam estar errados,pois permanecem juntos até hoje.

Tendo ao lado uma companheira de verdade, um bomcírculo de amizades, um emprego que lhe proporcionara certaestabilidade econômica, e perto de realizar o sonho da ter suaprópria casa, Alejandro não esperava que algo muito signi-ficativo se lhe apresentasse àquela altura da vida. Estavaenganado.

Dez meses atrás, começou a ouvir rumores de que existiauma sala com vinte computadores com acesso gratuito à Internet,dentro do mercado municipal de Guaianases. Desconfiou, masdecidiu checar a informação de perto. Fê-lo em um dia desemana, ao sair do trabalho. Foi até o mercado, perguntou sobrea tal sala, para lá dirigiu-se. Conheceu o Telecentro. Ficousurpreso e pensou, inicialmente, que a unidade era obra da

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iniciativa privada. No Peru, existem muitos locais espalhadospela cidade de Lima que oferecem acesso à informática, mas oserviço é pago.

— Sem o Telecentro, eu teria mais um item no meuorçamento, se quisesse me comunicar com meu primo — diz.

Além de poder agora comunicar-se com o primo diversasvezes por semana, sem ter de pagar R$ 1 sequer, as pesquisaspela Internet têm sido de grande valia na sua busca porconhecimentos. Empolgado com o plano de inclusão digital daprefeitura, até ajudou a fazer a divulgação do serviço.

— O Telecentro cumpre uma função social muitoimportante. Me animei tanto, que peguei panfletos para entregaràs pessoas do bairro. Os moradores tinham de tomarconhecimento daquilo.

A rotina de Alejandro mudou com a implementação doTelecentro no distrito de Lajeado. Mensagens como a citadaneste texto tornaram-se comuns. A oportunidade de podercomunicar-se com Carlos é uma chance valiosa de sentir o primopor perto, presente, mesmo estando tão longe. Fatos e acon-tecimentos em que procurava nem pensar, para não avivar asaudade, podem agora ser lembrados sem angústia. Além doestreitamento dos laços familiares, Alejandro ainda pode servircomo fonte de informações para as reportagens feitas por Carlos.

— Não sei se consigo definir completamente o que oTelecentro significa para mim. É difícil explicar. Só posso dizerque, de alguma forma, modificou parte de minha vida. Paramelhor.

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— Alguém entende de informática aqui?Não é comum uma pessoa entrar numa oficina mecânica

fazendo esse tipo de pergunta.— De informática? Entende de mecânica, de motor —

respondeu um funcionário.— Eu trabalho numa empresa e o meu chefe falou que, se

eu não aprender informática, tô na rua — explicou o rapaz quefizera a pergunta, com expressão aflita — Você não conheceninguém que possa me ensinar? — insistiu.

— Eu conheço — respondeu um homem de meia idade,trajando camisa, calça social e blaser, que ouvia a conversa,enquanto aguardava para ser atendido — Vai num Telecentro! —indicou.

— Quanto é? — perguntou o rapaz, antes mesmo dequerer saber o que é um Telecentro.

— Não é nada. É da Prefeitura, é gratuito.Caio Sérgio Lopes de Oliveira Serroni, o homem que

indicou o Telecentro, explicou, então, para o outro, o que é oprojeto e como utilizar o serviço. Deu até o endereço da unidademais próxima dali.

— Vai no Raposo Tavares! Fala com a Fabiana!Meses antes, ele próprio conhecera o Telecentro Raposo.

Chegou lá querendo fazer um curso e aprender informática, paraenfrentar um concurso para gestor ambiental do Instituto

Caio Sérgio Serroni, advogado, bemsucedido, freqüenta o TelecentroRaposo Tavares e leva os filhos.

Um doutor no meio do povo

Por Cassiano José

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Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos NaturaisRenováveis (Ibama), em que seriam feitas questões referentes àtecnologia. Pegou gosto e ficou amigo dos funcionários.“Comecei a ir todos os dias”.

Tornou-se um admirador do Plano de Inclusão Digital.“Sou um apaixonado pelo projeto, um incentivador. Estáfuncionando muito bem. Fico impressionado com a organizaçãoconseguida numa comunidade que, até então, não tinha regranenhuma. São pessoas humildes, jovens sobre os quais os paisnão têm muito controle. Estavam ali o dia inteiro, fazendo sabe-se lá o que, de repente, viram no Telecentro uma forma decanalizar as energias, de se habilitar para conseguir, amanhã oudepois, um emprego”, comenta.

Caio, de 50 anos, tem uma história de vida bastantediferente da realidade dessas pessoas humildes a quem se refere.Criado numa família bem estruturada, teve acesso à educação dequalidade, escolheu sua profissão (advogado) e foi aprendê-lanuma das instituições mais respeitadas do país, a Faculdade deDireito da Universidade de São Paulo, localizada no Largo SãoFrancisco, no velho centro da capital paulista. Herdou, do pai,Arnaldo, um escritório de advocacia e uma editora, começadascom seu avô, Salvador. Deixou de lado a editora e ficou com oescritório, onde trabalha até hoje. Mora, com a esposa e doisfilhos, num apartamento, dentro de um condomínio. Vinícius eMariana, os filhos, de 11 e 13 anos, respectivamente, estudam,em período integral, na Escola Mutirão, colégio privadolocalizado numa ampla área verde, na Granja Viana (zona oeste)com uma pedagogia diferenciada e turmas muito pequenas, de 4a 6 alunos. Caio tem computador no escritório, mas não entendia

Caio é um pai que se envolve com as atividades dos filhos: foiinscrevê-los num grupo escoteiro e acabou chefe de uma turma.

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muito bem o funcionamento. Foi aprender no Telecentro. Comonão tem micro em casa, seus filhos, quando querem acessar aInternet, fazem-no no seu escritório ou pedem para ir à unidadeRaposo Tavares.

Caio, evidentemente, não tem computador emcasa porque não quer. Teme que os fillhos exagerem no uso.“Eles iriam ficar o dia inteiro nesse negócio, e eu não acho muitointeressante”. Está sendo coerente com a pedagogia da escolaque escolheu para Vinícius e Mariana. No Mutirão, ao contráriodo que acontece, hoje, na maioria dos colégios particulares, osalunos não aprendem informática nem têm qualquer contato comtecnologia. Por isso mesmo, onde encontram um computador, osmeninos não perdem a oportunidade de utilizar. A proprietária doestabelecimento, teosofista, segundo Caio, pratica uma educaçãonaturalista, de integração entre as pessoas, contato com anatureza e nada, absolutamente nada de carne na alimentação.Há dois anos, quando chegaram ao Mutirão (estudavam, antes,no Colégio Joana D'Arc, no Butantã), Vinícius e Marianaestranharam o novo regime alimentar. “Hoje, estão adaptados.Nós não temos esse regime alimentar em casa, mas, mesmoassim, não comemos muita carne. Eles não gostam”, explica.

Para estreitar ainda mais a relação dos filhos com anatureza, Caio colocou os dois, mais ou menos na mesma épocaem que os matriculou no Mutirão, no Grupo Escoteiro Paineiras.Acabou, ele próprio, envolvendo-se com o escotismo muito maisdo que imaginava. “Quem entra não sai. É apaixonante”, contaCaio, agora chefe sênior (responsável pelo monitoramento dosjovens entre 16 e 18 anos) do Grupo. Acompanha os garotos nasatividades. Pedra do Baú, em Campos do Jordão (SP), cachoeirasem Brotas (SP), Pico das Agulhas Negras, no Parque Nacional deItatiaia (divisa dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas

Natureza

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Gerais): lugares onde Caio já praticou rapel, encarou altitudes demais de 2 mil metros e escaladas de 100 metros em pedras.“Enquanto eu agüentar, continuo acompanhando”.

Incorporou à sua vida alguns ideais dos escoteiros. “Oescotismo traz essa coisa de você enfrentar a dificuldade. O queé toda essa atividade nossa? Não mais do que enfrentarobstáculos”, diz, referindo-se ao dia-a-dia de todas as pessoas.

A experiência com uma turma de adolescentes tem sidoprazerosa. “Eu gosto. Tenho o maior orgulho dessa garotada. Éuma idade em que eles poderiam estar num shopping, numadanceteria, fazendo qualquer outra coisa, e eles abrem mãodisso”. Vinícius também mudou, com o escotismo. “Ele adquiriuaquela coisa da cidadania, da ajuda ao próximo, da sensibilidadeem relação às coisas, às pessoas, aos menos favorecidos”.

Caio ainda não sabe se foi aprovado noconcurso do Ibama. Teve bom desempenho, e não fez feio naprova de informática, de nível básico. “Como valeu o curso doTelecentro! Se eu não tivesse feito, não acertaria nem as maisfáceis”. Agora que entendeu um pouco melhor os recursos datecnologia, sua intenção é aprofundar os conhecimentos. Aunidade Raposo Tavares prepara a formação de uma turma paraum curso de imagem, de introdução à manipulação de desenhose fotos no computador. O advogado escoteiro já está inscrito.

Próximo passo

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A serenidade na voz e nos modos pode dar a impressãode que Cleideneide Figueiredo de Oliveira carrega uma históriade vida sem sobressaltos. Fala baixinho, quase não mexe oslábios. Traz o rosto escanhoado, o cabelo crespo rente à cabeça eo olhar suave. O aspecto é de bom moço. Sua camiseta é simplese um tanto larga para o corpo magro. A bermuda cai abaixo dosjoelhos, diminuindo a exposição das canelas finas. Os chinelosdeixam os dedos livres. Percebe-se que Cleideneide, sentadopróximo à porta do Telecentro Jaraguá – aonde vai quase todosos dias e aprendeu a usar o computador e a Internet – observadetidamente os passos do repórter. Tenta decifrar o outro. Massuas reações não são de preocupação. Tudo nele parece calmo esem pressa. Quando conversa, repousa as mãos sobre as pernas enão gesticula uma vez sequer. É um rapaz tímido.

Por trás da aparência tranqüila, porém, escondem-semarcas que o tempo não apaga. Sua vida é uma seqüência dedesencontros, o que talvez explique o ar triste escondido nofundo dos olhos. Mas não só isso. A vida de Cleideneide é muitomais: é o testemunho de um garoto pobre do interior do Brasilque veio para São Paulo desvendar a vida e estudar, é o relato dequem desenha para si um novo horizonte, é a história de ummenino que sonha.

Cleideneide de Oliveira, 23 anos,encontrou num Telecentro a chancede alimentar a alma sonhadora dostempos em que plantava feijão naBahia.

A história do menino que sonha

Por Clayton Melo

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Se lhe perguntam quais são seus anseios, ele logo diz: — Meu maior sonho é que o mundo deixe de ser

violento. Morador da Cohab Parada de Taipas, na periferia da

capital paulista, ele diz não ter sido alvo direto de algum atoterrível da grande metrópole, mas incomoda-o viver numacidade manchada de sangue:

— Leio no jornal eles falando da violência e fico umpouco cismado.

Outro grande sonho é ser ator. Cleideneide quer estudarteatro e depois – por que não? –, ser estrela de TV:

— Gosto de novelas, principalmente por causa dosatores. Gosto de ver a interpretação deles.

O jeito envergonhado não será obstáculo: — Tenho um pouco de dificuldade de me enturmar. Não

gosto de já chegar e conversar com todo mundo. Fico primeiroobservando como a pessoa age, para ver ser ela é legal, e depoisvou conversar. Mas isso não atrapalha no teatro — conta,enquanto lhe escapa um sorriso.

O sonho de ser ator deve esperar um pouco, pois antes énecessário acertar outras partes da vida, como o lado profissionale o estudo. Se precisar aguardar, tudo bem. Mas a verdade é queele não vê a hora de desenvolver seu gênio artístico. Quem sabeum dia não apareça a chance de participar de uma novela?

— Bem que gostaria. Quero atuar em televisão e vou meesforçar mesmo para conseguir. E, se der tudo certo, vou estudarteatro logo. Ia ser legal, né?

Ele nunca foi ao cinema, mas tem muita curiosidade. Atelevisão representa a oportunidade de assistir a filmes:

— Gosto de filmes de luta, como os do Van Damme, doBruce Lee e do Jackie Chan, que mistura ação com comédia.Ah... E também acho o Jim Carrey legal.

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O que Cleideneide não acalenta é osonho de formar família – pelo menos por enquanto. Casar e terfilhos são planos distantes, pois não tem namorada e quer antesarranjar-se na vida. Mas, no fundo, o entrave maior é outro. Omodelo de família que conhece não é nem um pouco agradável.Ao pensar na relação entre pai, mãe e filhos, logo lhe vêm àcabeça imagens de brigas, desarmonia e infelicidade. Logo lhevem à cabeça sua própria história:

— Por conta de tudo o que passei, não penso em formarfamília. Não quero ter uma só para dizer que tenho. Só vou ter seconseguir dar tudo para o meu filho.

A preocupação é com os caminhos tortos da vida:

Morando na casa de uma tia que quase não vê, Cleideneide tem como companhia só os amigos do Telecentro Jaraguá.

Passado amargo

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— Falo isso porque, se eu não der boas condições e meufilho não tiver a mesma cabeça que eu, pode querer assaltar,mexer com droga e tudo. Eu estaria fazendo coisa errada na rua,se não tivesse a cabeça boa.

Embora o volume e a intensidade da voz não sejamalterados, ao falar da família as palavras de Cleideneideadquirem um tom grave, denso. Estão carregadas de mágoa:

— Meus pais brigavam e depois descontavam em mim. O semblante suavemente se fecha e as sobrancelhas se

enrugam: — Uma vez vi os dois se agarrando por causa de um

maço de cigarros. Era pequeno, mas não esqueço aquilo. Depois de inúmeras desavenças, o casal separou-se.

Assustado, sentindo-se rejeitado pela mãe e pelo pai – de quemdiz não ter recebido carinho e cuja maior recordação é a imagemde um homem devastado pelo álcool –, o menino Cleideneideficou com os avós paternos.

Próximo dos cinco anos de idade, foi levado de São Paulo– onde morou durante pouco tempo na infância, depois que afamília deixou Brasília, cidade onde nasceu a 3 de julho de 1979– para um povoado rural chamado Sítio Açu, encravado nointerior da Bahia, perto do Piauí.

Na nova morada, encontrou um ambiente melhor, emboraextremamente rígido. O avô, Seu José Batista de Oliveira, erahomem bravo. Com ele, não tinha conversa: mulher, criança,todo mundo era obrigado a saltar da cama aos primeiros raios desol e se debandar para a roça. O trabalho nas plantações demilho, feijão e mandioca estendia-se até o anoitecer e de segundaà sexta. Às vezes, até aos finais de semana.

Cleideneide não se queixa do trabalho no campo, quegarantia a sobrevivência da família – eram mais de vintepessoas, entre primos, tios e agregados reunidos sob o

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mesmo teto. O que o afligia era o avô o proibir de ir à escola,seu maior sonho nos tempos de menino.

A enxada tomou o lugar dos livros e dos brinquedos nainfância, mas não enterrou a esperança de libertação.Cleideneide insistiu durante anos até convencer o avô a permitir-lhe freqüentar os bancos escolares:

— Minha avó também falava para ele me deixar estudar,e uma hora aconteceu. Mas por causa da proibição, só pude fazera segunda série do primário quando tinha 15 anos. Meu avô,então, jogava na minha cara e falava: "Ninguém mais trabalhanessa casa, é todo mundo vagabundo. Aqui só tem cascavel" —ri Cleideneide.

Assim, fez no interior baiano o supletivo até à sexta série.Por essa época, ele tinha pouco menos de 18 anos e sentiavontade de estudar numa cidade maior, com ensino de melhorqualidade e que pudesse ampliar seu conhecimento sobre omundo. Sua cabeça não parava de pensar em São Paulo.

Pensou tanto que realizou o desejo.Na capital paulista, matriculou-se rapidamente num curso porcorrespondência, e assim concluiu a 8ª série. Mas essa chancede voltar para São Paulo foi precipitada por uma circunstânciaque reabriu feridas encobertas pelo tempo. Fazia anos que nãomantinha contato com o pai. Até que em 1999 uma das tiasentrou em contato com Cleideneide e transmitiu um pedido:

— Fala para o meu filho vir me ver. Com a saúde debilitada, Seu Hélio Batista de Oliveira

estava internado em um hospital de Ferraz de Vasconcelos,cidade da Grande São Paulo, e havia perdido quase todos osmovimentos do corpo. A fala era um dos seus últimos recursos.O pai de Cleideneide era portador do vírus HIV e encontrava-seem estado terminal:

Reencontro trágico

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— Fiquei com ele um mês e pouco. Quando as meninaso encontraram, fazia mais de um mês que estava caído na casadele. Era um pouco orgulhoso. Estava acabado. Me bateu umatristeza ver ele daquele jeito! Não tinha mais pulmão, fígado,porque bebia muito, e ficava com umas mulheres também. Vocêprecisa ver as mulheres com quem ele ficava... — fala, com ar dereprovação.

Mesmo guardando do pai lembranças amargas, oreencontro nessas circunstâncias abateu Cleideneide ainda mais.Calado e quase sem amigos, é possível imaginá-lo recolhido aum choro solitário e silencioso. Ele próprio considera-se umapessoa sensível, dessas que se emocionam por um acontecimentocorriqueiro do cotidiano.

A injustiça contra o mais fraco toca-o de modo particular.Ele remói-se ao ver alguém maltratar um mendigo ou molestaruma criança pobre. É como se enxergasse nesses atos de covardiaum reflexo da intolerância da qual ele próprio, inúmeras vezes,foi vítima:

— Fico indignado com coisa errada, como injustiça e veralguém chutar e xingar um mendigo. Já vi isso. Não cheguei afalar nada, mas por dentro me deu um calafrio.

Calafrio que ele também sente quando encontra pessoasdormindo na rua. Ou quando passa perto do Rio Tietê e percebeas narinas sufocadas de tanta poluição:

— Se eu pudesse, limpava tudo e tirava todo mundo darua. Mas não dá, né?

Este é Cleideneide Figueiredo de Oliveira – por poucotempo, diga-se. Ele já entrou com pedido de mudança de nomena Procuradoria Geral do Estado:

— Estou com um processo para mudar meu nome porqueele é bem estranho. É feminino. É ruim porque quando voupreencher uma ficha, as pessoas perguntam se sou eu mesmo.

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Uma vez fui ao médico e a atendente perguntou: "A Cleideneideestá aí"? Ficou meio estranho, né? Aí, dei uma risadinha e faleique era eu.

Ele não sabe direito porque seus pais registraram-nodessa forma. Acredita ser mais um fruto da febre de junção denomes que acomete a família, como Auzineide, Audineide e Joséde Neide, entre outros. Ele está pensando em mudar o nome paraClayton, grafado à maneira inglesa:

— É com a e y porque o certo é em inglês. Foram ospromotores que me sugeriram esse nome porque o som (clei) éparecido. Hoje, gosto mais quando me chamam de Clei.

Não é só na grafia do provávelnovo nome que ele se serve do toque internacional. Namúsica também. Cleideneide é fã do pop romântico que vemlá dos anos 80 e pode ser escutado freqüentemente em umarádio FM de São Paulo reconhecida por abrir espaço aoschamados flashbacks:

— Só ouço a Antena 1. Gosto de ouvir Elton John,Michael Jackson, Roxette. E não acho legal pagode, axé e samba.Prefiro as músicas cantadas em inglês — afirma Cleideneide,que diz conhecer só umas "poucas coisinhas" do idioma dasbandas que admira.

Mesmo fã das baladas internacionais, atendeu aoconvite para assistir ao show da banda de rock cristã doamigo Maciel da Costa Silva. Adepto do som pesado, comuma levada heavy metal, ao longo da apresentação o grupoamansava o ímpeto em algumas músicas, o que apetecia osouvidos de Cleideneide.

— Ele curtia quando a gente tocava umas baladinhas,mas não gostava quando a vocalista dava gritinhos — diz Maciel,um dos raros amigos de Cleideneide.

Sotaque estrangeiro

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Os dois conheceram-se no Telecentro Jaraguá. Maisexpansivo, o roqueiro puxou conversa com aquele rapaz fechadoque dificilmente proferia uma palavra. Maciel contribuiu paraque Cleideneide arrumasse o emprego de estoquista numaempresa do centro de São Paulo, onde hoje os dois trabalham. A convivência permitiu conhecer melhor como vive o rapazmisterioso. Maciel relembra que, certa vez, o chuveiro da casaonde Cleideneide mora ficou dois meses queimado. A dona dacasa é uma tia de Cleideneide que trabalha como empregadadoméstica e costuma dormir várias noites na casa dos patrões.Quando se ausenta durante muito tempo, não abastece a casacom mantimentos e nem se preocupa em fazer os reparosnecessários. O fato é que a Cleideneide, sem dinheiro, restavamos banhos frios, até que Maciel e outro amigo instalaram umchuveiro novo na casa.

A situação é mais delicada quando se trata dealimentação. Não raras vezes, Cleideneide passou dias seguidoscom apenas uma refeição diária porque não tinha comida emcasa, nem dinheiro para comprar. Quando muito, via-se umpunhado de arroz e feijão no seu prato:

— Acho que ele foi se acostumando à situação porquehoje, que tem emprego e as coisas melhoraram um pouco, nãoconsegue comer carne — diz Maciel.

Embora a necessidade o tenha tornado fiel à dobradinhamais comum da cozinha nacional, Cleideneide aos poucosaventura-se na cozinha. Por enquanto, sua ousadia não ultrapassao macarrão – sem molho, porque seu paladar rejeita – e acombinação que mais o faz feliz:

— Meu prato de arroz e feijão é melhor que o da minhatia. Se jogar na parede, a comida que ela faz fica grudada lá, detão dura que é.

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Assim é a vida desse jovem queconheceu o Telecentro Jaraguá em fevereiro de 2002. Quandocomeçou a freqüentá-lo, a convite de uma vizinha, não tinha amenor idéia de como ligar um computador e muito menosnavegar na rede. Hoje, traz na bagagem conhecimentos básicossobre Windows e Linux e passeia por sites na Internet. Poucossites, é verdade, mas que lhe permitem, por exemplo, sersolidário com a natureza. Cleideneide acessa sempre owww.clickarvore.com.br, que possibilita ao internauta fazerdoações com um simples clique:

— Já doei 99 árvores — comemora. A Internet também é útil para saber o que os astros lhe

reservam diariamente. O canceriano Cleideneide é leitor assíduodos horóscopos virtuais:

— Tem uns meninos aí que pegam no meu pé porque olhohoróscopo na Internet. Dizem que é tudo mentira, mas não é.

Nem só de inquietações astrológicas vive Cleideneide. AInternet também sacia curiosidades bem terrenas, comoconhecer o humor do mercado:

— Todo dia acesso, para ver se o dólar caiu ou subiu. Àsvezes, ele está bem alto — diz o rapaz de fala mansa, queaguarda, jogando bola ou dominó com os amigos do Telecentro,sua vez de usar o computador.

O solidário cibernético

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— Nós nos conhecemos no Posto 4 — diz Seu Manoel.— Foi nada, velho! Foi no Posto 6 — conserta Dona

Dulce, a esposa.Só concordam que foi no Rio de Janeiro, na praia de

Copacabana. Ele, Manoel Apolinário de Sousa, está com 85 anos. Ela,

Dulce Quitete de Sousa, tem 72. Um corrije o outro o tempo todoe, assim, já se vão cinqüenta e três anos de casados.

Levados pela filha Dulce Helena Apolinário de Sousa, de48 anos, os dois fizeram um curso de informática básica, noTelecentro Parque do Carmo, na zona leste, não muito longe dacasa em que moram, no Jardim Santa Adélia. "Os dois ficamaqui ociosos: ela, no crochê, ele, na televisão. Estava na hora defazer alguma coisa, se interessar", diz Helena. O casal adorou.

Dona Dulce, no primeiro dia de aula, segundo a filha,passou mal, nervosa que estava. Mal conseguia segurar o mouse."Eu pensei que não ia conseguir", conta a mãe. Depois,acostumou-se. "Os funcionários são formidáveis, nos deixaram àvontade. Foi muito bom, valeu a pena", completa.

Manoel, que nunca freqüentou escola, foi logo seentendendo com o computador. "Fazia qualquer coisa, queria eramexer", diz, revelando a curiosidade que teve. Enquanto a esposausava o editor de texto, o negócio dele era a Internet. "A primeira

Para que os pais deixassem umpouco a vida ociosa, Dulce Helenade Sousa inventou um plano familiarde inclusão digital.

Em família

Por Cassiano José

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coisa que ele fez foi entrar no site do Discovery Channel", afirmaHelena. "Aquilo me mostra o mundo", emenda o pai.

Para a filha, foi uma chance de aprimorar-se. "Fizreciclagem de conhecimento", esclarece Helena, que já fezcursos no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai)e no Serviço Nacional do Comércio (Senac), além de ter sidoinstrutora de serviços, na Telesp.

Helena tem um computador em casa, mas está quebrado.Dona Dulce é quem lamenta. "Faz três meses que paramos, masgaranto: se eu tivesse o computador em ordem, tinha ido longe".

Seu Manoel terminou o curso sem conseguir fazer tudo oque queria. "Eu tinha vontade de passar um fax pra prefeita",conta, querendo referir-se ao e-mail. "Uma hora, ela tinha queler", acredita.

— A sede do governo, no Rio, era noLargo do Machado — diz Dona Dulce, lembrando o tempo emque morava lá.

— Não era no Largo do Machado, não! Era na Rua doCatete — corrije, no ato, o marido.

Ele nasceu e criou-se em Montes Claros, no Estado deMinas Gerais. Neto de índios, tem o sangue de duas tribos:bororós e aimorés. "O bororó é um índio cabeludo", conta. Defato, uma característica dos bororós era o modo como cuidavamdos cabelos, cortados com valvas (partes sólidas que revestem ocorpo dos moluscos) afiadas. Outra eram os olhos, pintados depreto ao redor. Era um povo nômade que, por não praticar apecuária nem a agricultura, mas ser hábil na caça, acabava poresgotar os recursos naturais das regiões que habitava, sendoobrigado a procurar nova morada de tempos em tempos. Apopulação, de 10 mil habitantes, no início da colonização,ocupou um vasto território, em função dos seguidos deslo-

Neto de botocudo

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camentos. Bravos, dificultaram o domínio português e acabaramvítimas de inúmeras expedições de extermínio, além deepidemias diversas. Ao final do século XIX, eram 5 mil. Poucodepois, em 1910, somente 2 mil. Hoje, são 920, dispersos emoito municípios de Mato Grosso. A população maior é a de Barrados Garças, com 361 bororós.

Aos aimorés, também chamados de botocudos, atribui-seuma fama de ferocidade comparável somente ao canibalismo doscaetés, conhecidos, entre outras barbaridades, pelo episódio emque devoraram o Bispo Pero Fernandes Sardinha, em 1556. Sãoos aimorés que, no romance O Guarani, de José de Alencar,publicado originalmente em 1857, atacam a fortaleza do fidalgoDom Antônio de Mariz. Viveram, em número de 30 mil, do sul

Dulce Helena, a governadora da casa, segundo a mãe, aposentou-se antes do tempo para cuidar dos pais.

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da Bahia ao norte do Espírito Santo. Enfrentaram os colo-nizadores, sendo responsáveis pelo fracasso de três capitanias:Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo. Foram totalmenteexterminados no começo do século XX. Só restam osdescendentes, como Seu Manoel.

Ele nunca freqüentou sala de aula e começou cedo atrabalhar duro. Aos 11 anos, já montava mula, em pêlo, paracarregar sacos de estopa a serviço de um patrão. "Era uma vidaatropelada, mas eu agüentava. Agora que eu não estouagüentando mais", desabafa, referindo-se ao tédio da vida maisociosa que leva, atualmente. "Tem dia que amanheço cansado,sem fazer nada. Falta do que fazer mesmo", analisa.

Já fez muito. Depois dos trabalhos pesados no interior deMinas e de uma temporada em Belo Horizonte, virou chofer noRio de Janeiro. Conta que, apesar do emprego modesto e demorar em uma favela, fazia sucesso, circulando com o carro dochefe. "Eu era boa pinta, conversava bem, todo mundo pensavaque eu era alfabetizado".

Com um jeito deliberadamente exagerado de contarhistórias, fica difícil saber se os fatos que Seu Manoel narraocorreram mesmo como ele os descreve ou, em grande parte,foram aumentados para parecerem mais impressionantes. Umexemplo é sua descrição da primeira vez que viajou do Rio a SãoPaulo. "Vim a pé pela estrada de terra. Levei uns seis dias. Otamanco abriu no meio, de tanto andar. Cheguei aqui sem sapato,sem nada".

Fato comprovado mesmo é que ele ganhou o coração deDulce, nascida em Campos, no Estado do Rio, e moradora dobairro do Jardim Botânico, na capital. Casaram-se, tiveram dozefilhos, mas Manoel lamenta até hoje não ter aproveitado oconvívio com a esposa para ampliar seus conhecimentos. "Se eusei o que ela sabe, eu era senador nesta terra", alardeia. “Eu, feito

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besta, casei com ela e, em vez deaprender”...

No entanto, o verdadeiroremorso de Manoel é ter trocado oRio por São Paulo, por sugestão desuas irmãs. "Muitas vezes ele quisvoltar", revela a esposa. "Eu continuoarrependido até hoje", confirma.Mais: a despeito de seus filhos teremcomprado para ele um jazigo em SãoPaulo (presente de Dia dos Pais queele mesmo faz questão de ironizar),sua vontade é ser enterrado noCemitério São João Batista, emBotafogo, onde estão sepultadosalguns famosos brasileiros, comoTom Jobim, Carmem Miranda, SantosDumont e Villa-Lobos.

Dulce, casada há 53 anos, tem dez filhos, dezoito netos e três bisnetos.

— Volta e meia, eu levoum tombo aqui dentro de casa — comenta Dona Dulce, fazendoum certo charmezinho. Manoel, o amigo da verdade, não perdoa:

— Não. Isso foi uma vez só. — Tá bom — diz a mulher, contrariada, concordando só

para encerrar a polêmica. Seu Manoel tem razão quanto à capacidade da esposa.

Ela fala com clareza e correção, mansamente, escolhendo bem aspalavras. "Adoro escrever e ler. Tenho um bom português",constata. Por pouco, não foi professora. Depois de estudar até à4ª série, teve de ajudar a família a criar os outros cinco filhos.Mais tarde, casou-se e trocou o sonho de lecionar por doze filhos(dois falecidos), dezoito netos e três bisnetos.

A bisavó que ia ser professora

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Dentre os filhos, cinco nasceram no Rio. Os demais sãopaulistas. A lembrança da mudança de cidade, feita em 1959, fazDulce reviver, em parte, a sensação desagradável que teve, àépoca. "Se meter aqui em São Paulo foi um terror", define,referindo-se ao medo que sempre teve da violência. Ainda assim,jamais cedeu à vontade do marido de voltar para o Rio com ascrianças. "A gente é pobre, não tem esse negócio de vai pra lá,vem pra cá", sentencia. Ficaram no Jardim Santa Adélia. Moram,atualmente, nos fundos da casa em que vivem, entre filhos enetos, mais oito pessoas.

— Eu não chorei, não. — Eu vi você chorando.— Mentira!É mais uma polêmica entre Dulce e Manoel. A questão é

se ela chorou ou não, na festa de 50 anos de casados que afamília organizou para eles. Se alguém pode dizer a verdade, éDulce Helena. Foi ela a responsável pelo evento. É ela quempensa em viagens, atividades, na vida dos pais em geral, e quemcuida do dia-a-dia da casa. "Ela é meu braço direito", diz o pai."É a governadora, leva tudo nas costas", complementa a mãe."Eles entregaram, eu assumi", admite a filha.

Na gestão de Helena, a inclusão digital entrou na pautados interesses da família. "Não fosse a influência dela sobre nós,eu nem sabia disso", aponta a mãe. "Não é gostoso umacomunicação mais moderna? Eles podem conversar comqualquer pessoa sobre qualquer assunto", empolga-se a filha.

Outra medida administrativa foi controlar o uso doautomóvel do Seu Manoel. Em outras palavras, manter o pailonge do volante, com o qual ganhou a vida, infartos e pontes desafena. "Por ele, estava enfiado dentro de um carro", fala aesposa. "Ele ficou doente a primeira vez foi no trânsito. Temos

Pelos pais

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de proteger ele", entende Helena, mãe de três filhosadolescentes, já devidamente familiarizados com a informática,cujo aprendizado é parte da pedagogia materna.

Helena pertence à ala carioca dos filhos de Dulce eManoel. É a terceira, na ordem cronológica dos nascimentos.Trabalhou na Telesp durante vinte e seis anos.

No dia 16 de julho de 1997, foi promulgada a Lei Geralde Telecomunicações que, sob a direção do então ministro dascomunicações, Sérgio Motta, estabelecia os critérios para aprivatização do Sistema Telebrás. Passado pouco mais de umano, em 30 de julho de 1998, na Bolsa de Valores do Rio deJaneiro, a Telebrás vendeu suas doze concessionárias do serviçode telefonia do país, por R$ 22,057 bilhões. A Telefonica, daEspanha, ficou com a Telesp.

Helena aproveitou a reviravolta na empresa para deixá-la.Pediu para ser aposentada, sem ter atingido a idade necessária, efoi para casa deixando para trás 40% do dinheiro ao qual teriadireito, se tivesse permanecido. A razão? "Ela deixou detrabalhar por nossa causa. Não tinha necessidade", esclarece amãe. O dinheiro está fazendo falta até hoje. Helena gostaria devoltar ao mercado de trabalho, mas, por hora, só pode continuarseu mandato à frente dos Sousa. Por sinal, de grande aprovaçãopopular. "A igreja estava muito bonita! Lembrei o dia em quecasei", diz a mãe, citando a festa histórica de 50 anos de casados,marco da administração da filha.

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Kiminoshin Yoshida é o responsável por procurarnovos prédios e terrenos para construir os Telecentros daPrefeitura de São Paulo. Ele desloca-se quilômetros,periferia adentro, com a velocidade de quem conhece cadacanto desta imensa cidade. Soma seus conhecimentos desociólogo e pedagogo aos 62 anos de uma vida cheia deexperiências marcantes, para escolher os melhores locaispara que as pessoas mais carentes tenham acesso à inclusãodigital.

À primeira vista, ele é um senhor de origem oriental,calmo e tranqüilo, incapaz de proferir um palavrão. Averdade é que o temperamento irrequieto de Yoshida rendeu-lhe o apelido de "O Japonês Voador", dado pelos seus colegasda Coordenadoria do Governo Eletrônico.

Não é fácil ir do extremo leste da cidade ao extremosul, em uma única tarde, sem perder o pique. Fazer três,quatro, cinco reuniões em um único dia é sua rotina. Oapelido foi inspirado na biograf ia do inventor SantosDumont, escrita por Márcio Souza, intitulada “O BrasileiroVoador”.

Em busca de novos locais para Telecentros, ele circulacada rua de favelas e bairros distantes. Por vezes, chega a

Longas distâncias e reuniõescansativas: Kiminoshin Yoshida, aos62 anos, é um dos principaisresponsáveis pela instalação dosTelecentros.

O japonês voador

Por João Cassino

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territórios de traficantes que se assustam com um carrobranco da Prefeitura circulando por todos os cantos.Imaginam que é um olheiro da polícia, um investigador oucoisa parecida.

Certa vez, Yoshida percebeu uma menininha, todaesfarrapada, olhando para ele e falando ao celular. Em outraesquina, um motoqueiro passa observando. Mais algunsmetros e o dono de uma loja informa seus movimentos pelotelefone. Há uma rede de proteção de algumas comunidadescontra estranhos. "Quando esse tipo de coisa acontece, amelhor coisa a fazer é, com a desculpa de pedir informações,explicar às pessoas o que você está fazendo", avisa.

No projeto desde o começo, foi ele quem definiu olocal do primeiro Telecentro, o de Cidade Tiradentes,inaugurado em junho de 2001. "Era um lugar totalmenteabandonado, cercado pelo matagal, todo pichado, não tinhaportas, sem janelas, com buracos nas paredes, dejetos pelochão e até roupas íntimas de mulheres", diz.

O local era usado como motel e para uso de drogas.Automóveis roubados eram levados até lá para seremdesmanchados. O que sobrava dos carros e não interessavamais virava uma fogueira gigante, pois os ladrões jogavamgasolina para queimar tudo. Segundo Yoshida, até paraestupros o prédio foi utilizado.

A primeira reunião com a comunidade reuniu cerca de80 pessoas, dentre elas muitas mulheres e crianças. Yoshidasurpreendeu-se com a reação daquela gente. Ele explicavaque a Prefeitura iria criar uma unidade com computadoresconectados à Internet, o que possibilitaria o aprendizado da

“São a minha maior alegria”, diz Yoshida, que perdeu a esposa e uma filha num acidente, sobre seus três filhos adotivos.

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informática. Os olhares eram de incredulidade, desconfiança.Alguns começaram a chorar. "Será, que alguém, finalmente,está se preocupando com a gente?", perguntavam. "Foi ummomento muito emocionante", conta.

Esse cenário repetiu-se nas reuniões com váriascomunidades que receberão os outros 100 Telecentros. "Ospais não vislumbram a possibilidade de pagar um curso deinformática para os filhos, que custam de R$ 600 a R$ 1 mil,mais a condução. Quando eu dizia que eles teriam isso pertode casa e de graça, não acreditavam. O Telecentro representauma expectativa de melhoria de vida", explica, emocionado.

Yoshida co-nhece bem a pobreza. Seus pais vieram do Japão para acidade de Mirandópolis, no interior paulista. Compraram aterra do outro lado do mundo, sem conhecer o terreno.Acreditaram no velho bordão de que, "no Brasil, seplantando, tudo dá". Mas o sítio que adquiriram não era tãofértil assim. "Em 10 anos, toda a fertilidade da terra foiembora. Todo mundo que desejava voltar ao Japão com maisrecursos financeiros teve de adiar o sonho. No final, a únicaalternativa foi vender a terra e vir para São Paulo", diz.

Sua família fez parte do fluxo migratório japonês docomeço do século XX, em que as pessoas deixavamatividades urbanas em seu país, para tentar a vida naagricultura do Brasil. Seu pai, por exemplo, era professor.

Trabalhando desde criança, Yoshida pegava os cavalos napastagem, armava carroça e ia buscar sacas de café, que os maisvelhos colhiam, ensacavam e largavam na beira da estrada.Recolhia tudo e levava para casa, onde esparramava tudo noterreiro, para secar. Depois, passava um tipo de rodo de madeira.Ele também era o responsável por cuidar dos porcos e galinhas.

Tragédia, depressão e uma nova família

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Mas o contato dele não era apenas com animaisdomésticos. Na região, havia muita cobra, principalmentecascavel e jararaca. "Eu pegava um bambu, jogava em cimada cobra e, com um movimento rápido, conseguia pegá-la.Levava para um terreno mais amplo e ficava brincando comela", diverte-se, ainda hoje, lembrando da perigosabrincadeira.

O fato é que nascer no campo e viver na roça por maisde uma década deu a ele um bom preparo físico. Fez parte deum time juvenil de beisebol, esporte norte-americano poucoapreciado pelos brasileiros, mas que sempre teve fãs noJapão. A equipe da qual ele participava chegou a ser vice-campeã brasileira.

Foi por ocasião da disputa da decisão do campeonatode beisebol que Yoshida conheceu o mar. O jogo era em SãoPaulo, mas o técnico do time resolveu presentear osjogadores com uma visita a Santos. Aos 14 anos, Yoshidaesteve numa praia pela primeira vez. "Ao ver aquelaimensidão de água, me atirei com roupa e tudo", recorda.

Na infância, sempre estudou. Fez o primário e oginásio, cursos equivalentes ao atual ensino fundamental, emuma escola rural de Mirandópolis. Teve professores e colegasbrasileiros, contudo, quando sua família veio para a cidadegrande, descobriu algo que não sabe explicar até hoje: elenão falava português! Mas, então, como fez a escola? Comopassou de ano? Provavelmente, falava só o básico do básicoda língua portuguesa. Sua família, em casa, falava apenas ojaponês, e convivia com vizinhos que também eramimigrantes orientais. Precisando trabalhar na metrópole,Yoshida dedicou-se ao estudo do português. A técnicautilizada por ele foi ler o jornal O Estado de S. Paulo e ouviro programa A Voz do Brasil todos os dias. Prestava atenção

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na grafia, na fonética, na construção das frases. O resultadofoi, que além do idioma, ele passou a saber tudo o que seveiculava no noticiário da época, algo muito incomum paraum garoto daquele tempo.

Saber de tudo o que acontecia no mundo rendeu-lheum trabalho num cartório aos sábados e um bico nacampanha de um candidato a deputado. De segunda a sexta,Yoshida era office-boy em uma outra empresa. O colegial,equivalente ao atual ensino médio, também passou a fazerparte de sua vida.

O gosto pela política também começou a despertar.Leu Os Miseráveis, aos 12 anos. A obra de Victor Hugo fala,entre outras coisas, da luta de militantes da RevoluçãoFrancesa. "Foi um livro que marcou minha vida", conta.Yoshida passou a freqüentar reuniões clandestinas do PartidoComunista Brasileiro. O partido estava na ilegalidade e asreuniões nunca tinham locais certos para acontecer.

Para participar dos debates, lia livros e revistasproibidos, como a biografia de Lênin, o líder da RevoluçãoRussa. Eles conseguiam publicações em espanhol quevinham de países do leste europeu e da antiga União dasRepúblicas Socialistas Soviéticas. Yoshida participou deencontros secretos presididos pelo próprio Luiz CarlosPrestes, um dos principais líderes da história da esquerdabrasileira, e que comandou a Coluna Prestes e a IntentonaComunista de 1935.

Ainda na época do colegial, Yoshida participou deum dos mais graves protestos da cidade de São Paulo. Oaumento da tarifa de ônibus e bonde levou o povo às ruas."Era diferente de hoje, que o pessoal aceita tudo quieto,sem reclamar", diz. Junto com outros estudantes, ele fezpiquetes e interrompeu o tráfego. Em seu rosto, é possível

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perceber uma ponta de orgulho, sufocada pela respons-abilidade adulta, ao recordar esse momento. A polícia foichamada para conter a manifestação e agiu com violência.Dois homens foram mortos a tiros de fuzil. Ambosestavam a poucos metros de Yoshida, que ainda pôde veroutro estudante ter a barriga rasgada por baioneta."Quando você vê uma cena dessas, você deixa de ser vocêmesmo, perde o controle", af irma. A multidão passou aatirar paus e pedras contra os policiais. Foramimprovisados coquetéis molotov (bombas incendiárias,montadas com gasolina em uma garrafa de vidro e umpano na boca, que serve como pavil) e miguelitos(madeiras com pregos na ponta). O centro virou um campode batalha. Os hormônios da juventude e o ideário rebeldefez de Yoshida um guerreiro. "Quando cansei daqueletumulto, andei até à Praça João Mendes e peguei umônibus para ir para casa", conta.

O gosto pela política orientou Yoshida na escolha daprof issão. Fez quatro anos de ciências sociais naUniversidade de São Paulo. "Não tinha dinheiro para fazercursinho, estudei sozinho e passei", afirma. Esse curso elenão terminou. Teve de esperar mais alguns anos para estudarpedagogia e, desta vez, formar-se.

Falar japonês e inglês, ter dois cursos universitários edisposição para trabalhar fez com que ele arrumasse bonsempregos em grandes empresas, como o Banco Mercantil deSão Paulo, Colgate/Palmolive e Ultragás, entre outras.

Na Ultragás, Yoshida aprontou mais uma das suas.Havia uma insatisfação geral em relação aos salários. Todosos empregados queriam aumento. Numa manhã, ele e maisum colega resolveram passar de sala em sala dizendo que,após o almoço, era para todos os funcionários reunirem-se e

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não subirem para trabalhar porque a diretoria da empresa iriafazer um comunicado. Era mentira.

Ao ver todos juntos e paralisados, os diretores inter-pretaram aquilo como um início de greve. Desesperados,foram até lá e resolveram se pronunciar. Disseram que asituação estava difícil, mas prometeram um reajuste salarial.O plano deu certo.

De empresa em empresa, de promoção em promoção,chegou à gerência. Como chefe, Yoshida conta que nãoabandonou seus ideais e procurou ser o mais humanopossível com seus funcionários. "O pessoal me adorava nasempresas", diz. Na década de 70, vivia seu melhor momentoprofissional. Ganhava bem, estava morando no interior,construiu um patrimônio, viajava pelo Brasil a trabalho,casou-se e teve duas filhas. Era apaixonado por sua esposa epodia dar de tudo a ela e a suas meninas. Yoshida estavamuito feliz. Mas o destino foi trágico. No ano de 1979, umacidente de carro mudou tudo. A estrada tirou a vida de suamulher e de uma de suas filhas. Ele e a outra menina tiveramferimentos graves.

Deprimido, abandonou o emprego e mudou de novopara a capital. Ficou mais de seis meses sem condição defazer absolutamente nada. Conseguia apenas sofrer com aslembranças e lamentar o acontecimento. A necessidade deganhar dinheiro para manter sua outra filha o fez voltar atrabalhar. Virava-se sozinho, como consultor de empresas. Osanos foram passando, mas a tristeza, não.

Yoshida conheceu sua segunda esposa no início dadécada de noventa. Com ela, adotou três filhos - Pedro Paulo,João Marcos e Renan. "Três meninos que dão um trabalhodanado, mas são a minha maior alegria", diz.

Aos poucos, a felicidade foi voltando. Yoshida

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lembra-se exatamente do momento em que acabou adepressão. Quando foi buscar seu segundo filho e pegou-o nocolo, teve uma experiência mística: a impressão, inde-scritível, de estar segurando e abraçando seu falecido pai. Eracomo se um pedaço de sua família estivesse com elenovamente, na figura de seu novo menino.

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Dirce Koga, doutora em serviço social pela PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo (PUC-SP), falou assim aojornal O Estado de São Paulo, em 28 de fevereiro de 2002, sobrea criminalidade entre os adolescentes da capital paulista: "Ajuventude é a faixa etária com menos serviços de atendimento nacidade. É a que mais morre e mata. Os jovens não têmperspectiva de futuro. Eles preferem viver bem hoje, ainda quepor pouco tempo, do que ter a vida que os pais levam".

Rodrigo dos Santos, de 16 anos, mora na CidadeTiradentes, bairro do extremo leste do município, estigmatizadopela violência, freqüentemente citado na imprensa como umaárea dominada por criminosos. Adora o lugar. "Não é tudo issoque o povo fala. Eu, mesmo tendo dinheiro, não sairia daqui".Nem pensa em se envolver com o crime. "Nunca me ofereceramnada e eu também não quero me envolver". Tem planos e sonhospara uma vida longa. "Não quero caminhar para a morte. Euquero viver, ser feliz, ter minha família, não dever nada paraninguém".

Já Daiane dos Santos tem 15 anos. Apesar de sua famíliater o mesmo nome da de Rodrigo, o que ela tem em comum comele é o fato de morar também na zona leste, no bairro CidadeLíder. Sua mãe, Rosali, é empregada doméstica. Até o ano

Para alguns, fuga de problemasfamiliares ou passatempo. Paraoutros, oportunidade de ascensão.São os jovens da periferia buscando,nos Telecentros, alívio e esperança.

A vida inteira pela frente

Por Cassiano José

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passado, não sabia ler. O pai, José, está desempregado. Faz bicoscomo ajudante de pedreiro. Daiane não tem vergonha deles, nemtrocaria essa vida por um conforto temporário. Prefere, em vezdisso, ajudar seus pais a viverem melhor. Foi uma das grandesincentivadoras de sua mãe, para que ela, este ano, decidisseenfrentar uma sala de aula e aprendesse a escrever, aos 43 anos.

Rodrigo e Daiane não conhecem Gláucia Galvão, de 22anos, moradora de Parada de Taipas, na zona oeste. Como eles,ela tem esperança na vida. Quer aprender canto, teatro, biologia,instrumentação cirúrgica e trabalhar na Rádio 89 FM. Só paracomeçar, claro. Gosta muito de estudar. "Tem tanta coisainteressante".

Doutora Dirce não conhece nenhum dos três. Talvez, játenha ouvido falar do Plano de Inclusão Digital da Prefeitura.Gláucia, Daiane e Rodrigo sabem o que é. Pessoas como eles sãoa razão da existência do projeto. Encontraram, nos Telecentrosmais próximos de suas casas, novos conhecimentos e mais razõespara continuar buscando viver bem longe do cenário deabandono descrito pela professora da PUC-SP.

Rodrigo não parece ter 16 anos.Parece ter menos. Seu corpo, miúdo, ainda não se desenvolveu.A voz também não engrossou e o jeito é mesmo de menino. Ascoisas na vida dele são assim, um pouquinho atrasadas. Naescola, por exemplo, está na 8ª série, não por ser mau aluno, maspor ter sido matriculado na 1ª série só aos 9 anos.

Gláucia é como Rodrigo: o tempo, para ela, tambémpassa mais devagar. A diferença é que, no caso dela, foi umaescolha voluntária. Conta que, aos 12 anos, olhou no espelho e

Gláucia, quando tinha 12 anos, quis parar de crescer. Hoje, aos 22, conserva as feições de menina.

Casa dos artistas

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achou-se linda. Não só pela beleza física, mas por ter percebido,de repente, toda a maravilha que é essa última época da infânciafeminina, quando a garota chega às vésperas de uma trans-formação física e psicológica. Quis preservar aquele instantepara sempre e permanecer com a aparência de uma menina de 12anos, feito Peter Pan, personagem que não queria crescer, criadoem 1902 pelo inglês James Matthew Barrie. Conseguiu. Gláuciaconserva feições e alguns modos de uma idade que não tem mais.Os pensamentos e a percepção do mundo, no entanto,amadureceram. Hoje, ela é capaz de definir melhor o que sepassa na sua casa, nas relações entre as pessoas: "Cada um viveno seu mundo individual e, à sua maneira, está tentando fugir delá. Parece a Casa dos Artistas, só que com um bando de gentepobre".

O bando é formado pela mãe, Josefa, o pai, Álvaro, e astrês irmãs mais novas: Celeste, Vivian e Kelly, de 21, 19 e 16anos, respectivamente. A mãe trabalha como babá. "Ela sempregostou de criança, mas parece que só das crianças dos outros. Avida inteira dela foi baseada nos filhos dos outros", comenta,com mágoa, Gláucia. O pai, de 53 anos, também sai de manhã esó volta de madrugada. É artista plástico, pintor. "Seria legal, seele soubesse guardar o dinheiro, mas ele gasta tudo, joga no jogodo bicho. É um jogador compulsivo. O sonho dele é ficar ricojogando na loteria", lamenta a filha. Celeste é a mais madura dasirmãs. "Ela é muito líder em casa, quer tudo certinho, tem umamente aberta pra vida. A gente é muito criança perto dela",aponta a irmã mais velha. Já Vivian passa o tempo todo falandode seu namorado e dos planos de casamento. "Fala dele e de maisum monte de neguinho", entrega Gláucia. Por fim, Kelly, a maisnova, preserva-se das confusões de sua família. "Ela é reservada.Quando abre a boca, é para colocar ordem. Ela sabe bem o quefazer da vida e está lutando por isso desde já".

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O ambiente, na casa, é realmente infernal. Ninguém seentende. "Por causa da vida que a gente tem, a gente é muitoagressiva, é uma ofendendo a outra, brigando o dia inteiro",relata Gláucia. A mãe não contribui em nada para que as filhasse entendam. Ao contrário, suas atitudes só aumentam a tensãoda família. "Ela é totalmente histérica. Nunca falou nada, desentar e conversar. Chega e começa a gritar". Os gastosexagerados do esposo com jogo e bebida só fizeram embrutecerainda mais a personalidade de Dona Josefa. "Já era revoltada.Virou não sei o quê".

Na impossibilidade de chegar a qualquer entendimento,cada uma das meninas vai imaginando uma maneira de ir emborae não voltar nunca mais. "Minhas irmãs têm uma coisa de querer

Rodrigo, monitor voluntário no Telecentro Cidade Tiradentes: “Ajudo o povo e ainda aprendo”.

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sair de casa de qualquer jeito". Na verdade, Gláucia também querir, mas não de qualquer jeito. "Tenho vontade de ir pra bemlonge", confessa. Uma vez, ameaçou partir, sem destino. "Graçasa Deus", limitou-se a comentar a mãe, secamente. A filha ficou.

Nessa ocasião, Dona Josefa até que foi educada. SegundoGláucia, o vocabulário da mãe, normalmente, é bem poucorefinado. A filha mais velha cresceu sendo chamada de vadia eouvindo ameaças de que seria colocada na Febem. "Minha mãetem problema, é doida", constata, com tristeza.

As filhas divergem a respeito de como se relacionar coma mãe. Gláucia optou por fechar-se em seu mundo e passar longede Dona Josefa. "Nem ouço mais o que ela fala". Cecília nãoconcorda com essa atitude. Acha que as filhas têm de escutar osberros da mãe, ainda que doam nos ouvidos. Vivian ouve tudo,mas reage, gritando de volta. Kelly finge que não estáacontecendo nada e, quando interfere, é para apaziguar.

Embora não dê atenção à gritaria de Dona Josefa, Gláuciapensa muito nela. "A gente tem de tentar entendê-la", defende. Boaparte de seus esforços, nos últimos anos, foi para chegar a umaexplicação sobre o comportamento da mãe, compreender como e porque Dona Josefa ficou assim tão rude, tão sem paciência, semdisposição para o diálogo, incapaz de demonstrar carinho. "Eu achoque ela é assim porque nunca teve uma família de verdade", analisa. Opai de Josefa, por exemplo, foi embora de casa quando ela tinha 10anos. "Ele era um Lampião, ignorante, aquelas pessoas bem grossas".Aos 12 anos, Josefa teve de sair de casa, para trabalhar comoempregada doméstica. "Ela teve muitos problemas na vida", reconhecea filha que, assim, é capaz de perdoar a mãe pela maneira como ageem casa. "Às vezes, a gente acaba magoando as pessoas sem querer".

Por conta de tudo isso, Josefa sente-se rejeitada até hoje."Ela fala que todo mundo odeia ela", conta Gláucia. A verdade ébem outra: as filhas adoram-na, mas não conseguem fazê-la

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entender isso. "A gente gosta dela assim mesmo, não aqueríamos abandonar. Já tentamos conversar com ela, mas elanão deixa". Para defender-se das ofensas maternas, Gláuciaadotou a estratégia de não dar atenção à Dona Josefa, mas arealidade é que, impedida de demonstrar o carinho que sente pelamãe, sofre. "Eu tenho uma mágoa muito grande".

Quanta diferença entre as famílias deGláucia e de Daiane! Igualmente pobres, as duas distinguem-sena maneira como as pessoas relacionam-se dentro de casa.Enquanto Gláucia vive uma vida de isolamento, em que cadamembro da família busca dissociar-se dos demais, Daiane, comos irmãos Marcos e Érika (de 14 e 17 anos, respectivamente)

Daiane, aluna do Telecentro Cidade Líder, com a mãe Rosali, que está aprendendo a escrever, aos 43 anos.

Amigo no Japão

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divide com os pais seus anseios e angústias, e apóia-os no que fornecessário. Foi assim que, ouvindo Dona Rosali falar quegostaria de aprender a ler e a escrever, Daiane, apoiada pelosirmãos, incentivou a mãe a matricular-se num curso de alfa-betização de adultos. A vida escolar de Rosali começou, então,no primeiro semestre de 2002. Fez a 1ª série e, aprovada, passouà seguinte. Agora, quando atende o telefone, a paraibana de JoãoPessoa já é capaz de deixar anotados os recados para os filhos.

Ao mesmo tempo em que a mãe, animada por Daiane,tinha seus primeiros encontros com as letras, a filha, com aaprovação de Dona Rosali, desvendava, em um curso doTelecentro Cidade Líder, o mistério do computador. Percebeu,logo de início, o benefício de usar a Internet para a busca deinformações e aquisição de conhecimentos. Aluna da 8ª série,fez pesquisas e incrementou muitos trabalhos escolares, dessamaneira. Depois, foi além. Muito além. Até o Japão.

Descobriu a possibilidade do contato com pessoas de outrospaíses. A menina, que até então mal passara das ruas de seu bairro,não resistiu à curiosidade de, ainda que apenas pela Internet,conhecer alguém, trocar idéias, ter notícias de outros países.Encontrou, numa sala de chat, Wilson, um dos milhares debrasileiros que moram no Japão. "É muito legal conversar com gentede fora. Nunca imaginei que fosse fazer isso na minha vida", conta.A família e os vizinhos não davam muito crédito a Daiane quando elafalava, empolgada, sobre a amizade com o rapaz do Japão. Achavamque era conversa fiada. Dona Rosali só deu fé quando o tal garotopassou a telefonar para a menina. Nessa altura, Daiane já tinhaamigos no Rio de Janeiro e em outras cidades.

Ela vai ao Telecentro cerca de duas vezes por semana. No seue-mail pessoal, troca mensagens com os colegas da igreja quefreqüenta. Sonha em fazer faculdade. "Ter estudado no Telecentro vaifazer diferença na minha vida para sempre", acredita.

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Rodrigo mora com a mãe, Ivone,a avó e três irmãos, de 20, 12 e 3 anos. Tinha 7 anos quando seupai saiu de casa, a pedido da mulher, cansada das bebedeiras domarido. Nunca mais voltou. Ficou para a mãe, faxineira, a tarefasolitária de criar os filhos. O irmão mais velho de Rodrigo sóconseguiu trabalho, até hoje, como office-boy. Atualmente, estádesempregado.

As dificuldades da família despertaram no menino de 16anos a vontade de fazer algo de bom por si mesmo, dar um jeitona própria vida. Quando soube da inauguração do Telecentro, emseu bairro, topou deixar um pouco de lado as partidas de futebolcom os amigos, sua única diversão, para conhecer oscomputadores. "Queria aprender, dar um futuro para a minhavida", revela.

Nisso, contou com a ajuda de Kléber Santos, umfreqüentador do Telecentro, mais velho e interessado eminformática, que chegou lá buscando o mesmo que Rodrigo. Deprogresso em progresso, o pequeno menino viu-se, de repente,ensinando outras pessoas. Acabou voluntário da unidade eparceiro de Kléber na elaboração de um site sobre a CidadeTiradentes. "Antes, eu não tinha nada. Só jogava bola e nãoaprendia nada. Agora, eu tenho: pego o computador, ajudo opovo e ainda aprendo". O bairro, segundo ele, não oferecemesmo opções de entretenimento e cultura. "Não tem opção delazer. A única opção é o Telecentro". Na verdade, as opçõesexistem, mas estão quase sempre relacionadas às atividades dotráfico de drogas. Nem passa pela cabeça de Rodrigo freqüentarqualquer ambiente em que ele venha a ter contato, ainda quedistante, indireto, com o crime. "Não vou, para não me envolver.Futuro assim eu não quero". Ele quer um futuro relacionado àuniversidade e à tecnologia.

Chuteiras penduradas

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Gláucia também sonha umfuturo bonito, mas, diferentemente de Rodrigo, que já tem umaestratégia para conseguir, ela não tem a menor idéia de comomudar de vida. "Não sei como chegar lá. Isso me assusta",confessa.

Nada tira de sua cabeça que seu lugar é na administraçãoda Rádio 89 FM, apesar de muitas pessoas tentarem convencê-lade que é um sonho impossível, do qual ela precisa despertar comurgência. "Se eu não conseguir isso, não quero mais nada",sentencia. Ela até acata os conselhos dos amigos, quando alguémsugere, por exemplo, que ela mande um currículo para umsupermercado. Acata, mas fica torcendo contra. "Mandei ocurrículo para o supermercado. Graças a Deus, não mechamaram".

Assim, sobra mais tempo para ficar junto docompanheiro rádio. "Se tiver um rádio perto, eu não preciso demais nada. Durante muito tempo, ele foi o meu melhor amigo".Não é exagero. De poucos amigos e sem muito entusiasmo paraconhecer alguém e namorar, é com o rádio que ela enfrenta asolidão. Tornou-se até especialista em ganhar promoções da 89FM. "Se eu ganho promoção e eles falam meu nome, parece que,pelo menos, eles prestam atenção em mim".

Ela até já tentou ter outros empregos, trabalhou em duasgráficas, mas pediu demissão de ambas. Não suporta ficar oito horasfazendo a mesma coisa. "Não sei o que acontece: me dá umdesespero tão grande, que eu quero sair correndo do lugar". Sua mãeacha que ela tem de enfrentar a situação. "Arruma qualquer emprego,fica lá se matando, chora de desespero, mas fica! Guarda o dinheiro!Depois, se conseguir, sai", recomenda, aos berros, Dona Josefa. Afilha, com 22 anos e cinco centavos no bolso, é obrigada a admitirque a mãe tem uma certa razão. "Seria bom eu arranjar um empregoagora porque eu não tenho nada".

Ganhadora de promoções

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Há alguns anos, visitou a Faculdade Cásper Líbero, naAvenida Paulista, para saber os preços das mensalidades doscursos de comunicação. Chegou assustada, voltou desanimada."Eu pensava que a mensalidade era mil, mas era trezentos. Sóque eu não tenho condição de pagar nem cem".

Embora Gláucia tenha necessidade de voltar a trabalhar,e saiba disso, não foram preocupações profissionais que alevaram a fazer um curso no Telecentro Jaraguá. Como quasetudo que faz é movido por um impulso da imaginação, do sonho,quis aprender a mexer no computador para conhecer mais deperto o universo de suas fantasias de criança, quando brincava deescritório em casa. "Sinceramente, eu nem sabia o que eraInternet", diz. Quando soube, gostou. "É bem melhor do que euimaginava. Eu amei".

Vai ao Telecentro praticamente todos os dias, mas a razãocontinua não tendo nada a ver com seu futuro profissional. Lá,fez amigos, uma turma que, até então, nunca tivera. "Se eu venhoaqui e fico o dia inteiro, é por causa do pessoal". É mais que isso.É também para não ter de voltar para casa, onde brigas com asirmãs e gritos da mãe a esperam. "Normalmente, eu não quero irembora. Aqui é uma família".

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Faxineiro, porteiro, garagista, zelador, cobrador, fiscal deempresa de ônibus e motorista da extinta Companhia Municipalde Transportes Coletivos de São Paulo (CMTC). Sem falar dostrabalhos de carpintaria e de juntar lata, sucata e papelão. Essasforam apenas algumas das atividades que Cláudio, hojeempregado no Telecentro Brasilândia, já fez para sobreviver.Quem vê seu jeito simples, discreto e tranqüilo, nem imagina asdificuldades que ele já enfrentou, em 41 anos.

Quando lembra do passado, surgem as recordações detempos difíceis e de quanto esforço foi preciso para sustentar aesposa Maria Ivaneide e os filhos Ricardo, Renato e Rodrigo, de12, 7 e 2 anos, respectivamente. “Passei por muitas lutas. Sofriademais quando trabalhava como servente de pedreiro, de 1994até o ano passado”, relata. “Meu problema de cálculo renalpiorava a cada dia. Subir trinta degraus carregando um saco de50 quilos de cimento nas costas era horrível. Meu corpo ficavaacabado. À noite, respirava com dificuldade”.

Ao ser demitido, em um grande corte da CMTC, em1992, Cláudio viveu os momentos mais terríveis de sua vida. Aexaustiva procura de serviço foi dolorosa. Em agências deemprego e entrevistas em algumas empresas, as palavras"aguarde nosso retorno" tornaram-se repetitivas e angustiantes.“Precisava sustentar minha família. Tinha de comprar leite e pão

Cláudio Vieira castigou o corpopara sustentar a família. Sóencontrou reconhecimento noTelecentro Brasilândia, aos 41 anos.

Trinta degraus acima e 50 quilos nas costas

Por Luciano Emiliano

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para os meus filhos, mas não tinha dinheiro”, recorda. Com otrabalho de servente de pedreiro, ganhava R$ 50 por semana, oque mal dava para as necessidades. “Quando um dos meninosolhava um carrinho de brinquedo, logo dava uma dor no coraçãopor não poder comprar. Passou tudo em minha cabeça”. Mesmoprocurar emprego não era uma tarefa simples. “Houve temposem que nem sequer tinha dinheiro para pegar ônibus. Cansei deaguardar em agência de emprego. Até dormia no local, pra terlugar na fila”.

Cláudio contava somente com o apoio do pai. “Ele meajudou muito financeiramente e incluiu meu filho Ricardo, quetambém sofre de cálculo renal, no seu plano de saúde”. A casaem que Cláudio morava também pertencia a seu pai, que arcavacom as despesas de água e energia elétrica. “Se a casa não fossedo meu pai, seríamos despejados. Como me sentia mal”, revela.

Os trabalhos de servente de pedreiro vieram em momentooportuno. O falecido vizinho, Seu Elias, ensinou o ofício em1992. Cláudio lembra que nem sabia como fazer a massa, tarefabásica. O trabalho, pesado, era mal remunerado, mas era só o queele tinha para fazer.

O esforço faz parte davida de Cláudio e de seus pais, Benedito Aparecido Vieira, de 68anos, e Maria José Tavares Vieira, 58. Natural de Bernadino deCampos, a 480 km de São Paulo, próximo à divisa com o Paraná,ele é, na verdade, filho adotivo de Benedito e Maria. Quandotinha apenas 15 dias de vida, uma madre da maternidade ondenasceu, que conhecia Seu Benedito e Dona Maria, deixou-o aoscuidados deles. Muitos anos depois, descobriu que tinha umirmão gêmeo. Também adotado, o irmão recebeu, coinci-dentemente, o nome de Cláudio. Na última vez em que faloucom ele, Cláudio José, o irmão, trabalhava e vivia em Xavantes,

Um barraco e muitos barrancos

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no interior de São Paulo.“Ele me contou que nossa verdadeiramãe é indigente e nosso pai era um saqueiro de estaçãoferroviária, que acabou assassinado. Não vejo esse irmão hácerca de dez anos anos”, esclarece.

Em 1972, Seu Benedito, com problemas no sistemanervoso, aposentou-se, por invalidez, da Ferrovia Paulista S.A.(Fepasa). No ano seguinte, mudou-se do interior para a capital,com a família. Moravam todos em uma casa alugada no bairro deVila Nova Cachoeirinha, na zona norte da cidade.

No mesmo ano, o pai de Cláudio comprou um carrinho epassou a vender pipoca em frente a uma igreja e uma escola.Com o dinheiro, conseguiu comprar um terreno no JardimDamaceno, também na Zona Norte. Nele, construíram um

“Este projeto pode reerguer outras pessoas, como me reergueu”, opina Cláudio, sobre os Telecentros.

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barraco. Cláudio lembra-se que buscavam água em uma mina,num cansativo percurso de alguns quilômetros, subindo edescendo barrancos para encherem um tambor d'água de 200litros. O barraco, por fim, deu lugar a uma casa que a famíliaVieira construiu no terreno, num momento em que a situaçãofinanceira de Seu Benedito e Dona Maria melhorou.

Aos 20 anos, Cláudio casou-se, mas acabou pedindoseparação da esposa, dois anos depois. Há treze anos, ele fez umtrabalho na cidade de Campina Grande (PB), onde conheceuMaria Ivaneide. Ao retornar para São Paulo, trouxe a mulher,com quem vive até hoje e teve seus filhos. A esposa trabalhoucomo empregada doméstica até 1991. Desde então, estádesempregada. Analfabeta, matriculou-se no MovimentoBrasileiro de Alfabetização (Mobral – programa para alfa-betização de adultos, criado em 1967, no primeiro ano degoverno do presidente Costa e Silva, e incorporado, em 1985, àFundação Educar, extinta em 1990) e passou também por cursosoferecidos em igrejas, mas não consegue se concentrar econtinua sem saber ler e escrever. “Ela tem força de vontade e éinteligente”, elogia o marido. “Faz bordado muito bem. Seobservar um retalho em uma revista, faz igual, conforme a foto”.

O cotidiano de Cláudiotomou novo rumo em 2001. Em primeiro lugar, passou a receber R$180 do programa Renda Mínima, da Prefeitura de São Paulo (recursoem dinheiro pago às famílias de baixa renda com crianças de até 15anos). Em seguida, no Jardim Vista Alegre, próximo à sua casa, foiinstalado o Telecentro Brasilândia, no dia 13 de abril de 2001.Quando soube que a unidade oferecia, gratuitamente, cursos deinformática (exigência para muitas vagas de trabalho às quais secandidatava), Cláudio ficou curioso e interessou-se. No dia 17 deagosto do mesmo ano, foi ao Telecentro e inscreveu-se para o curso.

Oportunidade e reconhecimento

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No local, soube que aceitavamvoluntários e, já no dia seguinte,começou a trabalhar, distribuindosenhas e organizando as filas deusuários. Em seguida, realizou um cursode HTML. Não sabia nem executartarefas básicas num computador, comoabrir e salvar arquivos. Mesmo assim,conseguiu acompanhar o curso decriação de sites. “Eu observava outraspessoas e aprendi sozinho algunscomandos. Peguei muito rápido”,comemora. Logo pôs em prática. “NoTelecentro, quando o gerente da unidadesaía, eu o substituía no cadastro deusuários no terminal".

Cláudio adquiriu outrosconhecimentos. A Coordenadoria doGoverno Eletrônico da Prefeitura,responsável pela implantação dosTelecentros, proporcionou a ele, nocomeço de 2002, treinamento parasubstituir instrutores nas aulas. Ocurso serviu para desinibir-se eexpressar-se melhor. “Antes, eratímido, gaguejava, agora me sintomais solto, me comunico bem melhorcom todos”.

Enquanto trabalhava comovoluntário e capacitava-se profis-sionalmente, Cláudio ainda faziaserviços de servente de pedreiro, para

“Convivo com adolescentes que buscam uma condição melhor de vida. Trato todos com respeito”, conta Cláudio.

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sustentar a família. Já havia, no entanto, conquistado aconfiança, o respeito e a simpatia dos funcionários da unidadeBrasilândia e do Governo Eletrônico. No dia 22 de março de2002, obteve, finalmente, o emprego que tanto procurara. “ORoberto (Zanellato, monitor da unidade) me ligou para pegartoda a documentação. Fui indicado por ele e outros funcionáriospara ser efetivado como supervisor, com direito a salário de R$570. Nem acreditei”, recorda, com alegria.

Passado o período de experiência, foi efetivado no cargode auxiliar técnico, ganhando R$ 819. Em sua nova função,auxilia tanto a unidade quanto o Governo Eletrônico na entregade materiais a outros telecentros. Está em contato com muitagente. “Gosto de conhecer pessoas inteligentes e aprender comelas”. Em troca, desfruta o reconhecimento que sempre esperou.“Jamais fui tão valorizado. Com a valorização do meu trabalho etantas novas e boas amizades, minha vida mudou radicalmente”.Já discursa como funcionário-modelo: “Visto a camisa desteprojeto que me deu muito. Quero dar tudo o que puder”.

Não é conversa de empregado novo. Cláudio conhecebem a realidade das pessoas que chegam aos Telecentros e sabeque merecem e precisam de atenção. “Convivo com adolescentesde periferia que buscam uma condição melhor de vida. Muitosdeles são revoltados com a exclusão social e os preconceitos. Euos trato como devem ser tratados: com respeito”, garante.“Ninguém é diferente porque é aluno, monitor ou gerente. Tantoquem usa como quem coordena os trabalhos são moradores dobairro, e os equipamentos pertencem à comunidade”, completa.

Esse sentimento de igualdade lhe foi transmitido pelamãe: “Mesmo sendo rei, seja humilde”, costumava dizer DonaMaria. Ele não se esquece disso. “Se precisarem de mim comofaxineiro, faço o trabalho sem problema algum. Tenho umcompromisso com a unidade e com a comunidade”.

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Cláudio dá conselhos aos filhos, especialmente aRicardo, que já usa o Telecentro para fazer trabalhos escolares einiciou um curso de Linux. “Temos de valorizar as oportunidadesde aprendizado. Até meu pai fez um curso básico deinformática”, diz.

O desemprego aflige muitos usuários e até voluntáriosdos Telecentros, que usam os computadores para fazercurrículos e procurar vagas. “Conto minhas experiências edou incentivo para não abaixarem a cabeça e teremperseverança. Este projeto pode ajudar a reerguer outraspessoas, como me reergueu”.

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O garoto Maciel da Costa Silva, de 13 anos, chegava daigreja entre uma e duas da tarde, parava sob a janela de seuapartamento e gritava:

— Mãe, tá na hora do almoço!Quando Dona Margarida saía para observá-lo, ele

começava a subir a escada improvisada de madeira, que davaacesso à sua casa. Acontecia assim todos os sábados e domingos,em 1996, num conjunto habitacional em construção, no bairro deParada de Taipas, zona oeste. Maciel ia aos encontros de jovensda Igreja Universal do Reino de Deus, às manhãs. No mesmohorário, moradores do bairro terminavam de construir, emmutirão, os prédios em que moravam. Enquanto isso, Severino, opai de Maciel, empurrava um carrinho, vendendo doces pelacidade, para sustentar a esposa e os dois filhos. Desempregado,saía cedo e voltava tarde.

Num sábado, Maciel resolveu fazer diferente. Subiu logoos degraus de madeira, sem anunciar sua chegada. Abriu a portasem aviso e entrou em casa. Encontrou, no sofá da sala, umhomem que não era seu pai. Nos braços dele, a mãe, Margarida.Já tinha idade suficiente para entender o que se passava. "Nahora, fiquei com uma raiva...", lembra. A mãe desesperou-se:

— Não conta pro teu pai, filho!— Não conta, senão, vai dar briga — emendou o homem.

Membro do Conselho Gestor Juvenildo Telecentro Jaraguá, Maciel Silvacresceu entre conflitos familiares,retiros espirituais e shows de rock.

Da paz e do barulho

Por Cassiano José

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A recomendação funcionou por duas semanas. Até que,durante uns dias que passava na casa da avó materna e das tias(irmãs de sua mãe), em Tatuí, no interior de São Paulo, reveloutudo a elas.

— Você não contou isso ainda pro teu pai? — revoltou-se uma.

— Conta pra ele! — exigiu outra.— Se acontecer alguma coisa, você vem pra cá —

garantiram.Voltou a São Paulo e falou a Seu Severino. O pai ficou

descontrolado. "Ele ficou mais do que revoltado. Queria ir noquarto, pegar minha mãe, surrar", conta Maciel. Foi o filho quemo conteve. "Pequenininho daquele jeito, consegui controlar ele".A estrutura familiar, contudo, fora rompida para sempre. Macielfoi mesmo mandado para Tatuí. O irmão, Celso, três anos maisnovo, foi junto. Quando voltaram para casa, o pai não moravamais lá. No lugar dele, outro homem, o novo responsável pelosustento da família: Joaquim Firmino, o vizinho que Macielencontrou na sala com a mãe.

Foi uma decepção e tanto. A vida,de repente, deixara de ser como Maciel a conhecera. Quis, então,de uma só vez, atacar todos os paradigmas de sua jovemexistência. "Fiquei revoltado com essa situação. Deixei de ir àigreja, comecei a beber, fumar, ficava noites fora de casa",revela, hoje, aos 19 anos.

O pai, enquanto isso, arranjava um quarto para si, noBairro do Limão (paga, atualmente, R$ 100 por mês, peloaluguel). Sofre, até hoje, para sobreviver e pagar à ex-esposa a

A religiosidade sempre esteve presente na vida do evangélico Maciel, fiel da Comunidade Zadoque.

Roqueiro do Senhor

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pensão de um salário mínimo. O dinheiro vem ainda da venda dedoces nas ruas. Às vezes, não vem em quantidade suficiente.Nesses casos, segundo Maciel, Severino faz empréstimos comamigos, mas não deixa de cumprir a obrigação. Sua vida, quenunca foi fácil (trabalhou como metalúrgico), ficou ainda maisdifícil quando, pela metade dos anos 90, perdeu seu emprego.Chegou a conseguir serviço numa fábrica de tecidos, mas, emmenos de um ano, a empresa faliu, e ele teve de voltar aos doces.Desde então, tem sido esse seu único meio de sustento. Está com46 anos. "Às vezes, vou visitá-lo. Minha relação é melhor comele do que com minha mãe", diz Maciel.

Com o tempo, uma nova rotina estabeleceu-se na casa deMaciel. O dinheiro do padrasto, representante comercial,somado ao de Dona Margarida, empregada doméstica, davaconta das despesas da família. Sem luxo, é verdade, mas commuito mais tranqüilidade do que quando Severino vivia lá. Osaluguéis atrasados deram lugar a prestações, quitadas em dia, dacasa própria adquirida. Celso, não tão envolvido quanto seuirmão no processo de separação dos pais, não tem por Joaquim amesma antipatia que Maciel. Ficaram, para ele, com exclu-sividade, toda a atenção e o carinho do padrasto.

Isolado na própria residência, Maciel voltar a encontrar,na fé, motivações para sua vida. Retomou as atividadesreligiosas, mas em outra congregação evangélica, a Renascer emCristo. Nem assim teve a aprovação da família. Joaquim eMargarida, freqüentadores da Universal, reprovaram a novaopção de Maciel. "Ele (o padrasto) passou a implicar ainda maiscomigo. Até minha mãe ficou contra mim”.

Além da devoção religiosa, Maciel abraçou, aos 15 anos,uma nova paixão: a música. "Peguei o violão do meu pai e nãodevolvi mais". Começou seus estudos musicais comprandorevistas com letras cifradas e arriscando, sozinho, em casa, os

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primeiros acordes. Fez progressos. Doviolão, passou à guitarra. Mais tarde,quando amigos de uma banda de rockprecisavam de um baixista, Macielaprendeu a tocar mais esse ins-trumento que, com o tempo, se tornouseu preferido.

Na Renascer, em que oscultos, realizados todos os dias, sãoembalados por apresentações mu-sicais, com participação intensa dosfiéis, ele encontrou o cenário idealpara viver plenamente, com alegria,aquilo que era de seu interesse. "Àsvezes, eu ficava de segunda adomingo na igreja. Era uma vidacorrida, como se fosse de músicoprofissional mesmo. O tempo que eutinha em casa era para dormir".

Cada vez mais experiente,acabou por encontrar uma igreja aindamais adequada ao seu gosto musical:a Comunidade Zadoque, que reúnebandas cristãs de heavy metal, um tipode som que, no Brasil, é conhecidocomo white metal. É desse estilo ogrupo preferido de Maciel, chamadoSeventh Avenue. Mesma linha de suaprópria banda, Brave Soldier (emportuguês, Soldado Valente), formadaatualmente por quatro pessoas e naqual ele é o responsável pela maioria

“Gostaria de ter meu estúdio, alugar para outras bandas e produzir CDs”, sonha Maciel.

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dos arranjos. "Na comunidade, todo sábado, tem show. Tentamosconvidar o povo que não é cristão a ir, ver o show e, na hora,ouvir um pouco a palavra, o nome de Jesus, e acabar seconvertendo a Cristo", explica.

O aprofundamento dos conhecimentos tem, ao longo dosanos, ampliado os interesses musicais de Maciel. "Antigamente,eu era muito radical: só ouvia rock. Ainda é o estilo que eu gostomais, mas, quando aprendi a tocar outros tipos de música, comopagode, funk e blues, passei a gostar disso também". Foi ainda naRenascer, tocando em bandas de apoio (as que acompanhamcantores que fazem carreira-solo), que ele teve de, na marra, seacostumar aos diferentes ritmos. "Você aprende bastante,tomando bronca dos outros músicos". Ele gostaria, é claro, que oBrave Soldier gravasse CDs, ficasse conhecido, mas conhece arealidade do mercado fonográfico e sabe o quanto é difícil."Quando você é músico de rock não cristão, já tem dificuldadepara lançar alguma coisa por uma gravadora. Sendo cristão, aaceitação é mais difícil ainda", lamenta. A alternativa paradivulgar o trabalho é bancar, do próprio bolso, a produção edistribuição de CDs. "A maioria das bandas é independente".

Ciente disso, mas disposto a tentar, no futuro, fazer damúsica seu meio de sobrevivência, Maciel pretende usar aexperiência já adquirida para trilhar um outro caminho, maissimples e viável do que o sucesso nos palcos. "Gostaria de termeu estúdio, alugar para outras bandas, produzir CDs eacompanhar cantores de vários estilos, não só de rock".

Dias seguidos na igreja e a rotina demúsico profissional ocuparam o tempo que Maciel, pela idade,deveria dedicar a uma vida escolar ativa. Priorizou, naadolescência, as orações, as músicas e o trabalho, com o qualconseguia dinheiro para satisfazer suas vontades, uma vez que,

Fora da escola

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do padrasto, nada podia esperar. A educação regular ficou emsegundo plano. Sempre que a vida ficava muito atarefada, ocolégio é que era deixado de lado. Entrou e saiu da escola váriasvezes. Resultado: não concluiu o ensino médio até hoje.

Uma das vezes em que largou os cadernos foi quandoarranjou emprego numa lanchonete, na Avenida Paulista. Entravaàs 7h no trabalho. Tinha de acordar 4h30 e sair de casa às 5h,para chegar no horário. Largava o serviço às 17h e corria para aescola, onde as aulas começavam às 19h. Chegava em casa apósas 23h. Até tomar banho, jantar, já era mais de meia-noite. Nãosuportou por muito tempo. "Eu não estava agüentando. Às vezes,no trabalho mesmo, eu ia entregar um lanche e já ficava meiosonolento".

Em 2002, voltou a estudar, num curso supletivo. Estava noterceiro ano, prestes a concluir o segundo grau, quando, mais umavez, abandonou os estudos. Novamente, para trabalhar. Maciel estáempregado numa rede de supermercados. Faz balanço, o controle doestoque, sempre de madrugada. O serviço não é diário. Quandochamado a trabalhar, ele vai. Ganha R$ 25 por dia trabalhado.Algumas vezes, é chamado cinco vezes, numa semana. Outras, umasó. Ele lamenta a falta de regularidade. "Se eu trabalhasse semprecinco dias, dava, em média, R$ 500 por mês, mas o problema é quenão é sempre que tem serviço".

A diferença na vida profissional de Maciel, em relação aempregos anteriores, é que, agora, suas responsabilidades emcasa são muito maiores. Após sucessivas discussões com oenteado mais velho, Joaquim, o padrasto, foi-se embora de casa.Mora ao lado, mas não contribui mais com o orçamentodoméstico e deixou, segundo Maciel, contas atrasadas por pagar.

Margarida não pode mais trabalhar como empregada. Em2000, foi dispensada da casa onde trabalhou durante oito anos.Com fortes dores na coluna, aproveitou a ocasião para fazer uma

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cirurgia. No hospital, enquanto estava anestesiada, osenfermeiros foram passá-la de uma maca a outra e deixaram-nacair no chão. A cirurgia foi feita, mas o choque da queda deixouseqüelas. Ela vai ao posto de saúde todo dia, fazer fisioterapia.Aguarda a oficialização de sua aposentadoria e a liberação doauxílio-doença.

Ficou, então, para Maciel, a tarefa de obter dinheiro paraa família. "Tenho de ajudar a pagar as contas, as compras domês", reconhece. O irmão Celso não está feliz com a novasituação. "Não converso com ele sobre esse assunto, mas ele sedava muito bem com meu padrasto. Você sente, na cara dele, quenão está feliz", diz Maciel, que se vê dividido. Por um lado,sente-se particularmente aliviado com a saída de Joaquim."Nunca gostei dele". Por outro, está preocupado com o futuro,sem uma fonte segura de renda.

Em 2002, Maciel começou a notar no irmãoum novo hábito: saía de casa, todo dia, às quatro da tarde, evoltava só às oito da noite. Um dia, perguntou:

— Onde é que você tanto vai, hein?— No Telecentro — respondeu Celso.Maciel não tinha a menor idéia do que era um Telecentro. O

irmão explicou-lhe. "Nem dei muita importância", confessa Maciel.Passou a dar, mais tarde. Numa ocasião, ele e uns amigos, todosprocurando emprego, precisavam digitar e imprimir seus respectivoscurrículos profissionais. Maciel tinha não apenas um, mas doiscomputadores em casa, uma exceção entre seus colegas. O problemaé que não podia usar nenhum deles. Ambos pertenciam ao padrasto,que só deixava Celso utilizar as máquinas.

Foi assim, por falta de alternativa, que Maciel entrou,pela primeira vez, no Telecentro Jaraguá, do qual Celso lhefalara. Embora não tivesse grande intimidade com a máquina,

Novo abrigo

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sabia operá-la, pois, anos antes, havia feito um curso no ServiçoNacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Seus amigosgostaram do Telecentro e passaram a freqüentar o lugar. Macielia junto. "Se eu não tinha nada para fazer, ia lá", conta.Aproveitou e fez ali um curso de Linux.

Começou assim, sem pretensão, mas, tendo feito novos,amigos entre freqüentadores e funcionários do Telecentro,quando se deu conta, Maciel estava totalmente envolvido com oprojeto. Cada Telecentro tem o seu conselho gestor, formado porpessoas da comunidade local e responsável pelo gerenciamentodas atividades da unidade, que costumam ir além dos serviços deinformática. Maciel, de jeito aparentemente tímido, resguardado,porém acostumado a liderar desde os tempos em que atuava nogrupo de jovens da Igreja Universal, logo passou a integrar oConselho Gestor Juvenil do Telecentro Jaraguá. Ajuda naorganização de campeonatos de futebol, sessões de cinema,visitas a teatros e circos e o que mais os jovens da unidadetiverem vontade de fazer. "Agora, vai ter aula de capoeiratambém", revela, animado. Diz que se sente totalmente à vontadeno local, tanto quanto na igreja. "É um outro abrigo", define obaixista evangélico que, mesmo após ter obtido o emprego queprocurava, continua indo ao Telecentro quase todos os dias, prin-cipalmente para procurar, via Internet, notícias sobre as bandasde white metal de que tanto gosta, e divulgar, em sites de festase shows, as apresentações musicais de seu grupo. "É um hábitoque adquiri", conclui.

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Marçal Ferraz tem 51 anos e mora em Guaianases, nazona leste de São Paulo. Nelson de Almeida tem 60 e vive emSanto Amaro, zona sul. Quando falam, Nelson parece o maismoço. A voz, mais firme, emite frases que saem inteiras, prontas.Seu Marçal fala de um jeito acanhado, aparentemente maispreguiçoso e cansado. Nelson é aposentado. Marçal, quase. Apoucos meses de obter a aposentadoria, ficou desempregado,condição em que permanece. Ganhou a vida como torneiromecânico. Nelson foi mecânico de automóveis. Marçal temesposa, cinco filhos, quatro netos, e é um avô dedicado,orgulhoso, carinhoso, daqueles que mimam as crianças. SeuNelson vive só e acha que está muito bem assim. “Casamento éum negócio que não é muito a minha área”, diz.

Em 2002, os dois resolveram aprender a usarcomputador. Marçal, no Telecentro Guaianases, a cinco minutosda sua casa. Nelson, na unidade Cidade Dutra, onde costuma irde ônibus, em 30, 35 minutos, quando o trânsito deixa. Asmotivações dos dois eram bem distintas. Nelson foi de curioso.“Eu só tinha visto computador em prateleira de loja”. Marçal foicom o objetivo de dar um exemplo para o neto Allan, de 12 anos,e assim motivá-lo a aprender informática.

Seu Nelson já imaginava que ia gostar do computador.Ele adora máquinas. “Sou apaixonado por carro e avião”, revela.Marçal não achava sequer que ia conseguir aprender a usar. Seu

Nelson de Almeida, 60 anos, eMarçal Ferraz, 51, mantêm-seativos, aprendendo informática.

Inimigos do ócio

Por Cassiano José

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plano era apenas inscrever-se, arrastar o neto ao Telecentro edeixar que o garoto se entendesse com o micro. “Eu achava que,na minha cabeça, não entrava mais isso aí”, conta.

A estratégia de Marçal deu mais certo do que ele próprioimaginava. Allan, de fato, logo quis conferir o que o avô ia fazertodo dia ali perto de casa. Além disso, ele, Marçal, descobriuque, na sua cabeça, entrava, sim, mais esse conhecimento. “Comumas três, quatro aulas, fui perdendo aquele receio, aquele medo.A cada dia, ia aumentando mais a minha curiosidade. As duashoras de aula passavam em dois minutos”, relata. Aprendeu ausar o Windows e o Linux. Sua atividade preferida é fazer textose ilustrá-los com imagens retiradas da Internet. “Toda a vida eugostei de desenho”, diz.

O que Seu Marçal não gosta é de copiar coisas. “Eu gostode usar a minha imaginação”, afirma. Tenta passar isso àscrianças. Se um neto quer dar um cartão para a mãe, Marçal, ocriador, entra logo em ação: “Cartão é tudo a mesma coisa, sómuda a musiquinha. Melhor você fazer com as suas própriaspalavras”, aconselha. Na manhã seguinte, o avô sai, levando umafollha de papel com as palavras do neto. Senta ao computador,digita o texto, procura imagens bonitas para ilustrá-lo, trocafontes, brinca com as cores e, finalmente, volta para casa comum cartão original, impresso no Telecentro. É assim todos osdias. “Faço o que me pedem”. Edson Mineiro, funcionário daunidade, confirma: “Nunca vi Seu Marçal fazendo alguma coisapra ele mesmo, é sempre para os outros”. Atendendo aos pedidosdos netos, tem tarefa para a semana toda e estímulo para sua cria-tividade. “Se vou todo dia fazer a mesma coisa, não pratico”.

Seu Nelson não tem a mesma empolgaçãoque Marçal, mas também vai com regularidade ao Telecentro. “Oimportante é a gente ocupar a cabeça. Eu estou aqui toda semana.

Cabeça feita

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Gosta do computador, mas seu negócio é mesmo carro.Em 1969, teve início no Brasil a produção do Volkswagen 1600,primeiro carro nacional com quatro portas e motor de 1600cilindradas. O modelo caiu rapidamente no gosto dos taxistas.Para a população, as quatro maçanetas mais pareciam as alças deum caixão. Resultado: o VW 1600 ficou conhecido pelo apelidode Zé do Caixão. No ano seguinte, a Volkswagen lançou oautomóvel TL, uma mistura de Zé do Caixão e perua Variant. Noprimeiro ano de fabricação, fez mais de 13 mil modelos doveículo. No ano seguinte, um sucesso: mais de 38 mil TLsproduzidos. Ao todo, foram cerca de 109 mil carros, em seteanos de fabricação. Em 1973, foram exatamente 21101 TLs. Umdeles, marrom acrílico, está na garagem de Seu Nelson até hoje,

Marçal começou a ir ao Telecentro para incentivar o neto Allan a fazer o mesmo.

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exatamente do jeito que chegou. “Meu automóvel é especial, écarro de colecionador: uma TL 73 todinha original. A gente vêmuitos, mas como o meu, poucos. É meu xodó”, derrete-se.

Hoje em dia, é raro tirar o xodó da garagem. “Ando muitopouco. Só de fim de semana”. Motorista consciente, sabe que seuautomóvel, antigo e lento, para os padrões atuais, não foi feitopara andar nas avenidas agitadas da São Paulo do século XXI.“Vai atrapalhar o trânsito, acabar provocando um acidente”.

Nelson não é consciente apenas no trânsito: é em tudo.Viveu assim, dando passos bem medidos, sem meter os pés pelasmãos. Com o dinheiro da aposentadoria e de algumas economiasreunidas ao longo da vida de mecânico, mora hoje numapartamento de sua propriedade, dentro de um condomínio, etem plano de saúde. “Um aposentado do INSS não ganha praestar assim”, reconhece. A explicação: “Sempre fui um carapoupador, nunca fui esbanjador e não tenho vício nenhum”.

A segurança foi ensinada pelos pais, pobres. Nelson, ocaçula de uma ninhada de seis, criada na Vila Olímpia, estudoudurante quatro anos e, aos 13, começou a trabalhar. “Se a gentetiver um berço de ouro, faz muita besteira na vida. Quando temque tirar do bolso, a gente valoriza”, acredita.

Com ele é assim: tudo no seu devido lugar, sem riscosdesnecessários. “Sou bem sossegado, cabeça feita. Se é pradirigir o carro, vamos dirigir. Se é pra fazer farra numa festa,então, vamos fazer farra numa festa, e o carro fica na garagem”,diz, dando um exemplo de sua filosofia de vida, que não temherdeiros. “Não quis me casar. Tive gente que morou comigo,mas a casar eu nunca fui chegado”. A namorar continua chegado.Ele, no seu apartamento; a namorada, na casa dela. “A gente vivemelhor do que debaixo do mesmo teto”.

Na relação com amigos e parentes, é a mesma coisa: cadaum no seu canto. “Moro em Santo Amaro há 22 anos, sou um

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cara comunicativo, tenho muitas amizades, mas nada de muitovaivém, não. Sou caseiro, gosto de curtir aquilo que é meu”.

Enquanto Seu Nelson curte a aposentadoria e a vida queSeu Marçal faz planos relacionados à tecnologia. “Quero meaprofundar mais, entrar como voluntário no Telecentro, ficarmais tempo em contato com a máquina. Quem sabe depois eunão posso fazer um curso de manutenção em informática”?Marçal não está se esforçando somente para aprender uma novaprofissão, obter um emprego e conseguir a aposentadoria. Paraele, estudar informática não chega nem a ser um esforço. “OTelecentro não é uma coisa enjoativa que, chega uma hora, vocêcansa. Ele incita você a aprender mais. Ali, é curiosidade emcima de curiosidade, e não tem fim”.

Seguro e controlado, Nelson, mecânico aposentado, leva a vida sem sobressaltos.

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O final do ano de 2001 teve um significado diferente paraMônica Santos do Amaral, agente técnica de área de onze unidadesdos Telecentros. Sempre guiada pela necessidade de engajar-se emtrabalhos sociais, Mônica deparou-se com a oportunidade departicipar de um projeto que pretende quebrar a idéia de que atecnologia é para uma classe privilegiada da sociedade. Com aintenção de incluir a população carente no universo da informática,a proposta despertou-lhe interesse:

— Quando fui convidada por meu amigo Ricardo,integrante do grupo político de Guaianases, para trabalhar noprojeto, fiquei extasiada. Era muito bom pra ser verdade.

Mônica aceitou o cargo de supervisora do TelecentroLajeado, no bairro de Guaianases. Tão logo assumiu a função,percebeu que aquela seria a oportunidade que tanto esperara. Cedo,já imaginava os muitos projetos que nasceriam a partir daquelaproposta de inclusão digital.

Filha do engenheiro Fernando Ribeiro e da professoraAdalgisa, Mônica cresceu sob o sol das praias do nordeste,mais precisamente no Ceará, na companhia de três irmãs. Deposse de muita vontade de viver e de uma incrívelcuriosidade pelo mundo, que fugia das fronteiras ondemorava, as atitudes da menina já deixavam claro para suafamília e amigos que só o que a segurava em sua cidade natal

Mônica do Amaral quer uma vidadigna para as comunidades pobres.A mesma que ela foi procurar,quando fugiu de casa.

Por Marcos Roberto Gonçalves Lúcio

Na própria pele

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era sua pouca idade. Tão logo houve a identificação dessesfortes traços do caráter de Mônica, seus pais acharam porbem apontar com pulso mais forte os limites da vida daadolescente. A estratégia não surtiu efeito, como ela mesmolembra, sorrindo:

— Eu costumava ser rebelde. Vivia desafiando meus pais,principalmente minha mãe.

Um dos fatores que ajudaram a moldar a personalidadedessa cearense de 41 anos foi o fato de ter ela procurado, desdecedo, seus próprios caminhos. Mônica, em suas palavras, viveu "umsonho de liberdade'', durante grande parte de sua infância eadolescência. Esse modo de vida, considerado desrespeitoso porseus pais, propiciou a ela o contato com pessoas de diversas classessociais e faixas etárias, o que lhe permitiu enxergar de perto oscontrastes do país, especialmente os característicos das regiões nortee nordeste. A partir dessas experiências, a caçula da família Santosdo Amaral viu nascer em sua pessoa a necessidade de trabalhar emprol da diminuição das diferenças sociais.

Tudo começou quando sua mãe,descontente com seu gênio expansivo, expulsou-a de casa, apósuma briga familiar. Mônica, com apenas 15 anos, resolveujuntar-se a um grupo de hippies que costumava vender objetosartesanais numa praia de Fortaleza, mas que se preparava paradeixar a cidade rumo ao povoado de Caravelas, próximo a PortoSeguro, na Bahia. Mônica mentiu para os novos companheiros,dizendo que seus pais tinham morrido. Foi adotada como amascote do grupo. Sua rotina em solo baiano não foi fácil, masnem por isso as dificuldades tiravam-lhe o sentimento de euforiaprovocado pelo fato de estar longe da família, vivendo a seumodo. Dentro do grupo, ela desempenhava a função de comer-cializar os artigos produzidos à mão. Quando as vendas

Longe de casa

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deixavam a desejar, punha-se a pedir trocados para os habitantesda pequena vila. Hoje, Mônica reprova a atitude de fugir de casa:

— Eu era muito irresponsável. Quando voltei para casa,após onze meses, fui saber que minha mãe havia me procurado emdelegacias, hospitais e cidade afora. Santo Deus!

Foi nesse quadro de atos irresponsáveis que Mônica pôdedar início, mesmo sem se dar conta, àquela que seria a principalmarca de seu ideário pessoal: a crença de que a miséria pode sercombatida com o esforço coletivo.

Em um desses dias em que assumia a condição de pedinte,Mônica entrou no único armazém existente na região, parasolicitar ao dono do estabelecimento um pouco de comida. Ohomem, que já beirava os cinqüenta anos, dirigiu-se a ela com

Em Caravelas, na Bahia, ou na zona leste de São Paulo, Mônica esteve sempre envolvida em trabalhos sociais.

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simpatia e uma certa indignação:— Por que uma menina tão bonita assim se põe a pedir

comida?— Pra comer — respondeu, com petulância. — Espere um pouco. Te dou alguma coisa quando eu fechar

— disse, voltando concentrar-se num amontoado de papéis queestavam na sua mão.

Mônica colocou-se a esperar e, enquanto observava ohomem trabalhar, notou que tinha habilidade para fazer cálculos,mas nenhuma intimidade com a escrita.

— O senhor quer que eu lhe ensine a escrever? —perguntou, sem recear uma reação de desagrado.

O homem respondeu que não, que já tinha idadeavançada. Gostaria, contudo, que sua filha aprendesse. Mônica,então, preocupada em conseguir alguns trocados para seusustento, prontificou-se a ensinar a menina. Começou a dar asaulas na porta do armazém, numa das poucas mesas do estabe-lecimento. Passou a encarar a função de professora com muitaresponsabilidade e, o que era para ser um bico, tomou outrasproporções. Quando souberam que havia uma meninaensinando a ler e a escrever no armazém do povoado, osmoradores perceberam que ali existia uma oportunidade paraque eles abandonassem, ao menos em parte, a condição deanalfabetismo à qual estavam entregues. Mônica ganhou novosalunos e ficou sendo a "professorinha da vila".

Passados onze meses de sua estadia no vilarejo, Mônicadecidiu fazer um telefonema para sua casa, no intuito deparabenizar sua irmã Ângela, que fazia aniversário. A mãe damenina quase teve um ataque ao saber que a filha estava viva.Debaixo de súplicas e gritos desesperados da mãe, Mônicaresolveu voltar para casa, de onde só sairia anos depois, aí paranunca mais voltar.

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Aos 17 anos, Mônica abandonou acidade de Fortaleza. No início de 1979, seu tio Agenor adoeceu e elaveio para São Paulo a fim de fazer-lhe uma visita e conhecer algunsparentes dos quais só tinha conhecimento por cartas. A família nemdesconfiava, mas Mônica já tinha em mente instalar-se defini-tivamente na cidade. A princípio, ficou na casa do tio, no bairro daPenha, até o final daquele ano. Conheceu Nelson, então com 22anos, com quem se casou, aos 18, já grávida do filho Jeferson. Anosdepois, mudou-se para uma casa construída em sistema de mutirão.Foi nesta época que Mônica se viu de frente com o alcoolismo domarido. Lutou durante todo o casamento contra as adversidadesgeradas pela doença, mas, ao final de quinze anos, decidiu não maislutar. Mônica recorda, de forma melancólica, de quando tomou adecisão de deixá-lo:

— Foram quinze anos de tentativas, de pensar que nós íamosconseguir. Chegou uma hora em que eu não queria mais conseguir.

Ela abandonou a casa onde moravam e alugou um cômodoem São Miguel Paulista, nos fundos de outra residência, para ondefoi com os filhos Jeferson, Vanessa, Peterson e Fernanda. Lá ficoudurante um ano, e voltou para Guaianases.

O primeiro trabalho social de Mônica foi na Legião da BoaVontade (LBV). Trabalhava como operadora de telemarketing,fazendo pedidos de doações. Permaneceu na LBV por, aproxi-madamente, três anos. Depois, juntou-se à comunidade Kolping,uma entidade alemã, fundada pelo padre Adolf Kolping, que tinhapor objetivo desenvolver a integração e preservação de famílias.Esse trabalho trouxe-lhe conhecimentos familiares muito sólidos,nos sete anos em que lá esteve. O passo seguinte foi participar daentidade Luz de Jesus, que tem como diretriz a doutrina espírita, dofrancês Alan Kardek, localizada no Parque Santa Rita. Lá, Mônicadesempenhava o papel de educadora de jovens e adultos. Todos

Família e comunidade

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esses projetos, com exceção da comunidade Kolping, ainda fazemparte da vida de Mônica. O fato de ela estar sempre agregando emsua rotina novos trabalhos com a comunidade traduz sua forteconsciência social.

Ao longo de sua vida, Mônica aprendeu a conviver com asdificuldades enfrentadas pelos moradores de bairros periféricos,como a criminalidade. Tornou-se uma estudiosa do assunto. Deposse de muita esperança de poder contribuir para a melhoria destequadro desumano, poucas coisas faziam Mônica desanimar. Noentanto, o envolvimento do filho Jeferson com as drogas fez nasceruma dúvida: de que adiantava tanto esforço, se não conseguia, aomenos, evitar que o filho trilhasse o caminho que ela combatia?

— Quando uma amiga me contou, não acreditei. Não podiaacreditar. Mas, depois, vim saber a verdade, pela boca de meu filho— diz, consternada.

Não deixou de lado seus objetivos. Usou todo seu repertóriocultural para amparar o filho mais velho. O acontecimento a fezenxergar ainda mais a importância dos trabalhos que costumavadesenvolver.

Em função do problema do filho, Mônica decidiu voltarpara São Miguel Paulista. O objetivo: afastar Jeferson do convíviocom o universo de drogas ao qual tinha acesso. Voltou após um anoe pôde, finalmente, ter um pouco mais de tranqüilidade. Foi quandorecebeu o convite para ser supervisora de um Telecentro que acabarade ser implementado no bairro. A seu ver, o Plano de InclusãoDigital da Prefeitura de São Paulo era uma porta que se abriria paramuitos outros projetos, todos direcionados à população carente.

Já nos primeiros dias de trabalho, Mônica deu-se conta decomo a informática poderia ser um atrativo para as pessoas, espe-cialmente os jovens. Após perceber que as pessoas usavam o tempodestinado ao uso do computador com sites de jogos e chats (bate-papos online), começou a desenvolver um trabalho de incentivo à

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pesquisa na Internet. Passava aos usuários endereços de páginas debusca, sugeria temas e, depois, propunha às pessoas que redigissemdissertações sobre os temas pesquisados. Teve a idéia de ministrarpequenas palestras sobre cidadania, drogas e outros assuntospertinentes à vida da comunidade. Engajou-se, enfim, na idéia detornar o Telecentro não só um local onde se fazem cursos deintrodução à informática e Internet, mas uma referência educacionalpara a comunidade.

Apesar dos bons resultados obtidos, Mônicatinha a sensação de que estava fazendo pouco, de que não estavaaproveitando os recursos disponíveis. Faltava alguma coisa. Nãofalta mais.

O membro do Conselho Tutelar, Edson Santana, procurou-apara saber se o Telecentro poderia desenvolver algum tipo detrabalho com adolescentes que estavam em situação de risco, ouseja, suscestíveis à inserção no mundo do crime. Mônica animou-secom a idéia e levou a proposta para a Coordenadoria do GovernoEletrônico, responsável pela implementação do Plano de InclusãoDigital. A iniciativa foi aceita e nasceu o projeto ''De volta para oFuturo''. O trabalho é desenvolvido aos domingos, com palestras,aulas de informática, Internet e dinâmicas, sob o comando dediversos profissionais, dentre eles, psicólogos, assistentes sociais epedagogos. O trabalho ainda organiza reuniões com os pais, com aintenção de torná-los mais aptos a enfrentar problemas de âmbitofamiliar.

— É um projeto maravilhoso, pois os jovens que sãotrabalhados hoje são os mesmos que ajudarão a trabalhar outrosjovens em futuras turmas — conta, empolgada.

Uma vez, um rapaz chegou ao Telecentro e dirigiu-se a elafalando assim:

— Eu vim pra cá porque estou com vontade de fumar

Referência

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maconha, mas não quero fazer isso. Vim aqui pra conversar.Para Mônica, foi o indício de que sua vontade de fazer do

Telecentro uma referência para a comunidade estava seconcretizando. Ela é daquelas que não medem esforços nem paramdiante das dificuldades, quando está em jogo a realização de seussonhos. Os muitos problemas que congestionaram seu caminho aolongo dos vinte e três anos vividos em São Paulo não significarampara Mônica mais que grandes oportunidades de aprendizado.Formaram uma consciência social com esperança no ser humano eresponsabilidade na recuperação dos valores das comunidades.

— Temos que combater a fome. A fome de comida, deconhecimento, de oportunidades, de uma vida digna — encerra.

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"Eu ando muito. Então, fico sabendo das coisas, né"? ÉDona Maria Odar de Moura Torres, cearense de 68 anos, contandocomo tomou conhecimento da existência do TelecentroMascarenhas de Moraes, na Avenida Sapopemba, a poucos metrosde sua casa, na zona leste. Em seu jeito elétrico de falar, despejaassuntos numa seqüência delirante, difícil de acompanhar, muitasvezes saltando de um para outro sem qualquer encadeamentológico. Em instantes, vai do humor à emoção mais funda, semperder, em momento algum, a gentileza e a hospitalidade de quemrecebe na sala de casa, com naturalidade, como se fosse da família,a visita estranha de um repórter. Seu sotaque continua o mesmoda infância vivida em Tapaíra, hoje chamada Irapuã Pinheiro.Interjeições e expressões típicas de sua terra recheiam a conversa,que fica mais interessante a cada nova história revelada. O jeitosimples de Dona Maria narrar os fatos mais tristes é comovente. Omodo despretensioso e inocente com que comenta trivialidadesprovoca riso. É, enfim, papo para um dia todo. Isso explica por quejá chegou a gastar R$ 271, num mês, com o telefone. Quematender uma ligação dela pode esquecer o dia: não há meio deencerrar o diálogo, a não ser cortando um assunto pela metade,abandonando Dona Maria ao telefone. É inútil esperar que elaacabe ou, ao menos, faça uma pausa, um instante de quietude, emque a conversa perca vitalidade. A mulher não pára.

Para ajudar a animada MariaTorres, de 68 anos, a superar maisum obstáculo de uma vida cheiadeles.

Procura-se professor de italiano

Por Cassiano José

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Quando decidiu enfrentar a fila de inscrição para o cursode introdução à informática, no Telecentro, sentiu-se como seestivesse no lugar errado. “Só havia jovens por lá”, lembra.Ainda assim, não arredou pé do local. Só ficou satisfeita quando,finalmente, foi colocada diante de um computador, para aprimeira aula. Foi um desastre. Ela sequer teve a chance decomeçar a mexer na máquina. Sentindo fortes dores de cabeça etontura, chegou a pensar que, pela segunda vez em sua vida,estava tendo um derrame cerebral. O derrame sofrido algunsanos antes deixou em Maria seqüelas as mais variadas. Algumas,reversíveis. Outras, não. A visão do olho direito, por exemplo, foiperdida para sempre. A memória foi afetada. Fatos de temposantigos, que antes ela citava com precisão e detalhamento,passaram a ser lembrados com dificuldade, embaçados, semnitidez. Mas, principalmente, foi a capacidade de reter novasinformações que foi prejudicada. Conversas corriqueiras, um oudois dias depois, já não eram mais recordadas.

Felizmente, Dona Maria não estava tendo um novoderrame. Apenas seu organismo reagira às emoções que elaexperimentara intensamente quando, com muita ansiedade, foraassistir à sua primeira aula no Telecentro. A razão para esse abaloemocional é que, para a senhora cearense, estar ali era muitomais do que aprender a usar um equipamento. Era um esforçopara estimular a inteligência, reativar a memória, livrar-se daseqüela do derrame que podia ser vencida. Isso tudo tinha umafinalidade prática. Não era apenas o empenho de uma senhorapara sentir-se mais viva, mas uma ação estratégica visando umobjetivo claro e bem específico: ser capaz de, num futuropróximo, aprender o idioma italiano.

Ao lado, Maria passeando pela zona leste. “Estou com 15 anos”, diz, referindo-se ao ânimo que ganhou, após aprender informática.

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Maria diz não ter tido muitos sonhos na vida. Uns dois outrês, no máximo. O primeiro foi o de estudar. Não conseguiu.Freqüentou escola por dois anos, no Ceará, e depois contou coma orientação esporádica de parentes e amigos de sua família, quelhe deram mais alguns conhecimentos. Acabou cedo sua carreiraescolar, substituída logo pela aspereza do cotidiano no sertãonordestino.

Outro sonho foi o de ter sua casa própria, para abrigar osoito filhos que teve de criar. Este foi realizado. Não da maneiracomo ela gostaria. Talvez também não no lugar que eleimaginara, mas, bem ou mal, foi alcançado.

A última meta da vida da senhora cearense é conhecerseus dois netos italianos. Sua filha deixou o Brasil para casar-secom um sueco. Na Suécia, já noiva, um italiano atravessou seucaminho e ela acabou na Itália, onde deu à luz dois meninos, osxodós de Dona Maria.

A avó só os viu por foto até hoje. De vez em quando, falacom eles por telefone, mas a conversa é inviável. “Eles não entendemuma só palavra do que eu digo. Eu também não entendo o que elesfalam”, diz. Ainda assim, separados por um oceano, incapazes demanter um diálogo, criaram aquele afeto característico da relaçãoentre avó e netos. Os meninos, quando repreendidos pelo pai, reagemdizendo que querem vir para o Brasil, morar com Dona Maria. Elafica com os olhos cheios de lágrimas ao falar deles e só pensa emaprender italiano para, ao menos, poder dizer-lhes algumas palavras.Não tem dinheiro sequer para pensar em viajar até lá. A situaçãofinanceira da filha também não é confortável. Para piorar, o maridoé bruto com a esposa e as crianças. Maria acredita que a filha só nãovolta porque não tem dinheiro.

Foi para resolver esses problemas que a senhoraenfrentou a fila de jovens no Telecentro. Seu próprio médicoincentivara-na a fazer o curso, dizendo que seria ótimo para

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estimular o raciocínio e a memória. Contudo, nem mesmo elaprópria poderia prever o resultado. A mulher, aos 68 anos,remoçou. "Vixe! Pra mim, eu estou com 15 anos agora", exagera.Com a mente em plena atividade, aprendeu a usar o computadore a buscar, na Internet e onde mais for possível, alguém quepossa ensinar a ela, de graça, a falar a língua de seus netos."Vixe! Ave Maria! Criatura, eu tô sonhando alto", empolga-se.

Dona Maria foi casada com umhomem rico, nascido na Paraíba, bem na fronteira com o Ceará.Criado numa família de posses, foi educado para garantir seupróprio sustento. Jamais passou pela cabeça deste paraibanoviver às custas de seus parentes abastados.

Ele já tinha cinco filhos de um casamento anterior,quando uniu-se à Maria. Deixaram para trás o nordeste, trazendotoda a criançada, e vieram tentar a vida no Pontal doParanapanema, em São Paulo. Conhecedor dos segredos de umaboa roça, o esposo da jovem Maria tinha um especial talento paratirar o melhor de uma terra. Contudo, não era capaz deestabilizar-se e sustentar a bonança por muito tempo. Acabavapor desperdiçar recursos e punha tudo a perder.

Após uma temporada no Pontal, mudaram-se para ointerior do Paraná. Lá, a família viveu seu momento de maiorfartura. O agricultor paraibano adquiriu terras, ampliou asplantações, fez estoque de alimentos, contratou empregados epassou a lever uma vida tão boa (se não melhor) quanto a quelevava na Paraíba. Mais uma vez, fez maus negócios e perdeutudo o que tinha.

Aos cinco meninos vindos do nordeste já se haviamjuntado mais três crianças, frutos do casamento com Maria,quando todos se mudaram para Pirapora do Bom Jesus, noEstado de São Paulo. A nova rotina, de ser um empregado entre

Da fartura à tristeza

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outros, na roça do patrão, contrastava com a lembrança dasalegrias vividas no Paraná, na condição de dono do negócio. Afamília vivia com dificuldade, criando os oito filhos comsacrifício. O pai paraibano, bem nascido, descobriu-se, então,despreparado para passar pela condição de funcionário, semdireito a uma remuneração justa, tendo de sujeitar si mesmo esua família a uma condição precária de existência.

Um dia, o empregado, não suportando mais a vidahumilhante, desentendeu-se com o patrão. Sentado no chão, dolado de fora da casa, ele, após a discussão, segurava na mão umcopo. Dentro deste, uma quantia razoável de algum líqüido quea esposa não foi capaz de reconhecer. Maria, da porta, viuquando o marido afastou de si os filhos. Perguntou:

— O que você está bebendo?— Nada — respondeu o homem, tomando todo o

conteúdo do copo.Bebeu e entrou. Foi até seu quarto e deitou-se, tran-

qüilamente, em sua cama. Horas depois, estava morto. Foi um acontecimento em Pirapora do Bom Jesus. A

casa, modesta, encheu-se de gente. Vizinhos, policiais, curiosos,jornalistas. Durante bom tempo, não se falou em outra coisa naregião. Todos comentavam a história do lavrador paraibano quese matou, deixando a mulher com oito crianças para criar, e semrecursos para tal. "Ele não pensou em mim, não pensou nosfilhos", lamenta.

Não faltaram pessoas que, comovidas com a situaçãode Maria, dispuseram-se a auxiliá-la. O patrão de seu falecidoesposo deu dinheiro a ela e ajudou-a a montar, ali mesmo emPirapora, uma barraca para vender artesanato religioso, umavez que a cidade era bastante visitada por romeiros. Oprefeito ofertou um terreno. Outras pessoas contribuíramcom o que puderam.

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Maria, contudo, não sabe nem como viveu as semanasque se seguiram ao suicídio do marido. "Fiquei seis mesesdesnorteada", conta. Freqüentemente, saía de manhã de Piraporae vinha de ônibus a São Paulo. Sem razão alguma. Sem nada parafazer na capital. Vinha e logo voltava. Era incapaz de cuidar desi mesma e dos filhos. Não cozinhava, não fazia nada. Não sabedizer como é que sobreviveu.

O fato é que, quando uns parentes seus de São Pauloficaram sabendo, pelo programa de rádio de Gil Gomes, dahistória da viúva de Pirapora, esta já estava bem melhor. Osparentes, entretanto, após visitá-la na cidade do interior,julgaram que Maria e os filhos não estavam bem ali. Tantofalaram que a convenceram a, mesmo não concordando, pegar ascrianças e vir morar em São Paulo. Maria abandonou a barracade artigos religiosos, a ajuda dos conhecidos da cidade e oterreno cedido pelo prefeito. Mais de uma vez o governantemunicipal convocou-a a ir até Pirapora, assinar os papéis que atornariam, definitivamente, proprietária do terreno doado.Displicente, a cearense adiou seguidas vezes a viagem, atédesistir completamente, e perder o direito às terras oferecidas.

Na capital, viu-se obrigada a fazer de tudo para sustentaras oito crianças. Costurou, vendeu bijuterias e cosméticos,trabalhou incessantemente, dormindo pouco e mal. "Se hoje euvivo doente, foi de tanto trabalhar", analisa. Colocou os filhospara trabalhar também. Passou noites em claro recolhendoalumínio, plástico e papelão nas ruas. Tanto lutou e economizou,que conseguiu, afinal, comprar a casa onde mora até hoje, nazona leste. Continua controlada, no que diz respeito aos gastos."Pago um plano funerário e, mês passado, fui pagar adiantado.Espero que eu não vá adiantada também", brinca.

Orgulha-se de ter sustentado a família sem "vender ocorpo nas esquinas". Os filhos praticamente não desfrutaram a

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infância, é verdade. Não tiveram brinquedos e, em lugar dosdivertimentos de criança, conheceram apenas tarefas de adulto.

Maria sabe que poderia estar em melhorsituação financeira, se tivesse permanecido em Pirapora, mashoje gosta de São Paulo, em especial da zona leste, onde vive."Eu adoro isso aqui. O povo, aqui, só não tem dinheiro. O resto,nós temos tudo. Pra nós, está muito bom, está ficando cada vezmelhor", avalia.

Ela acorda muito cedo, por volta das três horas da manhã,joga água na calçada e, nem bem amanhece, já está batendoperna pela região. Namora as vitrines das lojas, visita amigas, vaiao Telecentro. Em casa, faz limpeza e, depois, os longostelefonemas. Não é o tipo de senhora que pára diante da televisãoe fica por ali o tempo todo. Ao contrário: isso é justamente tudoo que ela mais detesta numa pessoa. Especialmente nos homens."As pessoas, quando chegam aos 60 anos, não querem fazer maisnada. Não sei se eles acham que a aposentadoria é aquela belezaou se é pra deitar e ficar". Por isso, nunca mais casou-se. Não foipor falta de oportunidade. Pretendentes ela teve, mas nenhumcom o ânimo necessário para acompanhá-la. "Trabalhar que nemo meu marido, hoje, é muito difícil", constata. Ela, defini-tivamente, não está nem um pouco disposta a passar seus diaslavando roupa para algum vovô aposentado. "Não admitoninguém parado na minha frente. Eu não fico parada. Por quevou aceitar um homem dentro de casa, levantando de umacadeira e sentando na outra"?

Assim, desfruta a vida. Tão logo sentiu-se recuperada doderrame, contrariou as recomendações de seu médico, que lheindicava repouso, e meteu-se numa demorada e cansativa viagemde ônibus até o Ceará, para rever os familiares de lá. Fez umaverdadeira expedição pelo nordeste, voltou de ônibus a São

Vida agitada

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Paulo, passou o Natal com amigas no interior e, de lá, foi para oRio de Janeiro, onde também tem parentes. "As pessoas seadmiram, querem desanimar a gente. Pois eu não vou pelacabeça de ninguém, não. Vou pela minha. Eu estou viva ainda",discursa.

Esse espírito alegre e aventureiro alimenta, agora, avontade de Dona Maria. Faz com que ela se lance aoempreendimento de superar a barreira do idioma para realizarsua última grande obra, a de conhecer os netos e conversar comeles. "Ano que vem, se eu não morrer, vou procurar uma escola",anuncia. Falta-lhe dinheiro. Sobra-lhe disposição, sonho,esperança.

Lúcida como há muito tempo não se sentia, após ocontato com a informática, preocupa-se com o futuro dosTelecentros. "Isso aí põe a pessoa pra frente", elogia. Teme que oacontecimento de mudanças políticas na administração da cidadeinterfiram no Plano de Inclusão Digital e privem a população domunicípio do acesso aos computadores. "Uma coisa muitoimportante é que esses Telecentros não saiam do lugar. Será quenão vão desmanchar, não? É nosso mesmo? É isso que eu queriasaber". E completa: "Só quem não tem cabeça, pra chegar e tiraruma coisa dessas".

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