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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA Nº 0503/2018 – BPS. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 57.202/MS (2018/0088411-9). RECORRENTE: . RECORRIDO: ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. RELATOR: MINISTRO BENEDITO GONÇALVES – PRIMEIRA TURMA. RECURSO ORDINÁRIO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. CEM (100) AUSÊNCIAS INJUSTIFICADAS NO PERÍODO DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2014. ABANDONO DE CARGO MOTIVADO POR QUADRO DE DROGADIÇÃO. PERÍCIA MÉDICA NO SENTIDO DE QUE O RECORRENTE NÃO TINHA CAPACIDADE DE AUTODETERMINAR-SE, ALÉM DE POSSUIR RETARDAMENTO PARA ENTENDER O CARÁTER ILÍCITO DO FATO E DE SUA CONDUTA. ANIMUS ABANDONANDI. NÃO- CONFIGURAÇÃO. NECESSIDADE DE ENFOQUE TERAPÊUTICO DA QUESTÃO. MUDANÇA DE POSTURA Guilherme - G:\PGR_GABSUB_GABSUB56-BPS\Pareceres\RMS\2018\RMS 57202 - G - PAD demissão ausências recorrentes - dependente químico - ausência de animus abandonandi.odt

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

Nº 0503/2018 – BPS.RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 57.202/MS (2018/0088411-9).

RECORRENTE: .

RECORRIDO: ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL.

RELATOR: MINISTRO BENEDITO GONÇALVES –PRIMEIRA TURMA.

RECURSO ORDINÁRIO. PROCESSOADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.DEMISSÃO. CEM (100) AUSÊNCIASINJUSTIFICADAS NO PERÍODO DEJANEIRO A DEZEMBRO DE 2014.ABANDONO DE CARGO MOTIVADOPOR QUADRO DE DROGADIÇÃO.PERÍCIA MÉDICA NO SENTIDO DEQUE O RECORRENTE NÃO TINHACAPACIDADE DEAUTODETERMINAR-SE, ALÉM DEPOSSUIR RETARDAMENTO PARAENTENDER O CARÁTER ILÍCITO DOFATO E DE SUA CONDUTA. ANIMUSABANDONANDI. NÃO-CONFIGURAÇÃO. NECESSIDADE DEENFOQUE TERAPÊUTICO DAQUESTÃO. MUDANÇA DE POSTURA

Guilherme - G:\PGR_GABSUB_GABSUB56-BPS\Pareceres\RMS\2018\RMS 57202 - G - PAD demissão ausências recorrentes - dependente químico - ausênciade animus abandonandi.odt

FernandoVianna
Realce
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 2PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICARecurso em Mandado de Segurança n° 57202/MS

DA SOCIEDADE. POLÍTICA DEESTADO. EVOLUÇÃO LEGISLATIVADA MATÉRIA RELATIVA ÀS DROGAS.PRECEDENTES. Conclusão da Comissão de ProcessoAdministrativo Disciplinar pela demissão doServidor, ora recorrente, em razão da supostaausência “injustificada” ao serviço, por 100 diasno ano de 2014 e 54 em 2015.Entretanto, conforme laudos médicos oficiais,o ora recorrente é dependente de drogas,enfermidade mental que o deixa em estadodepressivo e o reconduz reiteradamente aovício. O fato de alguém ser portador de enfermidademental causada por dependência química nãopode configurar infração disciplinar.Perícia médica que indica o comprometimentoda autodeterminação (vontade) e da capacidadede julgamento do indiciado que o tornainimputável, segundo aplicação analógica dosinstitutos penais, o que demonstra ser incabívela sanção disciplinar.Falta de voluntariedade da conduta, que écondição da própria consubstanciação do ilícitodisciplinar. Mesmo que se entenda que a conduta (doença)ilogicamente constitua violação ao dever decomparecer regularmente ao serviço, o enfoquedeve ser terapêutico e não punitivo. Interpretação conforme os precedentes doSuperior Tribunal de Justiça e do TribunalSuperior do Trabalho em hipóteses de

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alcoolismo crônico que podem servir dediretrizes para a solução de casos dedependência relativas a substâncias químicascausadoras de danos de bem maior extensão,tanto que passíveis até mesmo de ceifar aprópria vida do paciente, conforme conclusõesmédicas no caso específico de que se trata. Inovação da Lei de Drogas, no sentido daimpunidade do usuário/dependente, cuidandoda hipótese como um problema de saúdepública (política de Estado) e não propriamentecriminal. PARECER NO SENTIDO DOPROVIMENTO DO RECURSO PARACASSAR O ATO DE DEMISSÃO.

Trata-se de recurso ordinário em mandado de segurançainterposto em face de acórdão proferido pelo Órgão Especial doTribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que denegou asegurança, em decisão cuja ementa se segue (fl. 632):

“MANDADO DE SEGURANÇA – PROCESSOADMINISTRATIVO DISCIPLINAR – NULIDADEPROCEDIMENTAL NÃO VERIFICADA –INTIMAÇÃO APÓS O RELATÓRIO DACOMISSÃO PROCESSANTE –DESNECESSIDADE – AMPLA DEFESA ECONTRADITÓRIO ASSEGURADOS –DEPENDENTE QUÍMICO COMDISCERNIMENTO DA CONDUTA ILÍCITA –DEMISSÃO – PENA PROPORCIONAL – ORDEMDENEGADA.

I) Homologada a sugestão de aplicação de penasuperior à competência da autoridade examinadora, os

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autos devem ser encaminhados à autoridadeefetivamente competente para aplicá-la ou não, antesdisso não há decisão, mas simples homologação doquanto expresso até a decisão final por quem compoderes para tanto, de modo que enquanto nãoproferido ato de cunho decisório não há necessidade deintimação do processado, sendo inexistente ofensa aocontraditório ou ampla defesa.

II) Inferível do caderno do processo administrativodisciplinar que apesar de usuário de substânciasentorpecentes o impetrante tinha discernimento sobresuas responsabilidades, circunstância essa atestada porperícia médica oficial, não há como afastar a penalidadeaplicada, porquanto perfeitamente enquadrado o fatoapurado no tipo legal, agravado pelo número de faltasinjustificadas e reincidência na falta de cumprimentodos deveres funcionais.

III) Ordem denegada, de acordo com o parecerministerial”.

Em sede de recurso ordinário, defende que à época dos fatos era dependente químico, sendo incapaz de responder por seus atos, fator que exclui a culpabilidade dos atos desidiosos praticados e enseja a sua reintegração ao cargo público de agente de segurança patrimonial.

Após, os autos vieram com vista à Procuradoria-Geral da República, para exame e parecer.

É o relatório.

Passa-se, então, a opinar.

Temos que o recurso deve ser provido.

FernandoVianna
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No recurso ordinário, o recorrente alega que à época dosfatos era dependente químico e incapaz de responder por seuspróprios atos, embasando seu pedido, principalmente, naresposta do perito judicial aos quesitos de nº 01 a 04, conformese verifica do seguinte excerto extraído das razões recursais:

Após o andamento normal do PAD, a defesa foinotificada para apresentar os quesitos aos peritos, assimcomo o colegiado, ficando assim colacionado:

1- Se o sindicado na época do ilícitoadministrativo era usuário de drogas ilícitas?Resposta: Sim.

2- Em caso Positivo. Qual? Resposta:Canabinóide e solventes. Além de tabaco e álcool.

3- Devido à dependência química, o sindicado erainteiramente incapaz de entender o caráter ilícitodo fato, conduta ou determinar-se de acordo comesse entendimento? Resposta: Sim capaz deentender, mas não determinar-se.

4- O sindica d o possuía na época dos fatos reduzido retardamento de entender o caráterilícito do fato e de sua conduta? Resposta:Sim.” (fls. 659/660, grifamos).

Destaca-se, ainda, o que consta na certidão de fls. 96/97,que demonstra a incapacidade do recorrente de autodeterminar-se à época dos fatos, bem como sua dificuldade de entender ocaráter ilícito de sua conduta:

"O servidor mostrava-se agitado e com tiquesnervosos, não parando quieto na cadeira. Suas falasaparentavam não ter conexão, nem lógica cognitiva,posto que o servidor disse que seu pai o ajudaria emsua defesa e foi verificado que o pai do servidorfaleceu em 2005. Ante o 'estado' que o servidoraparentava, o Presidente da Comissão, em tom amistoso,perguntou-lhe o que acontecia com ele, o porquê dessa

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quantidade de faltas, e o mesmo disse que teve problemasno ano passado, que havia inclusive ficado internadodurante 4 meses, e que este ano teve uma recaída forte,admitindo explicitamente que é dependente químico."(grifamos)

Além disso, em sua oitiva, o recorrente esclarece o porquêdas faltas ditas “injustificadas”, aludindo à dependência química(fl. 105):

"Consta dos autos fls. 42/44, que no ano de 2014 faltou100 dias injustificadamente e no ano de 2015 faltou 54 dias,sendo estas nos meses de janeiro e fevereiro, pergunta-se:qual o motivo de tantas faltas injustificadas? Ao querespondeu que: faz 14 anos que trabalha à noite, com todoesse período desenvolveu o distúrbio do sono, trocando odia pela noite, e depois por motivos particulares e defamília acabou se envolvendo com drogas, acredita que foium dos grandes motivos das faltas, porque deixava de irtrabalhar para ficar no uso das drogas, com o tempo combase no primeiro tratamento, com acompanhamentopsiquiátrico e psicológico, descobriu que isso é uma doençacom o nome de dicção, e no seu caso além da dependênciaquímica, tinha esse agravante, qual seja da doença. Outroagravante é que sua mãe também fazia uso, "desde que seentende por gente", e inclusive morreu por conta disso.Hoje em dia após o segundo tratamento, se sente bem e jávoltou ao serviço, sendo que sua avaliação hoje é outra.Assevera ainda o servidor que para iniciar o tratamento naClínica Carandá, teve atestado do seu médico e que após otratamento que durou 135 dias, internado, teve que terlaudo do médico que o acompanha para reiniciar as suasatividades laborais, sendo que este laudo foi tambémaprovado pela Junta Médica Oficial do Estado de MatoGrosso do Sul. Perguntado, mas porque, então, quandodas faltas injustificadas, o servidor não se submetia atratamento médico, com direito a licença médica, aoinvés de simplesmente faltar injustificadamente? Queo servidor usava crack, e repergunta: "você já viu

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como uma pessoa sob o efeito do crack fica?" que elemesmo responde que se trancava em casa, não queriasaber de nada, só pelo uso, a vontade que te dá de usarmais e cada vez mais, principalmente depois de umcerto tempo de consumo, que é muito complicado,que no caso do uso a pessoa não consegue pensar emoutra coisa senão em usar e usar a droga, não come,não trabalha, não paga contas, não faz mais nada. Epara a pessoa admitir que está doente, demora paracair a ficha, não é rápido, para admitir que estáprecisando de ajuda, a droga te induz, ela ilude, vocêacaba ficando muito arrogante, prepotente, e para terum pingo de humildade e saber que está precisandode outras pessoas, e para ver que ele está erradodemora um tempo."

É de se assinalar, também, que de acordo com o queconsta às fls. 102/103, o recorrente esteve em licença paratratamento de saúde nos períodos de 29/10/2008 a12/11/2008, 13/11/2008 a 27/11/2008, 23/06/2009 a22/07/2009, 23/07/2009 a 29/07/2009, 23/03/2010 a20/05/2010, 02/09/2010 a 31/10/2010, 21/06/2011 a27/07/2011, 09/11/2011 a 12/11/2011, 21/10/2013 a18/01/2014, 18/02/2014 a 18/04/2014, além de ter sidointernado na Clínica Carandá, após o seu interrogatórioinformal.

Este quadro demonstra, de modo inequívoco, quão graveera o estado de saúde do recorrente, a sua incapacidade deautodeterminar-se e de entender sua conduta, haja vista queexistiram inúmeras tentativas de reabilitação, inclusive por partedele, embora tenha recusado os termos do Termo deAjustamento de Conduta com Suspensão Condicional doProcesso, oportunizado em 22/03/2016.

Nesse sentido, o inciso XIV do artigo 235 da Lei Estadualnº 1.102/1990 prevê: “Será aplicada a pena de demissão, nos casos de

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ausência de serviço, sem causa justificada, por mais de 60 dias,interpoladamente, durante um ano”.

E no caso dos autos, como já destacado, o estado desaúde do ora Recorrente caracterizou, a nosso ver, causajustificadora para a ausência do serviço, porquanto ele nãoera apenas mero usuário de drogas, mas, isto sim, um verdadeirodependente químico, situação muito mais grave que nitidamentelhe causou diversos transtornos mentais.

Com efeito, a Lei n° 11.343/2006, em diversosdispositivos1, menciona as figuras do usuário e do dependente dedrogas.

E, como de regra, segundo o aforismo romano, não sepresumem na lei palavras inúteis, é indispensável, de início,estabelecer tal distinção, notadamente pelas consequências deladecorrentes.

O Jurista MARCELO XAVIER DE FREITAS CRESPO,a respeito do tema, tece as seguintes considerações2:

“(...) podemos denominar de 'usuário' ou'experimentador' todos aqueles que usam drogas 'sem aobsessão, enquanto o dependente já se encontradestituído de vontade própria e de forças capazes deiniciarem, de per se, a ação'. O usuário toma a droga,não por necessidade física ou psíquica, entendendoperfeitamente o caráter ilícito de seus atos. Odependente já se vale das drogas buscando atendernecessidade orgânica, o que o leva, muitas vezes aperder, ainda que parcialmente, a capacidade decompreender a ilicitude de seu comportamento”.

1 A exemplo, os arts. 1° e 3°, dentre outros.2 Apud GUIMARÃES, Marcelo Ovídio Lopes (coord.). Nova Lei Antidrogas Comentada. SãoPaulo: Quartier Latin, 2007, p. 84.

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Em complemento, o Professor HÉLIO GOMES assimdefine a dependência de drogas3:

“(...) o quadro de dependência corresponde a umestado psicopatológico típico, ocasionado pelo usocontinuado ou periódico de substância natural ousintética, gerando uma necessidade ou compulsão, paracontinuar consumindo a droga, procurando obtê-la portodo e qualquer meio, podendo ocorrer uma tendênciaa aumentar as doses ingeridas; e surgindo um estado dedependência, física ou psíquica (psicológica)”.

Na sequência, esclarece que4:

“(...) o que se verifica, na prática clínica, é que opaciente, vitimado por dependência, apresenta, doponto de vista psicopatológico, as mesmascaracterísticas de escravização à droga, seja suadependência do tipo física ou psíquica. Importa aquireconhecer-se a minusvalia do dependente, cujaexpressão maior é sua submissão volitiva e/ouintelectiva à droga, sendo por isso mesmo incapaz, emdeterminadas condições, ou de expressar livremente suavontade, ou ajuizar, adequadamente, seucomportamento”.

Conquanto o Tribunal a quo tenha afirmado genericamenteque o ora recorrente era “usuário” de substâncias entorpecentes(apesar de também constar da ementa do v. Acórdão recorrido aexpressão “dependente químico”), os laudos médicos e asprovas dos autos indicam, claramente, que a hipótese é dedependência de drogas.

O quadro fático delineado, bem como a própriasubsunção dos transtornos por ele experimentados ao CódigoInternacional de Doenças (CID10 F19.2 - “Transtornos mentais e

3 GOMES, Hélio. Medicina Legal. 33.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2004, p. 537.4 Idem, ibidem.

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comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outrassubstâncias psicoativas – síndrome de dependência”), indicam serinadequado o enfoque disciplinar que vem sendo dado à espécie,especialmente pelo fato de ter sido constatada, expressamente,pela perícia médica, sua incapacidade de determinar-se diante deseu estado clínico, merecendo destaque, ainda, a afirmaçãoacerca do seu retardamento de entender o caráter ilícito de suaconduta.

Tratando-se de uma enfermidade mental, evidentementenão há espaço para responsabilizar o ora recorrente por violaçãodo dever de comparecer regularmente ao serviço, como seriaexigível das pessoas não dependentes de drogas e entorpecentes.

Aliás, se doença não fosse, certamente não teriam sidodeferidos ao recorrente os diversos afastamentos do trabalhomotivados por licenças para tratamento de saúde, sendopertinente registrar que tal procedimento é sempre precedido deinspeção médica oficial, conforme estabelece a redação dos arts.130, I, 136 e 137 da Lei Estadual 1.102/1990. Vejamos:

“Art. 130. Conceder-se-á licença:

I - para tratamento de saúde; (...)

Art. 136. A licença para tratamento de saúde seráconcedida ao servidor mediante inspeção médicaprocessada segundo normas do sistema de períciamédica do Estado.

§ 1º O servidor comparecerá à perícia médica, medianteboletim emitido pela sua chefia imediata, pordeterminação desta ou por sua solicitação.

§ 2º Caso o funcionário esteja ausente do Estado deMato Grosso do Sul e absolutamente impossibilitadode locomover-se por motivo de saúde, poderá seradmitido laudo médico particular circunstanciado,

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desde que o prazo de licença proposta não ultrapassenoventa dias.

§ 3º Caso a licença proposta ultrapasse o prazoestipulado no parágrafo anterior, somente serão aceitoslaudos firmados por órgão médico oficial do local ondese encontra o funcionário.

§ 4º Nas hipóteses previstas nos parágrafos anteriores,o laudo somente poderá ser aceito depois dehomologado pelo órgão próprio de inspeção médica doEstado.

§ 5º Quando não couber a concessão da licença, operíodo de ausência ao serviço será considerado delicença sem vencimento, ou caso seja comprovadasimulação do servidor para obter a licença, o períodoque eventualmente tenha faltado ao serviço seráconsiderado como falta injustificada e, se necessário,apurados os motivos do seu comportamento porsindicância ou processo administrativo, nos termosdesta Lei.

Art. 137. A concessão das licenças para tratamento desaúde observará regras das atividades de perícia médicae pagamento de benefícios definidas pelo sistema daprevidência social.

Parágrafo único. Expirado o prazo deste artigo, ofuncionário será submetido a nova inspeção médica eaposentado, se julgado definitivamente inválido para oserviço público em geral e não puder ser readaptado.”

Assim, quando foram deferidos as licenças e osafastamentos, concluiu a Perícia Médica Oficial que o orarecorrente era doente, até porque em caso contrário não haveriafundamento para sua concessão.

Desse modo, a prevalecer o entendimento da Comissão deProcesso Administrativo Disciplinar e do Tribunal a quo, todo

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Servidor portador de doença mental, por exemplo, cujaenfermidade eventualmente produza condutas indesejáveis,como, v.g., o afastamento do serviço, ainda que de maneiraabsolutamente justificada pela doença, será passível de sançãoadministrativa de demissão, enquanto competiria ao Estado, aorevés, até por questão de política pública de saúde, diligenciar eatuar em sentido contrário, qual seja, o de tratar seus cidadãosdependentes químicos.

E ainda que configurados os afastamentos do serviço,como aconteceu no caso, tal conduta também não pode ensejar,a nosso ver, a aplicação de sanção disciplinar, porquantoplenamente justificada.

É que, invocando-se analogicamente institutos penais,sabe-se que tanto o uso patológico de álcool quanto o deentorpecentes produzem efeitos na imputabilidade do agente.

Conquanto o art. 28 do Código Penal disponha que “aembriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitosanálogos” não têm o condão de excluir a imputabilidade penal,certo é, consoante orientação doutrinária mais recente, que o usocrônico de tais substâncias pode configurar inimputabilidade porse subsumir a outro dispositivo, qual seja, o art. 26 do CódigoPenal, que assim dispõe:

“Art. 26. É isento de pena o agente que, por doençamental ou desenvolvimento mental incompleto ouretardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito dofato ou de determinar-se de acordo com esseentendimento.

Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um adois terços, se o agente, em virtude de perturbação desaúde mental ou por desenvolvimento mentalincompleto ou retardado não era inteiramente capaz de

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entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se deacordo com esse entendimento.

A propósito, vem a lição de CELSO DELMANTO, emcomentários ao art. 26 do Código Penal5:

“Doença mental: A expressão inclui asmoléstias mentais de qualquer origem, como fatoresbiopsicológicos (como a psicose maníaco-depressiva, aparanóia, a esquizofrenia, a epilepsia, além dosfronteiriços, bem como em razão de enfermidades pré-senis, v.g., Alzheimer, ou senis). Não se pode deixarde lado a dependência toxicológica que na lição deGUIDO ARTURO PALOMBA, quando moderadapode levar à semi-imputabilidade (o viciado entende ocaráter criminoso do fato mas é parcialmente capaz dese determinar de acordo com esse entendimento) ou,até, à inimputabilidade, quando a dependência for grave(entende parcialmente, ou não entende o carátercriminoso do fato, e é totalmente incapaz dedeterminar-se de acordo com aquele entendimentoparcial, quando houver). Igualmente, no que concerneao alcoolismo crônico, ele é doença mental, do pontode vista psiquiátrico, como afirma o citado autor:“Muitas vezes Promotores, Juízes e Advogadosperguntam se é ou não doença mental, e o Peritoprecisa responder que sim, como de fato é, e diga-se decaminho, doença grave..., sendo doença mental,havendo nexo causal entre patologia e delito, impõe-sea inimputabilidade”.

Acerca desse conceito, em sentido lato, de doença mental,que abrange o uso de tais substâncias, o Jurista Cezar RobertoBitencourt tece as seguintes considerações6:

5 DELMANTO, Celso. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Criminal. São Paulo: Saraiva, 2003, p.368. 6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Vol 1: parte geral. 14. ed. São Paulo:Saraiva, 2009, p. 383.

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“Existem determinadas condições psíquicas,como, por exemplo, certas espécies de neuroses,notadamente as neuroses obsessivo-compulsivas, quesão consideradas, para o Direito Penal, doença mental.Nessas neuroses o sujeito tem claramente o sensovalorativo de sua conduta, mas não consegueevitar sua prática, faltando-lhe a capacidade deautodeterminação, em razão desse distúrbio, dessaenfermidade. Se não tiver essa capacidade, se ela lhefalta inteiramente, no momento da ação, ou seja, nomomento da prática do fato, ele é absolutamenteincapaz.

Essa falta de capacidade advém da doençamental ou do desenvolvimento mental incompleto ouretardado. Pela redação utilizada pelo Código Penal(art. 26 e parágrafo único) deve-se dar abrangênciamaior do que tradicionalmente lhe concederia a ciênciamédica para definir uma enfermidade mental. Pordoença mental deve-se compreender as psicoses, e,como afirmava Aníbal Bruno, 'aí se incluem os estadosde alienação mental por desintegração dapersonalidade, ou evolução deformada dos seuscomponentes, como ocorre na esquizofrenia, ou napsicose maníaco-depressiva e na paranóia; as chamadasreações de situação, distúrbios mentais com que osujeito responde a problemas embaraçosos do seumundo circundante; as perturbações do psiquismopor processos tóxicos ou tóxico-infecciosos, efinalmente os estados demenciais, a demência senil e asdemências secundárias (...)” [Grifos nossos].

Na mesma linha, vem igualmente o magistério deGuilherme de Souza Nucci7:

7 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2007, p. 260.

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“Conceito de doença mental: trata-se de umquadro de alterações psíquicas qualitativas, como aesquizofrenia, as doenças afetivas (antes chamadas depsicose maníaco-depressiva ou acessos alternados deexcitação e depressão psíquica) e outras psicoses (...). Oconceito deve ser analisado em sentido lato,abrangendo as doenças de origem patológica e deorigem toxicológica (…)” [Grifos nossos].

No art. 26, como se sabe, adotou o legislador o critériobiopsicológico. Deve o agente, para ser considerado inimputável,além de padecer de doença mental (critério biológico), refletir oaspecto psicológico, qual seja, a incapacidade de entendimentoacerca do caráter ilícito da conduta ou, tendo capacidade dediscernimento, não lhe ser possível autocontrole,autodeterminação.

Noutro entender, não se exige cumulativamente acapacidade de entendimento e de autodeterminação.

E essa incapacidade de autodeterminação, assim como adoença, restaram exaustivamente comprovadas, pois, consoanteafirmado pela perícia médica, o ora recorrente não tinhacapacidade de determinar-se (vontade) nem tampouco plenacapacidade de julgamento do caráter ilícito do fato e de suaconduta (fls. 659/660).

Considerando que o ordenamento jurídico deve ser coesoe coerente – pois sua divisão, como se sabe, ocorre somente parafins didáticos – se o ora recorrente não pode ser culpávelpenalmente, também não tem condições de ser responsabilizadoadministrativamente.

Nesse sentido, DANIEL FERREIRA, que emborasustente a resolução da questão no âmbito da tipicidade, cita oentendimento de RÉGIS FERNANDES DE OLIVEIRA, que

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conduz a análise para o campo da culpabilidade, admitindohipóteses de exclusão da sanção8:

“Diferentemente, conforme o caso e a critérioexclusivo do legislador, como já anunciado, dada agravidade da conduta, 'pelo menos em forma de culpa(vontade que, por negligência, não atua na formaexigida em lei), ou mesmo de dolo (vontadedeliberadamente dirigida à transgressão)', podeser de se exigir o elemento subjetivo paracaracterização da infração. Quando esse, então,deixar de se verificar no caso concreto, e desdeque expressamente indicado na lei, inexistiráqualquer infração, pois não ocorrida a condutadescrita na norma como proibida.

Ressalte-se que esse não é o entendimento deRégis Fernandes de Oliveira, nem tampouco o deHéctor Villegas. Para o primeiro, os comportamentos,em tais condições, permaneceriam como típicos eantijurídicos, todavia existiriam hipóteses de 'exclusãoda sanção'. E exemplifica invocando a coaçãoirresistível, a doença mental, o fato da natureza e o fatode terceiro. Por sua vez, o Professor argentinoreconhece que a infração (tributária), mesmo sendoespecialmente grave, quando ausente o elementosubjetivo (culpa ou dolo), deixa de ser punível, isto é,que desaparece a culpabilidade, e, portanto, apunibilidade” [Grifos nossos].

Vale também destacar o entendimento jurisprudencial:

“CRIMINAL. HC. HOMICÍDIO QUALIFICADO.RÉU INIMPUTÁVEL. PRONÚNCIA. DÚVIDAACERCA DA PROVA DA INIMPUTABILIDADE.NOVO EXAME DE SANIDADE MENTAL.MANUTENÇÃO DA PRONÚNCIA PELO

8 FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 65.

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TRIBUNAL A QUO. INIMPUTABILIDADEATESTADA POR DOIS LAUDOS PERICIAIS.ORDEM CONCEDIDA.

Hipótese em que o paciente foi pronunciado, tendosido mantida a pronúncia em sede de recurso emsentido estrito, mesmo após ser declarado inimputávelpor dois laudos periciais.

Em observância ao art. 411 da Lei Processual Adjetivae ao art. 26 do Estatuto Repressor, caberia ao JuízoSingular, na fase da pronúncia, a apreciação de causaque exclua o crime ou isente de pena o réu para o fimde absolvê-lo sumariamente, aplicando medida desegurança. Precedente.

A inimputabilidade inserindo-se no juízo da pronúncia,deve ser analisada pelo Juiz da causa e, não, peloTribunal Popular.

Restando constatada a doença mental ou a insanidadedo acusado, impõe-se a absolvição sumária do agente ea aplicação da medida de segurança cabível, ex vi doart. 97 do Código Penal e art. 386, parágrafo único, doCódigo de Processo Penal – sendo certo que a prova dainimputabilidade, na presente hipótese, mostra-seincontroversa, pois embasada em dois laudos, que nãose mostram precários, nem incertos.

Deve ser cassado o acórdão recorrido, bem como asentença de pronúncia, a fim de que o paciente sejaabsolvido sumariamente, sob condições a seremestabelecidas pelo Julgador Monocrático.

Ordem concedida, nos termos do voto do Relator”.(HC 34.369/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QuintaTurma, julgado em 14/09/2004, publicado no DJ de18.10.2004, p. 307).

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“RECURSO DE OFÍCIO. HOMICÍDIO SIMPLESNA FORMA TENTADA. ABSOLVIÇÃOSUMÁRIA. Acusado que, por ser portador detranstornos mentais e de comportamento decorrentesdo uso do álcool, era, ao tempo da ação, totalmenteincapaz de entender o caráter ilícito do fato ou dedeterminar-se de acordo com esse entendimento. Réuque não apresentou defesa pessoal, confessando que,após discussão e briga com a vítima, foi para casa,armou-se e saiu à procura daquela. Ao encontrá-la,desferiu-lhe um golpe com a lâmina. Inimputabilidade.Decretação da absolvição sumária do réu e aplicação demedida de segurança. Correção do decidir. Negaramprovimento. Unânime. (Recurso de Ofício Nº70001177328, Segunda Câmara Criminal, Tribunal deJustiça do RS, Relator: Antônio Carlos Netto deMangabeira, Julgado em 10/08/2000)”

Essa linha de entendimento, decorrente da aplicaçãoanalógica de institutos penais, é corroborada, ainda, pela análisedo caso sob a ótica interdisciplinar, sobretudo pela respostaterapêutica que tem sido fornecida pelo vários ramos do direito,como se verá a seguir.

Antes, porém, necessário destacar, também com base nasteorias penalistas da ausência do elemento subjetivo (dolo), queas faltas ao serviço por si sós não são suficientes paracaracterizar o abandono de cargo, sendo necessário, antes, queseja demonstrado o animus abandonandi.

É o que se observa dos seguintes precedentes do SuperiorTribunal de Justiça:

“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSOESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSOADMINISTRATIVO POR ABANDONO DE CARGO.REINTEGRAÇÃO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA

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PARA AS FALTAS COMETIDAS. AGRAVOINTERNO DESPROVIDO.

1. Esta Corte possui orientação de que não bastam asfaltas ao serviço para caracterizar a desídia doServidor, sendo necessário que não haja qualquerjustificativa para a ausência ao trabalho, casocontrário, demonstrada causa justificável para a faltaao serviço, resta descaracterizado o elemento subjetivo(ânimo) da inassiduidade habitual.

2. No caso dos autos, no entanto, tal orientação éinaplicável, isto porque, conforme alegado pelo próprioAutor, na inicial, sua dependência química somente seiniciou em 29.9.99 (fls. 17), posteriormente, portanto, aoprocesso administrativo que apurou as faltas injustificadas,encerrado em abril/99 (fls. 256).

3. Agravo Interno do particular desprovido.” (AgInt noAREsp 193550/SP, Relator: Ministro NAPOLEÃONUNES MAIA FILHO, Primeira Turma, julgado em14/02/2017, publicado no DJe de 22.2.2017).

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DESEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVODISCIPLINAR. SERVIDOR PÚBLICO. ABANDONODE CARGO MOTIVADO POR QUADRO DEDEPRESSÃO. ANIMUS ABANDONANDI. NÃO-CONFIGURAÇÃO.

I- É entendimento firmado no âmbito desta e. Corte que,para a tipificação da infração administrativa de abandonode cargo, punível com demissão, faz-se necessárioinvestigar a intenção deliberada do servidor de abandonar ocargo.

II - Os problemas de saúde da recorrente (depressão)ocasionados pela traumática experiência de ter ummembro familiar em quadro de dependência química,e as sucessivas licenças médicas concedidas, embora

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não comunicadas à Administração, afastam a presençado animus abandonandi.

Recurso ordinário provido.” (RMS 21392/PR, Relator:Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, julgado em17/12/2007, publicado no DJe de 3.3.2008).

Com efeito, fixadas as premissas no sentido de que o orarecorrente é doente e que sua autoderminação e capacidade dejulgamento quanto ao certo ou errado estão comprometidas,conforme ficou claramente demonstrado nos laudos, forçosoconcluir que também lhe falta voluntariedade na conduta,condição essencial para a configuração do ilícito administrativo.

Assim concluímos porque, conforme esclareceHERALDO GARCIA VITTA, a voluntariedade é a “posse deconsciência e de liberdade (...). Ela supõe uma livre e consciente eleição entredois comportamentos possíveis. Faltando a voluntariedade, não há aimputabilidade do ato ao sujeito; não há infração”9.

O Jurista DANIEL FERREIRA igualmente aponta avoluntariedade como elemento essencial do ilícitoadministrativo. Vejamos10:

“(…) o ilícito administrativo, também designadoinfração, é o comportamento voluntário, violador danorma de conduta que o contempla, que enseja aaplicação, no exercício da função administrativa, deuma direta e imediata conseqüência jurídica, restritivade direitos, de caráter repressivo.

(...)

O comportamento que enseja a sanção há de ser,simultaneamente, típico (isto é, deve se amoldar àhipótese objetivamente prescrita), antijurídico(portanto, contrário à determinação legal) e voluntário

9 VITTA, Heraldo Garcia Vitta. A Sanção no Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores,2003, p. 40.10 FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 190.

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(deve haver, pelo menos a voluntariedade daconduta), ou seja, deve precisa e voluntariamentecontrariar a previsão genérica contida na norma deconduta, sob pena de in concreto não constituirum ilícito”.

Não há, por óbvio, como identificar voluntariedade naconduta violadora de ausência ao serviço de uma pessoa que temsua autodeterminação e capacidade de julgamento quanto aocerto e errado seriamente comprometidas.

Assim, segundo pensamos, poder-se-ia, até mesmo, cogitarda hipótese de atipicidade da conduta, por ausência do animusabandonandi, imprescindível para a caracterização doabandono de cargo, seja porque uma doença não pode constituirinfração disciplinar, seja porque tal doença lhe retira avoluntariedade, que é condição necessária para a existência doilícito administrativo, o que, de forma idêntica, acarretaria oarquivamento do processo administrativo disciplinar.

E volvendo à ideia de que compete ao Estado, diante dadoença do servidor, prezar muito mais pelo seu tratamento doque pela sua punição, imprescindível tecermos mais algunscomentários acerca da necessidade de ser dado um enfoqueterapêutico à questão.

De início, basta lembrar que, na década de 30, por meio doDecreto-Lei 891/38, que aprovou a Lei de Fiscalização deEntorpecentes, já se entendia – embora timidamente, já que nãohavia outras conseqüências mais relevantes – que a dependênciade substâncias entorpecentes constituía doença de notificaçãocompulsória (ou seja, desde aquela época o tratamento dodependente químico já podia ser considerada uma política deEstado). Vejamos:

“Art. 27. A toxicomania ou a intoxicação habitual, porsubstâncias entorpecentes, é considerada doença de

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notificação compulsória, em caráter reservado, àautoridade sanitária local”.

Modernamente, essa análise sob a perspectiva de doença,um problema de saúde pública, tem sido ampliada. Esse debatefoi fomentado pela inovação legislativa no Novo Código Civil,que reconheceu os efeitos deletérios dos entorpecentes nodiscernimento da pessoa e elencou os dependentes de drogas,assim como os ébrios habituais, ao lado dos deficientes mentaisque tenham entendimento reduzido, quando tratou da matériarelativa à incapacidade.

Dispõe o Código Civil:

“Art. 4° São incapazes, relativamente a certos atos, ouà maneira de os exercer:

(...)

II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e osque, por deficiência mental, tenham o discernimentoreduzido”.

Tal inclusão, assim como a modificação de vários outrosdispositivos do Código Civil, foi motivada e norteada pelapercepção de que o sistema legal então vigente já não era maisconsentâneo com o desenvolvimento científico. Afirmou MiguelReale, na Exposição de Motivos do então Anteprojeto doCódigo Civil11:

“Abandonada a linha da reforma que vinhasendo seguida, não foi posta de lado, mas antes passoua ser insistentemente pedida a atualização do CódigoCivil vigente, tais e tantos são os prejuízos causados aoPaís por um sistema legal não mais adequado a umasociedade que já superou a fase de estruturaprevalecentemente agrária para assumir as formas e os

11 Apud NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil Comentado. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2007, p. 151.

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processos próprios do desenvolvimento científico eindustrial que caracteriza nosso tempo”.

Na seqüência, conforme assinala o notável Jurista,especialmente no que diz respeito à capacidade, não foramolvidados os avanços nas áreas de Psiquiatria e Psicologia.Vejamos12:

“Substancial foi a alteração operada noconcernente ao tormentoso problema da capacidade dapessoa física ou natural, tão conhecidos são oscontrastes da doutrina e da jurisprudência na busca decritérios distintivos válidos entre incapacidade absolutae relativa. Após sucessivas revisões, chegou-se a final, auma posição fundada nos subsídios mais recentes daPsiquiatria e Psicologia, distinguindo-se entre'enfermidade ou retardamento mental' e 'fraqueza damente' determinando aquela a incapacidade absoluta, eesta a relativa (...)”.

Ainda quanto aos motivos da inclusão dos dependentes doálcool e das drogas, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo PamplonaFilho destacam o seguinte13:

“Triste realidade dos nossos dias, a embriaguez éum mal que destrói o tecido da célula social,degradando moralmente o indivíduo.

Sensível a esse fato, o Novo Código Civil elevouà categoria de causa de incapacidade relativa aembriaguez habitual que reduza, sem privar totalmente,a capacidade de discernimento do homem. Note-seque, se a embriaguez houver evoluído para um quadropatológico, aniquilando completamente a capacidade deautodeterminação, equiparar-se-á à doença mental, ecomo tal deve ser tratada, passando a figurar entre as

12 Idem, p. 158. 13 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. vol. I,11. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 96.

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causas de incapacidade absoluta, ex vi do disposto noart. 3°, II, do CC-02.

(…)

Na mesma linha, os viciados em tóxicos comreduzida capacidade de entendimento são agoraconsiderados relativamente incapazes (...)”.

Ainda a propósito, colhe-se a seguinte lição da ProfessoraMARIA HELENA DINIZ, ao ensinar sobre a inovação inscritano art. 4º, inciso II, do Código Civil14:

“Baseado em posição fundada em subsídios maisrecentes da ciência médico-psiquiátrica, o novo CódigoCivil alarga os casos de incapacidade relativa decorrentede causa permanente ou transitória. Assim sendo,alcoólatras ou dipsômanos (os que têm impulsoirresistível para beber), toxicômanos ou portadores dedeficiência mental que sofram uma redução na suacapacidade de entendimento não poderão praticaratos na vida civil sem assistência de curador (CC,art. 1767, III), desde que interditos.

São considerados, igualmente, relativamenteincapazes os toxicômanos, após processo deinterdição (CPC, art. 1.185), pois os entorpecentes,tóxicos, substâncias naturais ou sintéticas, comomorfina, cocaína, heroína, maconha etc.,introduzidos no organismo, podem levar osviciados à ruína econômica pela alteração de suasaúde mental. Os toxicômanos, pela Lei n°4.294/21, foram equiparados aos psicopatas,criando o Decreto-lei n° 891/38, no art. 30, § 5º, duasespécies de interdição, conforme o grau de intoxicação:a limitada, que é similar à interdição dos relativamenteincapazes, e a plena, semelhante à dos absolutamente

14 DINIZ, Maria Helena. Teoria Geral do Direito Civil. vol. I, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, pp.155/156.

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incapazes. Caracterizando-se incapacidade de maior oumenor extensão, dá se ao toxicômano curador compoderes mais ou menos extensos (vide Leis n°6.368/76 e n° 10.409/2002).

Se se averiguar, no processo de interdição, que otoxicômano encontra se em situação tal que o impedede exprimir sua vontade, enquadrar se á no art. 3º, III,do Código Civil, passando a ser tido comoabsolutamente incapaz.”

Atenta a esse contexto, a Justiça Trabalhista temafastado a punição disciplinar do trabalhador dependentedo álcool.

Sabe-se que a Consolidação das Leis do Trabalho, emseu artigo 482, prevê a “embriaguez habitual ou emserviço” como justa causa, para a rescisão do contrato detrabalho pelo empregador.

No entanto, a Justiça Laboral, reconhecendo que o uso doálcool, caso seja crônico, é classificado como doença (síndromede dependência do álcool), tem atenuado o rigor da norma,afastando a referida sanção.

Conquanto o exemplo citado se refira à dependência doálcool, a fortiori, há de se estender o mesmo tratamento aodependente de droga mais forte, por isso que, a nosso modo dever, o raciocínio é o mesmo a ser aplicado à espécie, porquantoo Novo Código Civil, como antes afirmado, coloca os “viciadosem tóxicos”15 ao lado dos deficientes mentais e ébrios habituais,quando disciplina a incapacidade desses agentes.

15 Utilizou-se aqui o termo constante da redação do Código Civil. Todavia, conforme DeltonCroce, seguindo orientação da Organização Mundial de Saúde, “o termo viciado caiu em desuso, tendosido substituído pela palavra dependente, que melhor se adapta à legislação quando esta se refere 'às substânciasentorpecentes, ou que determinem dependência física ou psíquica” [CROCE, Delton. Manual de MedicinaLegal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 628].

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Nesta mesma linha, o Jurista Cezar Roberto Bitencourt, aotratar das conseqüências da embriaguez no diploma repressivo,salienta que “tudo que foi dito sobre a embriaguez pelo álcool aplica-se aosefeitos decorrentes de outras substâncias tóxico-entorpecentes ou outrassubstâncias de efeitos análogos”16.

Volvendo ao exemplo da dependência de álcool, assimdecidiu o Tribunal Superior do Trabalho, por meio de suaSubseção Especializada em Dissídios Individuais - I, nojulgamento dos embargos no Recurso de Revista n° 586.320,publicado em 21.05.2004:

“EMBARGOS. JUSTA CAUSA. ALCOOLISMOCRÔNICO. ART. 482, F, DA CLT.

1. Na atualidade, o alcoolismo crônico é formalmentereconhecido como doença pelo Código Internacionalde Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde -OMS, que o classifica sob o título de síndrome dedependência do álcool (referência F-10.2). É patologiaque gera compulsão, impele o alcoolista a consumirdescontroladamente a substância psicoativa e retira-lhea capacidade de discernimento sobre seus atos. Clama,pois, por tratamento e não por punição.

2. O dramático quadro social advindo desse malditovício impõe que se dê solução distinta daquela queimperava em 1943, quando passou a viger a letra fria ehoje caduca do art. 482, 'f', da CLT, no que tange àembriaguez habitual.

3. Por conseguinte, incumbe ao empregador, seja pormotivos humanitários, seja porque lhe tocaindeclinável responsabilidade social, ao invés de optarpela resolução do contrato de emprego, sempre quepossível, afastar ou manter afastado do serviço o

16 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, vol. 1: parte geral. 14. ed. São Paulo:Saraiva, 2009.

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empregado portador dessa doença, a fim de que sesubmeta a tratamento médico visando a recuperá-lo.

4. Recurso de embargos conhecido, por divergênciajurisprudencial, e provido para restabelecer o acórdãoregional.”

Mais recentemente, destacamos:

“AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO.RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB AÉGIDE DA LEI Nº 13.015/2014. ALCOOLISMOCRÔNICO. DISPENSA POR JUSTA CAUSAAFASTADA. MULTA PELA INTERPOSIÇÃO DEEMBARGOS DE DECLARAÇÃOMANIFESTAMENTE PROTELATÓRIOS.MATÉRIA FÁTICA.

A reclamada não consegue desconstituir a decisãoagravada, porquanto o recurso de revista nãocomprovou pressuposto intrínseco de admissibilidaderecursal. No caso concreto, o Tribunal Regionalfirmou a sua convicção à luz das provasproduzidas, no que se refere à impossibilidade dedispensa do reclamante, por justa causa, em facede alcoolismo crônico. A multa em embargosprotelatórios foi aplicada de acordo com a subjetividadeque informa esse tipo de decisão. Reafirmado o óbiceda Súmula nº 126 do TST à admissibilidade de recursode revista para o reexame de fatos e provas.

Agravo a que se nega provimento” (Ag-AIRR - 10821-43.2015.5.03.0062 , Relator Ministro: Walmir Oliveirada Costa, Data de Julgamento: 29/08/2018, 1ª Turma,Data de Publicação: DEJT 31/08/2018).

“RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃOPUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº13.015/2014. REINTEGRAÇÃO. DISPENSA

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DISCRIMINATÓRIA. DEPENDENTE QUÍMICO.ÔNUS DA PROVA.

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Do teor da Súmula nº 443 do TST se constata apossibilidade de presumir-se discriminatória a dispensasem justa causa do empregado portador de patologiagrave que suscite estigmas ou preconceitos.

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Ademais, ao analisar casos em que o empregado édependente químico, este Tribunal temreconhecido o caráter grave da patologia, sendosua dispensa discriminatória, na esteira do quepreleciona a Súmula 443 do TST. Precedentes.Desse modo, sendo incontroverso nos autos, por meiode prova documental, que foram solicitados 15 dias deafastamento do autor, a partir de 23/09/2013, pormotivo de doença, e que no dia 26/09/2013 houve oencaminhamento do obreiro para internação em clínicapara tratamento de dependentes químicos, forçosoreconhecer a natureza discriminatória da dispensa, nosexatos termos do que preleciona a Súmula 443 do TST.Recurso de revista conhecido e provido. (…).” (RR -10524-33.2014.5.15.0031, Relator Ministro: BrenoMedeiros, Data de Julgamento: 28/02/2018, 5ª Turma,Data de Publicação: DEJT 09/03/2018).

Posição análoga foi adotada no âmbito do SuperiorTribunal de Justiça, consoante se verifica do seguinte precedenteem um caso de alcoolismo crônico, no qual a Sexta Turmadecidiu pela reintegração do servidor, o qual, até mesmo, foitema inserido no Informativo nº 0273 desta Corte:

“RECURSO ORDINÁRIO - MANDADO DESEGURANÇA - PROCESSO ADMINISTRATIVODISCIPLINAR - EMBRIAGUEZ HABITUAL NOSERVIÇO - COAÇÃO DO SERVIDOR DE

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PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO,MEDIANTE A COLETA DE SANGUE, NACOMPANHIA DE POLICIAIS MILITARES -PRINCÍPIO DO 'NEMO TENETUR SEDETEGERE' - VÍCIO FORMAL DO PROCESSOADMINISTRATIVO - CERCEAMENTO DEDEFESA - DIREITO DO SERVIDOR À LICENÇAPARA TRATAMENTO DE SAÚDE E,INCLUSIVE, À APOSENTADORIA PORINVALIDEZ - RECURSO PROVIDO.

1. É inconstitucional qualquer decisão contrária aoprincípio nemo tenetur se detegere, o que decorre dainteligência do art. 5º, LXIII, da Constituição daRepública e do art. 8º, § 2º, 'g', do Pacto de São José daCosta Rica. Precedentes.

2. Ocorre vício formal no processo administrativodisciplinar, por cerceamento de defesa, quando oservidor é obrigado a fazer prova contra si mesmo,implicando a possibilidade de invalidação da penalidadeaplicada pelo Poder Judiciário, por meio de mandadode segurança.

3. A embriaguez habitual no serviço, ao contrário daembriaguez eventual, trata-se de patologia, associada adistúrbios psicológicos e mentais de que sofre oservidor.

4. O servidor acometido de dependência crônica dealcoolismo deve ser licenciado, mesmocompulsoriamente, para tratamento de saúde e, se for ocaso, aposentado, por invalidez, mas, nunca, demitido,por ser titular de direito subjetivo à saúde e vítima doinsucesso das políticas públicas sociais do Estado.

5. Recurso provido”. (RMS 18.017/SP, Relator:Ministro PAULO MEDINA, 6ª Turma, julgado em09.02.2006, publicado no DJ de 02.05.2006, p. 390).[Grifos nossos].

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Do voto proferido pelo Relator do precedente acimacitado, destacam-se os seguintes excertos, merecendo realce arecomendação no sentido da aposentadoria por incapacidadelaborativa. Vejamos:

“Poder-se-ia, neste caso, alegar que, dada aprópria aplicação do princípio da eficiência, previsto nocaput do art. 37 da Constituição da República, comoinformador da Administração Pública, não se podeobrigar ao Estado manter no serviço público umservidor que lhe causa insegurança, incômodos etranstornos, porquanto se apresente, habitualmente,embriagado.

Não obstante, cumpre observar que osdocumentos de fls. 37⁄38 comprovam que, desde 1994(considerando que o fato que culminou na perda docargo pelo servidor ocorreu em 2000), o Recorrenteera, reiteradamente, submetido a longos períodos deinternação e tratamento, por ser portador de alcoolismocrônico, transtornos mentais e distúrbios depressivos.

Ciente desse fato e considerando que oRecorrente, habitualmente, encontrava-se em condiçõesde embriaguez no serviço, a Administração Públicadeveria tê-lo licenciado, compulsoriamente, paratratamento de saúde e, se fosse o caso, até mesmo,aposentá-lo por invalidez, como prevêem os arts. 191, §1º, e 193 do Estatuto dos Servidores Públicos doEstado de São Paulo, in verbis:

'Art. 191. Ao funcionário que, por motivo de saúde,estiver impossibilitado para o exercício do cargo, seráconcedida licença, mediante inspeção em órgão médicooficial, até o máximo de 4 (quatro) anos, com vencimentoou remuneração.

§ 1º Findo o prazo, previsto neste artigo, o funcionárioserá submetido à inspeção médica e aposentado, desde que

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verificada a sua invalidez, permitindo-se o licenciamentoalém desse prazo, quando não se justificar aaposentadoria."

Art. 193. A licença para tratamento de saúde dependeráde inspeção médica, realizada em órgão oficial e poderáser concedida:

I - a pedido do funcionário; e

II - ex - officio.'

Pois, não restam dúvidas de que o alcoolismocrônico e a dependência de outros vícios sãopatologias, infelizmente, cada vez mais, comuns no seioda sociedade moderna.

AIRTON ROCHA NÓBREGA, in Embriaguezeventual de servidor público. Jus Navigandi, Teresina,a.5, n. 51, out. 2001. Disponível em:http:⁄⁄www1.jus.com.br⁄doutrina⁄texto.asp?id=2163.Acesso em 09.06.2005., assinala:

'A ingestão eventual de bebidas alcóolicas no horário deexpediente ou em intervalo de almoço é postura que não raro sedetecta e que vem em desfavor dos interesses da repartição,causando prejuízo ao regular desempenho das atribuições queincumbem ao servidor. Não se cuida aqui de situação em que oservidor encontra-se submetido ao vício da embriaguez quando aingestão de bebida ocorre de forma imoderada e integra o seucotidiano. Nesse caso, como anteriormente apontado em trabalhosob o título 'Alcoolismo e Demissão de Servidor' (NDJ⁄BDA,11⁄98; Direito &Justiça de 0510.98), não cabe falar-se empunição do servidor, mas sim em tratá-lo adequadamente demodo a restabelecer, tanto quanto possível, a sua situaçãofuncional. A respeito do assunto, resta ali consignado que '... aembriaguez habitual representaria não um ato punível, mas simum estado patológico de alienação mental em que o servidor,submetido ao vício e à dependência dele resultante, não teriacondições de se orientar e de dirigir as suas próprias ações,

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merecendo tratamento especializado e não uma punição emfunção do vício ou de atos praticados em sua decorrência'.

Para reforçar a tese de que o alcoolismo habitualnão representa falta funcional, mas patologia de quesofre o servidor, o Código Internacional de Doenças daOrganização Mundial de Saúde, ao cuidar dostranstornos mentais, de compulsão por determinadodesejo irresistível, avalia a síndrome da dependênciacomo:

'um conjunto de fenômenos fisiológicos, comportamentais ecognitivos, no qual o uso de uma substância ou uma classe desubstância alcança uma prioridade muito maior para umdeterminado indivíduo que outros comportamentos que antestinham um maior valor'.

Como problema social, que compete aoEstado cuidar, o servidor que sofre de alcoolismocrônico deve ser tratado, com a máxima dignidadee respeito, como cidadão titular de direitosubjetivo à saúde, de competência comum dopoder público e da iniciativa privada, consoantedisposição expressa na Carta Magna, art. 196.

O que não pode é o Estado punir seuservidor, que colaborou no laboro público, duranteanos, e que, hoje, se apresenta como verdadeiravítima do insucesso das políticas públicas sociais,como um infrator disciplinar, um indivíduopernicioso, causador de repulsa, que deve serbanido para o bem do serviço público.

Posto isso, DOU PROVIMENTO ao recurso,para conceder a ordem e reintegrar no cargo oRecorrente, devendo a autoridade coatora tomar asdiligências necessárias para o tratamento de saúde doRecorrente” [Grifos nossos].

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Nota-se, portanto, que a postura do Poder Judiciário, nosprecedentes citados, é no sentido do tratamento doServidor/Trabalhador, não se cogitando de sanção disciplinar,como aconteceu no caso dos autos.

Assim, parecem-nos fora de propósito os argumentosexpendidos pelo Tribunal a quo, no sentido de que “há perfeitoenquadramento entre o fato imputado e a pena adotada pelaAdministração, caracterizando como agravantes ainda o número das faltase a reincidência na prática de faltar ao serviço injustificadamente, razão pelaqual, a meu ver e dentro do campo de atuação do Poder Judiciário, restaproporcional e adequada a pena aplicada” (fl. 640), especialmentequando se conclui que o caso retrata uma doença, um problemade saúde pública, que refoge ao controle do recorrente,conforme atestado em perícia médica.

E nunca é demais lembrar que a imposição de sanção emsituações como a do presente recurso ordinário constituievidente anacronismo.

No caso específico de alcoolismo, já há projetos de lei quevisam alterar o dispositivo da Consolidação das Leis doTrabalho, antes mencionado, que prevê a sanção de rescisão porjusta causa, tornando a norma trabalhista consentânea com oentendimento jurisprudencial.

No âmbito estatutário, a Lei n° 8.112/90 não mais prevê apena de demissão em caso de embriaguez habitual, ao contráriodo que fazia o antigo Estatuto – Lei n° 1.711/52 – em seu art.207, III:

“Art. 207. A pena de demissão será aplicada nos casosde: (…) III – incontinência pública e escandalosa, víciode jogos proibidos e embriaguez habitual; (...).”

Não há razão, portanto, para que se dê tratamentodiferenciado em situações semelhantes.

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Se o alcoólatra patológico não pode ser consideradofaltoso para efeitos de demissão, no caso de servidor público, ourescisão do contrato de trabalho por justa causa, no caso deempregado, porquanto se parte da premissa de que seja portadorde uma doença, incongruente admitir que o ora recorrente, cujadependência de drogas é patológica, possa ser demitido doserviço público ao invés de receber o devido tratamento médico.

A hipótese dos presentes autos, repisa-se, ao contrário depunição, requer enfoque terapêutico adequado e o Estado devediligenciar nesse sentido, ainda que de forma compulsória, sendoeste entendimento, aliás, decorrente da própria mudança depostura da sociedade, refletida nas leis que tratam ou já trataramda matéria relativa a drogas.

Restringindo-se a análise ao campo da punição, convémlembrar que o legislador, na Lei n° 5.726/71 – que emboratenha sido considerada, à época, “o diploma legal mais completo eavançado sobre o assunto, dentre as legislações modernas”17 - manteve nomesmo plano repressivo o traficante e o usuário, tal como faziao Decreto-Lei n° 385, de 1968, porquanto determinava que fosseincurso nas mesmas penas quem exercia o comércio ou detinhaa posse, conforme previsto no art. 281 do Código Penal, naredação da época, aquele que trazia “consigo, para uso próprio,substância entorpecente” que determinasse dependência física oupsíquica, prevendo sanção de reclusão, de 01 (um) a 06 (seis)anos e multa:

“Art. 281. Importar ou exportar, preparar, produzir,vender, expor à venda ou oferecer, fornecer, ainda quegratuitamente, ter em depósito, transportar, trazerconsigo, guardar, ministrar ou entregar de qualquerforma, a consumo substância entorpecente, ou quedetermine dependência física ou psíquica, sem

17 GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: Prevenção-Repressão. Comentários à Lei n° 5.726/71. São Paulo:Saraiva: 1972, p. 37.

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autorização ou em desacordo com determinação legalou regulamentar:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 6 anos e multa de 50(cinquenta) a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimovigente no País.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente:

III – traz consigo, para uso próprio, substânciaentorpecente ou que determine dependência física oupsíquica (...)”

A Lei n° 6.368/76, por seu turno, que revogou o art. 281do Código Penal, evoluindo em alguns aspectos, afastou aequiparação existente entre o traficante e o usuário, aoprever em dispositivos distintos tais condutas. Previu a penatão-somente de detenção, de 06 (seis) meses a 02 (dois)anos, e multa para aqueles que adquirissem, guardassem, outrouxessem consigo, para uso próprio, substância entorpecente.

Já a Lei n° 11.343/06, tendo em perspectiva uma políticacriminal não punitiva, impede a possibilidade de prisão emflagrante e a imposição de pena privativa de liberdade paraos usuários e dependentes.

Apesar da polêmica no atinente à descriminalização ounão da conduta, certo é que as penas ali previstas têm comoescopo apenas corrigir a conduta do usuário e dodependente, no sentido de resgatá-los e reinseri-lossocialmente, tal como anuncia a ementa da referida norma:

“Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobreDrogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção douso indevido, atenção e reinserção social deusuários e dependentes de drogas; estabelecenormas para repressão à produção não autorizada e aotráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outrasprovidências.” [Grifos nossos].

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Comparativamente, basta observar o que dispunha aementa da revogada Lei n° 6.368/76:

“Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão aotráfico ilícito e uso indevido de substânciasentorpecentes ou que determinem dependência físicaou psíquica, e dá outras providências”.

Também a análise das sanções previstas na novellegislação conduz a idêntico entendimento:

“Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito,transportar ou trouxer consigo, para consumopessoal, drogas sem autorização ou em desacordo comdeterminação legal ou regulamentar será submetido àsseguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento aprograma ou curso educativo” [Grifos nossos].

A previsão de advertência na lei é sintomática no que dizrespeito ao objetivo não-punitivo do legislador atual em relaçãoao usuário e dependente.

Sob outro vértice, no âmbito do Código Penal, o projetoque deu origem à Lei n° 9.714/98 – que incluiu outras espéciesde penas restritivas de direitos no Estatuto Repressivo – foivetado, por motivo de contrariedade ao interesse público, naparte em que previa advertência, porquanto entendeu oPresidente da República que a admoestação carecia “doindispensável substrato coercitivo, necessário para operar, no grau mínimoexigido pela jurisdição penal, como sanção alternativa à pena objeto dacondenação”18.

18 “Razões do veto: Em paralelismo com o recolhimento domiciliar, e pelas mesmas razões, o §1° do art. 44, que permite a substituição de condenação a pena privativa de liberdade inferior aseis meses por advertência, também institui norma contrária ao interesse público, porque aadmoestação verbal, por sua singeleza, igualmente carece do indispensável substrato

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Sendo esta a visão acerca da advertência, sua previsãoagora na atual Lei de Drogas em relação ao usuário edependente, a contrario sensu, fornece indicativos de que não sepretende puni-los.

No que diz respeito à prestação de serviços à comunidadee à medida de comparecimento a programa ou curso educativo, anorma prevê, no art. 28, § 5°, que o cumprimento dar-se-á ementidades que “se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ouda recuperação de usuários e dependentes de drogas”.

O jurista Cezar Bitencourt, ao tecer comentários acerca dafinalidade da prestação de serviços à comunidade ou entidadespúblicas, especificamente no âmbito do Código Penal assinala19:

“O fato de dever ser cumprida enquanto osdemais membros da comunidade usufruem seu períodode descanso gera aborrecimentos, angústia e aflição.Esses sentimentos são inerentes à sanção penal eintegram seu sentido retributivo”.

Já na Lei de Drogas, por outro lado, parece-nos que oenfoque é mais terapêutico que retributivo. Embora emambos os casos a finalidade seja reinserir os agentes nacomunidade em que viviam, na Lei n° 11.343/06, a preocupaçãodo legislador em relação aos locais de cumprimento da sanção,antes de constituir um “castigo”, tem como objetivo principal ainteração do dependente ou usuário com entidades quecontribuirão para sua recuperação.

Assim, por qualquer que seja o prisma que se analise opresente caso – invocando-se os princípios da razoabilidade eproporcionalidade – a consequência será a mesma: oarquivamento do processo administrativo disciplinar, com a

coercitivo, necessário para operar, no grau mínimo exigido pela jurisdição penal, comosanção alternativa à pena objeto da condenação.” [Grifos nossos].19 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.154.

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consequente reintegração do ora recorrente ao Cargo de Agentede Segurança Patrimonial.

Primeiro, porque, como já vimos, tratando-se de umadoença, a conduta não consubstancia tipicidade de naturezadisciplinar, notadamente pela ausência de voluntariedade ou dedomínio pleno para abster-se do uso da droga.

Por último, ainda que tal doença pudesse ensejar algumasanção disciplinar, o caso não recomenda punição, mas enfoqueterapêutico, conforme já orientam os precedentes citados, apolítica de saúde do Estado, a mudança de postura da sociedadee a evolução legislativa.

Ante o exposto, o Ministério Público Federal oficia nosentido do provimento do recurso ordinário, para cassar o ato dedemissão, declarando judicialmente a sua nulidade.

Brasília, 05 de setembro de 2018.

Brasilino Pereira dos SantosSubprocurador-Geral da República