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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria da República no Estado de Pernambuco Excelentíssimo(a) Senhor(a) Juiz(íza) da ___ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Pernambuco. Ref. Inquérito Civil n.º 1.26.000.000906/2012-12 Ação Civil Pública 2451 /2013 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por sua Procuradora da República, vem respeitosamente ante Vossa Excelência, com apoio no art. 129, III, da Constituição Federal e disposições similares da Lei Complementar 75/93 e da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA , com pedido de liminar contra: Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN, autarquia federal, com sede na Rua Benfica, 1150, Madalena, Recife/PE, representando pelo Superintendente Regional, o senhor Frederico Faria Neves de Almeida; Município do Recife, pessoa jurídica de direito público, representado pelo Prefeito Municipal, o senhor Geraldo Júlio, brasileiro, casado, com endereço profissional à Av. Cais do Apolo, nº 925, Bairro do Recife, CEP: 50030-903, Recife/PE; NOVO RECIFE EMPREENDIMENTOS LTDA (MD PE Rosarinho Ltda.), pessoa jurídica de direito privado, CNPJ nº 09.454.353/0001-36, com sede na Av. Domingos Ferreira, nº 467, 13º andar, bairro de Boa Viagem, CEP 51011-050, Recife/PE; em razão dos fatos e fundamentos jurídicos a seguir expostos. 1 – DO OBJETO DA AÇÃO Por meio desta ação civil pública, o Ministério Público Federal objetiva tutela jurisdicional inibitória de ato ilícitos que causem dano ao patrimônio histórico e cultural brasileiro, especificamente ao Pátio Ferroviário das Cinco Pontas – situado na Av. Engenheiro José Estelita, s/n, bairro de São José, nesta cidade do Recife – e adjacências, que abrigam importante acervo patrimonial, inclusive com vários bens tombados pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN. 1

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Estado de PernambucoExcelentíssimo(a) Senhor(a) Juiz(íza) da ___ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Pernambuco.

Ref. Inquérito Civil n.º 1.26.000.000906/2012-12

Ação Civil Pública nº 2451 /2013

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por sua Procuradora da República, vem respeitosamente ante Vossa Excelência, com apoio no art. 129, III, da Constituição Federal e disposições similares da Lei Complementar 75/93 e da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICA , com pedido de liminar contra:

Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN, autarquia federal, com sede na Rua Benfica, 1150, Madalena, Recife/PE, representando pelo Superintendente Regional, o senhor Frederico Faria Neves de Almeida;

Município do Recife, pessoa jurídica de direito público, representado pelo Prefeito Municipal, o senhor Geraldo Júlio, brasileiro, casado, com endereço profissional à Av. Cais do Apolo, nº 925, Bairro do Recife, CEP: 50030-903, Recife/PE;

NOVO RECIFE EMPREENDIMENTOS LTDA (MD PE Rosarinho Ltda.), pessoa jurídica de direito privado, CNPJ nº 09.454.353/0001-36, com sede na Av. Domingos Ferreira, nº 467, 13º andar, bairro de Boa Viagem, CEP 51011-050, Recife/PE;

em razão dos fatos e fundamentos jurídicos a seguir expostos.

1 – DO OBJETO DA AÇÃO

Por meio desta ação civil pública, o Ministério Público Federal objetiva tutela jurisdicional inibitória de ato ilícitos que causem dano ao patrimônio histórico e cultural brasileiro, especificamente ao Pátio Ferroviário das Cinco Pontas – situado na Av. Engenheiro José Estelita, s/n, bairro de São José, nesta cidade do Recife – e adjacências, que abrigam importante acervo patrimonial, inclusive com vários bens tombados pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN.

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Estado de Pernambuco

Conforme relatado a seguir, o Projeto Novo Recife, empreendimento imobiliário da empresa ora demandada – doravante chamada Consórcio Novo Recife –, que prevê a construção de 13 torres de alto gabarito, está na iminência de ser implantado no citado local conhecido como Pátio Ferroviário das Cinco Pontas. Contudo, acaso assim realmente aconteça, estar-se-á ocasionado grande e irreversível dano, por um lado, ao próprio Pátio Ferroviário, representativo da memória ferroviária brasileira, e, por outro, à visibilidade e do conjunto urbano de Santo Antônio e São José, que comporta 16 bens tombados individualmente pelo IPHAN. Além de evidentes impactos urbanos e de vizinhança não mensurados até o momento.

Nesse contexto, pretende o Ministério Público que o IPHAN, ante sua omissão, seja condenado a efetivamente cumprir suas funções legais: neste caso, a preservação e difusão da memória ferroviária e a proteção da ambiência dos bens tombados em âmbito federal. Ainda, tenciona o MPF que o Município do Recife abstenha-se de conceder qualquer licença ou alvará para construção do Projeto Novo Recife sem a prévia análise e autorização do IPHAN, bem como sem o parecer dos órgãos responsáveis pelo sistema de transporte ferroviário e os estudos necessários para a preservação ambiental e urbana, consoante discriminado adiante. Por consequência, o Consórcio Novo Recife deve se abster de dar início a qualquer obra na localidade sem, igualmente, a prévia análise e autorização desses órgãos sobre o respectivo projeto e apresentação dos estudos exigidos pela constituição e legislação infraconstitucional.

Por fim, pretende este parquet tutela judicial para declarar a nulidade da decisão de aprovação do Projeto Novo Recife pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano do Município do Recife, datada de 28.12.2012, devido a aspectos formais – não submissão daquele projeto à análise e aprovação do IPHAN, do DNIT e ANTT, além da não apresentação dos estudos exigidos – e materiais – dano ao patrimônio cultural nacional, consoante se demonstrará a seguir.

2 – DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL:

Segundo o art. 109, I da Constituição Federal os juízes federais são competentes para processar e julgar os feitos onde entidade autárquica federal for parte. É o caso do presente feito no qual o IPHAN é réu e se discute a proteção a patrimônio histórico federal.

Ademais, conforme prevê a Constituição, a União Federal, pessoa jurídica de direito público interno (art. 14, I, do Código Civil), subdivide-se em órgãos, que são parte integrante do ente. A organização da União, ou seja, sua divisão em órgãos especializados para melhor desempenhar suas funções, é disciplinada pela Carta Magna de 88, que expressamente prevê a existência do Ministério Público Federal como parte integrante da União (art. 128), pelo que se impõe o mesmo foro da União para o Ministério Público Federal quando este é parte.

Por fim, não fosse pela natureza das partes, inequívoco o interesse da União no feito por se tratar ação ajuizada para resguardar e garantir a preservação de

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Estado de Pernambucoacervo tombado em nível federal, assim como da memória ferroviária nacional.

3 - – DA LEGITIMIDADE ATIVA:

O art. 129, inciso III, da vigente Constituição Federal reza:

"Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (…) III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos."

A vontade legislativa que inspirou o dispositivo acima, mesmo antes da vigência deste, já se manifestara na Lei n.º 7.347 de 24.07.1985, que trouxe ao ordenamento jurídico a chamada ação civil pública para defesa dos direitos transindividuais e indivisíveis, assim entendidos os chamados direitos e interesses individuais e coletivos.

A Constituição de 1988, além de reafirmar o que a legislação ordinária já contemplava, permitiu ao Ministério Público o exercício de outras funções institucionais, desde que atento às suas finalidades.

O art. 5º da Lei n.º 7.347/85 dispõe que compete ao Ministério Público Federal ajuizar a ação civil pública. A mesma Lei, em seu art. 1º dispõe ser cabível a ação civil pública para a proteção do patrimônio histórico e paisagístico.

Sobre situações análogas a dos autos, confiram-se os julgado abaixo, que entenderam pela legitimidade ativa do MPF.

"PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. (…) MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA. INTERESSE DE AGIR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. IPHAN. LEGITIMIDADE PASSIVA. BENS TOMBADOS A NÍVEL NACIONAL. REALIZAÇÃO DE OBRAS EM SUAS PROXIMIDADES. REDUÇÃO DA VISIBILIDADE. INOCORRÊNCIA. (…) (…)4. A ordem jurídica constitucional inaugurada com a promulgação da CF/88 alargou, sobremaneira, as funções institucionais do Ministério Público, de sorte que se mostra viável o manejo de ação civil pública, pelo MPF, para defender o patrimônio público em geral, incluindo-se nesse conceito, também, o histórico e artístico nacional. Precedentes do col. STF.5. O IPHAN é parte legítima para figurar no pólo passivo da demanda, uma vez que um dos pedidos contidos na exordial consiste em condená-lo na obrigação de emitir prévio pronunciamento acerca da viabilidade de qualquer projeto para edificação no imóvel ali indicado (supostamente localizado em área de preservação do patrimônio histórico), restando patente, outrossim, o

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Estado de Pernambucointeresse de agir do autor da presente actio coletiva.6. Estando o Parquet federal no lado ativo da lide, ajuizada em face de autarquia também federal, firma-se a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito, nos termos do art. 109, I, da Carta Magna. (…)"(TRF 5ªR, 2ª Turma, AC nº 439086 – PE, Rel. Des. Federal Luiz Alberto Gurgel de Farias, DJU 12.08.2008)

4 – DA LEGITIMIDADE PASSIVA:

Nesta demanda, relata-se que o IPHAN está a se escusar dos deveres que lhe são impostos pela lei, tanto no sentido de velar pela visibilidade e proteção de imóveis tombados em nível federal, nos termos do art. 18 do DeL nº 25/37, quanto de promover a preservação e a difusão da memória ferroviária, conforme art. 9º da Lei nº 11.483/2007.

Desse modo, com fundamento no inquérito civil em anexo, subsidiado por pareceres elaborados pelo corpo técnico do próprio IPHAN, pretende-se que esse instituto seja condenado a tomar providências para proteção do patrimônio histórico cultural e artístico, o que denota a pertinência subjetiva passiva desta ação.

Por seu turno, o Município do Recife também foi arrolado no polo passivo desta demanda, em razão de ter aprovado o Projeto Novo Recife, sem análise prévia e definitiva do IPHAN e de outros órgãos federais, além de não haver exigido os estudos pertinentes. Contra aquela municipalidade, pede-se, assim, com fundamento no art. 30, IX, da CF/88, que se abstenha de conceder qualquer alvará de construção/demolição referente ao sítio objeto desta demanda, sem que antes sejam sanadas as exigências relacionadas à proteção do patrimônio histórico e ferroviário e da paisagem urbana. Por isso mesmo, é ré no feito.

Por último, a empresa Novo Recife Empreendimentos Ltda. também figura como ré nesta ação, pois tenciona construir o Projeto Novo Recife, com torres de altíssimo gabarito, que trarão irremediável prejuízo ao patrimônio histórico, cultural e artístico nacional. Pretende-se aqui, por tal razão, tutela judicial inibitória contra esse iminente ato ilícito, daí sua legitimidade passiva.

5 - DOS FATOS:

O inquérito civil que acompanha esta ação (de nº 1.26.000.000906/2012-12) foi instaurado com a finalidade de acompanhar o andamento do Projeto Novo Recife, no Cais José Estelita, quanto à análise a ser realizada pelo IPHAN sob a ótica do Patrimônio Histórico.

De início, esclareça-se que o empreendimento imobiliário “Novo Recife” foi projetado para a área do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, que pertencia à extinta Rede Ferroviária Federal S.A – RFFSA e foi alienada parcialmente ao Consórcio Novo Recife. Tal área está situada no bairro de São José, o qual, juntamente com o

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Estado de Pernambucobairro de Santo Antônio, possui acervo de 16 bens tombados pelo IPHAN, sendo que parte do Pátio Ferroviário está inserido na poligonal de entorno desses bens.

Pois bem. Questionado pelo MPF sobre o chamado Projeto Novo Recife, em especial se este se encontraria situado em área de entorno ou interferiria em bem tombado em nível federal, o IPHAN, em 14.05.2012, informou não ter aprovado os projetos arquitetônicos elaborados para área alienada ao Consórcio Novo Recife, em razão de esta se tratar de área privada e localizar-se fora da área considerada necessária à preservação da memória ferroviária, conforme decisão (ainda não definitiva) da Comissão de Avaliação do Patrimônio Ferroviário, prolatada no processo administrativo sobre a valoração do patrimônio ferroviário no Cais José Estelita.1

Ainda, participou que estava em fase de tratativas preliminares visando a ajustar a conduta do empreendedor ao interesse público de preservação, além da recomendação de ser realizada prospecção arqueológica na área, considerando, ademais, a proximidade de monumentos tombados em nível federal, em especial o Forte das Cinco Pontas.

Por seu turno, indagada sobre o andamento dos projetos arquitetônicos elaborados pelo Consórcio Novo Recife, a Prefeitura da Cidade do Recife, através da Diretoria de Controle Urbano – DIRCON, comunicou, em 23.07.2012, que os processos2 referentes àqueles projetos encontravam-se pendentes de exigências: dentre estas, a de ser esclarecido se o imóvel integrava patrimônio Ferroviário. Sendo assim, os processos seriam encaminhados à apreciação do IPHAN, em razão do inventário que vinha sendo realizado pelo Patrimônio Ferroviário Nacional, e da FUNDARPE, por força do tombamento estadual da área (elementos ferroviários do pátio ferroviário), conforme informou a diretora da DIRCON na ocasião.3

Mais adiante, novamente indagada, a Prefeitura de Recife, por meio da Secretária de Controle e Desenvolvimento Urbano e Obras, informou, em 04.12.2012, que os processos referentes ao Projeto Novo Recife foram submetidos à apreciação do Conselho de Desenvolvimento Urbano – CDU em 30.11.2012, mas, na ocasião, foram tirados de pauta, ante pedido de vista de quatro conselheiros. Ainda, naquela oportunidade, a Secretária de Controle e Desenvolvimento Urbano e Obras encaminhou documentos da FUNDARPE e do IPHAN, este último estabelecendo várias condicionantes para a análise dos projetos pela Prefeitura.4

No mesmo dia, em 04.12.2012, após instância do MPF para obtenção de informações atualizadas junto ao IPHAN, foi então realizada reunião com aquele instituto nesta Procuradoria da República5. Na oportunidade, o Superintendente e a

1 Ofício nº 0500/2012-Superintendência do IPHAN-PE às fls. 11-12. (Quando não houver referência ao respectivo Anexo, a referência às folhas se refere aos autos principais do ICP em anexo).

2 São cinco processos relativos ao Projeto Novo Recife: Lote 01 – PJ nc 07.32990.4.08; Lote 02 – PJ NC 07.32986.7.08; Lote 03 – PJ nc 07.32987.3.08; Lote 04 – PJ nc 07.32989.6.08; Lote 05 – PJ nc 07.32988.0.08.

3 Ofício nº 352/2012 – Gab. DIRCON (fls. 28-29).4 Ofício nº 719/2012 – GAB/SCDUO (fl. 58 e ss.)5 Termo de reunião às fls. 63-64.

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Procuradoria da República no Estado de PernambucoProcuradora Federal do IPHAN-PE afirmaram ainda não haver condições para aprovação do projeto pela Prefeitura do Recife, diante dos seguintes impedimentos:

i) necessidade de celebração de Termo de Compromisso com a construtora responsável pelo empreendimento para estipulação de medidas mitigatórias, visando à compensação dos impactos ao patrimônio histórico, documento a ser elaborado pelo IPHAN-PE em cumprimento a decisão (provisória) da Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário do IPHAN;

ii) necessidade de conclusão do procedimento do IPHAN perante a Comissão de Patrimônio Ferroviário, o qual definirá quais os bens do Pátio das Cinco Pontas serão inscritos na lista do patrimônio ferroviário nacional;

iii) necessidade de aprovação técnica do projeto relativo ao primeiro lote pelo IPHAN anteriormente à da Prefeitura, uma vez que parte do terreno está dentro da poligonal de entorno dos bens tombados no bairro de São José e de Santo Antônio;

iv) esclarecimentos sobre as restrições no projeto em virtude de sua localização no entorno de fortificação militar, área protegida pelo Decreto-Lei nº 3.437/41;

v) consulta ao DNIT e da ANTT sobre o projeto, por se tratar de área que envolve trecho de ferrovia em operação.

Nesse contexto, o MPF, ante a notícia de que os processos que compõem o Projeto Novo Recife seriam novamente submetidos à apreciação do CDU e considerando as pendências relativas ao patrimônio histórico federal, oficiou, em 18.12.2012, a Secretária de Controle e Desenvolvimento Urbano do Município de Recife, reforçando a permanência de impedimentos à votação dos processos. Na mesma ocasião, o MPF recomendou que fosse dada ciência do teor do ofício então encaminhado e da ata da reunião, realizada em 04.12.2012 nesta Procuradoria da República cm o IPHAN, a todos os Conselheiros do CDU antes da continuidade da votação dos processos.6

Entretanto, como consabido, pouco tempo depois, em 28.12.2012, o Conselho de Desenvolvimento Urbano – CDU aprovou o Projeto Novo Recife, não obstante os processos se encontrarem pendentes de várias exigências, consoante relacionado linhas acima.

Desta decisão, o MPF tomou conhecimento através da mídia, pois não foi comunicado oficialmente pela Prefeitura, embora tenha recomendado expressamente, por meio do Ofício enviado à Secretária de Controle e Desenvolvimento Urbano do Município de Recife, que lhe fosse dada ciência sobre qualquer decisão envolvendo o projeto Novo Recife (fls. 83/83-v). Tal conduta omissiva corrobora a postura deliberada da Prefeitura de dar andamento ao projeto sem o devido respeito às normas de proteção ao patrimônio histórico e aos órgãos de fiscalização. Some-se a isso a ausência de medidas efetivas por parte do IPHAN capazes de assegurar a proteção e preservação do patrimônio ferroviário e cultural que representa o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, consoante se demonstrará a seguir.

6 Ofício nº 8980/2012 – PRPE/Gab/MLDI às fls. 83/83-v.6

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Estado de Pernambuco

A ser assim, não restou alternativa ao MPF senão judicializar a questão, diante do risco de iminente dano ao patrimônio histórico e cultural brasileiro, bem como ao ambiente urbano do centro do Recife. Ressalte-se, por oportuno, que a decisão de aprovação do CDU também está sendo questionada judicialmente através de ação civil pública proposta pelo Ministério Público de Pernambuco na Justiça Estadual.

Aqui, por meio desta demanda, pretende-se, primordialmente, a obtenção de tutela que obrigue o IPHAN a tomar medidas previstas legalmente, visando à proteção da memória ferroviária brasileira e da ambiência do acervo patrimonial tombado em nível federal nos bairros de Santo Antônio e São José, bem como que impeça a execução do projeto antes do implemento dessas ações. Passo a fundamentar.

5.1 – Da alienação da área não operacional do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas

O Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, localizado na Av. Engenheiro José Estelita, s/n, no bairro de São José, nesta cidade do Recife, pertencia à extinta Rede Ferroviária Federal S. A – RFFSA. Com a dissolução desta, os imóveis não operacionais – i. é, os imóveis não vinculados aos contratos de arrendamento celebrados pela RFFSA e aqueles não delegados a Estados ou Municípios para operação ferroviária – foram transferidos para a União, aos cuidados da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, nos termos do art. 2º, II da Lei nº 11.483/2007 – a qual dispôs, entre outros, sobre a revitalização do setor ferroviário.

O aludido diploma legal instituiu o Fundo Contingente da Extinta RFFSA – FC, a ser constituído por recursos provenientes, entre outros, da venda de imóveis não operacionais oriundos da extinta empresa (art. 6º, II). Ficou a cargo da SPU indicar quais os imóveis seriam vendidos, objetivando integralizar recursos ao FC (art. 6º, § 2º).

Com vistas a preservar a memória ferroviária e contribuir para o desenvolvimento da cultura, a Lei nº 11.483/2003 delegou ao IPHAN a competência para proceder à identificação e catalogação de bens de valor histórico, artístico ou cultural oriundas da RFSSA. Nesse sentido, dispôs que cabe ao IPHAN receber e administrar tais bens, bem como zelar por sua guarda e manutenção (art. 9º, caput).

Portanto, entre outras possibilidades, além da alienação para integralização do FC, os imóveis da RFFSA – mais especificamente aqueles declarados como de valor histórico, artístico e cultural – também devem ser destinados para fins de preservação e difusão da Memória Ferroviária. Nesse sentido, foi previsto um específico trâmite processual para o repasse de imóveis não operacionais ao Fundo Contingente7,

7 O trâmite processual está pormenorizado, de modo bem didático, no Manual de Incorporação e Destinação de Imóveis oriundas da extinta Rede Ferroviária Federal S. A – RFFSA, disponível em http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/spu/publicacao/081203_PUB_Manual_incorporacao.pdf.

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoque passa por a notificação e consulta prévia do IPHAN pela SPU quanto à existência de óbice à remessa do bem ao FC.

Em outros termos, os imóveis não operacionais da extinta RFSSA não podem ser indicados pela SPU ao Fundo Contingente sem a intervenção obrigatória do IPHAN quando este declarar ter interesse no bem, em virtude de seu reconhecido valor histórico, artístico e cultural.

Nesse contexto, com a finalidade de regulamentar o disposto no art. 9º da Lei nº 11.483/2007, o IPHAN baixou a Portaria nº 407, de 21.12.2010, que dispõe sobre o estabelecimento dos parâmetros de valoração e procedimento de inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, visando à proteção da memória ferroviária. Destacam-se, desse ato normativo, os seguintes dispositivos.

"Art. 1º Instituir no âmbito do INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL - IPHAN a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário em conformidade com o artigo 9º, da Lei n.º 11.483/2007, onde serão inscritos todos os bens reconhecidos como detentores de valor artístico, histórico e cultural. Parágrafo único. Compete à Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário a gestão da Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário.

Art. 2º Os bens inseridos na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário gozam de proteção, com vistas a evitar seu perecimento ou sua degradação, apoiar sua conservação, divulgar sua existência e fornecer suporte a ações administrativas e legais de competência do poder público. Art. 3º Fica instituída a Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário, para fins de aplicação do art. 9º da Lei n.º 11.483/ 2007. § 1º A Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural tem como atribuição decidir acerca do valor histórico, artístico e cultural de bens móveis e imóveis.

(…)

Art. 5º Os processos administrativos a serem analisados pela Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário, serão instruídos nas Superintendências do IPHAN ou na Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário. § 1º Será parte integrante do processo administrativo, parecer técnico que ateste as reais condições de apropriação social do bem, em especial quanto a sua segurança, conservação e uso compatível com a preservação da Memória Ferroviária. § 2º O parecer técnico deverá apontar conclusivamente se a instância local recomenda ou não a inclusão do(s) bem(ns) na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, especificando qual (is) inciso (s) do artigo 4º justifica (m) a inclusão. § 3º O parecer técnico será referendado ou não pela Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário, a qual deverá especificar a motivação de seus atos. (…) § 5º Negada a inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário pela

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Estado de PernambucoComissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário, o processo administrativo deverá retornar à Superintendência do IPHAN que poderá, caso persista o interesse de inscrição do bem, complementar a instrução e solicitar a reconsideração da decisão, no prazo de 90 (noventa) dias, a contar do recebimento do processo no âmbito da Superintendência. § 6º Não reconsiderada a decisão pela Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário, o processo deverá ser encaminhado ao Presidente do IPHAN, como última instância de deliberação, para a manutenção ou não dessa decisão. (grifou-se)

Pois bem. Esclarecidas as diretrizes que regem o patrimônio ferroviário da extinta RFFSA, confiram-se as circunstâncias do procedimento que antecedeu à alienação do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas.

Em 06.03.2007, o IPHAN-PE encaminhou o Ofício nº 175/2007/5ª SR/IPHAN/MinC à Gerência Regional em Pernambuco da SPU, solicitando, com base no art. 9º da então MP nº 357/2007 (convertida, após, na Lei nº 11.483/2007), que “todos os processos referentes ao patrimônio ferroviário, situado no Estado de Pernambuco, anteriormente a qualquer decisão por parte da SPU sejam submetidos à análise e pronunciamento da 5ª Superintendência Regional”. E, desde logo, manifestou interesse nos bens arrolados na relação anexa ao ofício, considerados de valor histórico, cultural e artístico, dentre os quais constava o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas.8

Aligeire-se em salientar que o ofício mencionado foi acostado ao Processo nº 04905.005762/2007-44, referente aos “imóveis indicados ao Fundo Contingente/Lista de 204 imóveis passíveis de indicação ao Fundo Contingente – FC, segundo critérios de avaliação”.9

Nada obstante, mesmo tendo ciência do interesse da 5ª Superintendência Regional do IPHAN no Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, a SPU prosseguiu com a indicação do imóvel ao Fundo Contingente. Em 04.10.2007, a SPU consultou a Presidência do IPHAN em Brasília acerca de uma listagem com 204 imóveis destinados a leilão pelo gestor do Fundo Contingente, solicitando que o IPHAN procedesse à avaliação prioritária de 86 daqueles bens – dentre os quais estava o Pátio Ferroviário em questão –, a partir do que, em caso de conflito com o interesse histórico ou cultural, poder-se-ia reverter a indicação do bem ao FC.

Em seguida, em 24.10.2007, a consulta da SPU foi repassada ao IPHAN-PE (5ª SR) pela Coordenação do Patrimônio Ferroviário10. Como resposta, o IPHAN-PE encaminhou àquela Coordenação o Memorando nº 899/2007, no qual informa, mais uma vez, que “os imóveis possuem interesse cultural devido a importância econômica, histórica, estética e social da implantação da estrada de ferro no estado de Pernambuco” e, em anexo, encaminha, a propósito, a Informação nº 037/MEL/2007 da

8 Fls. 443-558, Anexo I, vol. II.9 Vide Nota Técnica às fls. 465/474, Anexo I, vol. II.10 Memorando nº 100/07/GSH/DEPAM – JLGJ às fls. 449, Anexo I, vol. II.

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoarquiteta Maria Emília Lopes Freire11.

Acontece que, segundo alega o Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização – DEPAM do IPHAN, tal documento não constava em nenhum processo até a data de 10.10.2011, quando então uma cópia foi reencaminhada ao DEPAM pela 5ª Superintendência Regional do IPHAN. Sendo assim, como o IPHAN, após a consulta da SPU, não teria se pronunciado, esta leiloou a parte não operacional do Pátio Ferroviário em 2008, que foi adjudicada ao Consórcio Novo Recife, consoante Nota Técnica elaborada pelo DEPAM (fls. 465/474, Anexo I, vol. II).

Ora, a partir da exposição acima, vê-se que o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas não poderia ter sido indicado ao Fundo Contingente, tampouco alienado dessa forma pela SPU, em razão do reconhecimento de seu valor cultural e histórico importante para a preservação da memória ferroviária, cujo interesse foi manifestado em mais de uma ocasião pelo IPHAN-PE (5ª SR). Com efeito, antes mesmo de a Presidência do IPHAN ter sido consultada, a 5ª Superintendência Regional já havia encaminhado ofício à SPU, juntado aos autos do processo referente aos imóveis passíveis de indicação ao FC, manifestando interesse no Pátio Ferroviário, o que denota erro no procedimento de alienação de bem tão significante para a memória histórica e ferroviária do país, pois realizado sem as cautelas e garantias necessárias para assegurar a sua proteção e conservação enquanto patrimônio histórico nacional, como passa a demonstrar o tópico seguinte.

5.2 – Da significância cultural do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas para a Memória Ferroviária e seu reconhecimento pelo IPHAN-PE

Após tomar conhecimento da alienação do Pátio Ferroviário através da mídia12, o IPHAN-PE instituiu um Grupo de Trabalho multidisciplinar para avaliar tecnicamente aquele imóvel enquanto representante (ou não) da memória ferroviária nacional. O aludido grupo de trabalho, composto por arquitetos do IPHAN-PE e com a colaboração do historiador Adler Homero Fonseca de Castro, do DEPAM/RJ, elaborou o “Parecer Técnico sobre o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas”, de 17.12.201013.

O mencionado documento, de início, destaca as inter-relações do Forte e do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas e as deste com o Porto do Recife. Demonstra que, dos pátios ferroviários originais das primeiras ferrovias do Brasil, o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas é o que se encontra mais íntegro, ainda mantendo relação com o Porto do Recife. Considerando que o objetivo da estrada de ferro era servir de meio de transporte das zonas produtivas até o porto, relata a necessidade de um complexo sistema de armazenagens dos produtos, o que deu origem ao conjunto de armazéns, que ainda existem de forma mais ou menos íntegra.

Em seguida, o parecer relaciona o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas

11 Fls. 450, Anexo I, vol. II.12 Fls. 41, Anexo I, vol. I.13 Fls. 332-371, Anexo I, vol. II.

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucocom o desenvolvimento urbano da cidade do Recife, observando que aquele teve um crescimento orgânico entre os séculos XIX e XX, com ampliação/realinhamento do pátio em toda a extensão da linha férrea, no trecho situado na Bacia do Pina.

Mais à frente, relata que o Pátio e a respectiva estação ferroviária, em sua origem, eram o ponto inicial da Estrada de Ferro Recife-São Francisco, inaugurada em 1858. Ao longo dos séculos, foi sendo construída uma série de edificações, equipamentos e infraestrutura a fim de atender a crescente demanda de transporte de cargas (em especial, o açúcar) e de passageiros: posto de abastecimento, “castelo de maquinistas”, que servia de alojamento para a tripulação do trem, onde existia banheiro, cozinha, sistema de armazéns etc.

O parecer técnico então destaca a concepção espacial do Pátio das Cinco Pontas com um espaço livre, aberto:

“Assim, analisando a concepção territorial do pátio das Cinco Pontas encontramos os grandes vazios construídos que predominam em relação à massa edificada, vazios estes onde estão implantadas as linhas principais e secundárias, além dos desvios necessários para realização da operação ferroviária (...)”.

A presença deste espaço livre e vazio, do pátio enquanto tal e da heterogeneidade de edificações, que atendem a necessidade operacional e logística de um complexo ferroviário, ainda estão presentes no local atualmente, como identificado e relatado no parecer.

Após essas considerações históricas e o inventário dos bens presentes no local, o parecer destaca os valores do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas: histórico, arquitetônico, arqueológico, paisagístico, de uso e de raridade. A seguir, transcrevem-se os trecho pertinentes, que permitem concluir sobre a significância do pátio para a memória ferroviária, in verbis:

“O valor histórico do Pátio das Cinco Pontas, o mais amplo de todos, sinaliza a relevância do sítio para a história urbana do Recife, revelando o desenvolvimento urbanístico da região, as relações de trabalho e de moradia estabelecidas no local e em seu entorno imediato, e sua importância na implantação e desenvolvimento da viação férrea brasileira, como a segunda linha estrada de ferro do Brasil, considerando que o valor dos objetos 'reside no fato de que estes representam uma etapa determinada, um certo modo individual, na evolução de algum dos campos criativos da humanidade' (…). Neste caso, trata-se dos objetos, bens móveis e imóveis circunscritos ao Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, que representam uma determinada etapa na evolução da cidade do Recife e sua malha ferroviária e/ou da comunidade que a manteve ao longo do tempo, na história do transporte ferroviário em Pernambuco e no Brasil.

(…)

O conjunto tipológico formado pelas edificações do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas é portador de um valor arquitetônico, uma vez que pode ser entendido como uma unidade funcional cujas construções e

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoequipamentos foram erguidos paulatinamente de forma a atender a crescente demanda de transporte de cargos e de passageiros e a fixar-se como uma unidade autônoma, reunindo espaço produtivo e espaço de moradia. Se não por seu valor plástico ou estético, mas por sua lógica funcional interna e externa, este conjunto de edificações, equipamentos e instalações – que inclui/incluía estação, estação operacional, escritório central, vinte e oito armazéns, cartelo de maquinista, posto médico, um galpão aberto, oficina de locomotiva, oficina de vagões, caixa d'água, areeiro, oficinas de eletrotécnica, balança, casa de força, (…) cilindros de armazenamento de melaço, dois armazéns de açúcar, centro de controle da linha, guarita e algumas casas da antiga vila ferroviária, linhas férreas, desvios abrigo de vigia, abrigo de balança, posto telegráfico e alojamento de maquinista – forma um conjunto urbano-arquitetônico que resguarda uma ligação morfológica e funcional com o Porto do Recife.

O valor arqueológico, por outro lado, está cristalizado em diversos vestígios e objetos relevadores da cultura material pós-industrial, portanto, diretamente ligados aos avanços científicos e tecnológicos decorrentes e ao mesmo tempo condicionantes da Revolução Industrial europeia e seus desdobramentos no continente americano, particularmente no universo das edificações, mas também dos equipamentos de grande porte destinados ao funcionamento das ferrovias e até objetos utilitários de menor escala – locomotivas, vagões e balanças inglesas, além de trilhos, etc. (…)

O valor paisagístico do Pátio das Cinco Pontas pode ser caracterizado por sua importância e vocação consolidada ao longo do tempo como um vazio urbano. Esta condição de 'espaço livre' e 'espaço aberto', portanto livre ou com poucas edificações e não confinado, pode ser atestada na toponímia de 'Pátio das Cinco Pontas', preservando o conceito original de pátio (…).

O espaço configurado pelo pátio ferroviário em questão compõe o ambiente urbano do bairro de São José, reafirmando-se como um vazio essencial, construído com intenção e não como obra do acaso ou mero resquício, espaço residual ou fragmento de traçado viário. (…)

(…)

Segundo o historiador Adler Homero Fonseca de Castro (…), esta condição de vazio se dá pela representação no terreno de uma política defensiva, não só dos portugueses, mas também dos holandeses, com a manutenção do amplo espaço livre da esplanada, necessário para a proteção do forte e da cidade. A manutenção de um espaço aberto, interligado com o mar (o rio Pina), que permite compreender a função do Forte das Cinco Pontas como determinante da expansão urbana da cidade do Recife e de uma determinada política defensiva (contra um ataque vindo por terra), que não encontra paralelo no Brasil, com exceção da cidade de Salvador. Neste último caso, contudo, não se pode deixar de mencionar que os fortes que compunham essa forma de pensar a defesa (…) não permitem a visualização dessa política, pois encontram-se engastados em uma densa massa urbana, que lhes retirou totalmente a ambiência, o que não ocorreu no Recife, no caso do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas.

(…)

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Procuradoria da República no Estado de PernambucoEste [o valor de uso] se consubstancia no fato de que o pátio continua em funcionamento, considerando seus equipamentos e o espaço livre necessário às operações ferroviárias, bem como na compreensão de novos usos podem ser compatibilizados com o sítio e o entorno, desde que mantidas as atividades atuais e garantidas as possibilidades de ampliação daquelas operações, sem prejuízos para o acervo arquitetônico, urbanístico, arqueológico e histórico reunido nos bairros adjacentes de São José, Santo Antônio e Recife e sem significativos impactos ambientais. É importante assegurar a preservação do Pátio das Cinco Pontas com sua porção livre de edificações ou equipamentos de grande porte ou de grande densidade construtiva.

Por fim, o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas reveste-se de um valor de raridade, (…) particularmente no que diz respeito às especificidades tipológicas dos armazéns do Cais José Estelita (já que a atividade de descarga poderia ser feita dentro dos armazéns, tipos construtivos pouco recorrentes) e ao fato de ser este pátio um dos últimos remanescentes dos grandes pátios ferroviários terminais das ferrovias brasileiras integrados em seu contexto original – o terminal portuário exportados -, o que deve torná-lo objeto de especial apreciação para fins de preservação, nos termos da Carta de Nizhny Tagil (2003) (…). (destacou-se) (Fls. 332-371, Anexo I, vol. II)

Por fim, após realizar a valoração de todos os bens que compõem o Pátio Ferroviário, a qual evidencia a sua complexidade e relevância para a preservação do patrimônio ferroviário brasileiro, o parecer conclui que todos os suportes – sejam arquivísticos, bibliográficos, arquitetônicos, históricos ou arqueológicos – que existem em e sobre o local e os quais propiciam informações sobre os elementos constituintes e a dinâmica do complexo ferroviário consistem na memória ferroviária, que se busca preservar, in verbis:

“Isto quer dizer que esta memória ferroviária não deve ser preservada apenas no nível de prédios isolados e desconectados de seu contexto de produção e social, ou seja, ela deve possibilitar uma leitura para a geração atual e as futuras, do funcionamento do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas como um todo , revelando, inclusive, suas relações de produção, sociais e de vizinhança. Isso é possível somente com a preservação de elementos relevantes situados por todo o terreno, bem como a recuperação de elementos 'perdidos', que poderão ser 'reencontrados' após realização de séria pesquisa. Mas também, com a identificação e publicização de documentos, livros, fotografias e relatos sobre o lugar.” (destacou-se)

Posteriormente, o Grupo de Trabalho multidisciplinar, então composto por técnicos do IPHAN-PE e com a colaboração do historiador Lucas Neves, bolsista do Programa de Especialização em Patrimônio (PEP), elaborou Parecer Técnico Complementar, datado de 27.10.2011 e denominado “Pátio Ferroviário das Cinco Pontas: significância cultural e preservação da memória ferroviária”14.

14 Fls. 379-413, Anexo I, vol. II.1

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O Parecer Complementar trata do Pátio Ferroviário enquanto lugar de memória, que ainda se mostra legível e inteligível e, assim, reflete a lógica funcional, estrutural, visual e das relações de trabalho no contexto da implantação do sistema ferroviário brasileiro, sendo fundamental, por isso mesmo, a sua preservação para a perpetuação da memória ferroviária.

Mais uma vez, o Grupo de Trabalho ressalta a disposição própria do Pátio Ferroviário para uma área aberta, a qual evoca todo um contexto sócio-cultural, sendo, pois, um lugar de memória.

“O Pátio Ferroviário de Cinco Pontas é um lugar de memória à medida que é uma referência que ali conviveram e, em sentido mais amplo, em sua relação com a origem da cidade a partir da aplicação da política defensiva holandesa, e também portuguesa, e na manutenção do espaço livre da esplanada, necessário para a proteção do forte e da cidade. Mais tarde transforma-se por fim em um pátio ferroviário. Ou seja, aquela área de alguma maneira sempre teve respeitada sua vocação como uma área aberta, de frente para o mar, construída conscientemente de acordo com as necessidades de seu tempo, um vazio que por toda a sua história foi repleto de significados.”

A ser assim, lugar de memória, a preservação do Pátio das Cinco Pontas há que ser feita em sua totalidade/integralidade para permanência da Memória Ferroviária. Isto porque a proteção de bens e valores culturais isolados é insuficiente para compreender a construção histórico-cultural do locus.

Por isso mesmo, considerando estar o significado do Pátio das Cinco Pontas relacionado com sua concepção como lugar indivisível, em que o vazio construído é um elemento indissociável, o Grupo de Trabalho atribui significância cultural a totalidade da área do complexo ferroviário, entendendo não ser possível a sua compreensão de forma fragmentada em áreas “operacionais” e “não operacionais”. Por fim, conclui, no Parecer Técnico Complementar, que:

“o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, localizado no bairro de São José, na cidade do Recife, em Pernambuco, reúne todos os elementos e critérios necessários para integrar a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, conforme estabelece a Portaria Iphan nº 407/2010. Pelo demonstrado neste parecer, o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, a considerar sua significância e relevância para a Memória Ferroviária brasileira, deve ser preservado nos termos da Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007. Dessa forma, deve compor o conjunto dos bens a ser preservados no âmbito do patrimônio cultural brasileiro, segundo o art. 216 da CF/88.”

Os pareceres técnicos do Grupo de Trabalho foram encaminhados para análise e parecer da Comissão de Avaliação do Patrimônio Ferroviário/DEPAM, visando

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucopronunciamento sobre a valorização cultural do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas. Todavia, em que pese o grande embasamento do registro histórico e respaldo técnico de tais documentos, elaborou-se a Nota Técnica nº 002/2011/DEPAM, de 15.12.201115, que chegou à conclusão oposta, entendendo que deveria ser declarado valor cultural apenas aos remanescentes da antiga linha da estrada de ferro Recife-São Francisco (trecho operacional) e não, à totalidade do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas16.

Irresignado com a decisão manifestada na Nota Técnica nº 002/2011/DEPAM, o Grupo de Trabalho multidisciplinar elaborou o Parecer Técnico nº 01/2012/MELF/GB/MF/FC/IPHAN/PE/Minc17, datado de 17.02.2012, no qual reitera os argumentos que fundamentam a concepção do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas como representativo da memória ferroviária brasileira e, assim, passível de integrar a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário (Portaria nº 407/2010). Veja-se um dos argumentos levantados neste último parecer:

“No que tange à presença no local da segunda Linha Férrea mais antiga do Brasil, fato amplamente frisado pela supramencionada Comissão para se contrapor ao valor cultural atribuído ao Pátio das Cinco Pontas (fl. 436), o Grupo de Trabalho ratifica que não atribui valor ao Pátio das Cinco Pontas pela implantação e permanência de suas linhas férreas, mas sim, dentre outros fatores, por ser o primeiro pátio ferroviário do Brasil que possui características portuárias, detalhadamente discutidas nos Pareceres até o momento produzidos, isto é, de funcionamento em conexão com o Porto (que ainda hoje mantém suas atividades, inclusive com perspectiva de ampliação); de possuir os compartimentos e as funcionalidades, densamente descritas; de ter sido implantado em ponto privilegiado da cidade, seguindo vocação história de local de transporte de mercadorias; de ser importante para o entendimento da paisagem da cidade e para o desenvolvimento, no período histórico de implantação da industrialização em Pernambuco. Dessa forma, procurou-se demonstrar que a unidade mínima de valorização deve ser o pátio ferroviário, como um complexo constituído de patrimônio edificado e de espaços livres onde estão implantados os equipamentos de sinalização, comunicação e manobra e demais elementos necessários à logística da operação ferroviária de carga de passageiros, não fazendo sentido, à luz da aplicação da Portaria Iphan nº 407/2010 e do entendimento do patrimônio industrial, tratar as partes isoladamente.” (destacou-se)

15 Fls. 465-474, Anexo I, vol. I.16 Veja-se a conclusão da Nota Técnica em Referência: “(...) é do entendimento das Coordenações

Gerais de Cidades Históricas e Bem Imóveis, bem como da Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário, que: Deve ser (…) declarado valor cultural aos remanescentes da antiga linha da Estrada de Ferro Recife ao São Francisco (ou Recife ao Cabo), especificamente ao trecho atualmente classificado como 'operacional' sob responsabilidade da Transnordestina Logística (…). Não deve ser declarado valor cultural à totalidade do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, discordando, portanto, dos encaminhamentos do Grupo de Trabalho formado no âmbito da Superintendência Estadual do IPHAN em Pernambuco. Considerando que poderia ter sido atribuído valor cultural ao conjunto dos edifícios situados dentro da área de entorno dos bens tombados pelo IPHAN nos bairros de São José e Santo Antônio, notadamente aos situados no entorno imediato do Forte das Cinco Pontas, o que teria impedido que essa área fizesse parte do trecho leiloado, sugerimos o estabelecimento de um acordo entre as partes visando à preservação desses bens e à qualificação da área do entorno imediato do Forte.”

17 Fls. 478-510, Anexo I, vol. II.1

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Sendo assim, em 05.09.2012, o IPHAN-PE (5ª SR) pediu, com base no art. 5º, § 5º, da Portaria nº 407/2010, a reconsideração da decisão contida na Nota Técnica nº 002/2011/DEPAM18. Todavia, até então, a Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural não deliberou definitivamente sobre a matéria19.

A despeito da decisão manifestada na referida Nota Técnica de atribuir valor cultural tão somente à linha férrea, verifica-se que foi incluído na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, instituída pela Portaria IPHAN nº 407/10, o imóvel "Armazém com características de casario no Pátio Ferroviário de Cinco Pontas, localizado no Cais José Estelita, s/n, Processo IPHAN nº 01450.016778/2009-4120.

O reconhecimento dos galpões chamados de "Armazém-Casario" como parte integrante da memória ferroviária reforça o fundamento da presente ação, que é a total ausência de medidas eficazes por parte do IPHAN para o fim de garantir a preservação desse patrimônio imaterial, até mesmo em relação à parte do acervo que foi incluída na Lista do Patrimônio Ferroviário. Com efeito, em sendo executado o projeto na forma como concebido - 13 torres de alto gabarito praticamente ao lado dos armazéns -, o casario será 'engolido' pelos edifícios, tornando inócuo o seu reconhecimento como patrimônio ferroviário.

Por fim, acrescento, o Grupo de Trabalho multidisciplinar analisou o Projeto Novo Recife e os respectivos processos em trâmite na Prefeitura do Recife. No Memorando nº 0976/2011/IPHAN/PE21, após se considerar, entre outros argumentos, que o projeto imobiliário, caso seja executado, provocará a perda do lugar de memória consubstanciado no Pátio das Cinco Pontas, representativo do patrimônio ferroviário brasileiro, indeferiu-se integralmente tal projeto.

5.3 – Dos bens tombados

Como dito, a presente visa, também, à proteção do patrimônio histórico nacional tombado pelo IPHAN, eis que o empreendimento imobiliário do Consórcio Novo Recife, cujo projeto foi aprovado pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano do Município do Recife, mesmo sem o aval técnico do IPHAN, trará irreparável modificação ao ambiente dos bairros de São José e Santo Antônio, onde se encontram inúmeros monumentos tombados por aquele instituto.

De modo a compreender o meio em que está inscrito, situe-se a área não

18 Memorando nº 0951/2012/IPHAN/MinC (fls. 86).19 No Ofício nº 0046/2013 – Superintendência do Iphan-PE (fls. 170), datado de 15 de janeiro de 2013,

participou-se que a aludida Comissão do Patrimônio Ferroviária Nacional não havia ainda encaminhado informações conclusivas a respeito do assunto.

20 Publicada por meio da Portaria nº 441, de 13/12/2011, no DOU de 19/10/2011 (fls. 04/09, Anexo I, vol. I)

21 Fls. 435-438, Anexo I, vol. II.1

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucooperacional do Pátio Ferroviário, localizado no bairro de São José, zona central da cidade do Recife.22

Na porção norte, o imóvel em questão confronta-se com a Fortaleza de São Tiago das Cinco Pontas, bem federal tombado23. Tal monumento, cuja origem e história confundem-se com a da própria cidade do Recife, foi edificado pelos holandeses em 1630 e tinha como objetivo a defesa das cacimbas de Ambrósio Machado, ponto vital de abastecimento de água do Recife de então. Por sua forma pentagonal veio a ser chamado de Forte das Cinco Pontas e, arruinado após a expulsão dos holandeses, foi reconstruído em 1677 e 1684 para ganhar a forma quadrada, com quatro baluartes em lugar dos cinco primitivos.

Também na vizinhança imediata do imóvel, está situada a Igreja de São José do Ribamar, construída no século XVII e tombada pelo IPHAN em 198024. A propósito, segundo Germain Bazin, a “fachada [da igreja] comporta, à pernambucana, o alto frontão postiço, revestido de uma rica decoração esculpida, datado de 1653, lembrando a fundação da paróquia. O altar-mor e os ornatos das tribunas inspiram-se no altar de São Bento de Olinda”25.

De modo geral, os bairros de São José e Santo Antônio possuem 16 bens tombados individualmente pelo IPHAN, que possuem uma única poligonal de entorno delimitada por aquele instituto. Parcela do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas se encontra dentro dessa área de entorno, estando sujeita, portanto, aos parâmetros de proteção e preservação histórica fixados pelo IPHAN para construções no local.

Nesse sentido, foram as conclusões do Parecer Técnico nº 01/FG/RVF/2004, elaborado por técnicos do IPHAN para atender demanda do MPF, à época, sobre a existência de valor cultural dos bens a serem alienados pela Rede Ferroviária Federal (fls. 10/25, Anexo I, vol. I).

O supracitado parecer teve por base a Legislação Federal de Preservação, em especial a Constituição Federal, o Decreto Lei nº 25 de 30.11.1937 e as demais Cartas Internacionais Patrimoniais das quais o Brasil é signatário. Sobre o imóvel Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, conclui que, na parte do terreno localizada no polígono de entorno dos bens federais situados nos bairros de São José e Santo Antônio, as construções devem contribuir para a preservação da ambiência e visibilidade destes monumentos, devendo manter a escala, gabarito, volumetria, densidade construtiva, tipo de cobertura (material, declividade e nº de águas), implantação no terreno, índice de utilização, taxa de ocupação, área verde, entre outros parâmetros que se façam necessários para que se crie uma convivência harmoniosa com as edificações antigas,

22 Para melhor visualização vide mapa - impresso e em mídia digital - da Zona de Preservação do patrimônio Histórico e Cultural dos bairros de Santo Antônio e São José (fls. 210/211).

23 Monumento Nacional, Processo 101-T/38, Inscrito sob o nº 82 no Livro das Belas Artes, vol. I, fl. 15, e Inscrição nº 42 no Livro Histórico, vol. I, fl. 09. Ambas inscrições em 24.05.1938.

24 Bem inscrito sob os nº's 469, no Livro do Tombo Histórico, e 535, no Livro do Tombo de Belas Artes, Processo Administrativo n 923-T/75.

25 Apud: Leonardo Dantas Silva. Pernambuco Preservado: histórico dos bens tombados no Estado de Pernambuco.

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucopromovendo também a criação de uma interface entre a zona da cidade onde quase tudo pode ser permitido e a zona do bem a ser protegido, de modo a não se passar de modo abrupto de uma para outra: é a manutenção do “clima” para que o ápice seja o monumento, para que o mesmo não seja “engolido” por construções de características diversas, fazendo-o passar desapercebido.

Nesse contexto, percebe-se que o Projeto Novo Recife, acaso construído como originalmente planejado, irá prejudicar a ambiência e visibilidade do acervo arquitetônico e cultural tombado pelo IPHAN naqueles bairros, parte do centro histórico da Cidade do Recife, sobretudo porque a sua arquitetura contrasta radicalmente com aquela prevista para o projeto26.

6 – DO DIREITO:

6.1 Da proteção ao patrimônio histórico e cultural – memória ferroviária:

De início, delimite-se o marco jurídico que garante a proteção à memória ferroviária, a partir do topo da pirâmide, a constituição, aos seus desdobramentos normativos.

A proteção ao patrimônio histórico tem cunho constitucional, porquanto a Constituição Federal de 1988 trata a questão de forma detalhada adotando a concepção de valor cultural de bens enquanto produto de cultura coletiva e tutelando a preservação do patrimônio cultural brasileiro, bem como impondo repressão a danos e ameaças ao referido bem:

"Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira nos quais se incluem:

(...)

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

(...)

§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei." (destacou-se)

26 Estão previstas pelo 13 torres de alto gabarito, apenas uma com menos de 30 andares (vide resumo do projeto no endereço eletrônico http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2012/11/integrantes-do-cdu-pedem-vistas-e-projeto-novo-recife-nao-e-votado.html).

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Tais preceitos normativos refletem a tendência do Estado contemporâneo para a ampliação da tutela aos interesses difusos, dentre os quais se encontra a proteção ao patrimônio cultural da nação, sendo este o testemunho da herança das gerações passadas, de modo a resguardar a identidade coletiva de um povo, assegurando, assim, o reconhecimento do indivíduo com determinada sociedade.

Ao interprete e aplicador da legislação cabe ter sempre em mente o intuito do Constituinte de 1988, quando disciplinou a proteção ao patrimônio cultural: a necessidade de preservação de um bem – a herança histórico e cultural – que exerce papel fundamental no presente e projeta-se no futuro, transmitindo às gerações vindouras referências de um tempo e de um espaço singulares, que jamais serão vividos, mas passíveis de serem revisitados – desde que se assegure o direito à memória. Em outros termos, pretende-se ver conservada a memória de fatos e valores culturais da nação brasileira.

É nesse contexto, o da ampliação da tutela do patrimônio cultural, que sobressai a obrigação imposta constitucionalmente ao Poder Público de zelar por tal bem, através de ações de difusão, criação e conservação. E, com base no princípio da intervenção estatal obrigatória, torna-se viável exigir do Poder Público o exercício efetivo das competências que lhe foram outorgadas constitucionalmente27, entre as quais se destacam:

"Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (…)III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; (destacou-se).

Não se restrinja a preservação por parte do Estado tão somente ao ato do tombamento. Preservar é conservar a memória, o que dá certa margem de liberdade à Administração para exercer atividades de proteção ao patrimônio histórico e cultural. Tanto assim, que o § 1º do art. 216 da CF/88 prevê diversas formas de acautelamento e preservação; formas estas, que devem se adequar à história e à vocação do bem de valor histórico e cultural, garantindo o cumprimento de sua função socioambiental.

Pois bem. Como parte integrante dessa categoria, o patrimônio cultural, aparece o patrimônio industrial, que compreende, conforme a Carta de Nizhny Tagil (de 2003, sobre a proteção ao patrimônio industrial):

“os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico,

27 Álvaro Luiz Valey Mirra. Princípios fundamentais do direito ambiental. In: Revista de Direito Ambiental, vol. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p.56.

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucotecnológico, social, arquitectônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram actividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação.” (fls. 99/112, Anexo I, vol. I)

É forma de expressão do patrimônio industrial o patrimônio ferroviário edificado, um dos tipos de empreendimento que ilustraram o processo de industrialização no mundo. Deveras, o patrimônio e a memória ferroviários se relacionam à história do desenvolvimento industrial, o qual, sob o paradigma ferroviário, reproduziu, em várias partes do mundo, uma determinada forma de viver e trabalhar que mudou as relações sociais e as condições técnica e econômicas dos meios de produção até então existentes.

Imbuído desse espírito de proteção e considerando que a história da ferrovia marcou a vida de milhões de brasileiros, o legislador ordinário editou a Lei nº 11.483/2007, prevendo medidas para preservação da memória ferroviária. Conforme visto linhas acima, o art. 9º do aludido diploma legal delegou ao IPHAN a competência para proceder à identificação e catalogação dos bens de valor histórico, artístico ou cultural oriundos da extinta RFFSA.

"Art. 9º Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção.

(…)

§ 2o

A preservação e a difusão da Memória Ferroviária constituída pelo patrimônio artístico, cultural e histórico do setor ferroviário serão promovidas mediante:

I - construção, formação, organização, manutenção, ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos e outras organizações culturais, bem como de suas coleções e acervos;

II - conservação e restauração de prédios, monumentos, logradouros, sítios e demais espaços oriundos da extinta RFFSA." (destacou-se)

Portanto, cabe ao IPHAN promover a proteção e a difusão da Memória Ferroviária, categoria que abrange todos os suportes e fontes de informação sobre o contexto ferroviário brasileiro, sobretudo os de ordem documental, histórica, iconográfica, arquitetônico-urbanística e sociológica, os quais propiciem dados sobre o funcionamento, os elementos constituintes e a dinâmica socioeconômica de tal contexto.

Visando se desincumbir da tarefa que lhe foi outorgada legalmente, o IPHAN criou um instrumento de proteção à Memória Ferroviária, a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário (Portaria nº 407/2010). Nesse cadastro, são inscritos

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucotodos os bens reconhecidos como portadores de valor histórico e cultural, que, a partir de então, passarão a gozar de proteção com vistas a evitar seu perecimento, apoiar a sua conservação e divulgar sua existência, in verbis:

"Art. 4º São passíveis de inclusão na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário os bens móveis e imóveis oriundos da extinta RFFSA:

I - Que apresentarem correlação com fatos e contextos históricos ou culturais relevantes, inclusive ciclos econômicos, movimentos e eventos sociais, processos de ocupação e desenvolvimento do País, de seus Estados ou Regiões, bem como com seus agentes sociais marcantes;

II - Portadores de valor artístico, tecnológico ou científico, especialmente aqueles relacionados diretamente com a evolução tecnológica ou com as principais tipologias empregadas no Brasil a partir de meados do século XIX até a década de 1970;

III - Cujo intuito de valoração cultural seja objeto de manifestação individual ou coletiva de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, desde que devidamente justificada, podendo ser, inclusive, motivada por seu valor simbólico.

Parágrafo único. Os bens passíveis de valoração serão analisados e avaliados, isoladamente ou em conjunto, mediante processo administrativo."

Ora, consoante exposto em tópico acima, o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas reúne os valores histórico, arquitetônico, arqueológico, paisagístico, de uso e de raridade, que refletem e indicam sua significância, em nível nacional, para a preservação da Memória Ferroviária. Isto porque os elementos materiais da memória ainda existentes naquele sítio evocam toda a lógica funcional, estrutural, de relações sociais e visual do sistema ferroviário brasileiro e do respectivo contexto de implantação.

Foi como concluiu o Grupo de Trabalho do IPHAN-PE, instituído especificamente para o fim de analisar a área do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas , em consonância com o estipulado no art. 5º, §§ 1º e 2º da Portaria nº 407/2010.

E não poderia ser diferente. Com efeito, o Pátio das Cinco Pontas remonta ao período de construção do sistema ferroviário brasileiro, no contexto do empreendimento da Estrada de Ferro Recife – São Francisco, a segunda estrada de ferro do Brasil. Mais: dos pátios ferroviários originais das primeiras ferrovias nacionais, o das Cinco Pontas é o que se encontra mais íntegro – conforme testemunho do multicitado Grupo de Trabalho – e ainda mantém ligação com o Porto do Recife, característica singular no Brasil.

Ainda. O Pátio Ferroviário das Cinco Pontas constitui um símbolo de identidade das classes operárias ferroviárias e da sociedade que usufruiu desse meio de transporte. Por isso mesmo, é um lugar de memória à medida que é testemunho vivo da herança cultural de gerações passadas, assim como uma referência para a formação

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoeconômico e territorial da cidade do Recife28.

Tudo isso somado denota a necessidade de proteção do Pátio das Cinco Pontas em sua integralidade, sem a fragmentação em áreas operacionais e não operacionais – como defende o Grupo de Trabalho do IPHAN-PE. Deveras, repita-se, o reconhecimento dos valores histórico, cultural etc. desse sítio passa pela compreensão de sua substância como “pátio”, lugar aberto e indivisível, cujas unidades não fazem sentido isoladamente. É que o complexo ferroviário, enquanto sistema, traduz uma lógica maior: as múltiplas relações (sociais, de funcionamento, de trabalho etc.) da operação ferroviária.

Aliás, a já citada Carta de Nizhny Tagil (2003) tece a seguinte recomendação para a proteção do patrimônio industrial:

“A conservação do patrimônio industrial depende da preservação da sua integridade funcional, e as intervenções realizadas num sítio industrial devem, tanto quanto possível, visar a manutenção desta integridade. O valor e a autenticidade de um sitio industrial podem ser fortemente reduzidos se a maquinaria ou componentes essenciais forem retirados, ou se os elementos secundários que fazem parte do conjunto forem destruídos.” (fls. 99/112, Anexo I, vol. I) (destacou-se)

Pois bem. Diante do arrazoado acima, esta demanda pretende obter tutela judicial que obrigue o IPHAN a desempenhar as tarefas que lhe foram outorgadas legalmente, especificamente a tomada de ações visando à preservação e difusão do Pátio das Cinco Pontas, enquanto bem de reconhecido valor histórico e cultural, representante da memória ferroviária nacional.

O Parecer Técnico de 17.12.2010 discriminou as medidas que deveriam ser tomadas pelo IPHAN para preservação da memória ferroviária do Pátio das Cinco Pontas. Além da necessidade de revisão das poligonais de entorno dos bairros de Santo Antônio e São José, no que concerne ao “Plano de conservação do Pátio Ferroviário e seu entorno”, arrolou as seguintes: i) diretrizes de uso e ocupação; ii) indicação de bens ferroviários a serem restaurados; iii) plano de gestão. Ademais, previu outras etapas relacionadas à promoção e fomento, prevendo, dentre outras medidas, a elaboração de ações de educação patrimonial e articulação com a sociedade civil (fls. 370, Anexo I, vol. II).

Urge a adoção de ações. É que, como relatado, o Município do Recife aprovou o Projeto Novo Recife, que prevê a construção de 13 torres de alto gabarito na parte não operacional do Pátio das Cinco Pontas. Tal projeto imobiliário, contudo, foi totalmente indeferido pelo Grupo de Trabalho multidisciplinar do IPHAN-PE, pois, caso executado, provocará “a perda desse lugar de memória representativo do

28 Isto porque, conforme elucidado nos pareceres técnicos do Grupo de Trabalho do IPHAN-PE, a configuração do Pátio das Cinco Pontas resulta da “aplicação das políticas defensivas holandesa e portuguesa por meio da manutenção do espaço livre da esplanada, necessária para a proteção do forte e da cidade, que mais tarde transformar-se-ia em um pátio ferroviário”.

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucopatrimônio ferroviário brasileiro”29.

Isto posto, deve-se obrigar o IPHAN, com base nos arts. 23, incs. III e IV, e 216, § 1º, da CF/88 c/c art. 9º da Lei nº 11.483/2007, a adotar estratégias de conservação e revitalização do Pátio das Cinco Pontas que respeitem a história e a vocação do sítio, o que implica analisar e aprovar qualquer projeto – público ou privado – de uso para o local, assim como estipular as devidas diretrizes de uso e ocupação da área.

Tal normatização deve ser editada com base em estudo ofertado por corpo técnico especializado, à semelhança do Grupo de Trabalho multidisciplinar nomeado para realizar os pareceres técnicos aqui já citados, de modo a garantir a consideração à vocação do imóvel (concepção espacial de “pátio”, lugar aberto) e à sua história.

Caso contrário, relegando-se ao poder econômico a forma de utilização indiscriminada do Pátio das Cinco Pontas, lugar de memória, corre-se o risco de perda do referencial histórico e de identidade da formação da sociedade brasileira, essencial à percepção e ao controle do processo de evolução a que está submetido um povo. E, por isso mesmo, viola-se diretamente o preceito contido no art. 216 da CF/88, retirando-lhe força normativa, conferindo status meramente simbólico à proteção constitucional ao patrimônio cultural.

6.2 – Da proteção à visibilidade dos bens tombados

Outro instrumento de proteção ao patrimônio cultural consiste no instituto do tombamento, previsto em nível constitucional (art. 216, § 1º) e regulamentado pelo Decreto-Lei nº 25/37. Segundo Hely Lopes Meireles, “tombamento é a declaração pelo Poder Público do valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico de coisas ou locais que, por essa razão, devam ser preservados, de acordo com a inscrição em livro próprio.”30

Como bem ensina Maria Coeli Simões Pires, o tombamento tem como fundamentos quatro pilares: o político, o constitucional, o infraconstitucional e o jurídico. Este último reside principalmente no poder de polícia que tem o Estado na proteção dos bens históricos e paisagísticos. E é justamente este poder de polícia aliado aos outros pilares do tombamento que justifica as limitações impostas aos bens tombados.

Ainda segundo Hely Lopes Meirelles, “o tombamento tanto pode acarretar uma restrição individual quanto uma limitação geral”31, sendo limitação geral aquela que abrange uma coletividade, obrigando-a a respeitar padrões urbanísticos ou arquitetônicos, como ocorre com o tombamento de locais históricos ou paisagísticos.

29 Memorando nº 0976/2011/IPHAN/PE (fls. 435/438, Anexo II, vol. II).30 Direito Administrativo Brasileiro. 21ª ed. São Paulo: Editora RT, 1996, p. 491.31 Hely Lopes Meirelles, op. cit., p. 492.

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Dadas as definições acima, ganha relevo, no presente caso, o art. 18 do DeL nº 25/37, que trata da visibilidade de bens tombados.

"Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso multa de cinqüenta por cento do valor do mesmo objeto." (destacou-se)

Entretanto, a legislação federal não previu a exata delimitação da área onde as limitações devem incidir, o que impõe ao aplicador da lei uma análise minuciosa no caso concreto do que seja visibilidade.

Mais uma vez recorrendo à lição de Hely Lopes Meirelles é necessário traçar o conceito de redução de visibilidade:

“O conceito de redução de visibilidade, para fins da lei de tombamento, é amplo, abrangendo não só a tirada da vista da coisa tombada como a modificação do ambiente ou da paisagem adjacente, a diferença de estilo arquitetônico e tudo o mais que contraste ou afronte a harmonia do conjunto, tirando o valor histórico ou a beleza original da obra ou do sítio protegido.”32

Maria Sylvia Zanella Di Pietro33 também trata da visibilidade, citando acórdão proferido pelo extinto Tribunal Federal de Recursos, na Apelação Cível 1.5 (Embargos)-PB, em 5 de dezembro de 1952, Rel. J.J Queiroz.

“Com relação ao alcance dessa restrição, foi proferido acórdão (in RT 222:559) em que se decidiu que ‘no conceito de visibilidade em relação a monumentos históricos há um sentido mais amplo que envolve outros aspectos além da simples visibilidade física, inclusive a respeitabilidade do imóvel protegido que pode ser prejudicada com ligeiras construções de madeira, como seja um pórtico com aparelhos de ginástica, embora não lhe impedindo de todo a visão’. Tratava-se de hipótese em que se pretendia erguer pórtico com aparelhos de ginástica nas proximidades de um convento tombado.”

Paulo Affonso Leme Machado,34 discorrendo sobre o instituto do tombamento, também se preocupou com visibilidade dos bens tombados:

“Procurou-se proteger a visibilidade da coisa tombada, seja monumento histórico, artístico ou natural. O monumento ensina pela presença e deve poder transmitir uma fruição estética mesmo ao longe. Não só o

32 Idem, ibidem, p. 493.33 Direito Administrativo. 4ª ed. Editora Atlas, 1994, p. 120.34 Direito Ambiental Brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 858.

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoimpedimento total da visibilidade está vedado, como a dificuldade ou impedimento parcial de se enxergar o bem protegido. Nota-se que a vizinhança passou a ser tutelada a ponto de Pontes de Miranda ensinar: ‘aí está, a favor do titular do direito de propriedade da coisa tombada, direito de vizinhança, não previsto no Direito das Coisas. Trata-se de direito público de vizinhança.” (grifei)

Esse conceito amplo da visibilidade do bem tombado vem justamente adequar-se à visão moderna do meio ambiente, pois não podem ser dissociados o bem ou o sítio histórico tombado do ambiente que o circunda. As modernas políticas ambientais, assim, têm dado relevo ao patrimônio cultural e as paisagens e edificações de seu entorno.

Como se vê nas exposições acima, é pacífico na doutrina que o conceito de vizinhança é amplo. Não abrange tão-somente a visão física do bem, mas principalmente a harmonia do ambiente em que está situado, incluindo aí seu estilo arquitetônico. Por isso mesmo, sofreu evolução tal conceito: passou-se ao conceito de ambiência, que ultrapassa a noção de arredores e compreende o meio em que o bem está inserido.

A ser assim, a delimitação do conceito legal de vizinhança não pode ser matemática. É no caso concreto que o aplicador da lei poderá avaliar se uma edificação poderá ou não infringir o art. 18 do Decreto nº 25/37.

Inclusive, conforme vem se sustentando, o DeL nº 25/37 deve ser interpretado sob a ótica da nova Constituição de 88, que avançou significativamente na proteção ao patrimônio histórico e cultural. Dessa forma, deve-se privilegiar a preservação de bens culturais brasileiros pelo seu valor intrínseco, em detrimento de aspectos formais relativos à sua proteção e aos instrumentos de tutela, de forma a garantir a efetiva proteção do patrimônio histórico e cultural exigida pela CF/88.

Qualquer obra que reduza a visibilidade de bem tombado deve ser obstada ou demolida. Mesmo que o imóvel a ser edificado não seja contíguo ao tombado, se reduzir a sua visibilidade, a construção daquele estará vedada pela legislação. Igualmente, qualquer elemento estranho ao meio circundante que prejudique a fruição ou apreciação do bem deve ser proibida, conforme art. 8º da Carta de Burra (1980)35, a seguir transcrito.

“A conservação de um bem exige a manutenção de um entorno visual apropriado, no plano das formas, da escala, das cores, das texturas, dos materiais. Não deve ser permitida qualquer nova construção, nem quaisquer demolições ou modificações suscetíveis de causar prejuízo ao entorno. A introdução de elementos estranhos ao meio circundante, que prejudique a apreciação ou fruição do bem, deve ser proibida.”

35 Disponível em http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=2512

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Estado de PernambucoPois bem. Consoante descrito em tópico acima, o Pátio Ferroviário das

Cinco Pontas compõe o ambiente do bairro de São José, que juntamente com o de Santo Antônio possuem um acervo de 16 bens tombados pelo IPHAN. Tal Pátio Ferroviário fica a uma distância mínima do Forte das Cinco Pontas e da Igreja de São José do Ribamar, sendo que parcela do imóvel se encontra inserida na poligonal de entorno36

dos 16 bens tombados.Primeiramente, sobre a poligonal de entorno estipulada para a área,

descrita em ato normativo aprovado na 110ª Reunião do Conselho Consultivo do IPHAN, em 30.08.1984, deve-se ter em conta que ela é atualmente insuficiente para a proteção da visibilidade dos monumentos históricos dos bairros de São José e Santo Antônio, em razão, principalmente, da imprevisibilidade, na época em que foi delimitada, de construções com altíssimo gabarito como as previstas no Projeto Novo Recife. Com efeito, no início da década de 80 não existia nem mesmo tecnologia para edificações de tal porte, o que enseja a atualização da zona de entorno em tela.

Aliás, entre as ações a cargo do IPHAN para a preservação do patrimônio histórico, arquitetônico e cultural do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, o Parecer Técnico do Grupo de Trabalho destacou a necessidade de revisão das poligonais dos bairros de Santo Antônio e São José; revisão esta, que o IPHAN-PE (5ª SR), já em seu Plano de Ação para 2007, havia previsto, visando a resguardar os bens culturais tombados naquela área, ante a proliferação de edificações de grande porte, mas até o momento não a levou a efeito37.

Ora, a ser assim, estando situado o Pátio Ferroviário no contexto do centro histórico do Recife e parcialmente inserido na defasada poligonal de entorno delimitada pelo IPHAN, é inequívoco que o Projeto Novo Recife, com suas altíssimas e modernas 13 torres, prejudicará radical e irreversivelmente a ambiência e interferirá negativamente na visada do acervo tombado.

Deveras, a preservação da ambiência – e, repise-se, tal conceito não pode ser definido de modo matemático e inflexível – de sítio histórico tombado exige que as construções nele inseridas se harmonizem com as antigas, mantendo, para tanto, a

36 Ver fls. 67-69.37 A propósito do aludido projeto de revisão, confira-se o seguinte trecho do parecer de autoria do

Procurador Federal do IPHAN Nelson Lacerda Soares, apresentado nos autos da Ação Civil Pública nº 2005.83.00.004462-1, referente à construção das Duas Torres no Cais de Santa Rita: “à época da realização dos estudos para delimitação da área do entorno dos Bairros de Santo Antonio e São José, nos meados dos anos 80, não eram construídos, na cidade do Recife, edifícios com o gabarito de 132,72m, nem, tampouco (sic), havia tecnologia disponível e acessível para a construção de prédios desse porte, o que só veio a ocorrer há aproximadamente 6 anos. Verificando-se, ainda, a legislação municipal, vigente em 1985, constata-se que também não poderiam ser aprovados projetos com esse gabarito. (…) diante de tal situação, a 5ª SR/IPHAN, em seu Plano de Ação para o ano de 2007, previu recursos para o projeto de 'REVISÃO DO POLÍGONO DE ENTORNO DOS MONUMENTOS TOMBADOS PELO IPHAN NOS BAIRROS DE SANTO ANTONIO E SÃO JOSÉ', que tem como objetivo rever as referidas poligonais, visando resguardar os bens culturais tombados naquela área, em face da proliferação de edificações de grande porte”. (Apud: Ação civil pública – um dilema referente ao patrimônio histórico e ambiental à luz de um paradigma em juízo. Hélio Silvio Ourém Campos. BDJur, Brasília/DF, 20 set. 2010. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/33003>.)

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoescala, o gabarito, a densidade construtiva, entre outros parâmetros, de modo a não se passar de modo abrupto e contrastante para a zona de tombamento.

In casu, o acervo tombado pelo IPHAN será “engolido” pelas construções do Projeto Novo Recife, com características diversas e que desvalorizam os monumentos históricos. Em outros termos, as 13 torres previstas (apenas uma com menos de 30 andares e a maior com 41!), estando no meio circundante dos bens tombados, não favorecerão a presença destes; pelo contrário, fá-lo-ão passar despercebidos.

É que os edifícios do bairro histórico de São José guardam – especialmente na vizinhança do Forte das Cinco Pontas e da Igreja São José do Ribamar – características tipo-morfológicas dos séculos XVIII e XIX e possuem, na área vizinha ao Pátio Ferroviário, poucos pavimentos – em geral, edifícios de 02, 03 ou 04 andares.

Desse modo, não há duvidas de que as 13 torres – com média de 30 andares– provocarão uma completa ruptura do padrão formal e de visibilidade dos monumentos tombados no bairro de São José. Elas, as torres, passarão a ser o monumento principal da região, por sua altíssima escala, relegando os monumentos históricos a um papel secundário

A propósito da preservação da ambiência, veja-se o que salientou o Parecer Técnico sobre o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, elaborado pelo Grupo de Trabalho do IPHAN-PE:

“Entende-se, assim, que a importância do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas não se encerra em si, mas como nexo essencial com o tecido urbano do centro histórico do Recife, configurando-se como um espaço vazio que desenha o perfil e a frente d'água do bairro de São José.” (fls. 366, Anexo I, vol. II)

Portanto, quaisquer construções no terreno onde situado o Pátio das Cinco Pontas devem guardar não apenas compatibilidade com a vocação do sítio (de área aberta, com pouca densidade construtiva), como também com as edificações dos bairros históricos de São José e Santo Antônio, contribuindo para a preservação da visibilidade destes monumentos.

Nesse sentido, o mesmo Parecer Técnico citado acima ressalta que,in verbis:

“novos usos podem ser compatibilizados com o sítio e o seu entorno, desde que mantidas as atividades atuais e garantidas as possibilidades de ampliação daquelas operações [ferroviárias], sem prejuízos para o acervo arquitetônico, urbanístico, arqueológico e histórico reunido nos bairros adjacentes de São José, Santo Antônio e Recife”. (fls. 367, Anexo I, vol. II) (grifou-se)

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Foi, ainda, elaborado o Parecer Técnico nº 208/2012-4ª CCR por analista de arquitetura da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF após vistoria no local. No parecer, a perita situa o Pátio das Cinco Pontas no contexto de um centro histórico e chama atenção para o prejuízo ao patrimônio histórico e cultural em decorrência de construção no vizinho Cais de Santa Rita, destaque-se trecho abaixo transcrito38, in verbis:

“(…) a história do Recife está ligada ao modo como foi ocupada, com início pelos bairros que compõem o centro histórico a cidade. São vários elementos urbanísticos, próprios de cada época, que determinam essa ocupação e demarcam as etapas de crescimento do Recife nos séculos XVII e XVIII, significado muito importante para a memória urbana.

É lamentável que, no Cais de Santa Rita (vizinho ao Cais José Estelita), tenham sido construídos os dois edifícios conhecidos como “torres gêmeas”. Eles comprometeram a visibilidade dos bens tombados e fizeram com que estes perdessem sua relevância na unidade da paisagem urbana, pois se destacam do conjunto e chamam a atenção para si. Além disso, o perfil arquitetônico do centro histórico também foi drasticamente alterado, já que a verticalidade das 'torres gêmeas' contrasta com o perfil horizontal do local.

Os conjuntos antigos, como é o caso do centro histórico do Recife, devem ser compreendidos pelo observador como um todo arquitetônico e não como parte de uma paisagem urbana heterogênea. Dessa forma, o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas necessita ser apreciado como uma área dentro de um contexto e não como um terreno isolado. O local é elemento essencial da ambiência dessa região do Recife e compõe o todo, que é formado pelo centro histórico e pelo rio, ambos símbolos da cidade. O pátio ferroviário está encravado entre os monumentos tombados e a frente d'água, marcando a transição entre duas cidades: a nova e a antiga.” (destacou-se) (fls. 92/123)

Do excerto, depreende-se que o Projeto Novo Recife, com os 13 edifícios de exorbitante gabarito, tal qual o caso das “torres gêmeas”, contrastará com o perfil horizontal dos bairros históricos e, ao chamar atenção para si, fará com que os bens tombados percam sua relevância na paisagem urbana, reduzindo a sua visibilidade, o que é vedado pelo art. 18 do DeL nº 18/37.

Ainda sobre a questão da visibilidade dos bens tombados, confira-se trecho retirado de artigo de autoria de Antônio Silveira R. dos Santos, Juiz de Direito em São Paulo, e publicado no Correio Brasiliense em 20 de maio de 2002:

“Diz o art. 18 do Decreto-lei nº 25/37 que ‘sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não poderá, na vizinhança de coisa tombada, fazer construção que impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser

38 Fls. 92-118.2

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucomandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a multa de cinqüenta por cento do valor do mesmo objeto’.

Com essa disposição, o legislador quis proteger a visibilidade do bem tombado, mormente porque um edifício tombado por representar uma arquitetura antiga ou histórica pode perder seu efeito de registro histórico, caso venha a ter sua visibilidade prejudicada, perdendo assim uma de suas principais motivações de preservação. Assim, quando se fala em vizinhança, está se falando em entorno, e vizinhança não quer dizer que deva ser o imóvel do lado, ou limítrofe, pode ser imóvel que guarda certa distância. No caso de preservação da estética externa de edifício, é evidente que esse conceito de vizinhança e entorno tem que ser considerado mais amplo, devendo ir até aonde a visão do bem alcança a sua finalidade, que é permitir a conservação de sua imagem de importância arquitetônica ou histórica, ou até onde a influência de outros imóveis não atrapalha a sua imagem a ser preservada, a qual muitas vezes inclui jardins, fontes e visualização ímpar. Assim, a imagem do bem constituído de importância deve fluir livre de empecilhos.

Em suma, os proprietários de prédios vizinhos de bem imóvel tombado sofrem restrições administrativas em seu direito de construir, por força das consequências do tombamento. Não podem, assim, em sua área de entorno ou envoltória, construir sem a devida autorização do órgão competente, sob pena de se ver obrigado a pagar multa, independentemente de ser compelido a demolir a obra e restaurar o local, inclusive por ordem judicial, (...)”. (destacou-se)

Da análise do Projeto Novo Recife, conclui-se que o empreendimento aprovado pelo Município do Recife trará enorme prejuízo ao patrimônio histórico e cultural nacional, pelo que deve ser obstado pelo Poder Judiciário federal.

Ressaltando o conceito de visibilidade de Hely Lopes Meirelles e Paulo Affonso Leme Machado, transcritos acima, já decidiu o TRF da 5ª Região, na AC nº 3214-SE, Rel. Desembargador Federal Lázaro Guimarães:

“Ementa: Administrativo. Prédio tombado. Obra que prejudica a sua visibilidade e situa-se em sua vizinhança. Demolição com base no art. 18 do Decreto Lei 25/37. Apelo e remessa improvidos.”

Do voto do Desembargador Federal Lázaro Guimarães, extrai-se:

“O laudo pericial (fls. 82/83), subscrito inclusive pelo assistente técnico da apelante, conclui que a construção embargada prejudica, ora parcial, ora totalmente, dependendo do ângulo em que se coloque o observador, a visibilidade do monumento tombado, com quebra da harmonia do conjunto arquitetônico. Esclarece, mais, que a obra se encontra na vizinhança da Igreja Matriz, dela distando apenas 44,10 metros. Nessa prova se baseou o culto Juiz sentenciante e, mais, nas lições sobre os conceitos de visibilidade e de vizinhança, aplicados à preservação de monumentos, de Karl Engisch, Hely Lopes Meirelles e

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Procuradoria da República no Estado de PernambucoPaulo Afonso Lema Machado. Sem razão a apelante quando afirma que a sentença ampliou a extensão do tombamento. O art. 18 do Decreto lei 25/37 é claro quando proíbe construção na vizinhança de obra tombada, impedindo-lhe ou reduzindo a visibilidade.” (destacou-se)

Na mesma linha, o seguinte julgado do TRF 5ª Região:

"ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ONUS DA PROVA. MONTES GUARARAPES. DECRETO-LEI 25/37.- Nos termos do art. 18 do Decreto-lei 25/37, é vedada a construção que impeça ou reduza a visibilidade do bem tombado, sob pena de demolição, ainda que localizado fora dos limites da propriedade pública.- Apelação provida."(TRF - 5ª Região, 1ª Turma, AC nº 7730 /PE, Rel. CASTRO MEIRA, j. 22.11.90, DJ 28.12.90, p. 31509) (destacou-se)

Também assim, já decidiu o TRF da 4ª Região:

"DIREITO CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. BEM TOMBADO. CONSTRUÇÃO IRREGULAR NO ENTORNO. ART. 216, § 1º, DA CRFB. ART. 18 DO DECRETO-LEI N.º 25/37. - A construção irregular, em área próxima de bem tombado em razão de suas características históricas e arquitetônicas, justifica a decisão judicial de demolição, pois o interesse individual do proprietário deve ceder diante do interesse social do poder publico na preservação do bem cultural. "(TRF 4R, 4ª Turma, AC 200372010006766, Rel. Desembargador Edgard Antônio Lippmann Júnior, Data da decisão 18/06/2008) (destacou-se)

Do voto do Relator Des. Lippman Júnior prolatado no julgado acima, destaca-se o entendimento de que “a regra contida no art. 18 do DL 25/37 (...) não visa apenas a evitar que a construção prejudique a visibilidade do bem, mas também a preservar a harmonia e a estética da obra tombada, que integram indiscutivelmente o seu valor, mormente por se tratar de um patrimônio coletivo”.

Isto posto, considerando que (i) o conceito de vizinhança não é matemático, que (ii) o art. 18 do DeL nº 25/37 deve ser interpretado à luz do art. 216 da CF/88, e que (iii) a atual poligonal de entorno não é adequada à nova realidade de estrondosa verticalização da cidade do Recife, é inevitável a conclusão de que as 13 torres de altíssimo gabarito a serem construídas formarão uma verdadeira barreira ao longo do Cais José Estelita, impedindo a visibilidade do acervo tombado, e chamarão para si a condição de protagonista, ofuscando o valor do patrimônio histórico-cultural dos bairros de São José e Santo Antônio.

Por último, cabe agregar aos fundamentos ora deduzidos a aplicação, à área em questão, do Decreto-Lei nº 3437, de 17.07.1941, que dispõe sobre o

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoaforamento de terrenos e a construção de edifícios em terrenos das fortificações. Deveras, o imóvel objeto desta demanda confronta-se com o Forte das Cinco Pontas, o que enseja a definição do entorno de tal bem tombado, conforme dispõe a legislação citada. Veja-se abaixo.

"Art. 1º. Na 1ª zona de 15 braças (33 metros) em torno das fortificações. nenhum aforamento de terreno será concedido e nenhuma construção civil ou pública autorizada, considerando-se nulas as propriedades porventura existentes, sem ônus para o Estado.

Art. 2º. Na 2ª zona de 600 braças (1.320 metros) observar-se-á o seguinte:a) Nenhum novo aforamento de terreno será concedido; b) nenhuma construção ou reconstrução será permitida fora dos gabaritos determinados pelo Ministério da Guerra que poderá também promover a desapropriação do imóvel, se necessitar do terreno as obras da Organização da Defesa da Costa; c) qualquer construção ou reconstrução em andamento, ou já autorizada, será sustada, para cumprimento do disposto na letra anterior." (grifou-se)

Sem a definição do entorno do Forte das Cinco Pontas, inclusive do gabarito determinado para a área, nenhum projeto poderia ser aprovado pelo Município do Recife e levado a efeito pelo Consórcio Novo Recife, o que denota a necessidade de tutela jurisdicional contra o ilícito de um e outro réus.

6.3 – Da infração à legislação municipal:

O empreendimento aprovado pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano do Município do Recife ora atacado, além de ferir o art. 18 do Decreto-Lei nº 25/37, afronta também a legislação municipal que prevê exaustivamente a proteção ao patrimônio histórico e cultural. A Lei n.º 17.511/2008, que promoveu a revisão do Plano Diretor do Município do Recife, prevê em diversos dispositivos a obrigatoriedade de preservação ao patrimônio histórico e cultural da cidade.

Ao disciplinar os princípios fundamentais da política urbana, a citada Lei dispõe:

"Art. 2º. A política urbana do Município do Recife observará os seguintes princípios fundamentais:

(...)

II - função social da propriedade urbana;

III – sustentabilidade;

(...)

Art. 4º. Art. 4º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas

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Procuradoria da República no Estado de Pernambuconeste Plano Diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, à acessibilidade e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas na legislação urbanística e quando for utilizada para:

I - habitação, especialmente de interesse social;

II - atividades econômicas geradoras de trabalho, emprego e renda;

III - proteção e preservação do meio ambiente;

IV - proteção e preservação do patrimônio histórico e cultural;

V - equipamentos e serviços públicos; e,

VI - usos e ocupações do solo compatíveis com a infra-estrutura urbana disponível ou projetada.

Parágrafo único. A atuação do Poder Público deverá garantir o cumprimento, pelo proprietário, das condições estabelecidas em função do interesse social, ao exercício do direito de propriedade. (grifou-se)

Art. 5º A sustentabilidade urbana é entendida como o desenvolvimento local equilibrado nas dimensões social, econômica e ambiental, embasado nos valores culturais, no fortalecimento político-institucional, integrando políticas públicas, orientado para a melhoria contínua da qualidade de vida das gerações presentes e futuras, apoiando-se:

I - na promoção da cidadania, justiça social e inclusão social;

II - na valorização e requalificação dos espaços públicos, da habitabilidade e da acessibilidade para todos;

III - na ampliação das oportunidades através do trabalho, da educação e da cultura;

IV - na melhoria da qualidade de vida na promoção da saúde pública e do saneamento básico e ambiental;

V - na recuperação, proteção, conservação e preservação dos ambientes natural e construído, incluindo-se o patrimônio cultural, histórico, artístico e paisagístico;; (...)". (grifou-se)

E mais à frente, estipula, como um dos objetivos gerais da Política Urbana do Município do Recife, a manutenção e a ampliação dos programas de preservação do patrimônio construído, assim como o incentivo à sua conservação e manutenção (art. 8º, V).

D'outro lado, da Lei nº 16.176/96, a qual dispõe sobre o uso e a ocupação do solo da Cidade do Recife, destacam-se as seguintes normas:

"Art. 61. Os Empreendimentos de Impacto são aqueles usos que podem causar impacto e/ou alteração no ambiente natural ou construído, ou sobrecarga na capacidade de atendimento de infra-estrutura básica, quer sejam construções públicas ou privadas, habitacionais ou não-habitacionais.

Parágrafo único. São considerados Empreendimentos de Impacto aqueles localizados em áreas com mais de 3 ha (três hectares), ou cuja área construída ultrapasse 20.000m² (vinte mil metros quadrados), e ainda

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoaqueles que por sua natureza ou condições requeiram análises especificas por parte dos órgãos competentes do Município.

Art. 62. A instalação de Empreendimentos de Impacto no Município é condicionada à aprovação, pelo Poder Executivo, de Memorial Justificativo que deverá considerar o sistema de transportes, meio ambiente, infra-estrutura básica e os padrões funcionais e urbanísticos de vizinhança.

§ 1° O Memorial exigido no “caput” deste artigo será objeto de apreciação pela Comissão de Controle Urbanístico - CCU - e pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano - CDU."

Portanto, nos termos do art. 62 da Lei municipal nº 16.176, um dos aspectos definidores do impacto do empreendimento consiste justamente nos padrões urbanísticos de vizinhança.

Posteriormente, a Lei nº 17.511/2008 regulou os empreendimentos que necessitariam de Estudo de Prévio Impacto de Vizinhança (EIV), previsto no Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001)39. Veja-se como dispôs a lei municipal a seguir.

"Art. 187 Empreendimentos de impacto são aqueles, públicos ou privados, que podem causar impacto no ambiente natural ou construído, sobrecarga na capacidade de atendimento da infra-estrutura básica, na mobilidade urbana ou ter repercussão ambiental significativa.

Art. 188 São considerados empreendimentos de impactos:

I - as edificações não-habitacionais situadas em terrenos com área igual ou superior a 2,0 ha (dois hectare) ou com área construída igual ou superior a 15.000 m² (quinze mil metros quadrados);

II - as edificações habitacionais situadas em terrenos com área igual ou superior a 3,0 ha (três hectares) ou cuja área construída ultrapasse 20.000 m² (vinte mil metros quadrados);

(...)

§ 2º A aprovação dos Empreendimentos de Impacto fica condicionada ao cumprimento dos dispositivos previstos na legislação urbanística e à aprovação, pelos órgãos competentes da Administração Municipal, de Estudo de Impacto de Vizinhança, a ser apresentado pelo

39 “Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal.

Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões: (…) VII – paisagem urbana e patrimônio natural e cultural. Parágrafo único. Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do EIV, que ficarão disponíveis para consulta, no órgão competente do Poder Público municipal, por qualquer interessado.

Art. 38. A elaboração do EIV não substitui a elaboração e a aprovação de estudo prévio de impacto ambiental (EIA), requeridas nos termos da legislação ambiental.”

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucointeressado.

(…)

Art. 189 O Estudo de Impacto de Vizinhança deverá analisar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e em suas proximidades, incluindo, de acordo com o nível de impacto, a análise das seguintes questões:

I - meio ambiente;

II - sistema de transportes;

III - sistema de circulação;

IV - infra-estrutura básica;

V - estrutura sócio-econômica;

VI - uso e ocupação do solo;

VII - adensamento populacional;

VIII - equipamentos urbanos e comunitários;

IX - valorização imobiliária;

X - ventilação e iluminação;

I - paisagem urbana e patrimônio natural e cultural;

XII - definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, bem como daquelas potencializadoras dos impactos positivos;

XIII - impactos do empreendimento no sistema de saneamento e abastecimento de água; e,

XIV - proteção acústica e outros procedimentos que minimizem incômodos da atividade à vizinhança;

(…)

§ 2º Lei específica definirá os níveis de impacto para os Empreendimentos de que tratam os artigos 187 e 188 desta Lei.

§ 3º Até a edição de Lei específica, para regulamentação dos níveis de impacto, será aplicado o disposto na Lei nº 16.176/96.

Art. 190 O Poder Executivo, baseado no Estudo de Impacto de Vizinhança, poderá condicionar a aprovação do empreendimento à execução de medidas, às expensas do empreendedor, para eliminar ou minimizar impactos negativos a serem gerados pelo empreendimento, bem como propor melhorias na infra-estrutura urbana e de equipamentos comunitários, tais como:

I - ampliação das redes de infra-estrutura urbana;

II - ampliação e adequação do sistema viário, faixas de desaceleração, pontos de ônibus, faixas de pedestres, semaforização;

III - manutenção de imóveis, fachadas ou outros elementos arquitetônicos ou naturais considerados de interesse paisagístico, histórico, artístico ou cultural, bem como recuperação ambiental da área; e,

IV - recuperação ou implantação de áreas verdes.

§ 1º Para a instalação de Empreendimentos de Impacto, os moradores dos lotes circundantes, confinantes e defrontantes serão necessariamente cientificados, através de publicação em Diário Oficial ou jornal de grande circulação e placa indicativa instalada no local, com informação sobre o

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoempreendimento, às custas do requerente, para apresentar oposição fundamentada, no prazo de 15 (quinze) dias, a ser apreciada pelo órgão competente da municipalidade, nos termos da lei específica.

§ 2º Dar-se-á ampla publicidade aos documentos integrantes do Estudo de Impacto de Vizinhança - EIV e do Relatório de Impacto de Vizinhança - RIV, que ficarão disponíveis para consulta no órgão municipal competente para quaisquer interessados.

§ 3º A elaboração do Estudo de Impacto de Vizinhança - EIV não substitui o licenciamento ambiental requerido nos termos da legislação ambiental do município.

§ 4º O órgão responsável pela análise do EIV, sempre que solicitado, realizará audiência pública na forma da lei específica."

Ora, o Projeto Novo Recife foi aprovado pelo CDU do Município do Recife com total desconsideração dos dispositivos normativos acima elencados. É bastante claro, por quanto exposto em relação ao bairro histórico de São José, que a construção de 13 torres de altíssimo gabarito provocará uma radical ruptura com os padrões urbanísticos da vizinhança, cujas edificações possuem poucos pavimentos e com características dos séculos XVIII e XIX.

A imagem que se tem dos bairros de São José, Santo Antônio e até mesmo do Bairro do Recife será inteiramente modificada com a construção dos “espigões”, tomando-se como referencial as pontes Gov. Agamenon Magalhães (Ponte do Pina) e Gov. Paulo Guerra.

Assim, pode-se dizer que o projeto imobiliário ora impugnado carece de sustentabilidade e não cumpre sua função social, nos termos dos arts. 4º e 5º da Lei nº 17.511/2008, pois vai de encontro à proteção e à preservação do patrimônio histórico e cultural, como visto.

Todavia, não será apenas a paisagem arquitetônica que será impactada pelo empreendimento. O bairros de São José e Santo Antônio, com baixíssimas densidades demográficas, sofrerão o acréscimo imediato de aproximadamente mil unidades habitacionais, além de outras centenas, entre unidades empresariais e hoteleiras.

Por isso mesmo, deveria ter sido realizado o Estudo de Impacto de Vizinhança, exigido pelo Estatuto das Cidades e pela legislação municipal, pois é inequívoco que o Projeto Novo Recife é um empreendimento de impacto, nos termos do art. 188 da Lei nº 17.511/2008.

É facilmente dedutível – aliás, o legislador municipal já assim ponderou – que a construção de 13 Torres – sendo oito residenciais e cinco de uso comercial – de 33 a 41 andares, apenas uma como 2140, trará grande alteração ao ambiente natural e construído e à qualidade de vida da população da área e arredores, inclusive quanto ao

40 http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2012/11/integrantes-do-cdu-pedem-vistas-e-projeto-novo-recife-nao-e-votado.html

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucomeio ambiente, sistema de transportes, ventilação e iluminação etc. Contudo, um estudo minucioso sobre tais questões, sobre, em suma, os efeitos negativos e positivos do empreendimento não foi feito, ressalvando, de logo, que ao EIV não se equipara o simples Memorial Justificativo a que faz referência o art. 62 da Lei nº 16.176/96 acima transcrito.

Por mais esse motivo não poderia ter sido aprovado o Projeto Novo Recife pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano do Município do Recife, já que não houve a realização de EIV, consoante exige expressamente a norma do § 2º do art. 188 da Lei nº 17.511/2008.

6.4 – Da nulidade da decisão de aprovação do Projeto Novo Recife

Diante das imposições constitucional e da legislação infraconstitucional quanto à proteção ao patrimônio cultural e histórico, acima elencadas, nota-se que existiam claros impedimentos e pressupostos à aprovação do Projeto Novo Recife pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano do Município do Recife.

Primeiramente, em virtude do potencial dano ao acervo tombado dos bairros históricos de São José e Santo Antônio e à Memória Ferroviária, qualquer obra referente ao Pátio Ferroviário das Cinco Pontas deveria ser rigorosamente analisada e aprovada previamente pelo IPHAN, considerando os arts. 18 do DeL 25/37 e 9º da Lei nº 11.483/2007. Contudo, assim não ocorreu, uma vez que a única análise técnica dos projetos pelo IPHAN foi no sentido de indeferi-los (fls. 435/438, Anexo I, vol. II).

Em segundo lugar, não se sabe se o empreendimento imobiliário ora impugnado atende ao previsto no Decreto-Lei nº 3.437/41 – que dispõe sobre a construção em terreno de fortificação e define parâmetros de defesa e segurança para as construções na área de entorno de fortificações, inclusive quanto ao gabarito –, considerando sua proximidade em relação ao Forte das Cinco Pontas. Por isso mesmo, a aprovação do Projeto Novo Recife deveria ter sido precedida da delimitação da zona de entorno daquele Forte, o que igualmente não aconteceu.

Inclusive, o IPHAN-PE (5ª SR), exercendo timidamente suas atribuições legais, encaminhou à Prefeitura do Recife o Ofício nº 0321/2012, de 26.03.2012, ratificado pelo Ofício nº 0979/201241, de 21.08.2012, no qual condiciona a conclusão da análise do Projeto Novo Recife e respectivos processos pela Prefeitura do Recife à prévia assinatura de um Termo de Compromisso entre aquela, o próprio IPHAN, a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT e o Consórcio Novo Recife, de modo a compensar e mitigar os impactos ao patrimônio cultural vizinho. O que não foi respeitado pelo Município do Recife, pois o CDU aprovou o empreendimento imobiliário sem ao menos existir a minuta do Termo de Compromisso.

Também por não tendo sido ajustada a conduta do empreendedor por

41 Fls. 60-62.3

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucomeio de Termo de Compromisso com o IPHAN antes da aprovação do projeto arquitetônico, não há qualquer garantia de que sejam resguardados os bens arqueológicos e históricos presentes na área do Pátio Ferroviário. É que, com fundamento na Lei nº 3.924/61, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos, qualquer empreendimento de magnitude deve considerar a existência, evidenciada ou não, de sítios arqueológicos pré-históricos e/ou de interesse histórico na região impactada pelas obras42.

Sendo assim, nos expedientes acima citados (ofícios nº's 0321 e 0979/2012), o IPHAN – a quem a Lei nº 3.924/61 atribuiu ainda a proteção dos monumentos arqueológicos e pré-históricos – condicionou o início das obras de construção do empreendimento imobiliário “Novo Recife” à “implementação de procedimentos de arqueologia preventiva – diagnóstico, prospecção e resgaste, com a finalidade de caracterizar e mitigar potenciais danos ao patrimônio cultural tangível e intangível na área de vizinhança e de influência do empreendimento, demarcar e registrar os remanescentes dos equipamentos e o patrimônio cultural do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, bem como subsidiar a elaboração do mapeamento histórico/cultural com vistas à compreensão da ocupação histórica do referido pátio”.

Todavia, até então, o Consórcio Novo Recife não pediu autorização ao IPHAN para a realização desse procedimento de arqueologia preventiva, mediante a apresentação prévia de projeto de pesquisa arqueológica, como o exige a Portaria IPHAN nº 07/88. Assim, aprovado o projeto sem a realização de Termo de Compromisso e sem ter sido levado a efeito tal procedimento, corre-se grande risco de ocasionar ainda mais danos ao patrimônio histórico-cultural, violando-se a Lei nº 3.924/61.

Esclareça-se que o TAC proposto com o IPHAN, com a previsão de medidas compensatórias apenas, não se presta para o fim de preservar o patrimônio histórico e ferroviário, em face dos motivos expostos acima. Todavia, nem mesmo esse TAC com medidas mínimas de compensação foi realizado, não havendo qualquer garantia, sobretudo considerando a fase avançada do projeto na Prefeitura, de que seja efetivamente celebrado.

Mais. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte – DNIT e a Agência Nacional de Transporte Terrestre – ANTT deveriam ter sido consultados formalmente a respeito do Projeto Novo Recife, como, aliás, lembrado à Prefeitura do Recife no aludido Ofício nº 0321/2012/Superintendência do IPHAN/PE. Isto porque o terreno para onde está previsto Projeto Novo Recife situa-se em área que envolve trecho de ferrovia em operação (área operacional da extinta RFFSA), pertencente ao DNIT (art. 8º, I, Lei nº 11.483/200743).

42 “Art 3º São proibidos em todo o território nacional, o aproveitamento econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas ou pré-históricas conhecidas como sambaquis, casqueiros, concheiros, birbigueiras ou sernambis, e bem assim dos sítios, inscrições e objetos enumerados nas alíneas b, c e d do artigo anterior, antes de serem devidamente pesquisados, respeitadas as concessões anteriores e não caducas.”

43 “Art. 8o Ficam transferidos ao Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes – DNIT: I - a propriedade dos bens móveis e imóveis operacionais da extinta RFFSA; (...)”.

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Deveras, o uso das áreas adjacentes à ferrovia deve obedecer a condições de segurança do trânsito. A propósito, o Regulamento da Segurança, Tráfego e Polícia das Estradas de Ferro (aprovado pelo Decreto nº 2.089/63) estabeleceu uma “faixa de segurança”, cujos limites laterais são fixados por uma linha distante 6m do trilho exterior (art. 9º, § 2º). E, ainda, a Lei nº 6.766/79, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano, previu uma faixa não edificável de 15m, no mínimo, ao longo da faixa de domínio da ferrovia44 (art. 4º, III).

Por isso mesmo, é imprescindível a manifestação do DNIT e da ANTT, além da própria concessionária do serviço de transporte ferroviário (in casu, a Transnordestina Logística S.A), a respeito do projeto previsto para área situada junto à operação ferroviária. Sobre o assunto, em reunião realizada em 24.01.201345, nesta Procuradoria da República, com o Substituto do Superintendente Regional do DNIT, Milton Rattacaso, e o Coordenador de Patrimônio da inventariança da extinta RFFSA, André Lopes, ambos salientaram a necessidade de o Projeto Novo Recife ser submetido à aprovação dos entes citados, ratificando declarações já prestadas ao Ministério Público de Pernambuco (fls. 195/197).

Ainda nessa ocasião, observando cópia da planta extraída do projeto que consta na Prefeitura do Recife46, o representante do DNIT e o Coordenador de Patrimônio da inventariança da extinta RFFSA verificaram erros consistentes em cruzamentos rodoviários em nível em dois pontos do Pátio, além de cruzamento de pedestres47, o que demonstra quão precoce foi a aprovação do Projeto pelo CDU.

A ser assim, carecendo da análise de outros órgãos, o Projeto Novo Recife nunca poderia ter sido aprovado pelo Município do Recife. A propósito, a Lei nº 16.292/97, que regula as atividades de edificações e instalações no Município do Recife, assim dispõe:

"Art. 269. As obras e instalações, que dependam da anuência prévia de órgãos da esfera estadual ou federal, na forma da legislação pertinente, somente serão licenciadas pelo Município após o cumprimento, pelo interessado, das exigências estabelecidas por aqueles órgãos.

Art. 271. Os processos, que dependam de anuência prévia ou parecer de órgão de outras esferas de governo, só poderão ser aprovados,

44 A faixa de domínio corresponde à base física sobre a qual se assenta a ferrovia e, no caso do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, é igual a linha poligonal que contorna os bens operacionais.45 Ver Termo de declarações às fls. 208/209 .46 Fls. 202-207.47 A propósito, o Regulamento da Segurança, Tráfego e Polícia das Estradas de Ferro assim dispõe: “Art.

12. (…) § 2º Só excepcionalmente se admitirá cruzamento em nível, mediante prévia autorização do D.N.E.F. e adoção de medidas que garantam a plena segurança do tráfego, em ambas as vias, notadamente as previstas pelas normas expedidas ou recomendadas pelo D.N.E.F”. E, mais à frente: “Art. 17. Todos os projetos de travessia e cruzamento de linhas férreas, como os das obras através de rios, braços de mar ou canais navegáveis serão submetidos à aprovação prévia do Ministério da Viação e Obras Públicas ouvidos os órgãos competentes de outros ministérios, quando necessários.”

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucopelo Município, quando o interessado cumprir as exigências emanadas daqueles órgãos.

Desse modo, a aprovação do Projeto Novo Recife pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano, em 28.12.2012, vai contra expressas disposições de lei, pelo que é nula de pleno direito.

É incontroverso que o Município do Recife detém competências no plano de edificação local. Contudo, tal competência deve ser exercida observando as outras esferas federativas quanto às respectivas atribuições e legislações, o que não foi feito no presente caso.

Do mesmo modo, consoante visto acima, não foi apresentado para o projeto ora impugnado o Estudo de Impacto de Vizinhança, exigido pelo Estatuto das Cidades e pela legislação municipal. Ora, nos termos do art. 188, § 2º da Lei municipal nº 17.511/2008, a aprovação de empreendimento de impacto fica condicionada à aprovação pela Administração Municipal do EIV, o que invalida, por mais esse motivo, a decisão do CDU.

Não fossem o bastante tais irregularidades, não foi realizado o Estudo de Impacto Ambiental – EIA, previsto no caso de instalação de obras ou atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental, conforme art. 225, § 1º, IV, da CF/8848 c/c Resolução CONAMA nº 001/86.

Saliente-se que tais estudos iriam esclarecer o impacto causado pelo Projeto Novo Recife ao meio circundante e, assim, subsidiar a tomada da decisão pelo CDU e outros entes municipais ou federais, a exemplo do IPHAN. Sem a ciência sobre os efeitos positivos e negativos do empreendimento, não há deliberação válida: é regra, inclusive, do mundo da vida que a ignorância é móvel do erro.

Pois bem. Considerando que o Município do Recife atropelou outras instâncias de análise e aprovação e violou dispositivos constitucionais e legais, a respectiva decisão carece formalmente de validade jurídica, o que motiva a declaração de sua nulidade, tornando-a sem efeito.

Quanto ao mérito da decisão, por tudo quanto exposto nessa exordial, tendo em conta o potencial dano ao patrimônio histórico e cultural nacional e, assim, a violação aos arts. 216, V e § § 1º e 4º, da CF/88, 18 do DeL nº 25/37 e 9º da Lei nº 11.483/2007 e à própria legislação municipal, também é igualmente inválido, porque ilícito, o objeto de tal decisão.

48 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (…) IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;”

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7 – DA TUTELA ANTECIPADA OU LIMINAR:

Nesta demanda, estão presentes os requisitos para a concessão de medida liminar, conforme previsto nos arts. 12 da Lei nº 7.347/85 e 273 c/c 461, § 3º do CPC, a fim de que, até o julgamento final desta lide: i) sejam suspensos os efeitos da decisão proferida pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura do Recife em 28.12.2012; ii) o Município do Recife abstenha-se de conceder qualquer licença ou alvará de construção/demolição para o Consórcio Novo Recife a respeito do empreendimento Novo Recife; iii) o Consórcio Novo Recife abstenha-se de dar início a qualquer construção/demolição sobre o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas.

A esta petição inicial, foram juntadas provas inequívocas das asserções aqui feitas: bastantes são os relatórios técnicos do IPHAN-PE e da 4ª CCR do MPF, que demonstram a significância cultural do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, ademais de outros documentos em anexo. Além do evidente impacto urbano do empreendimento, aprovado sem a realização dos devidos estudos e manifestações técnicas necessárias, mas já em vias de execução, consoante noticiado na mídia49.

Do mesmo modo, foram apontados os relevantes fundamentos jurídicos que amparam a pretensão ministerial: o direito constitucional à proteção e promoção do patrimônio cultural (art. 216 da CF/88), a preservação da ambiência dos bens tombados (art. 18, DeL 25/37), da memória ferroviária (art. 9º, Lei nº 11.483/2007), da ordem urbanística (Lei municipal nº 17.511/2008) etc.

O perigo da demora é também incontroverso: há potencial e iminente dano ao patrimônio cultural nacional, eis que aprovado o Projeto Novo Recife pelo CDU. Sendo assim, o trâmite desta lide, pela sua duração ínsita, poderá fazer perder a utilidade e a efetividade de uma eventual sentença de procedência. É que, quando esta, se o caso, for proferida, há uma forte possibilidade de as obras do empreendimento imobiliário ora impugnado já se encontrem em estágio avançado, já que iminente o início das obras de demolição, provocando irreversível alteração e prejuízo ao ambiente do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas. Há, pois, fundado receio de dano irreparável.

Aliás, Luiz Guilherme Marinoni destaca que a ação inibitória não requer nem mesmo a probabilidade do dano, contentando-se com a simples probabilidade da prática de ilícito (ato contrário ao direito)50 – ou de sua continuação. Assim, “se há um direito que exclui um fazer, ou uma norma definindo que algo não pode ser feito, a mera probabilidade de ato contrário ao direito – e não de dano – é suficiente para a tutela jurisdicional inibitória”.

49http://pedesenvolvimento.com/2012/02/29/comecam-obras-do-projeto-novo-recife-no-cais-jose-estelita/50 http://marinoni.adv.br/wp-content/uploads/2010/11/TUTELA-INIBIT%C3%93RIA-E-TUTELA-DE-REMO%C3%87%C3%83O-DO-IL%C3%8DCITO.pdf.

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Procuradoria da República no Estado de PernambucoAinda, não há perigo algum de irreversibilidade do provimento

liminar. Com efeito, ainda que improvável a hipótese, poderá o Judiciário revogar a liminar a qualquer momento, acaso se convença em sentido contrário à necessidade da tutela de urgência, e, por isso mesmo, dar-se prosseguimento à implantação do Projeto Novo Recife.

Ressalte-se que o interesse público demanda uma análise detida e mais aprofundada do Projeto Novo Recife antes que este seja executado em campo, diante do potencial dano irreversível ao patrimônio cultural brasileiro e à ordem urbanística. Portanto, o interesse econômico de particulares deve ceder – ao menos temporariamente – em prol do interesse de toda a coletividade na proteção de bens de reconhecido valor histórico, cultural e urbanístico.

8 – DOS PEDIDOS:

Diante do exposto, requer o Ministério Público Federal:

8.1 - autuação e recebimento da presente inicial com a documentação em anexo, o inquérito civil n.º 1.26.000.000906/2012-12;

8.2– que seja concedida medida liminar, a fim de que até o julgamento final da presente ação: i) sejam suspensos os efeitos da decisão de aprovação do Projeto Novo Recife proferida pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano em 28.12.2012; ii) seja determinado ao Município do Recife que se abstenha de conceder qualquer licença ou alvará de construção à Novo Recife Empreendimentos Ltda. a respeito do empreendimento Novo Recife; iii) seja determinado à Novo Recife Empreendimentos Ltda. que se abstenha de dar início ou continuidade a qualquer construção/demolição sobre o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas;

8.3 – a citação dos réus;

8.4 – em definitivo, seja julgada procedente esta ação para declarar a nulidade da aprovação pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano do Município do Recife, em 28.12.2012, do Projeto Novo Recife, a ser implementado na Av. Engenheiro José Estelita, s/n, bairro de São José, nesta Cidade do Recife;

8.5 – tendo sido a obra executada total ou parcialmente no curso do feito nos moldes do projeto então aprovado pelo Município do Recife, seja condenada a Novo Recife Empreendimentos Ltda. à obrigação de fazer consistente na restituição ao statu quo ante, mediante demolição das obras ou restauração do que tenha sido demolido;

8.6 – seja julgada procedente a ação para condenar o Município do Recife a não aprovar qualquer projeto – inclusive, o “Novo Recife” – que tramite naquele órgão, para edificação no imóvel situado na Av. Engenheiro José Estelita, s/n, bairro de São José, Recife-PE (conhecido como Pátio Ferroviário das Cinco Pontas),

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucosem que o projeto tenha sido aprovado previamente pela área técnica do IPHAN, de acordo com as diretrizes a seguir;

8.7 - por consequência, seja julgada procedente esta ação para condenar o Município do Recife à obrigação de não fazer consistente na não concessão de qualquer licença ou alvará de construção à Novo Recife Empreendimentos Ltda. em relação ao imóvel situado na Av. Engenheiro José Estelita, s/n, bairro de São José, Recife-PE (conhecido como Pátio Ferroviário das Cinco Pontas), sem que o projeto tenha sido aprovado previamente pela área técnica do IPHAN, de acordo com as diretrizes a seguir;

8.8 – na mesma linha, seja julgada procedente a ação para condenar o Município do Recife a não aprovar qualquer projeto – inclusive, o “Novo Recife” – que tramite naquele órgão, para edificação no imóvel descrito no item acima, sem que tal projeto tenha sido submetido a parecer do DNIT e da ANTT, assim como sem a realização dos devidos EIA/RIMA e EIV, nos termos dos arts. 225, § 1º da CF/88 e 188, § 2º da Lei municipal nº 17.511/2008, sempre que tais estudos sejam exigidos, como no caso do "Novo Recife";

8.9 - seja julgada procedente esta ação para condenar a Novo Recife Empreendimentos Ltda. na obrigação de não fazer consistente na não edificação do empreendimento imobiliário Novo Recife, a ser implementado na Av. Engenheiro José Estelita, s/n, bairro de São José, nesta Cidade do Recife, sem que o projeto tenha sido aprovado pelo IPHAN, bem como sem que tenha sido submetido a parecer do DNIT e da ANTT, assim como sem a realização dos devidos EIA/RIMA e EIV;

8.10 – seja julgada procedente a ação para condenar o IPHAN, nos termos do art. 9º da Lei nº 11.483/2007, a tomar ações visando à preservação e difusão da memória ferroviária em relação ao Pátio das Cinco Pontas, notadamente as sugeridas no Parecer Técnico de 17.12.2010 (fls. 370, Anexo I, vol. II), em especial a estipulação de diretrizes – com base em estudo ofertado por corpo técnico especializado, à semelhança do Grupo de Estudo multidisciplinar que elaborou o parecer retrocitado – de uso e ocupação do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, devendo levar em consideração a vocação do sítio (concepção espacial de “pátio”), bem como a necessidade de preservação da visibilidade e ambiência dos monumentos tombados nos bairros de São José e Santo Antônio;

8.11 – seja julgada procedente a ação para condenar o IPHAN a analisar e aprovar qualquer projeto – inclusive, o “Novo Recife” – para edificação no imóvel situado na Av. Engenheiro José Estelita, s/n, bairro de São José, Recife-PE (conhecido como Pátio Ferroviário das Cinco Pontas), com base nas diretrizes estipuladas nos termos acima;

8.12 – fixação de multa em caso de descumprimento da tutela antecipada ou liminar e das condenações;

Protesta o Ministério Público Federal pela produção de todos os meios de

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Procuradoria da República no Estado de Pernambucoprova em direito admitidos, notadamente, oitiva de testemunhas, a juntada posterior de documentos, bem como a realização de perícia e inspeção judicial.

Dá à causa o valor de R$ 1.000,00 (um mil reais).

Recife, 06 de fevereiro de 2013.

Mona Lisa Duarte Abdo Aziz Ismail

Procuradora da República

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