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Miguel Torga DIÁRIO Vols. I a IV 5. a edição conjunta

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Miguel Torga

DIÁRIOVols. I a IV

5.a ediçãoconjunta

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Índice dos Volumes

Diário I 15

Diário II 109

Diário III 197

Diário IV 281

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9

Índice de Poemas

Diário ISanto-e-Senha 17Paisagem 19Prece 20Brinquedo 22Imagem 23Fado 25Certeza 27Bucólica 30Sombra 31História Antiga 33Moisés 40Aqui Estou 42Peregrinação 43Secura 44Idílio 48Negrura 50Instantâneo 54Sarro 55Relato 56Aceno 59Breve Desilusão 61Calmaria 62Paz 63Memória 65Sina 65Exercício Espiritual 67Exortação 68Lembrança 69Pietà 70Canção 71Ariane 72Claridade 73Unha Negra 75

Visita 80Canção da Pura

Humildade 83Nocturno 84Mágoa 88Diário 90Outono 93Dia Santo 95Noite 98Desencanto 100Passeio 104Escuta 105Lezíria 107Dúvida 108

Diário IICorreio 111Instante 115Súplica 117Destino 118Vendaval 124Recordação 126Aguarela 127Sesta 130Sangue 131Aniversário 132Pátria 133Água 134Condenação 134Parábola 136Saudação 138Apelo 141Fim 143Clarão 144

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Partilha 147Natal 151Graça 152Certeza 154Vela 156Búzio 158Testamento 160Convalescença 161Magnólia 163O Poeta 166Chuva 169Condição 171Por Uma Papoila 174Dia 175Voz 178Medo 179Pedido 180Justificação 181Luar 182Intimidade 184Consolação 188Eleição 190Poema 191Vida 193Abandono 195

Diário IIIÉcloga 199Meditação 202Bilhete 203Trova 204Noite 205Canção 206Ordem 208O Bispo 212Legado 214Soluço 216Pacto 217Marão 220Almas 222Romance 223Solidão 224Grito 225Epitáfio 227Embalo 228Anunciação 229Sudário 230Balsemão 231Descante 232Nirvana 234

Loa 235Tríptico 236Pergunta 238Lar 241Exortação ao Sono 243Douro 244Sementeira 245Promissão 246Eternidade 246Conquista 247Colheita 248Telegrama 248Viático 249Encontro 249Elegia 251Fantasia 252Ajuda 253Abyssus Abyssum 256Ode às Mulheres da

Vida 257Lisboa 258Saudade 261Canção para o Alentejo 262Canção a Évora 263Amor 264O Vate 266Bonança 269A Cigana 271Canção para Minha

Mãe 274Maldição 277Condição 278Ode 280

Diário IVCantiga de Maldizer 283Regresso 285A Manuel de Falla 288Fonte Nova 289Maceração 290Litania 292In Pulverem Reverteris 294Poema 295Despertar 296Bucólica 298Testamento 299Às Ninfas, por Um Voto 303Alquimia 305Parto 307Enigma 308

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11

Retrato 310

Nocturno 312Crepúsculo 315Tentação 321Puericultura em Chão

Pobre 324Mãe 325Gomes Leal 327Aniversário 329Minho 330Eterno Feminino 331Sugestão 333Idade da Poesia 334Ícaro 334Pequeno Testamento 336Termo de

Responsabilidade 338Meditação 340

Natal 341

Ano Novo 342Estampa 343Pequena História de Um

Mito 347Fado do Limoeiro 348Noivado 352Carta Familiar 357Vem, Doce Morte 358Depois da Chuva 359Biografia 360Suicídio 361Primeiro

Poema da Primavera 362Segundo

Poema da Primavera 364Terceiro

Poema da Primavera 365

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DIÁRIO I

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Primeira edição: do autor, Coimbra, 1941

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17

Coimbra, 3 de Janeiro de 1932.

SANTO-E-SENHA

Deixem passar quem vai na sua estrada.

Deixem passar

Quem vai cheio de noite e de luar.

Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas

Beber água de Sonho a qualquer fonte;

Ou colher açucenas

A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora

E onde volta depois de amanhecer.

Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.

Que vai ser

Uma estrela no chão.

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Miguel Torga

18

Coimbra, 6 de Fevereiro de 1932 — Passo por esta Universidade como cãopor vinha vindimada. Nem eu reparo nela, nem ela repara em mim.

Coimbra, 8 de Janeiro de 1933 — Ao chegar, encontrei reunido na Centralo concílio dos deuses. Sentei-me prudentemente a distância.

Coimbra, 1 de Março de 1933 — Continuam as matanças de gatos, à moca-da, cá na república. Uma selvajaria. Só quem assiste a isto pode avaliar oque é um homem primitivo. Não há Universidade que nos tire da idade dapedra lascada.

Coimbra, 6 de Março de 1933 — Estoirei-me hoje dum carro eléctricoabaixo por causa de um filme de Charlot. Ia morrendo, ou pelo menos fi-cando sem um braço. Mas o filme mereceu o fato inutilizado e mereciatambém o braço a menos.

Coimbra, 4 de Novembro de 1933 — Hoje, no café, aqui-del-rei que eu exa-gero, aqui-del-rei que conto uma anedota e a anedota sai da minha bocatransfigurada. Aqui-del-rei que descrevo um indivíduo e ponho bigodesde polícia onde havia somente uma discreta penugem. É certo, exagero. Co-meço a pintar um botão, e é capaz de me sair o cosmos. Mas pergunto:— Pondo como condição que não haja mentira em absoluto no que diz, quemé mais de aqui-del-rei: quem acrescenta, enriquece, aumenta e vivifica as coi-sas, ou quem as diminui, amesquinha, empobrece, achata e reduz a nada?

Coimbra, 8 de Dezembro de 1933 — Médico. Conforme a tradição, mal obedel disse que sim, que os lentes consentiam que eu receitasse clisteres àhumanidade, conhecidos e desconhecidos rasgaram-me da cabeça aos pés.Só deixaram a capa. E aí vim eu pelas ruas fora o mais chegado possível àminha própria realidade: um homem nu, envolto em três metros de negru-ra, varado de lado a lado por um terror fundo que não diz donde vem nempara onde vai.

S. Martinho de Anta, 3 de Março de 1934 — Aqui estou enterrado em mon-tes até às orelhas, a receitar xaropes e a ler o Comércio do cabeçalho ao der-radeiro anúncio. «Pela cidade...» E vêm-me umas saudades dos eléctricos,das livrarias e do Joaquim António de Aguiar dentro da casaca de bronze àPortagem, que até estas pedras bravias se comovem. Já nem o negrilho pos-so ver! Ou saio daqui para um sítio onde haja ao menos um cinema, ou estaminha raiz, que mesmo do cabo do mundo bebeu sempre neste chão, secacomo um canoco.

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Diário I

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Mas ir para onde, se não tenho com que mandar cantar um cego, nem a

mão de ninguém me acena de parte alguma de Portugal?

S. Martinho de Anta, 5 de Março de 1934 — Como a gente se perde! A lin-

guagem que o meu sangue entende — é esta. A comida que o meu estôma-go deseja — é esta. O chão que os meus pés sabem pisar — é este. E, con-tudo, eu não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se transplantam,que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal.

S. Martinho de Anta, 6 de Março de 1934.

PAISAGEM

Hirtos, os montes velam O cadáver gelado do meu sonho. Num desespero íntimo, contido, Que seca na raiz toda a verdura, Velam seu corpo astral, caído Numa vala sem fundo de amargura.

Vila Nova, 7 de Novembro de 1934 — Acabou hoje tudo. Como sempre, fi-quei derrotado. Quando já não era possível ter ilusões, agarrava-me a umailusão ainda maior e... esperava. É coisa que nunca pude destruir em mim: aideia de que um ser, desde que nasce, fica logo com direito (e obrigação) deviver os sessenta anos da média. Pelo menos os sessenta anos da média.Muitas vezes me aconteceu ir a férias e assistir a uma sementeira de meuPai. Depois, ver o milhão ou o linho a despontar. E, embora sabendo queaquelas vidas eram efémeras, voltar à leira nas férias seguintes e ficar deso-lado ao ver lá, em vez de linho ou milhão, um batatal espesso. E dizer a meuPai: «— Então o linho que havia aqui? — Colheu-se em Agosto, filho.» EmAgosto, realmente, o linho amadurece. Nos curtos meses que a naturezadetermina, tira ao sol o mais calor que pode e enche-se dele. Depois dá si-nais de cansaço, e morre.

Mas este pequenito ainda não tinha bebido nenhum sol. Ainda estavana primeira semana. Nem o caule sobriamente fibroso, nem a flor azul edelicada, nem a semente parda e madura. E foi por tudo isto que, ao chegarao quarto, tive a sensação mais dolorosa da minha vida. Ali estava, aindanão substituído por cevada ou centeio, mas prestes. A mãe lavada em pran-to. E ele, muito branco, muito discreto, voltado para a parede, a renegar decostas os remédios inúteis espalhados pela mesa-de-cabeceira.

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Miguel Torga

20

Um médico nem sequer pode chorar. Só pode pegar no bracito magro

e morno, apertar a artéria inerte e ficar uns segundos a trincar os dentes.

Depois sair sem dizer nada.

Quem saberá por aí uma palavra para estes momentos? Uma palavra pa-

ra um médico dizer a esta mãe, que entregou à vida um filho vivo e recebeu

da vida um filho morto.

Vila Nova, 11 de Dezembro de 1934.

PRECE

Senhor, deito-me na cama

Coberto de sofrimento;

E a todo o comprimento

Sou sete palmos de lama:

Sete palmos de excremento

Da terra-mãe que me chama.

Senhor, ergo-me do fim

Desta minha condição:

Onde era sim, digo não,

Onde era não, digo sim; Mas não calo a voz do chão Que grita dentro de mim.

Senhor, acaba comigo Antes do dia marcado; Um golpe bem acertado, O tiro dum inimigo... Qualquer pretexto tirado Dos sarcasmos que te digo.

Coimbra, 4 de Fevereiro de 1935 — Que belo é ter um amigo! Ontem eramideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima dasideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz ondeesse abraço se deu, forte e repousante. Que belo e natural é ter um amigo!

Coimbra, 6 de Fevereiro de 1935 — A sina dos homens! Daqui a trinta anosjá ninguém sabe que Gary Cooper existiu. E, contudo, a cena da flor que vi

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Diário I

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há pouco num filme dele é tão bela como a Vénus de Milo, como a Vitóriade Samotrácia, como um hino de S. Francisco de Assis.

Gravar, riscar, esculpir, cavar numa pedra, num papiro, num papel, mas,em última análise, escrever — por ser a única maneira de eternizar a ex-pressão.

Coimbra, 8 de Fevereiro de 1935 — Gostava de escrever hoje um belo poe-ma, forte, quente, luminoso, escarolado, em louvor da vida. É que, sem sa-ber porquê, respondi há bocado com palavras dum optimismo impressio-nante a um moço poeta que me exibia a sua decadência precoce. E doía-mea garganta nessa altura! Mas fui-lhe dizendo que qual morte ou qual cabaça!Vida! Vida conquistada em luta, como a do rebento do milho que empurra,empurra, e consegue levantar o torrão e ver o sol. — Qual morte, homemde Deus! Você já viu por acaso um pinheiro suicidar-se!

Gostava de escrever isto num belo poema.

Vila Nova, 10 de Fevereiro de 1935 — Não posso. Passar a vida assim, a jogara bisca com o prior, a levantar-me às tantas da madrugada para ir ver umdoente ao Gandramás, a ouvir e a contar histórias de caça o resto do tem-po, valha eu o que valer, é um destino que não mereço.

Vila Nova, 11 de Agosto de 1935 — Quatro horas da manhã. Não há manei-ra de o sono vir. Porca de vida! O dia, o que já sabemos; a noite, a maravilhaque se vê: aos tombos nesta maldita cama, numa casa vazia onde nem umarmário ressona, a ler na Montanha Mágica os liberalismos dum senhor Set-tembrini que já nem posso ouvir.

Vila Nova, 1 de Novembro de 1935 — Depois de dias como o de hoje tenhoa sensação do vazio absoluto. Os amigos têm que fazer, os doentes têm quemorrer, os livros parecem múmias, e a noite nem sequer traz sono. Louva-dos sejam o barulho e as facadas da Central!

Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 — Morreu Fernando Pessoa. Mal acabeide ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelosmontes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte donosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eter-nidade sem ao menos perguntar quem era.

Vila Nova, 22 de Janeiro de 1936 — A intimidade desta vida de aldeia é umespectáculo ao mesmo tempo repugnante e maravilhoso. Estrume da cabe-ça aos pés. Entre o porco e o dono não há destrinça.

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Miguel Torga

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Mas, ao cabo, esta animalidade toda, de tão natural, acaba por ser pura

e limpa como a bosta de boi.

Coimbra, 6 de Fevereiro de 1936.

BRINQUEDO

Foi um sonho que eu tive:

Era uma grande estrela de papel,

Um cordel

E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela

Com ar de quem semeia uma ilusão;

E a estrela ia subindo, azul e amarela,

Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu

Que deixou de ser estrela de papel.

E o menino, ao vê-la assim, sorriu

E cortou-lhe o cordel.

Coimbra, 10 de Fevereiro de 1936 — Põe-se a gente a ler estes Gides, estes

Munthes, estes Malraux. E é sempre a mesma sensação de plenitude. Sem-

pre a mesma sensação de que, depois daquilo, não vale a pena escrever uma

palavra, de mais a mais nesta língua de que o diabo ainda se serve para falar

à avó... Mas depois vem a revolta. Esta impotente revolta de todo o verda-

deiro escritor português que começou por nascer atrás duma fraga e acaba

por gastar a vida em Paio Pires, amanuense de secretaria. Metessem no bra-

ço dum Gide uma manga-de-alpaca, e eu queria ver... Então um homem

nasce em Paris ou numa terra lavada da Suécia, tanto faz, mestres logo à

beira do berço, todas as civilizações na biblioteca do pai, uma vida inteira

pelo mundo além, e aqueles neurónios, e aqueles sentidos não hão-de rea-

gir?! O mais bronco ser humano, quando fala com um Wilde, ouviu pelo

menos falar o autor do De Profundis. Evidentemente, é preciso mais alguma

coisa do que ir à China e ter certa experiência para escrever A Condição Hu-

mana. Mas, sem um homem andar de avião, como há-de um homem ganhar

perspectivas de pássaro e falar de poços de ar?!

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Diário I

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... E a gente não tem outro remédio senão gastar as horas a fabricar esta

prosa travada, mais circunlóquio menos circunlóquio, esta prosa perra e

oca que chega a meter nojo aos cães.

Vila Nova, 18 de Março de 1936 — «Cavam de sol a sol, comem um caldo,

mas são felizes. Não têm preocupações...»

Ouço isto na cidade e meto-me no comboio, indignado. Que estupidez!

Como se o problema da quadratura do círculo fosse maior do que o proble-

ma de saber se chove ou não chove no dia da sementeira. Que vale um boi,

no café? Em termos de pura dor — nada. Pois digo que nunca vi ninguém

sofrer tanto como o meu vizinho a quem morreu um esta noite.

Sei a resposta: que quem sofre por uma ideia bebe, digamos, o sofri-

mento na sua forma mais pura.

Que me importa a mim! Tudo são homens. E ao cabo, ao cabo, tanto

pesa uma arroba de terra, como uma arroba de filosofia.

Vila Nova, 4 de Abril de 1936.

IMAGEM

Este é o poema duma macieira.

Quem quiser lê-lo,

Quem quiser vê-lo,

Venha olhá-lo daqui a tarde inteira.

Floriu assim pela primeira vez.

Deu-lhe um sol de noivado,

E toda a virgindade se desfez

Neste lirismo fecundado.

São dois braços abertos de brancura;

Mas em redor

Não há coisa mais pura,

Nem promessa maior.

Vila Nova, 6 de Julho de 1936 — Aqui tenho à mesa-de-cabeceira o último

livro ainda a cheirar à tinta da tipografia. Não há dúvida nenhuma que o

concebi, que o realizei, e que, depois disso, com os magros vinténs que vou

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Miguel Torga

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ganhando por estes montes, consegui pô-lo em letra redonda — a forma

material máxima que se pode dar a um escrito. E, contudo, olho esta reali-

dade que eu tirei do nada, que bem ou mal arranquei de mim, com o mes-

mo desânimo com que olho uma teia de aranha. E não é por saber de ante-

mão que o livro vai ser abocanhado ou ignorado. Não obstante a lei natural

que aconselha a que não haja homem sem homem, é preciso que a santa ce-

gueira do artista lhe dê a força bastante para, em última análise, ficar só e

confiante. Ora eu tenho, como artista, essa cegueira. O meu desalento vem

duma voz negativa que me acompanha desde o berço e que nas piores ho-

ras diz isto: Nada, em absoluto, vale nada.

Vila Nova, 14 de Julho de 1936 — Às vezes ponho-me a pensar se a aceita-

ção calma da morte no homem da terra não será o resultado desta íntima

comunhão com o ritmo da natureza. No Inverno, árvores despidas; na Pri-

mavera, folhas e flores; no Verão, frutos. No Inverno seguinte, árvores des-

pidas; na Primavera, folhas e flores; no Verão, frutos. No Inverno a seguir...

Eu bem sei que o homem da cidade tem por sua vez mil maneiras de notar

este eterno retorno da vida e da morte. Parece-me é que ali a coisa não tem

esta nitidez, esta evidência, esta fatalidade.

Vila Nova, 15 de Julho de 1936 — Um parto. A injecções, a ferros, a gritos e

a lágrimas da povoação inteira, mas um parto.

Um bicho de pernas gordas e olhinho azul. O senhor Newton.

O pai, ninguém sabe porquê, mal o agarrou cá fora, que se havia de cha-

mar Newton. Queria Newton.

E o Conservador do Registo — uma fera de erudição — achou que o

pai exagerava. Newton! Logo Newton!!! Mas eu disse que sim senhor. New-

ton, que tinha lá?!

De enxada na mão, é quase certo que o novo homem não vai descobrir

outra lei da gravitação universal. Mas vai de certeza descobrir o sofrimento,

e isso, cá no meu entender, chega perfeitamente para ele ter direito a usar

na terra seja que nome for.

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Diário I

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Figueira da Foz, 15 de Agosto de 1936.

FADO

Hoje a grande desgraça não fui eu:

Foi um velho navio que partiu

E me deixou no cais

Sem nenhum sonho mais.

Vila Nova, 16 de Agosto de 1936 — Isto de religião está cada vez pior den-

tro de mim. Depois de uns arrancos fundos e angustiosos, a coisa foi secan-

do, secando, até chegar a esta mirra mística, que já não há Jordão teológico

capaz de vivificar. Mas quanto mais pobre estou desse conteúdo humano,

mais cheio me sinto de desespero. O que eu dava para me levantar cedo es-ta manhã, ir à missa, e voltar da igreja com a cara que trazia o meu vizinho!Não é que eu tenha verdadeiramente pecados, ou que, se os tivesse, algumDeus fosse capaz de me lavar deles. (Até o último aldeão sabe que quandomuda um marco não há céu que lhe benza a maroteira.) Queria era sentir--me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com aúltima pancada do coração.

Coimbra, 4 de Outubro de 1936 — Hoje declarei em casa de uns amigosque a maior prova de amor que um poeta pode dar a uma mulher é a sua in-timidade.

Escrever versos diante dela é qualquer coisa como parir com um Cristoà cabeceira da cama.

Vila Nova, 7 de Outubro de 1936 — Aqui na minha frente a folha brancado papel, à espera; dentro de mim esta angústia, à espera: e nada escrevo.A vida não é para se escrever. A vida — esta intimidade profunda, este sersem remédio, esta noite de pesadelo que nem se chega a saber ao certoporque foi assim — é para se viver, não é para se fazer dela literatura.

Vila Nova, 9 de Outubro de 1936 — Em dias destes o próprio facto de ou-vir as pessoas se me afigura irreal. Qualquer coisa como uma imagem baça,sem ângulo e sem nitidez.

Sons que chegam confusos, pela rádio, de um país distante.

Vila Nova, 10 de Outubro de 1936 — Um Diário não é isto. Diário é o da-quele inglês que, para que ninguém o lesse, até uma cifra inventou.

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Miguel Torga

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O que eu diria aqui se soubesse escrever em cifra!

Coimbra, 26 de Outubro de 1936 — Corta-se este Outono à faca. Denso,maciço. Mas há quem resista, quem não queira amarelecer e cair das árvo-res abaixo. Esta manhã, por exemplo, à minha vista, uma velhinha de oiten-ta anos salvou dum monte de folhas secas e ramos mortos, que estavam àbeira do jardim público, uma flor serôdia que ali jazia soterrada, e entre-gou-a a um netinho de dois anos que tinha ao colo. E à noite, quando eucaminhava gelado numa rua adormecida da Baixa, uma voz aflita chamoupor mim. Era um pobre rapaz que tinha a noiva há duas horas desmaiada, equeria que lha tornasse ao normal, à vida, que era boa rapariga e gostavadela. Tinham ralhado um com o outro, era mesmo malcriada, mas muitoboa rapariga e gostava dela.

Subi umas escadas íngremes, estreitas e lavadas, entrei num quarto,olhei a Julieta adormecida, e dei-lhe uma bofetada imensa, funda, no rostofrio, que doeu à família toda.

Acordou.Entreguei a noiva viva ao noivo vivo, e vim por aí fora a pensar no que

seria mais verdadeiro: se a linfa de desânimo que faz morrer tudo mal o Se-tembro chega, se o sangue instintivo que se guarda para reverdecer tudomal o Março começa.

Vila Nova, 27 de Outubro de 1936 — Um belo dia de sol, e eu sem paisa-gem dentro de mim para o receber. Que destino este! Nem a gente ter for-ça dentro de si para aceitar estas dádivas puras da natureza! Os dias pas-sam-se à margem do que realmente é vida. Passam-se a ler no jornal coisastristes, ambições desmedidas, hipocrisias, guerras, e a recalcar cá dentro amágoa de tudo isto. E daqui a meia dúzia de anos morre-se mesmo de vez,e adeus sol, adeus lua, adeus tudo o que o mundo tinha para se ver, e se nãoviu.

Coimbra, 29 de Outubro de 1936 — Já não sei a propósito de quê, penseihoje nisto: que esta velha humanidade, tudo quanto seja acreditar que doise dois são quatro, quatro e quatro, oito, e oito e oito, dezasseis, muito beme sem nenhuma prova; agora quando lhe dizem que há gente que morre pe-la sua verdade, é preciso mostrar-lhe Sócrates a beber a cicuta, Catão com aespada enterrada no ventre, Cristo pregado na cruz — e nem assim.

Coimbra, 3 de Novembro de 1936 — Grande discussão sobre a mania quea posteridade tem de publicar cartas íntimas de escritores mortos.

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Diário I

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Defendi, já se vê, que era um atropelo ao respeito que se deve a um ho-

mem, tornar público o que nele foi particular. Eu bem sei que o particular,

na pena dum homem de letras, nunca é uma sangria desatada de tal ordem

que não haja sempre duas regras do Vieira a doirar a pílula. Seja porém co-

mo for. Tenha ele escrito com sinceridade ou não, com gramática ou não,

com os olhos profissionais postos no futuro ou não, salvas aquelas excep-

ções em que as circunstâncias o exijam ou o autor o estipula, custe a quem

custar, doa a quem doer, perca-se o que se perca, nada do que um escritor

não quis publicar em vida deve ser publicado depois da morte.

E escusam de me argumentar com a verdade de que muitos livros pós-

tumos enriqueceram o património da humanidade e a glória dos seus auto-

res.

Cá para mim, a humanidade nem tem o direito de tirar ao indivíduo

aquilo que ele espontaneamente lhe não deu, nem de lhe engrandecer o

nome contra a sua vontade.

Coimbra, 6 de Novembro de 1936.

CERTEZA

Não:

Nunca saberás quem sou. Apesar destes beijos que te dou E destas ironias que te digo, Vou contigo Como vou Ao lado dum inimigo.

Vila Nova, 8 de Novembro de 1936 — Caso, não caso, torno a casar, e acabopor concluir que a verdadeira paisagem da minha vida é uma grande serranua.

Uma árvore a dar sombra lá no alto? Eu sei lá!Ao sol, tenho a certeza que faço versos; à sombra, se calhar, adormeço.

Vila Nova, 10 de Novembro de 1936 — Um Poema. Uma Santa Teresa nacova, com a telúrica consciência de que não há corpo santo que resistaà podridão laica. Mistérios que só eu entendo...

Uma semana a aplainar isto. Entretanto, em frente, na oficina dele, nes-ses sete dias de febre, calmamente, um carpinteiro vizinho fez um carro.

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Miguel Torga

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Coimbra, 12 de Janeiro de 1937 — Isto de saber que é nos enterros que me-

lhor se manifesta o egoísmo dos homens, não é novo. Vem nos livros. Mas é

conveniente experimentar. É sempre bom ir uma, duas, três vezes atrás de

um caixão, e ver como a pouco e pouco o mar de gente se reduz e fica em

nada. Como, de tantos amigos, chegam ao cemitério apenas três, e esses

três, furiosos por não terem podido escapar-se.

Coimbra, 14 de Janeiro de 1937 — A maior desgraça da vida, vistas bem as

coisas, acaba por não ser a morte. Salvo aqueles casos catastróficos, que sob

o ponto de vista do aniquilamento são uma perfeita maravilha, morre-se

quando esta coisa que se chama corpo, por uma razão ou por outra, está

podre. Quando, afinal, a ele próprio já lhe não apetece viver. A desgraça

verdadeira é esta de nós andarmos aqui a namorar o céu, a pisar a terra, a

investir contra o mar — e nem o céu, nem a terra, nem o mar saberem se-

quer que a gente existe.

Coimbra, 18 de Janeiro de 1937 — É evidente que eu não queria mudar. A

minha verdadeira vocação é ser assim, doente, infeliz, sempre maravilhado

e aterrado diante dos outros. Um dos meus maiores amigos, esse, despreza

pura e simplesmente o semelhante, se não está ligado a ele por nenhum

afecto e o encontra desarticulado da manada humana. Eu não. Não posso

desprezar ninguém. Até os próprios inimigos me comovem quando me

lembro que opõem o indicador ao polegar.

Sou assim, e quero acabar assim. Mas reconheço que deve ser uma gran-

de comodidade ver passar um enterro sem tirar o chapéu.

Coimbra, 25 de Janeiro de 1937 — Leitura de uma «Vida de Byron». Não há

dúvida nenhuma que aquele homem foi uma espécie de Henrique VIII do

reino da poesia. Coragem de ser quem era, e coragem de pôr a sua realeza

ao serviço do seu corpo. Pessoalmente, prefiro um Shelley honrado, a sus-

tentar o sogro, a dar lebre por lebre, e sem sombras de incesto.

Mas é evidente que se não fossem os Byrons que de vez em quando apa-

recem na família dos poetas, a humanidade, com o desprezo que tem por

nós, já nos tinha mandado capar a todos.

Vila Nova, 2 de Fevereiro de 1937 — Passei a noite a jogar. Amanheci, como

era de esperar, arrasado e cheio de nojo de mim. Mas que hei-de eu fazer

aqui, numa aldeia destas, uma noite inteira de Inverno, quando já não te-

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Diário I

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nho mais nada que escrever, nem me apetece dormir? Além de que o jogo,

em certas horas, enche-me todo. Atrai-me aquele oscilar da sorte, o acertar

e o não acertar pelas mesmas razões, aquele desfecho irremediável que vem

nos olhos tristes de uma dama de paus. Bem sei que isto não diz nada à

maioria das pessoas. Às positivas pessoas que, pela boca de um amigo meu,

se exprimem assim:

— E então uns sujeitos que têm uma teoria para ganhar à roleta!

Ora eu confesso que tenho por esses sujeitos uma grande compreensão.

Uma teoria sobre os colóides, é uma vergonha dizê-lo, mas só a levo ao fim

por dever de ofício. Agora, uma teoria de ganhar à roleta! Santos irmãos

meus!...

Lá por a teoria levar sempre à bancarrota quem a inventa? Ora, bolas!

Porventura, os gigantes do Quixote eram gigantes?

O que é certo, é que depois de uma noite destas estou arrasado, cheio

de nojo de mim, mas, não sei porquê, com a sensação estranha de que fe-

chei as contas do mês com a senhora patroa da pensão da Vida.

Vila Nova, 5 de Fevereiro de 1937 — É escusado. Ou se lavram estes montes

a instrução e a higiene, ou então não vale a pena um médico perder a vida

aqui. Estas santas pessoas adoecem, metem-se na cama como raposas na to-

ca, e esperam. Se Deus faz o milagre, muito bem: erguem-se; se Deus não

faz o milagre, mandam chamar o padre para os untar, o doutor para dar

uma satisfação ao povo, fecham os olhos, e não dizem mais nada.

Coimbra, 4 de Março de 1937 — Um enterro. Uma pessoa amiga, da cida-

de, que quis ir esperar o Dia de Juízo na paz agrícola de uma aldeia. E não

fez mal de todo, que a tarde estava realmente bonita e o campo maravilho-

so.

Lá, no cemitério lírico e doméstico, enquanto benziam o caixão e lhe

desaparafusavam os metais, ainda me ri cá por dentro desta eternização

que, desde os tempos mais remotos, os homens de cem contos para cima

têm conseguido. A burguesia egípcia secava-se como o bacalhau na Figuei-

ra, punha-se à prova de fogo e de micróbios, e ali ficava, com o pequeno-

-almoço ao lado para o que desse e viesse. A de agora, mais lógica, entrin-

cheira-se num caixão de chumbo, e confia nas reservas.

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Miguel Torga

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S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937.

BUCÓLICA

A vida é feita de nadas:

De grandes serras paradas

À espera de movimento;

De searas onduladas

Pelo vento;

De casas de moradia

Caídas e com sinais

De ninhos que outrora havia

Nos beirais;

De poeira;

De sombra de uma figueira;

De ver esta maravilha:

Meu Pai a erguer uma videira

Como uma mãe que faz a trança à filha.

S. Martinho de Anta, 4 de Maio de 1937 — Estava hoje na minha boa-fé a

ler o S. João da Cruz, e dou com isto:

«Descubre tu presencia,

y mateme tu vista, y hermosura,

mira que la dolencia

de amor no bien se cura,

sino con la presencia, y la figura.»

Estes místicos ainda são piores do que a gente...

Coimbra, 27 de Junho de 1937 — «...trop amoureux souvent de ce que

nous possédons déjà, nous perdons l’aigu sentiment de ce qui nous man-

que, de nos défauts; et je vois hélas! aujourd’hui plus d’artistes que d’œuvres

d’art...»

A começar por mim, estas palavras e as que se lhes seguem nos Prétextes

de André Gide, que li hoje, deviam ser dadas de purgante a muita gente cá

de Portugal.

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Buarcos, 20 de Agosto de 1937.

SOMBRA

Um pinheiro.

Olho esta vida aqui no areal,

Serena, ao vento, ao sol e ao cheiro

Deste mar animal;

Meço-lhe o pé seguro,

A largura dos braços e a certeza

Que tem de cima a baixo de ser duro

Conforme lhe mandou a natureza;

E deito-me à sombra dele, no chão,

— No mesmo chão onde eu não pude ser

Nada mais do que um bicho anão

A gemer.

Coimbra, 20 de Agosto de 1937 — Este N. não parece um homem. Parece

um fio eléctrico onde se apanha um choque mal se lhe toca.

Coimbra, 23 de Agosto de 1937 — Sem lhe dizer o nome, aqui apresento à

posteridade mais um amigo meu infeliz. Foi sério, honesto, respeitou a éti-

ca, respeitou-se a si próprio, e por tudo isso é o mais desgraçado dos ho-

mens.

Bastava-lhe olhar com menos fé as muralhas da honra e do dever para

que a sua vida fosse limpa como um jaspe; fiou-se na fortaleza dos dez man-

damentos da moral, e nem ele se conhece no seu lodo.

Não. A salvação não está numa regra de manual; é uma conquista que se

faz, pisando muitas vezes no caminho a presença melancólica da virtude.

Termas de S. Vicente, 5 de Setembro de 1937 — Mais um dia perdido a enxo-

frar o nariz. O ano passado, na Felgueira, as vinte e quatro horas de então

deixei-as cair pelas escarpas do Mondego, a pregar moralidade a uma se-

nhora que a não tinha. Hoje, já com mais trezentos e sessenta e cinco dias

de velhice, não preguei nada a ninguém. Meti as ventas e a incredulidade

no bocal do inalador, e deixei correr. Deixei que a vida se escoasse na am-

pulheta em frente dos meus olhos, feita areia miúda e persistente.

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Miguel Torga

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S. Vicente, 11 de Setembro de 1937 — Estas cartas para a posteridade dão

cabo de mim. Acabei agora uma que me pôs os miolos em água. Arre diabo!

Para dizer que queria outro título numas prosas da Revista de Portugal, estive

duas horas. E, se calhar, foram vírgulas a menos...

A consolação que a cultura me dá é o Rousseau, com aquele génio todo,

a gemer:

«Je n’écris point de lettres sur les moindres sujets qui ne me coûtent

des heures de fatigue...»

Como se a gaguez duma pena assim não fosse uma bênção de Deus!