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Editada em primeiríssima mão e postumamente, em 1614, Peregrinação é um documento
inesgotável de uma época tão rica e controversa como o foi a da expansão marítima que,
segundo alguns, terá desencadeado a dita Revolução Comercial que atingiu o seu clímax no
século XVI e seguintes.
A obra citada é, por si mesma, a expressão mais fiel do espírito subjacente a esta nova época
da História Universal, a Época Moderna, decisivamente impulsionada pelas viagens de des-
cobrimentos ultramarinos iniciadas no século XV e ditadas pela ambição das nações costeiras
da Velha Europa, ávidas dos lucros do comércio com o Oriente e ansiosas por dominar efec-
tivamente as Rotas da Seda e das Especiarias. Este comércio, inicialmente estabelecido nas
principais cidades de Itália, foi então disputado por Portugal e Espanha, reinos emergentes e
nos quais recrudescia o espírito mercantilista, fruto provável da Revolução Burguesa de
1383-1385. Este despertar ibérico terá tido as suas origens na necessidade de estabelecer rotas
comerciais mais rendíveis para as suas economias nacionais, então profundamente debilita-
das pelas elevadas quantias dispendidas em troco de sedas, essências, especiarias e tapeça-
rias importadas da Ásia e comercializadas nos portos italianos.
A precocidade e domínio italianos no campo comercial, para além de muitos outros, foram
as condições de terminantes do florescimento Renascentista. Introduzindo fortes alterações
na cosmovisão medieval essencialmente dogmática e autoritária, o Renascimento introduz a
problematização das leis já instituídas, com particular incidência naquelas que se cria rege-
rem o Universo. Este não era já concebido como um sistema finito de esferas concêntricas
girando em torno do nosso planeta, mas como um conjunto de astros que, devido a forças
então desconhecidas, descreviam um movimento quase circular em torno do Sol. Era a teoria
heliocêntrica, construída e desenvolvida com base numa atitude crítica e céptica, que recusa-
va o misticismo e ascetismo de outros tempos ainda próximos, senão coexistentes no tempo e
no espaço. As novas teorias, defendidas por Copérnico, Galileu e Leonardo da Vinci, desper-
taram em muitos dos seus contemporâneos a atracção pelo desafio acerbado pelo desconhe-
cido, que já não era temido, e pelo desbravar de novos horizontes, até então demasiados res-
tritos e restritivos.
Despido de preconceitos, o Homem aventura-se para além das suas fronteiras naturais. O
mar deixa de ser o fim do mundo e um limite intransponível, para se tornar o canal privile-
giado de comunicação e de comércio entre o Velho Mundo e o Novo Mundo. As navegações
efectuadas, por seu turno, demonstraram os erros dos antigos e justificaram as palavras de
Duarte Pacheco em Esmeralda de Situ Orbis, «a experiência é a madre das coisas, e por ela
soubemos radicalmente a verdade», assim como as de Garcia da Orta, que se dedicou com
grande afinco ao estudo da flora oriental e sobre ela elaborou importantes estudos, tal como
o fizeram também Azurara, frei João dos Santos e Fernão Mendes Pinto, que deram igual
importância à fauna daquelas terras longínquas. Em Peregrinação surgem grandes quadros
sinestéticos das paisagens naturais observadas pelo seu narrador, que não consegue esconder
o seu espanto. Estas descrições abarcam campos como a geografia, a topografia, a fauna, a
flora e a etnografia e são dotadas de um grande realismo e tentativa de objectividade, de que
o Capítulo XLI é bem exemplificativo. A viagem é uma aprendizagem contínua e um con-
fronto permanente entre a realidade que pela primeira vez se observa despreconceituada-
mente e de modo ingénuo e com objectividade e os conceitos dogmáticos que são a cada pas-
so usurpados pelo mundo abarcado pela visão e pela experiência. Deste modo, a descoberta
de algo que era até então desconhecido é um facto inolvidável e fonte de contentamento,
mesmo que a natureza do fenómeno observado possa constituir uma ameaça, como o croco-
dilo:
«Em todo este rio, que não era muito largo, havia muita quantidade de lagartos, aos quais
com mais próprio nome poderia chamar serpentes, por serem alguns do tamanho de uma
boa almadia, conchados por cima do lombo, com as bocas de mais de dous palmos, e tão sol-
tos e atrevidos no cometer, segundo nos afirmaram os naturais da terra, que muitas vezes
arremetiam a uma almadia quando não levava mais que três, quatro negros, e a soçobravam
com o rabo, e um e um os comiam a todos, e sem os espedaçarem os enguliam inteiros.»
Peregrinação, cap. 14
Esta relação directa e in locu com tais fenómenos e realidades só foi possível, contudo, devido
ao progresso na aquisição e assimilação de conhecimentos geográficos e científicos, cuja con-
cretização se ficou a dever, por seu lado, ao aperfeiçoamento dos instrumentos de orientação
e de navegação, nomeadamente o astrolábio e a bússola. De salientar que os processos expe-
rimentais da época nada têm em comum com o método experimental da ciência moderna,
porque no primeiro caso a experimentação consistia exclusivamente na recolha ocasional de
dados, registados por pilotos e marinheiros nos seus diários de bordo. Segundo o polígrafo
António Sérgio, a única compilação de roteiros portugueses que guiava os nossos marinhei-
ros nos mares orientais era o Grand Routier de la Mer, elaborado por Jan Huygen van Linscho-
ten e publicado em 1595 e que reproduz doze roteiros e descrições de viagens realizadas por
embarcações portuguesas entre a China e o Japão.
Em Peregrinação estão presentes alguns indícios de navegação astronómica, com referências à
determinação de latitudes, sendo estas deduzidas a partir da observação da altura meridiana
do Sol e do conhecimento da sua declinação, através de sucessivas operações de adição e de
subtracção. As características das águas sulcadas, as correntes e o regime dos ventos surgem-
nos na obra como conhecimentos decisivos para o sucesso das viagens empreendidas, bem
como as monções sazonais que ditavam as datas de entrada e de saída dos portos e que
deveriam ser escrupulosamente respeitadas, pois a desobediência a estas leis naturais pode-
ria implicar a morte daqueles que a tal se aventurassem, como se comprovou na perda do
galeão grande de Sepúlveda.
Marca renascentista é o apego ao mundo concreto e às leis que o regem, pelo que conceitos
abstractos, como os da distância e do tempo, são mensurados através do recurso a termos de
comparação concretos e, regra geral, relacionados com o espírito bélico e com a religiosidade
de então. Para medir ou calcular distâncias recorre-se frequentemente à medida do alcance
das armas utilizadas na época e, para situar uma acção no tempo, não são referidas horas,
pois o tempo era calculado pelo sol e pela lua e ainda pelas cerimónias ou actos de natureza
religiosa que eram executados em momentos determinados do dia, tais como as missas e as
preces.
Belicismo e religiosidade andaram sempre de mãos dadas nos novos territórios e constituíam
os fortes alicerces do espírito de cruzada então emergente. Era o combate exterminador con-
tra os denominados «infiéis», os não cristãos a quem restavam apenas duas vias para a reso-
lução do conflito: a luta pela defesa da sua integridade cultural e religiosa, dos valores
segundo os quais se erigiam as suas sociedades, ou a submissão ao povo invasor que era
sinónima de conversão ao cristianismo.
Subjacente a este revivalismo do espírito de cruzada encontrava-se, por parte da Igreja
romana, a premência de reafirmar o seu poder, não só espiritual mas também político e eco-
nómico, no preciso momento em que este se encontrava fortemente ameaçado, e ainda a
necessidade de suster a irrupção dos Turcos no Levante. O golpe fatal, responsável pelo
enfraquecimento do poder papal, foi desferido pelos Humanistas, e o movimento desenca-
deado ficou registado na História sob a designação de Reforma. O seu foco de revolta, ateado
nos Países Baixos, cedo se alastrou a todos os países centro-europeus e a todos os sectores da
sociedade. Os seus mentores foram Lutero e Calvino, que não hesitaram em erguer a sua voz
contra a prepotência da Igreja Apostólica Romana. As indulgências e as bulas papais foram
contestadas, com a justificação de desrespeitarem e corromperem o verdadeiro espírito cris-
tão. Por toda a Europa central e setentrional ecoaram as palavras desses pensadores livres e
as consciências despertavam e reagiam contra a Instituição Católica e a sua intromissão nos
assuntos internos de cada Governo. Os povos da Europa, a norte e a leste de Itália, revalori-
zaram a sua hegemonia nacional e a sua independência, em detrimento das suas relações
com instituições que lhes eram exteriores. O papa era um estrangeiro que se imiscuía na vida
nacional de cada um desses povos e que, como tal, retirava autoridade aos seus legítimos
governantes, que, numa atitude de desafio a Roma e por uma desmedida ambição de aumen-
to do seu poder, se assumiram como governantes despóticos dos seus reinos. Deste modo,
fortaleceram o seu poder político e, para reforçarem o seu poderio económico, confiscaram as
riquezas da Igreja Católica, que assim se encontrou, inesperadamente, destituída de muitos
dos seus bens: terras, alfaias, jóias, metais preciosos, etc.
A Igreja Católica não se manteve, contudo, como espectadora impávida. Pelo contrário,
organizou, no ano de 1545, o Concílio de Trento, conselho que assinalou o início da reforma
da referida instituição, mas que cedo se mostrou de pouca eficácia para sarar as chagas re-
centemente abertas e que haviam abalado fortemente os seus débeis alicerces.
Na Península Ibérica, a Contra-Reforma não encontrou as condições necessárias para vingar,
embora tenha encontrado alguns adeptos, nomeadamente Damião de Góis, que teve amiza-
de com Erasmo e Lutero, relações que motivaram a inamizade da Inquisição. Portugueses e
Espanhóis permaneceram no obscurantismo na escolástica durante séculos infindáveis, pelo
que aceitaram passivamente a instalação da Companhia de Jesus em Portugal em 1536, ano
em que foram desencadeadas as perseguições a judeus e cristãos--novos. Confiscando todos
os bens destes, a Companhia de Jesus pretendia recuperar as riquezas que haviam sido sub-
traídas dos cofres da sua Igreja pelo movimento protestante. Os tribunais do Santo-Ofício,
pela pessoa dos seus algozes, que faziam das divergências religiosas um mero pretexto para
mover perseguições ditadas pelos interesses mesquinhos e mais diversos, votariam ao ostra-
cismo os maiores pensadores peninsulares, silenciando todos aqueles que proclamavam as
novas ideias de teor filosófico e científico. A atitude crítica e experimental era condenada à
fogueira, porque catalogada de heresia. Os ensinamentos recolhidos através da experiência
dos Descobrimentos 26 definharam e foram arquivados em 1564, data da promulgação em
Portugal das decisões do Concílio de Trento, passando a Península Ibérica a encabeçar a
vanguarda do catolicismo.
O espírito da Companhia Jesuíta cruzou os mares e tentou estabelecer-se no Oriente, com o
intuito de evangelizar os povos indígenas. Esta preocupação é personificada em Peregrinação
pelo padre Francisco Xavier, um herói cómico a quem Fernão Mendes Pinto atribui alguns
milagres, mais concretamente o do batel, o dos Achéns e o da incorruptibilidade do seu cor-
po após a morte.
Rebecca Catz, estudiosa da obra deste autor, afirma1 que ao pretensamente mitificar o padre
jesuíta, este é objecto de um processo delicado de satirização, na medida em que «cada um
dos milagres tem um defeito». O defeito inerente ao milagre enunciado em primeiro lugar
consiste numa contradição verificável ao longo da narração de um episódio de naufrágio,
ocorrido na viagem deste padre ao Japão na companhia do autor. No decorrer desta os nave-
gantes foram surpreendidos por uma violenta tempestade, em consequência da qual se per-
deu uma das embarcações que foi posteriormente reavida quatro dias mais tarde sem que
tivesse sofrido qualquer dano, humano ou material. O aparecimento desta embarcação foi
atribuído à intervenção dos poderes divinos de S. Francisco Xavier, aquele que primeiro a
avistou do chapitéu da nau em que se encontrava. Todavia, esse mesmo chapitéu tinha sido
derrubado, juntamente com os castelos de vante, no segundo dia de dificuldades, como
medida de precaução, pelo que seria inverosímil a ocorrência de tal cena no local menciona-
do.
No Capítulo CCVI é narrado o confronto beligerante entre portugueses e achéns no rio de
Parles, de que os primeiros saíram vitoriosos. O êxito dos vencedores é atribuído ao jesuíta,
que lhes teria incutido o espírito de cruzada e encorajado com veemência a empunhar as
armas e a derramar o sangue dos apelidados de infiéis. Este episódio comporta uma crítica
velada ao espírito pressupostamente cristão inerente à empresa dos Descobrimentos e ao
estabelecimento dos Portugueses em terras do sol-nascente. Apregoando o amor e com-
preensão entre todos os homens, seu apelo e seu grito é de guerra e não de tréguas. A evan-
gelização e as palavras de um Deus que se pretendia impor eram uma capa que visava ocul-
tar a ambição e a desumanidade daqueles que se consideravam os senhores do Novo Mundo
e se sentiam no direito de, a uma mesa, dividir em fatias o seu domínio sobre outros povos.
Espalhados por toda a parte, os missionários cooperaram com os Descobrimentos no estabe-
lecimento dos portugueses em terras estranhas, tarefa não raras vezes dificultada ou impos-
sibilitada pelas contradições entre as culturas em confronto. Este confronto é simbolizado
nesta obra pelas disputas teológicas entre o padre Francisco Xavier e os bonzos do reino de
Bungo. Mais do que discussões pessoais ou teológicas, era o confronto directo e imediato
entre diferentes cosmovisões.
O terceiro milagre atribuído a este padre é, como ficou já registado, o da incorruptibilidade
do seu corpo, perecido a 2 de Dezembro de 1552 (?) na China. Três meses e cinco dias após
ter sido enterrado, o corpo foi exumado para que fosse transladado para Malaca. O espanto
foi geral, porque se mantinha intacto, sem qualquer sinal de decomposição. Transportado
para Malaca, foi enterrado na ermida de Nossa Senhora do Outeiro um ano após o seu fale-
cimento e ainda incorrupto. Sugerindo um milagre, a incorruptibilidade do corpo do padre
canonizado deveu-se ao facto de ter sido preservado com cânfora e cal no momento da sua 2S
morte, um procedimento, ao que tudo indica, corrente entre os missionários portugueses.
Assim se gerou um mito!
As críticas mais acérrimas contra a hipocrisia religiosa dos portugueses são colocadas, pelo
narrador, nas bocas de uma criança e de um velho, respectivamente nos Capítulos LV e
LXXVII. O primeiro, um rapaz de 12 ou 13 anos de idade, foi encontrado por António de
Faria, um corsário temido ao longo de toda a costa asiática, no interior de uma embarcação
chinesa de que os portugueses se apoderaram na ilha dos ladrões, onde tinham ancorado
após uma tormenta e cujos tripulantes assassinaram, à excepção da criança. Constatando a
perda do fruto de mais de trinta anos de trabalho de seu pai e a ausência de escrúpulos dos
estrangeiros, o rapaz não hesitou em escarnecer dos afagos que António de Faria lhe dispen-
sou nem em criticar a sua desumanidade e cinismo
«porque vos vi louvar a Deus despois de fartos com as mãos alevantadas e com os beiços
untados, como homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer
o que têm roubado; pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga tanto a bulir
com os beiços, quanto nos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dous
pecados tão graves quanto despois de mortos no rigoroso castigo de sua divina justiça.»
Peregrinação, cap. 55
O discurso desta criança confirma o carácter contraditório dos portugueses, cujos actos con-
tradizem as suas palavras. O rapaz simboliza a inocência e a pureza de uma alma limpa de
preconceitos e de corrupção que, por nada temer, condena a hipocrisia dos ladrões vestidos
de comerciantes. A sua introdução na narrativa é de um artifício que reforça a atitude crítica
do narrador em relação aos actos bárbaros executados pelos seus compatriotas e, não esque-
çamos, por ele próprio.
Segundo inferências de Donald Fergusson perfilhadas por Aquilino Ribeiro em Portugueses
das Sete Partidas, António de Faria não terá sido mais do que um mero travesti do próprio
Fernão Mendes Pinto, a sua «máscara de pirata».
Posteriormente, aquando do assalto a uma ermida na ilha de Calemplui, o corsário portu-
guês ousa saquear os túmulos sagrados dos imperadores da China e é a voz de um velho
ermitão a condenar a sua cobiça desmesurada e o seu falso ideal de pregação. Hiticou, o
velho ermitão, de aspecto nobre e com mais de cem anos de vida, representa a sabedoria e o
bom senso daqueles que, abdicando dos bens materiais e desprazeres mundanos, envereda-
ram pela via do misticismo com o objectivo de aperfeiçoarem a sua alma. O ancião critica o
espírito de cruzada que pretende impor o cristianismo pelo recurso à violência, que apregoa
o bem e derrama o sangue inocente e que, mais do que ganhar almas, se mostra empenhado
em cobiçar o alheio sem manifestar qualquer preocupação quanto aos meios empreendidos
para que os fins almejados se tornem numa realidade palpável.
Essa mesma cobiça, aliada à sede insaciável e instituída pelo lucro, foi, aliás, uma das causas
da posterior decadência dos poderes político e económico de Portugal no Oriente e também
do terminar de um sonho imperialista de que viria acordar na penúria. Visando o usufruto
fácil e imediato, todos os meios eram legítimos e recorrentes, de tal forma que a capacidade
máxima de carga das embarcações era desmedidamente ultrapassada e os naufrágios se tor-
naram uma ocorrência banal naquelas paragens. Os registos existentes sobre naufrágios
adquiriram uma natureza moralizante, pois permitiam atribuir a responsabilidade por tais
ocorrências à divina providência, que, deste modo, assumia o papel de castigadora dos
pecados cometidos: a ambição, a incompetência dos marinheiros, as tempestades e outros
fenómenos, etc. Em Portugal, e só entre os séculos XVI e XVII, foram publicados cerca de vin-
te relatos de naufrágios, de causas bastante semelhantes. O denominador comum desta
situação é o desespero daqueles que sentem aproximar-se, a passadas largas, o princípio do
fim de um império idealizado e de uma ilusão religiosa e nacionalista, por oposição à cega
exaltação de grandes feitos em terras estranhas e longínquas, cujos efeitos desastrosos são
escamoteados e falseados nas crónicas oficiais.
Outra fonte de naufrágios eram os ataques frequentes de corsários e de piratas. A nossa His-
tória tende a responsabilizar por tais actos as coroas espanhola e inglesa, olvidando-se, de
forma oportuna mas incorrecta e pouco convincente, de que os próprios portugueses, ou
pelo menos alguns deles, também se dedicaram ao corso e à pilhagem de embarcações
estrangeiras. Pretendendo desviar o tráfico das especiarias para a Rota do Cabo, o corso
assume um carácter institucional de actividade outorgada pelo poder soberano. A subtracção
aos indígenas dos seus bens era uma actividade lícita, porém, enquanto Afonso de Albu-
querque foi vice-rei da índia, a pirataria e interferência no movimento dos portos locais não
era autorizada. Com a substituição deste por Lopo Soares, o acesso a todos os portos foi
franqueado a todos os mercadores portugueses, sem que qualquer critério prévio tivesse sido
estipulado, assim se anarquizando as relações comerciais na região.
Outros, os pseudomercadores, aqueles da «nação barbada daqueles que por seu proveito e
interesse espiam a terra como mercadores e despois a salteiam como ladrões» (Peregrinação,
cap. 41), optam pelo banditismo dos mares e roubam e mercam sem escrúpulos, fora da
alçada da justiça. Este é o retrato sumário de António de Faria, comparado, no capítulo 51 ao
demónio. Poucos hesitam em atribuir a António de Faria poderes maléficos, sendo ele mes-
mo a incarnação das forças do Mal, permanentemente acompanhado por símbolos de violên-
cia e de natureza satânica que se revestem de uma crueldade exasperante no capítulo 59, no
qual ocorre a morte de Coja Acém, provocada por uma cutilada fatal na cabeça, vibrada pelo
corsário português, e, no capítulo seguinte, no decorrer do qual António de Faria ateou fogo
a um hospital sito na ilha e onde alguns marinheiros doentes do Turco se recuperavam de
anteriores combates, justificando esta atrocidade perpretada sobre gente enferma e indefesa
no momento com o facto de eles pertencerem à seita pagã, acusada de genocídio de um avul-
tado número de cristãos. Era a parcialidade que obscurecia os actos cruéis cometidos pelo
corsário e seus seguidores.
Tais crimes não ficariam, contudo, impunes. Ao inverso da situação presente em Os Lusíadas,
os nautas lusos de Peregrinação não foram abençoados com a ínsula Divina nem mereceram
os favores dos deuses. A estes coube a ilha dos Ladrões e a inclemência de um Deus que
provoca tempestades e não atende às suas súplicas desesperadas. Prova do que foi dito é o
capítulo 79, no qual umaforte tormenta se abate sobre a embarcação capitaneada por António
de Faria, que evoca Deus e suplica a clemência divina, acompanhado pelos brados e gemidos
das preces da sua tripulação, mas sem qualquer efeito prático. O saldo desta tempestade foi o
naufrágio e o afogamento de dezoito cristãos e de sete marinheiros chineses e o desapareci-
mento brusco de António de Faria. N' Os Lusíadas, no seu canto sexto, é representado um
epsisódio de tempestade. Contudo, a súplica de Vasco da Gama à Divina Guarda é imedia-
tamente atendida, e os ventos amainam e o mar amansa. O Bem vencia o Mal, mas não por
absoluto.
Em plena Revolução Comercial, o individualismo perdera qualquer comedimento e sentido
de humildade e adoptara as formas de presunção e de egoísmo. Os homens vangloriavam-se
de uma forma fastidiosa e exagerada de todos os seus actos, numa atitude de auto-afirmação.
A imoralidade tornara-se banal, com particular incidência nas classes sociais mais poderosas.
A vingança e a luta desenfreada pela ascensão social eram triviais, tanto como o era a cor-
rupção política. Com os homens que então cruzaram os mares e novos continentes viajavam
tais valores que, deste modo, foram transplantados e germinaram nos novos territórios.
Pêro de Faria, governador de Malaca, representa o poder português no Oriente, poder esse
que não hesita em colocar os seus interesses económicos, senão pessoais, acima de quaisquer
outros. Estes eram os interesses subjacentes aos tratados e acordos políticos, económicos ou
de vassalagem, no verdadeiro sentido do termo, estabelecidos com os governantes indígenas.
A relação estabelecida entre estes e Pêro de Faria era uma relação, em todos os seus aspectos,
com reminiscências do sistema feudal europeu da Idade Média e que os portugueses enxer-
taram no Oriente em pleno Renascimento. Esses acordos estipulavam o auxílio que o gover-
nador português deveria prestar aos governantes indígenas que contra ele não erguessem
suas armas e lhe franqueassem os portos comerciais, permitindo-lhes ainda, e em troca, a
livre mercancia no porto de Malaca, embora pagando pesados impostos sobre o produto do
seu comércio. Vários tratados foram quebrados pelos sucessivos governadores portugueses
na índia, de forma arbitrária e unilateral sempre que o usufruto desse acordo não correspon-
dia às expectativas criadas ou implicava dispêndios materiais ou humanos sem qualquer
contrapartida. Enquadram-se neste contexto os episódios dos reis Aarú e Bata, a quem o
governador nega os auxílios antes prometidos. Tendo assegurado verbalmente ao embaixa-
dor do primeiro o envio de um carregamento de armas, do qual dependia a segurança do
reino Aarú, ameaçado pelos Achem, este jamais chegou ao seu destino, porque nunca foi
enviado. A avareza e o egocentrismo dos portugueses foram, consequentemente, as causas
fundamentais da derrota e morte do rei, vítima incondicional da confiança cega que deposi-
tara no acordo que firmara anos antes com Afonso de Albuquerque e quebrado por Pêro de
Faria. Revoltada com a atitude deste último, a rainha viúva dirigiu-se sem demora a Malaca,
onde tentou mover as autoridades portuguesas a prestarem-lhe o auxílio indispensável para
que pudesse reaver o seu reino ocupado e perdido. Nem as suas preces, nem a sua feminili-
dade nem a sua condição provocaram qualquer efeito naqueles que a escutavam, mas que
lhe não deram qualquer resposta. A decisão esperada foi sendo sucessivamente adiada até ao
momento em que ela, perdidas todas as esperanças e desiludida, partiu daquele território e
se refugiou no reino de Jantana, com cujo rei contrairia segundas núpcias, a troco da promes-
sa de lhe restituir o perdido reino de Aarú.
Os reis antes mencionados e o Chaubainhá de Martavão não pouparam, com as suas pala-
vras contundentes, os estrangeiros que os haviam traído. Derrotado, o último entregou-se ao
rei de Brama e, à saída da cidade que fora sua, e deparando com um grupo de portugueses,
não quis passar diante destes e «disse com as lágrimas nos olhos aos de que ia cercado: —
Verdadeiramente vos afirmo irmãos e amigos meus, que por menos dor e afronta tenho
fazer de mim este sacrifício de ver diante de meus olhos gente tão ingrata, e tão má como
esta! Ou me matem aqui, ou os tirem dali, porque não hei-de passar mais adiante». Uma vez
mais, o auxílio juramentado não chegara, e outro acordo fora rasgado, como o admite o nar-
rador ao afirmar que «quiçá que lhe não faltou razão». (Peregrinação, cap. 150)
Tornando-se indiferente aos perigos enfrentados pelos seus vassalos e desrespeitando a
palavra de honra, os portugueses ganham o desfavor dos seus súbditos e, por extensão, o seu
poder na região é progressivamente corroído e ameaçado. Assim se teceu a teia que mais
tarde capturaria os seus próprios tecedores. Os portugueses criaram as condições «ideais»
para o ataque da armada turca ao porto de Malaca, prevista por Fernão Mendes Pinto. A
ameaça mais grave ao poderio português na índia traduziu-se no combate travado no rio
Parles com os Achem. Tudo isto, porque os portugueses, mergulhados no seu forte etnocen-
trismo, subestimaram as forças dos povos asiáticos e os seus valores civilizacionais, bem
como a sua capacidade de reacção.
Os portugueses, tal como os outros povos descobridores e colonizadores, visavam, secunda-
riamente, a europeização do mundo, ou seja, a transferência dos costumes e da cultura euro-
peus para os novos continentes. Como resultado da acção de comerciantes, missionários e
colonos, as Américas do Norte e do Sul assumiram rapidamente a feição de apêndices do Ve-
lho Continente, e a escravatura foi reinstituída. A Oriente, porém, não houve mais que uma
breve transformação, e a escravidão não vingou. Actos bárbaros foram, no entanto, exercidos
sobre os povos indígenas pelos europeus que desembarcaram nas novas terras crentes, no
preconceito de que todos os outros povos lhes eram inferiores. De acordo com este precon-
ceito, muitas culturas milenares foram destruídas ou abaladas nos seus fundamentos.
Em Peregrinação, os portugueses vêem-se frequentemente confrontados com novas culturas.
Descrevendo as diferentes etnias, o sujeito de enunciação assume para com elas uma atitude
de simpatia e busca a objectividade, demonstrando, deste modo, uma ampla abertura de
espírito, sem formular juízos. Esta sua atitude permite integrá-lo na grande família humanis-
ta e considerá-lo um longínquo percursor de Jean--Jacques Rousseau, mentor da Revolução
Francesa, juntamente com Voltaire e Montesquieu. Rousseau é universalmente reconhecido
como o pai do mito do «bom selvagem», segundo o qual o homem é naturalmente bom, mas
vulnerável ao poder corruptivo da sociedade, da qual deverá afastar-se quanto possível. Este
mito, estilizado pelo filósofo francês, não surgiu do nada, é antes a compilação de reflexões
alheias sobre uma matéria de há muito objecto de grande atenção, a que ele deu o seu pró-
prio contributo enriquecedor. De facto, já desde o Renascimento grandes nomes das Letras
vinham elaborando descrições que se pretendiam objectivas e imparciais dos povos contac-
tados e trazidos ao conhecimento de todos.
Fernão Mendes Pinto faz ressaltar, na sua obra, a natureza ingénua e generosa dos povos
exteriores à dita civilização europeia, bem como o carácter degenerativo desta em relação aos
primeiros, introduzindo na narrativa o episódio do acidente sofrido pelo príncipe de Bungo.
Relata este episódio as condições em que ocorreu o acidente sofrido pelo jovem antes men-
cionado com uma espingarda, apresentada àquela comunidade japonesa pelo sujeito de
enunciação, numa das suas quatro viagens àquela região. Seduzido pelo desconhecido e
curioso quanto aos seus efeitos, o príncipe decidiu experimentá-la, sem que para tal tivesse
aprendido o seu manejo, num gesto de impaciência pelo qual foi punido com a quase perda
de um polegar. Metonimicamente, através da introdução desta espingarda, que imediata-
mente causa danos gravosos, os portugueses haviam introduzido a arma de fogo nas terras
nipónicas, chamando a si a responsabilidade pelo recrudescimento da natureza mortífera das
lutas locais.
O carácter sanguinolento dos portugueses é alvo das atenções dos tártaros, com os quais se
estabelece um relacionamento empático, quando os primeiros foram por estes capturados no
norte da nação Chim. Para conseguirem recuperar a liberdade, os nossos tiveram de lutar nas
fileiras dos seus sequestradores contra os chineses, de natureza mais pacífica. O desempenho
dos guerreiros portugueses foi exaltado e enaltecido pelo rei tártaro que lhes reconheceu
coragem e valentia, mas duvidou das suas intenções e criticou a violência dos colonizadores,
como comprovam as suas palavras: «conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria,
dá claramente a entender que deve de haver entre eles muita cobiça e pouca justiça», cujo
sentido foi completado pelo discurso de um velho de nome Raja Benão «homem que por
indústria e engenho voam por cima das águas todas, por aquirirem o que Deus lhes não deu,
ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade, e a
cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus, e a seus pais.»
(Peregrinação, cap. 122).
O sintoma de cobiça diagnosticado pelos tártaros nos portugueses conduzira já estes ao
assalto à ilha de Calemplui e ao saque dos templos sagrados ali erigidos. Roubar os tesouros
dos antigos imperadores da China, deitar as suas ossadas por terra e sobre elas cuspir, são
actos de profanação do sagrado e de violação das crenças de todo um povo, cuja cultura é
atacada pelo que nela é um valor profundo e tornado num objecto de escárnio. Absoluta-
mente simbólico, este episódio representa o espírito imperialista das «gentes estrangeiras do
cabo do mundo com barbas compridas, e corpos de ferro» (Peregrinação, cap. 78).
A corrupção moral dos marinheiros estrangeiros naquelas terras de Levante atingiu propor-
ções extremas no episódio da noiva, no qual o comportamento dos aventureiros portugueses
raiou a ruptura absoluta com os valores morais e éticos universalmente aceites e tidos como
invioláveis. Estando ancorados junto ao morro de Tilaumera e vendo surgir quatro embar-
cações decoradas de modo festivo, porque acompanhavam uma noiva indígena para a aldeia
de Panduré, onde deveria decorrer a cerimónia matrimonial, os portugueses, surtos naquele
porto, não hesitaram em ludibriar aquela gente. Atraindo a jovem, filha de Anchaci de
Colem, ao junco daqueles, esta foi raptada, bem como os seus irmãos, que a tinham acompa-
nhado a bordo. Os restantes elementos da comitiva nupcial tiveram sortes diversas, tendo
fugido uns, e outros sido abandonados na praia após o abalroamento deliberado das suas
embarcações. Içando a âncora, os raptores abandonaram aquele porto para mais adiante se
cruzarem com a embarcação que transportava o noivo prometido à jovem sequestrada.
Assim se atinge o clímace tragicómico da situação que acentua o cinismo dos nossos mari-
nheiros, que correspondem à saudação que lhes enviou a outra embarcação. E a violação de
todas as leis do amor e da união às quais se contrapõem as leis da guerra e da força alicerça-
das no desrespeito pela integridade alheia. Uma segunda situação de rapto ocorre no capítu-
lo 65, que termina com o sequestro de raparigas indígenas na cidade de Nouday. Embarcan-
do atadas e de olhares lacrimejantes, destoavam em absoluto dos risos e dos cânticos entoa-
dos pelos seus raptores. A beleza e a ingenuidade naturais tinham, uma vez mais, sido vio-
lentadas pelo braço conquistador.
Contrastando com estas atitudes desdenhosas e profundamente etnocentristas face às cultu-
ras indígenas, os portugueses agiram em conformidade com os costumes e rituais por eles
mesmos considerados indignos da espécie humana. É o caso da antropofagia, acto cometido
apôs uma revolta popular ocorrida no reino de Demá, cujo rei morrera anteriormente e do
qual os portugueses se sentiram na necessidade de fugir, recorrendo para tal efeito a uma
jangada bastante rudimentar roubada a um grupo de chineses, vencidos pela força desigual
das armas empunhadas pelos portugueses. O narrador, participante neste acto de selvajaria,
expressa uma cumplicidade concomitante com tal barbaridade ao afirmar, de forma peremp-
tória, que «parece que em parte nos desculpa ser a necessidade tamanha que nos forçou a
fazer tamanho desatino», depois de ter confessado que «sobre quatro pedaços de pau atados
com duas cordas nos matámos todos uns aos outros, como se fôramos inimigos mortais ou
outra cousa ainda pior» (Peregrinação, cap. 179). Com aquelas palavras, o narrador admite ter
agido de acordo com os" seus instintos mais profundos, os desencadeados pela luta pela
sobrevivência sem olhar aos meios empregados para continuar vivo. O homem despe-se da
sua racionalidade intrínseca para deixar extravasar as intuições que mais o aproximam da
irracionalidade animal e da sua ancestralidade, regressando a uma condição sub-humana.
Privados de alimentos e famintos, os navegantes-vagabundos, perdidos em águas estranhas
e perigosas, saciaram a sua fome com a carne de um cafre que morrera de fome e, deste
modo, lhes prolongou a esperança de vida em mais cinco dias. O homem assumia a sua ani-
malidade e descia aos infernos do canibalismo. Os valores mais sublimados, como os da vida
e os do respeito pela morte, perderam a sua pertinência perante o pânico da antevisão da
própria morte. Quatro outros homens faleceram durante a travessia, porém sorte diversa
lhes estava reservada, a de que os seus cadáveres se manterem intocáveis, pelo simples facto
de estes serem portugueses e, por extensão, cristãos. Preferiram os sobreviventes arriscar a
vida enganando os estômagos com as algas que boiavam à superfície. Esta era a manifestação
mais concreta do espírito controverso das cruzadas e do movimento de irradiação do cristia-
nismo junto dos povos pagãos. Como converter essas gentes a uma religião personificada
por aqueles que as consideravam carne para saciar a sua fome e apregoavam e puniam os
ritos canibalísticos? Demasiados paradoxos aliados a uma missão de índole tão elevada!
Embora tendo participado em assaltos, saques e raptos, de cuja responsabilidade não ousa
demitir-se, o sujeito de enunciação confessa, por outro lado, o fascínio que sobre ele exerceu
a civilização chinesa, objecto de pormenorizadas descrições e comentários. Referindo-se à
capital desse vasto e longínquo império, declara, com incontida admiração e tendo como
termo de comparação as principais cidades europeias e outras orientais, que «todas estas se
não podem comparar com a mais pequena cousa deste grande Pequim, quanto mais com
toda a grandeza e sumptuosidade que tem em todas as suas cousas, como são: soberbos edi-
fícios, infinita riqueza, sobejíssima fartura e abastança de todas as cousas necessárias, gente,
trato e embarcações sem conto, justiça, governo, corte pacífica» (Peregrinação, cap. 107).
Pequim era o centro da sua utopia, conceito abstracto para Tomás Moras, terra quimérica
alcançada por Fernão Mendes Pinto na sua longa peregrinação por terras do sol-nascente. Tal
foi o impacte gratificante suscitado pela assimilação dos valores culturais ali vigentes e ime-
diatamente objecto da sua veneração incondicional, que o sujeito de enunciação não resistiu
à necessidade interior de trazer ao conhecimento público as maravilhas que o haviam encan-
tado, repartindo com ele a sua experiência. Assume o estatuto de interlocutor entre duas civi-
lizações, a da sua origem ou Pátria e aquela que seu olhar desvenda pela primeira vez e a
cujo fascínio sucumbe, a sua Mátria. Fernão Mendes Pinto transmite-nos, neste sentido, a his-
tória do povo chinês, recuando até às suas origens remotas"e reconstituída através da audi-
ção de algumas das crónicas dos reis da China, num total de oitenta.
Outros portugueses não partilhavam, por seu lado, de tal visão despreconceituada, o que
lhes causou graves dissabores, de entre os quais se salienta a punição que sobre eles foi exer-
cida pelas autoridades chinesas, que os ataram de pés e de mãos e os mandaram açoitar em
público, como retaliação por terem zombado do mito de Quiay Xingatolor e de Apancapatur.
Por contraste, Fernão Mendes Pinto absteve-se de emitir juízos, preferindo assimilar conhe-
cimentos e acumular experiências e, em coerência com esta sua preocupação, o narrador acei-
ta os nativos tal como estes se lhes apresentam, sem qualquer paternalismo ou esboço de
superioridade. Imbuído deste espírito, descreve novas terras; novas gentes, Achéns, Batas,
Chineses, Gigauhos, Tártaros, etc.; diferentes costumes e culturas, sem jamais as depreciar,
numa pose de verdadeiro humanista que faz das suas atitudes o baluarte de uma nova con-
cepção do Homem e do Universo, liberta de dogmatismos e alicerçada na natureza do Indiví-
duo.
A Peregrinação é um documento de indesmentível valor sobre uma época tão esplendorosa
como controversa. Representa o reverso da medalha do empreendimento das Descobertas e,
a nível literário, dos valores manifestamente exaltados em Os Lusíadas. Do contraste patente
entre realidades diversas e paradoxais, resulta a crítica destemida a uma política oficial que
se esforça por olvidar e escamotear a «vã cobiça» que norteou a acção portuguesa na época
quinhentista. Pela sua natureza antidogmática e desmitificadora, a Peregrinação foi o alvo
preferido de desmentidos e chorrilhos trocistas e nem o nome do seu autor foi deixado
impune, tendo-se generalizado o trocadilho: Fernão, mentes? Minto!
Consciente do seu trabalho e dos efeitos que este poderia despoletar no marasmo da igno-
rância inquisidora reinante na Metrópole, Fernão Mendes Pinto argumentou em sua própria
defesa, face aos ataques dos mais incrédulos, retorquindo, a propósito de uma das suas
grandiosas descrições, que «é muito para se arrecear contá-lo, ao menos a gente que viu pou-
co do mundo, porque esta, como viu pouco, também costuma a dar pouco crédito ao muito
que outros viram» (Peregrinação, cap. 14).