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UM CASO CLINICO mïà PHïlfïT! /T/G me

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UM CASO CLINICO

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« ^

UM CASO CLINICO

D R1MITIVA

APBESENTADA L

ESCIIOLA MEDICO-CIKI KlilCA DO PORTO E DEFENDIDA

EM J U L H O DE 1875

FOR

y^NTONIO JOAQUIM DA JflOCHA

POETO T y p o g r a p h i a L u s i t a n a

84-Rua das Flores—8*

1875.

/í/G ** c

ESCIÏOLA MEDICO-CIRURGICA DO PORTO

DIRECTOR

0 111.™ e Ex.™ Snr. Conselheiro, Manuel Maria da Costa Leite

SECRETARIO

O 111.™ e Ex.™» Snr. Manuel de Jesus Antunes Lemos

CORPO CATHEDRATICO

LENTES PItOPRIETABIOS

A . n i • . . . °3 IL!, ."" E EX."" SNRS. i.' Cadeira — Anatomia descripliva e ge­0 . r,rfii.» ' "ni- ' -; 'J , o 3 ° D i a s Pereira Lebre. 8. Cadeira ­Phyiiologk Dr. José Carlos Lopes Junior. à.' Cadeira — Historia natural dos medi­ ­ w r ' , . rS^l0% na l,er ia m e a í c a m° X a v i i r d e Oliveira Barros. í." Cadeira — Pathologia externa e the­­i ■ r ­ Í E t i C V X í e r n a ■••,■•• I l l i l l i 0 A 5 ' r c s Pereira do Valle. 5 Cadeira­Medicina operatória Pedro Augusto Dias. 6." Cadeira­ l'artos, moléstias das mu­

llieres de parto e dos recem­nasci­i rt?L'„ ' *,,",," ; • . • : ; • • • • „ ■ • Ur­ Agostinho Antonio do Souto. 7. Cadeira — 1'athologia interna.—The­

rapeutica imerna e historia medica José d'Andrade Gramaxo. B S É S _ r i""Ca ™ed'Ca A n t o n i o d '0 l iveira Monteiro,

_!).' Cadeira — Clinica cirurjrica Rilnanln i...r»i„ i.i.„.,„... lo r X a _ A!"!" 3 •C'rurf,ica •• E , l u a r , i 0 P^e™ Pi'"en'a­ ' « . . S c n l ­ M e i S C X e n è AUt01"° , 0 a ' ] " i m "* " " * * C a l t o '

privada e publica e toxicologia ge­

Curso dTpàuioíogia gerai . '. . ! ! . I ! S L U V ^ S dl S K T A J S ? * ­

. bvgiene privada e publica e toxicologia ge­ral

guês da Silva Pinto.

LENTES JUBILADOS

Secção medi™ ( ̂ ' ' " e i r o , losé p « r e i r a »«"». secção medica ) t ) r . Francisco Vclloso da Cruz.

[ Visconde de Macedo Pinto. Secção cirúrgica í A"l0",',° B.erua, rdin0 d'Almeida. secção cirúrgica } L„,Z lareira da Fonseca.

( Conselheiro, MJEUCI M. da Costa Leite. LENTES SUBSTITUTOS

Secção medica [Manuel Rodrigues da Silva Pinto. • ( Antonio de Azevedo Maia.

Secção cirúrgica í Manuel de Jesus Antunes Lemos. " " ' ' ( Vaga.

LENTE DEMONSTRADOR

Secção cirúrgica A „ s u s l 0 Henrique d'Almeida Brandão.

A Eschola nîo responde pelaj doutrinas expendidas na dissertaçîo e enunciadas nas preposições.

(Regulamento da Eschola de 23 d'abril de 1840, art. 155.")

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J

SJETJS PAES

COMO PROVA SINCERA DE MUITO RESPEITO

E ACRISOLADO AMOR FILIAL

O F F E R E C E

o vosso humilde filho

/ NTONIO.

áfô

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AO §m mmmmm 0 ILL.mo E EX.'"" SNIÎ.

Iff Digníssimo lente da 8.a cadeira

NA

ESCHOLA MEDICO-CIRURGICA DO PORTO

EM TESTEMUNHO DE PROFUNDO EESPEITO

E MUITO RECONHECIMENTO.

<f)ffe»

Antonio Joaquim ba iloclja.

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Advertência

-oC*3e-

A necessidade de satisfazer a uma exi­gência da lei, de que não podemos eximir-nos, obriga-nos a apresentar este ultimo tra­balho, como chave que ha de fechar o nosso tirocinio escholar e abrir a nova carreira que vamos encetar.

Para assumpto d'esta prova final deve­ríamos, a fim de seguirmos com rigor o ar­tigo 454 do regulamento d'esta Eschola, es­colher ou uma monographia pathologica ou um ponto pertencente ás generalidades medi­cas, sobre que podessemos fazer uma disser­tação. Mas, como d'aqui nenhum proveito tiraríamos, a não ser o de compulsar as obras d7alguns auctores, e de compilar e co­ordenar o que n'ellas víssemos expendido, e como fossemos incitados por alguns dos nossos professores a dar uma feição prática a esta ordem de trabalhos, preferimos satis­fazer aquella disposição regulamentar com o

presente relatório d'um caso clinico de — Hydropisia primitiva—que tivemos oc-casião de observar e estudar na enfermaria de clinica medica.

O motivo que nos determinou a escolha d'esta individualidade mórbida, foi o que­rermos archivar na scimcia mais um facto, que vem confirmar-nos a importância e su­perioridade que em therapeutica tem a indi­cação causal sobre a indicação symptomati­ca, e que presenciamos n'este exemplar.

Os limitados recursos de que dispomos e o pouco tempo que os deveres escholares nos dispensavam para a execução d'esté traba­lho, são motivos suficientes para nos serem relevados os defeitos que n'elle se encontra­rão, e termos direito á indulgência do insi­gne e erudito jury, a que tem de ser submet-tido.

ax

RELATÓRIO D'UM

CASO CLINICO DE HYDROPISIA PRIMITIVA

ANAMNESTICOS

No dia 22 de fevereiro de 1875 entrou na enfer­maria de clinica medica d'esta Eschola, no Real Hos­pital de Santo Antonio, José Rodrigues, de 57 annos de idade, viuvo, natural de Passos de Souza, e resi­dente em Lagares.

Este individuo era jornaleiro, oceupando-se em diversos trabalhos do campo.

A casa, em que residia, em nada patenteava os preceitos da hygiene : era pequena, térrea, muito hú­mida e fria, pouco e mal ventilada.

A alimentação de que fazia uso, não obstante ser regular na quantidade, era todavia má na qualidade, consistindo em caldo, pão, e ás vezes bacalháo ou sardinha.

Os seus hábitos pouco ou nada tinham de re-prehensivel.

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DOENÇAS DE FAMÍLIA — O doente, sendo inter­rogado sobre as moléstias de que os seus progenito­res soffreram, disse-nos que nada sabia a este res­peito, e que elles já tinham morrido. Nos outros mem­bros da sua família não se encontra facto algum digno de menção.

DOENÇAS PREGRESSAS DO DOENTE— Em crian­ça, teve o sarampo, e mais tarde, a variola de forma confluente. Na idade de 23 annos sobreveiu-lhe, em virtude d'um resfriamento que experimentara, uma bronchite não muito intensa, da qual se restabeleceu completamente em pouco tempo, depois d'um trata­mento conveniente.

Aos 35 annos, emigrou para o Brazil, e ahi foi logo acommettido pela febre amarella, que por essa occasião grassava com bastante intensidade. Recolheu-se então a um dos hospitaes do Rio de Janeiro, sain­do, no fim d'algumas semanas, perfeitamente resta­belecido.

Passados dous annos, voltou para a sua pátria, onde continuou a auferir os meios da sua subsistên­cia, oceupando-se nos trabalhos do campo. Desde en­tão, até ao mez de janeiro d'este anno, gozou sempre boa saúde.

HISTORIA DO ESTADO ACTUAL-A este respeito, disse-nos o doente que no fim do mez de janeiro vie­ra ao Porto conduzir uns bois para a exportação, e que, na volta para a sua localidade, percorrera a ul­tima légua debaixo d'uma chuva copiosa c fria, que o surprehendeu no caminho, chegando a sua casa mui­to molhado e sentindo muito frio.

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Para se enxugar e mitigar a sensação de frio que então experimentou, aqueceu-se a uma fogueira que fizera na sua cosinha; mas, depois de estar bem quen­te, precisou de sair de casa, e expôz-se novamente ao frio, não podendo, voltar senão quando era já noite*

Passados três dias, começou de sentir alguma fe­bre, e uma inchação nos pés, a qual foi progredindo de tal modo que, no fim de oito dias, já chegava ás virilhas. Depois que esta inchação invadiu as coxas, appareceram-lhe, pelo que diz o doente, os sympto-mas d'uma hyperhemia dos pulmões e do fígado. So-breveiu-lhe então uma tosse intensa e sêcca, alguma suffocação, e ao mesmo tempo uma dôr violenta no hypochondrio direito, a ponto de não poder inclinar-se para diante, augmentando n'esta occasiço a febre.

E' depois da apparição d'estes phenomenos, que o doente sentiu principiar a inchação do abdomen.

O doente, vendo-se n'este estado, recolheu-se logo ao hospital da Misericórdia de Penafiel, para ahi procurar allivio ao seu padecimento. Passados oito dias, porém, como lhe dissessem que seria melhor vir para o Porto, afim de curar esta moléstia, resolveu sair d'aquelle estabelecimento e dar entrada no hospi­tal d'esta cidade, onde foi confiado aos nossos cuida­dos.

E x a m e d.o d o e n t e

(NO DIA 23 DE FEVEREIRO)

O doente apresenta-se com um temperamento sanguino-lymphatico e uma constituição mais que re-

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guiar. Occcupa no leito o decúbito dorsal ; o decúbito lateral direito também é possivel.

Nunca se colloca no decúbito lateral esquerdo, por que se sente muito incommodaclo, quando toma esta posição.

O habito externo de todas as partes do seu cor­po, execepto a cabeça, mostra-se augmentada de vo­lume e modificada na sua configuração normal.

A circumferencia dos membros inferiores acha-se consideravelmente amplificada ; as suas saliências ósseas e musculares, as suas rugas, e a sua forma normal desappareceram completamente. Nos membros superiores notamos as mesmas deformações, mas não são tão pronunciadas nem tão características, sobre­tudo no membro esquerdo.

À superficie da pelle, que reveste os membros é lisa, levemente luzidia, tensa e apresenta uma côr esbranquiçada, excepto nas pernas, onde existe uma còr avermelhada.

Pela palpação sentimos a pelle fria e sêcca, reco-nhecendo-se ao mesmo tempo uma espécie de empasta­mento, uma espessura maior e uma consistência molle, de maneira que, comprimida pela polpa do dedo, for-ma-se uma depressão circular, que vai desapparecen-do pouco a pouco, logo que o dedo deixe de actuar.

As paredes do abdomen acham-se espessas, e con­sideravelmente distendidas, formando uma saliência arredondada muito exagerada acima dos limites nor-maes. Quando se percutem ouve se um som obscuro em toda a região abdominal, excepto na região epi-gastrica, onde o som é tympanico ; percebe-se perfei­tamente a sensação da fluctuação.

Se mandarmos collocar o doente no decúbito la-

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teral direito, esta saliência inclina-se immediatamente para o mesmo lado.

O thorax apresenta-se mais amplo, principal­mente na parte inferior, onde os diâmetros são mai­ores do que os da parte superior. Nas suas paredes não observamos as saliências e as depressões, que no estado normal existem; mas sim, maior extensão e uma pequena dilatação dos espaços intercostaes.

Nos tegumentos, que cobrem o tronco e o pes­coço, existem os mesmos caracteres que se encon­tram na pelle dos membros, e que já ficara enumera­dos.

O rosto mostra a sua physionomia natural. Fin­cando a pelle d'uma das pálpebras superirres, forma-se uma préga que desapparece immediatamente.

FUNCÇÕES DE NUTRIÇÃO : — Circulação — Ex­plorando por meio da auscultação o órgão central d'esta funcção, encontramos os sons cardíacos tão longínquos e enfraquecidos, que é-nos impossível apre­ciar as sua qualidades. Não se sente a impulção car­díaca. A inspecção, a palpação e a percussão da re­gião precordial não nos revelam phenomeno algum anormal.

O pulso está pequeno e molle, havendo 75 pul­sações por minuto.

Nas veias jugulares externas não se observa o pulso venoso.

Respiração — Esta funcção acha-se bastante per­turbada. Os movimentos respiratórios são superficiaes e accelerados. contando-se 36 inspirações por minuto. Pela auscultação, ouvem-se em toda a extenção dos

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dous pulmões uma grande quantidade de sons anor-maes, a que os francezes chamam râles, de todas as espécies.

A percussão dá um som obscuro desde a parte inferior do thorax até ao nivel da quinta costella; d'a-qui para cima o som é quasi normal.

A expectoração é bastante abundante, sendo con­stituída por escarros brancos e um pouco viscosos. A tosse não é muito frequente durante o dia, mas exas-pera-se bastante durante a noite.

0 doente, alem da dyspnea que não é muito in­tensa, sente algum calor na parte posterior da regi­ão esternal.

Digestão— N'esta funcção pouco ha apparente-mente a notar-se de extraordinário. 0 volume do fí­gado acha-se no seu estado normal; apenas se nota uma leve dôr ao nivel d'esta viscera, provocada pela pressão.

A maior parte dos intestinos está accumulada na parte superior da cavidade abdominal, onde o doente sente ás vezes borborygmos.

Ourínação—k excreção urinaria executa-se amiu­dadas vezes e em pequena quantidade*. As urinas teem uma côr bastante carregada, e deixam no fundo do vaso uma camada sedimentosa. Analysando as por meio do calor e do acido azotico, não se obtém pre­cipitado algum que nos denote a presença da albumina.

Calori/icação—O doente sente os seus membros muito frios. 0 thermometro collocado na axilla mar­ca 36/5

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FUNCÇÕES DE RELAÇÃO—Os movimentos de lo­comoção são impossíveis ; os outros executam-se com difficuldade. O doente não pôde assentar-se no leito senão com o auxilio estranho, e apenas se pôde con­servar alguns instantes n'esta posição.

A voz, a palavra e os sentidos especiaes, excepto o tacto, acham-se no seu estado normal.

FUNCÇÕES DO SYSTEMA NERVOSO-Relati va men­te á sensibilidade geral, ha a sensação de peso e de tensão que o doente experimenta em todo o seu corpo, e além d'isso, um entorpecimento nos membros infe­riores.

Não ha perturbação alguma nas faculdades intel-lecluaes. O seu estado moral é muilo satisfatório.

DIAGNOSTICO

Os signaes fornecidos pelos anamnestics e pelo axame directo do doente são de tal modo accentuados e característicos, que não podemos deixar de reco­nhecer aqui a existência de liquidos infiltrados no te­cido cellular sub-cutaneo e derramados em varias ca­vidades serosas.

Com effeito, o aspecto especial que a pelle apre­senta, as modificações na forma e no volume que se manifestam nas partes que ella reveste, a sensação de empastamento que se experimenta pela palpação, e principalmente a depressão circular, mais ou menos profunda e persistente, formada sob a pressão da polpa do dedo e devida á perda de elasticidade que a derme n'estas circumstancias soffre em virtude da distensão produzida pelo liquido infiltrado, são sym-ptomas muito sufficientes para admittirmos n'este do­ente uma hydropisia do tecido cellular sub-cutaneo, a qual toma n'este caso o nome de anasarca, por se estender á totalidade, ou quasi totalidade, do mesmo tecido.

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No rosto não ha edema algum, e se existe, a in­filtração é em tão pequena quantidade, que as fei­ções naturaes não se acham alteradas, nem a prega que se obtém quando pinçamos a pelle d'uma das pál­pebras superiores, persiste algum tempo para depois se desfazer lentamente.

Os symptomas que observamos na região abdo­minal mostra-nos claramente que existe na cavidade do peritonêo um derramamento de liquido muito con­siderável.

Assim, a'deformação com que se apresenta o abdomen, formando, acima dos limites normaes, uma grande saliência arredondada, que obedece em to­dos os movimentos do doente ás leis da gravidade ; a tensão exagerada das paredes abdominaes; o som obscuro que se obtém quando as percutimos; a falta d'elevaçao do ventre no momento da inspiração, indi­cando a existência d'um obstáculo, que se oppõe ao abaixamento do diaphragma e difficulta a respiração; a accumulação da massa intestinal na parte superior da cavidade abdominal, devida ao seu menor peso especifico; e sobretudo, a sensação da flucluação, são os principaes symptomas observados no caso su­jeito, e que quadram perfeitamente á hydropisia do peritonêo, chamada também ascite.

N'este individuo não se notava um phenomeno muito caracteristico que costuma observar-se n'esta doença: a forma achatada, que o abdomem toma no decúbito dorsal, muito análoga á d'um odre cheio d'a-gua, e que justifica a denominação—ascite—dada pe­los antigos a este estado pathologico, derivando-a do vocábulo grego—«xò,-, odre.

Mas isto não deve alterar o nosso diagnostico,

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pois que a forma arredondada que aqui se observava, é devida á grande quantidade do liquido derramado, que, tornando a cavidade abdominal bem repleta e distendendo as suas paredes a ponto de não poderem ceder, para que o liquido se accumulasse nas partes latero inferiores, obstava a que houvesse a depressão característica.

Na cavidade das pleuras lambem existe alguma collecção serosa, a qual se nos revela pela diminuição das excursões respiratórias, pela amplitude do thorax, de maneira que a sua circumferencia inferior apresen­ta maior extensão do que a superior, ao contrario do que acontece no estado normal, pela maior largura dos espaços intercostaes, e pelo som obscuro que a parte inferior das paredes lhoracicas dá á percussão.

A quantidade de serosidade derramada, porém, não é muito considerável, porque não só o som ob­scuro apenas occupa o espaço comprehendido entre a base do thorax e a quinta costella, mas também a dys­pnea não é de tal modo intensa que não permitta ao doente o decúbito dorsal, e o obrigue a tomar uma posição mais elevada.

A dyspnéa aqui não é produzida somente pelo hy­drothorax, que, comprimindo os pulmões, diminue me-chanicamente o campo da hematose, e pela congestão e edema pulmonares que actuam da mesma maneira. As vísceras abdominaes accumuladas na parte inferior do abdomen, e impedindo o abaixamento do diaphra­gma, difficultam também a respiração, estorvando a expansão dos pulmões.

Apesar de não haver n'este individuo a elevação, nem a maior extensão no som obscuro, que é de cos­tume observar-se na região precordial, quando existe

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o derramamento d'uma certa quantidade de liquido no pericárdio, somos todavia levados a admittil-o, atten-dendo aos outros meios de apreciação. A distancia e o enfraquecimento notável dos sons cardiacos, a falta da impulsão cardiaca e as qualidades do pulso são si-gnaes evidentes da existência de um corpo qualquer, collocado entre o myocardio e a parede thoracica.

Ora, este corpo não pôde deixar de ser liquido derramado na cavidade do pericárdio, análogo ao que já se verificou em outras cavidades serosas, o qual, em virtude da pressão que exerce sobre o coração e da sua menor densidade especifica, impelle este órgão para a columna vertebral, difficultando assim os seus movimentos e tornando os seus sons longínquos e abafafados, a ponto se serem quasi imperceptíveis.

Se altendermos ás duas causas d'erro, que n'es­tes casos complicam a interpretação dos resultados da precussão, não nos deve surprehender a ausência de som obscuro em maior extensão do que no estado nor­mal, pois que este som pôde ser mais extenso, ou me­nos extenso, do que o derramamento, segundo o es­tado ou a posição dos pulmões.

N'este doente é o estado congestivo dos pulmões que, mascarando as relações do hydropericardio com as paredes thoracicas, faz com que a percussão da re­gião precordial dê sensivelmente os mesmos resulta­dos que no estado normal.

A falta de elevação precordial é, sem duvida al­guma, devida á maior extençâo dos espaços intercos-taes, e também á maior amplitude da caixa thora­cica.

Este hydropericardio concorre também para a dyspnea que se observa no nosso doente, não só pela

— m — compressão que exerce sobre uma parte do pulmão esquerdo, diminuindo directamente o campo respira­tório, mas também pela compressão das veias pulmo­nares, que difficulta o seu desaguamento na aurí­cula esquerda e provoca nos pulmões uma estase ge-neralisada, de maneira que a hematose se torna in­completa, e o sangue, pobre em oxygeneo e rico em acido carbónico, produz sobre a medulla alongada uma excitação anormal, que tem por effeitos a acce-leração e a diminuição na amplitude dos movimentos respiratórios.

A effusão de serosidade na cavidade cephalo-ver-tebral revela-se apenas por alterações funccionaes, re­sultantes do obstáculo que o liquido oppõe ao funci­onalismo regular do cérebro e da espinhal medulla.

N'este individuo podemos excluir immediatamente a existência d'uma hydropisia n'esta cavidade, visto que as suas funcções cerebraes e espinhaes se acham perfeitamente normaes.

Em presença do que fica expendido, vê-se clara­mente que o padecimento do nosso doente consiste em uma hydropisia quasi generalisada, occupando a totalidade do tecido cellular sub-cntaneo, excepto o da face, e as cavidades serosas: do peritonêo, das pleuras e do pericárdio.

Não basta, porém, reconhecer somente a existên­cia de liquido derramado e infiltrado n'estas regiões, é necessário verificar também qual é a causa que pro­duziu tal transsudação. E' esta a parte mais delicada e difficil do diagnostico d'uma hydropisia.

Em geral, as hydropisias dividem-se em essên­cias ou primitivas e symptomaticas ou secundarias. Aquellas produzem-se d'um modo primitivo, sem que

- a s ­se possa descobrir nos sólidos ou nos líquidos alguma alteração apreciável, que explique o seu desenvolvi­mento; estas são dependentes d]um estado patholo-gico anterior bem manifesto, do qual constitue um dos seus effeitos principae:.

Vejamos, pois, a qual d'esles dous grupos per­tence a hydropisia, que está debaixo da nossa apre­ciação. Para isso, devemos attender ao seu modo de desenvolvimento, ás partes do corpo que ella primei­ramente invadiu, ás circumstancias que a precede­ram e aos phenomenos concomitantes.

Bastava apenas attendermos ao desenvolvimen­to rápido com que se manisfestou esta transsudação serosa, para admittirmos logo uma hydropisia perten­cente ao primeiro grupo. Ha, porém, ainda outras cir­cumstancias de bastante valor, que nos levam a formar o mesmo juizo. AS alternativas de frio e calôr a que o doente se expôz depois d'uma jornada prolongada e incommoda, a febre mais ou menos intensa que em seguida sentiu, e principalmente a ausência de lesão apreciável em qualquer parte do organismo, que nos dê a explicação da exosmose serosa, são signaes bem evidentes de que este individuo foi acommettido d'uma hydropisia primitiva ou idiopathica.

Se esta hydropisia pertencesse ás secundarias ou symptomaticas, não só deveria desenvolver-se d'um modo muito mais lento e vagaroso, como também deve­ríamos encontrar em alguma parte da economia um es­tado mórbido, do qual a transsudação serosa não fos­se mais do que um symptoma.

Entretanto, como as hydropisias essenciaes ou primitivas são hoje muito raras, e teem sido negadas por alguns pathologistas, julgamos conveniente percorrer

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as différentes lesões que poderiam dar logar a uma exos-mose hydropica tão abundante, para que vejamos se podemos aliminal as do nosso doente, e se assim fir­mamos bem este diagnostico.

A primeira doença que nos occorre á ideia, quan­do nos approximamos d'um individuo colloeado n'es­tas circumstancias, é uma lesão valvular do órgão central da circulação.

O diagnostico geral d'estas lesões funda-se não só nos signaes pbysicos deduzidos da mudança de vo­lume do myocardio e dos sons de sopro, como tam­bém nas alterações da circulação peripherica e nas perturbaçõos funccionaes que estas produzem.

Se attendessemos somente aos signaes physicos, de certo que não podíamos eliminar do nosso doente as lesões valvulares, visto que o estado congestivo dos pulmões e a collecção serosa do pericárdio mascaram até certo ponto os phenomenos, que o exame directo do órgão devia fornecer-nos. Mas, recorrendo aos ou­tros elementos, parece-nos que não pôde haver hesi­tação alguma em pôl-as immediatamente de parte.

Nem todas as lesões valvulares teem a mesma influencia hydropigena. As lesões do coração direito são as que poderiam dar logar a um derramamento de liquido tão rápido e abundante, pois que, difficul-tando primitiva e directamente o desaguamento das veias cavas, produzem logo a estase sanguínea e o augmento de pressão intra-vascular em todo o systema venoso, a ponto de causarem dentro de pouco tempo uma exosmose hydropica abundante.

No nosso doente faltavam alguns phenomenos importantes, que de certo se observariam, se por ven­tura houvesse alguma d'estas lesões. A congestão pas-

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siva do fígado, em vez de ser de forma leve e de se manifestar juntamente com a dos pulmões, e posteri­ormente ao edêma dos membros inferiores, deveria ser muito mais intensa e prematura.

A estase pulmonar não se manifestaria senão em ultimo logar; porque era necessário o decurso d'um certo espaço de tempo, para que a estase do systema venoso geral difficultasse a circulação capillar e au­gmentasse a resistência á onda arterial, de maneira a determinar nos pulmões a accumulação de sangue, se não sobreviesse, como é de costume, a hypertrophia do ventricuio esquerdo para compensar este desequi­líbrio.

Antes, porém, de haver esta hyperhemia, devia notar-se a ischemia, devida á difficuldade que o san­gue encontrava em passar das cavidades direitas para a artéria pulmonar, d'onde resultaria a insufficiencia da hematose, e por conseguinte a accumulação de aci­do carbónico na massa sanguínea, e mais tarde a côr livida dos tegumentos, constituindo a cyanose.

Além d'isso, a ausência completa da estase sim­ples ou de pulso venoso forte das veias jugulares, bem como a falta de fundamentos que nos auclorisem a suspeitar em algum período da vida d'esté individuo a existência d'uma endocardite ou d'uma endarterite atheromatosa, causas constantes das insufficiencias ou das estenoses dos orifícios cardíacos, são rasões suf-ficientes para não admittirmos taes lesões.

Entre as lesões valvulares do coração esquerdo, ha as do orifício mitral que poderiam occasionar esta hydropisia com alguma rapidez.

Mas, n'este caso, o primeiro phenomeno que de-

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viamos observar, era uma congestão passiva dos pul­mões.

Só mais tarde, depois d'esta hyperhemia 1er dado origem á dilatação das cavidades direitas do myocar-dio, e, por consequência, á estase e augmento de pressão intra-vascular no systema venoso, é que de­via manifestar-se a congestão hepática e das outras vís­ceras abdominaes, e depois o derramamento de liquido no tecido cellular sub-cutaneo e nas cavidades sero­sas, se o obstáculo á circulação fosse sufficiente para produzir taes effeitos.

Além d'estes phenomenos não se apresentarem no nosso exemplar com esta ordem chronologica, não ha­via a estase jugular simples ou o pulso venoso, que costuma acompanhar as lesões milraes; por isso po­demos também excluil-as sem a menor hesitação.

Não pôde haver duvida alguma em eliminar as lesões do orifício aórtico, visto faltarem aqui muitos dos seus symptomas.

Nas lesões do orifício aórtico ha quasi sempre uma hypertrophia compensadora do ventrículo esquer­do, que restabelece o equilíbrio de pressão em todo o systema vascular sanguíneo. Quando este estado sa­lutar deixa de satisfazer o seu benéfico fim, apparecem logo, ou os symptomas da hypertrophia do coração, se a compensação é exagerada, o que é muito frequen­te, ou os phenomenos d'estase venosa, mas muito de­morados, pouco pronunciados e na mesma ordem chronologica era que se observam nas lesões mitraes, se a compensação é imperfeita ou incompleta.

Além d'isso, n'esta doença o pulso apresenta-se com caracteres especiaes, e muitas vezes, manifestam-se os symptomas da ischemia arterial das vísceras,

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principalmente do cérebro, dando logar a vertigens, lipothymias ou syncopes.

Como nada d'isto observamos no nosso doente, nem tão pouco encontramos nos commemoralivos cou­sa alguma que podésse originar estas lesões, não de­ve haver duvida alguma em eliminal-as.

Não havendo aqui alguma das lesões valvulares, podia existir ou ter existido uma doença do envolu-cro do coração.

A pericardite, podendo dar logar a um derrama­mento de liquido exercendo grande compressão sobre o myocardio, á degeneração gordurosa do mesmo ór­gão, ao desenvolvimento duma myocardite, ou á ex­citação muito forte do pneumogastrico, diminue, ás vezes, a força contractil do coração, de modo que a vis a tergo e a impulsão da onda sanguínea se enfra­quecem, a ponto de se manifestarem collecções sero­sas em vários pontos da economia.

0 hydropericardio pôde lambem produzir o mes­mo effeito, não só pelo obstáculo que oppõe aos mo­vimentos cardíacos, como também pela compressão exercida sobre uma porção das veias pulmonares e das veias cavas.

Como se vê na historia actual e pregressa d'esté individuo, nada encontramos que nos leve a presumir a existência d'uma pericardite aguda ou chronica, ou d'um hydropericardio primitivo ou secundário, e por­tanto ficam já excluídas, como causas geradoras d'es-ta hydropisia.

Independentemente das lesões que já ficam enu­meradas, temos ainda, como causa da hydropisia ge­ral, as doenças pulmonares que diminuem o campo circulatório na totalidade ou quasi totalidade dos dous

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órgãos, e assim embaraçam a circulação no systema venoso geral, depois de ter forçado e dilatado as cavi­dades do coração direito. As mais importantes d'es-tas doenças, sob o ponto de vista hydropigeno, são o emphysema generalisado, a pneumonia intersticial, o calarrho bronchico chronico e a tuberculose cha­mada chronica.

O emphysema pulmonar revela-se com um certo numero de symptomas tão característicos, que não po­demos deixar de excluil-o immediatamente do nosso exemplar.

Com effeito,quando esta doença é bem pronuncia­da, como era necessário que fosse para produzir uma collecção serosa tão abundante, o doente apresenta-se com uma dyspnéa intensíssima; com a cabeça in­clinada para traz de maneira a facilitar o jogo dos músculos auxiliares da respiração e a entrada do ar nos bronchios; com o pescoço saliente para diante, e parecendo encurtado porque a sua parte inferior é mascarada pela elevação anormal do thorax e das es­páduas; com uma estase venosa cervical ; e com uma turgencia e leve cyanose da face. A isto acresce ain­da os signaes fornecidos pela auscultação e pela per­cussão. O murmúrio vesicular acha-se muito enfraque­cido ou nullo, e outras vezes áspero e ruidoso ; a so­noridade pulmonar é mais obscura do qne no estado normal, e mais extensa, de maneira que excede os limites do som obscuro do fígado e do coração.

Também não podemos admittir a bronchite chro­nica intensa nem a tuberculose commum ou ulcerosa, pois que nos commemorativos d'esté doente não en­contramos symptoma algum que nos denuncie a exis­tência de taes moléstias,

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Da mesma maneira eliminamos a pneumonia in­tersticial ou esclerose dos pulmões, visto que esta doença é ordinariamente o resultado de estados patho-lógicos, de que este individuo nunca soffreu : a pneu­monia fibrinosa, a pneumonia catarrhal chronica, o catarrho chronico dos bronchios, o emphysema, etc.

Os tumores intra-thoracicos, seja qual fôr a sua natureza e a sua origem, podiam egnalmente deter­minar uma hydropisia mais ou menos generalisada, se, comprimindo a veia cava inferior, ou ambas as ca­vas ao mesmo tempo, embaraçasse a passagem do sangue para a auricula direita do coração, e d'esté modo augmentasse a tensão sanguinea no systema ve­noso geral, a ponto de se produzir a exosmose hy-dropica.

Se, no nosso caso, assim acontecesse, deveria en-contrar-se algum symptoma que nos denunciasse a existência de laes producções mórbidas n'esta re­gião. De mais, como o desenvolvimento dos tumores costuma fazer-se muito lentamente, também a infil­tração serosa devia apparecer com este caracter, e não com a rapidez com que aqui se manifestou.

A dòr que o doente diz ter experimentado no principio da sua doença, e que ainda accusa pela pres­são ao nivel do hypochondrio direito, fez-nos lembrar uma lesão do fígado, que, embaraçando a circulação no systema da veia das portas, desse logar a uma effusão serosa na cavidade peritonial.

Esta ascite, attingindo certas proporções, podia muito bem determinar pela compressão que exerces­se sobre a veia cava inferior o edema dos membros inferiores, e mais tarde, o resto d'esta hydropisia, quando a accumulação das vísceras abdominaes na parte

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superior do abdomen fosse sufflciente para impedir o abaixamento do diaphragma, e por conseguinte estor­var a expansão dos pulmões e os movimentos cardía­cos.

Na historia do nosso doente vê-se claramente que n'esta hydropisia falta não só a lentidão ou demora, com que devia ter-se manifestado, se por ventura fosse devida a alguma d'estas lesões, mas também a ordem chronologica, em que devia então succeder-se nas di­versas regiões que invadiu. Nem mesmo ha aqui si­gnal algum que nos indique a existência de qualquer doença do fígado, exceptuando a congestão passiva que appareceu depois de haver já alguma serosidade derramada, e que ainda existe mais ou menos inten­sa, mas que é já um resultado, e não a causa d'esta hydropisia.

De mais, se aqui houvesse alguma das lesões que costumam occasionar a hydropisia do perilonêo, como a hepatite intersticial, a hepatite parenchymalosa, o can­cro, a atrophia, etc., dar-se-iam perturbações fun-ccionaes do apparelho digestivo, derramamentos de bí­lis, que, apesar de não serem uma complicação neces­sária d'estas lesões, são todavia muito ordinários, e também alterações nos excrementos, que n'estes casos são muito características.

As alterações mórbidas do baço, do pancreas e dos ganglios mesentericos, bem como os neoplasmas do peritonêo, e os tumores de qualquer natureza e origem, que comprimissem a veia das portas ou a veia cava inferior, excluem-se immedialamente pelas mes­mas rasões acima expendidas.

Postas de parte todas as lesões que poderiam produzir mechanicamente estas collecções serosas,

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resta nos agora examinar se n'este individuo haveria alguma alteração na crase sanguínea que nos possa dar a razão de tal derramamento liydropico.

A dyscrasia hydropigena existe todas as vezes que se forme a hydrohemia absoluta, isto ó, quando na massa sanguínea ha ao mesmo tempo o augmento da agua e a diminuição da quantidade da albumina. Este estado observa se quando as substancias proteicas são em quantidade insufficiente para a reparação comple­ta dos elementos desassimilados, ou quando estas mesmas substancias são tiradas directamente ao san­gue. D'aqui resultam duas ordens de causas.

Na primeira ordem filiam-se as hydropisias por alimentação insufficiente, e as que ás vezes se obser­vam em certas convalescenças, nos indivíduos portado­res de cancro gastro intestinal ou esophagiano, e em algumas diatheses, como a tuberculose, o cancro, etc. Na segunda ordem temos as hydropisias produzidas pe­las hemorrhagias repetidas, pelas suppurações abun­dantes e prolongadas, pela albuminuria persistente do mal de Bright, e pelas diarrheas copiosas, sobretudo pelas diarrheas albuminosas como as da dysenteria.

Entre estas différentes causas ha apenas uma que parece dar-se n'este individuo; é a insufíiciencia da alimentação.

Com effeito, a alimentação, de que o nosso do­ente fazia uso, sendo constituída quasi exclusivamente por substancias vegetaes, parece á primeira vista ser insufficiente para restituir ao sangue todos os ele­mentos proteicos que elle constantemente cede aos diversos tecidos da economia, e d'esté modo poder por si só alterar pouco a pouco a crase sanguínea,

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a ponto de produzir, com o decorrer do tempo, a dyscrasia hydropigena.

Reflectindo porém, vemos que os indivíduos da classe a que pertence este doente, apesar de se ali­mentarem de substancias muito pobres em princípios azotados, raras vezes soffrem as graves consequências da alimentação insufficiente, por que supprem esta falta não só pela quantidade, ás vezes considerável, de alimentos que introduzem no estômago, como pela maior aptidão digestiva que possuem para estas sub­stancias.

Assim, sabe-se que os indivíduos entregues a tra­balhos manuaes pesados necessitam em geral d'uma ali­mentação menos azotada e mais hydrocarbonada, do que aquelles que se applicam a oceupações sedentárias. O maior poder digestivo, que os primeiros possue n, de­vido ao muito exercício muscular, e a maior despesa de princípios hydrocarbonados feita pela grande acti­vidade da sua respiração, fazem com que possam inge­rir e aproveitar uma grande quantidade d'alimentos pobres em azote e ricos em hydrogeneo e carbóne.

Acontece o contrario aos indivíduos de vida se­dentária, os quaes não podem servir-se senão d'uma alimentação muito rica em princípios azotados e em pequena quantidade, em virtude da menor actividade respiratória que possuem e do pouco exercício muscu­lar que fazem. Se fizessem uso do outro género de ali­mentação, os alimentos sobrecarregariam as vias di­gestivas, causando sérias perturbações na funcção, de que este apparelho está encarregado, ou os seus 'ele­mentos hydrocarbonados, em excesso e que não po-dessem ser oxydados, accumular-se-iam, debaixo da forma de gordura, em vários pontos do organismo.

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E' por estas considerações que não admillimos a natureza da alimentação, de que o nosso doente usa­va, como causa única capaz, por si só, de produzir uma dyscrasia hydropigena tão pronunciada, que desse to­gar a este grande derramamento de serosidade. E de­mais, não se concebe muito bem, como uma dyscra­sia sanguínea d'esta ordem exista, por assim dizer, d'um modo latente, sem determinar algumas altera­ções nas diversas funcções da economia, para de re­pente surprehender o individuo e dar origem á hydro-pisia.

Comtudo, é muito provável que n'este doente, em virtude das suas qualidades individuaes e das más condições hygienicas em que se achava collocado, não houvesse os requisitos necessários, para que a sua alimentação satisfizesse cabalmente todas as exigências do seu organismo, e por isso podemos consideral-a, até certo ponto, como uma causa debilitante, que au­xiliasse mais ou menos a producção d'esté padeci­mento.

A albuminuria tem sido geralmente invocada co­mo a causa hydropigena mais frequente e mais efflcaz.

Depois da publicação das obras de Bright, a mai­oria dos auctores considerava a liydropisia e a albumi­nuria como resultados certos d'uma lesão renal, attri-buindo esta hydropisia á hypoalbuminose que então so-brevinha, em virtude da transsudação do soro do san­gue atravez do filtro renal.

Hoje, porém, sabe-se, pelos trabalhos recentes de medicos abalisados e pelo exame rigoroso dos fa­ctos clínicos, que, não obstante observar-se um gran­de numero de casos em que a lesão renal e a albu­minuria são efectivamente primitivos, determinando

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mais tarde a hydropisia, existe muitos outros perfei­

tamente analysados e ao abrigo de qualquer contesta­

ção, em que, umas vezes, os dous phenomenos appa­

recem simultaneamente, e outras vezes é a hydropi­

sia que abre a scena, e a albuminuria não se desen­

volve senão passado algum tempo. D'onde devemos concluir que entre estes 1res phe­

nomenos: lesão renal d'um lado, albuminuria e hydro­

pisia do outro, não ha uma relação constante e neces­

sária, e que são todos três devidos a uma mesma cau­

sa geral e superior, consistindo sem duvida em um estado dyscrasico do sangue.

Mas, seja como fôr, no nosso doente não se nota signal algum que nos revele a existência d'uma hy­

dropisia d'esta natureza. As urinas não dão precipi­

tado algum pelo calor ou pelo acido azotico, e além d'isso, a infiltração serosa, não principiou pelas pál­

pebras e o espaço interpalpebral, nem mesmo apre­

senta mobilidade alguma, como ordinariamente acon­

tece nas hydropisias do mal de Bright. Relativamente ás outras causas das hydropisias

dyscrasicas, podemos eliminal­as também, visto que nada encontramos nos commemoralivos do doente, que nos faça suspeitar a existência d algum d'aquelles estados mórbidos.

Ficando d'esté modo excluídas todas as cousas, tanto mechanicas, como dyscrasicas, que poderiam determinar estas collecções serosas, e também atten­

dendo ás outras razões já apontadas em outra parte, somos forçados a admittir n'este doente uma hydro­

pisia primitiva a frigore, por ter sido provocada pela acção do frio.

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PATHOGENIA E ETIOLOGIA

0 termo hydropisia, derivado de — «&>p, agua, e w4<, vista — significa, na sua accepção etymolo-gica, uma collecção de liquido perceptível á vista. Hoje applica-se este termo a um processo mórbido não inflammatorio, constituido pela accumulaçàod'um liquido análogo á serosidade do sangue, quer nas ca­vidades fechadas naturaes, quer no tecido cellular sub-cutaneo, sub-mucoso, ou visceral.

Tem sido mui diversas as espécies, em que os pathologistas teem dividido esta moléstia.

Porém, a divisão mais geral e mais racional que ha das différentes espécies de hydropisias, debaixo do ponto de vista pathogenico, é aquella que as separa em dous grupos: hydropisias primitivas, em que o derramamento seroso é o primeiro phenomeno apre­ciável, sem que se manifeste lesão alguma a que possa ser attribuido; e hydropisias secundarias, constituindo apenas um elemento, mais ou menos importante, d'um estado mórbido anterior.

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E' das hydropisias do primeiro grupo que temos de fallar n'este capitulo.

No estado actual da sciencia é muito difficil, se­não impossível, dar uma interpretação cabal e salis-factoria do mechanismo gerador das hydropisias pri­mitivas ou essenciaes. Apenas se pode aventurar, a este respeito, alguma hypothèse, mais ou menos plau­sível, mas destituída completamente de factos bem pre­cisos e averiguados que venham coníirmal-a.

Entretanto, apresentaremos aqui a explicação mais geralmente seguida, e que nos parece mais verisimil e mais conforme com os conhecimentos da physiolo-gia moderna.

E' sempre sob a influencia d'uma refrigeração in­tensa e rápida que se observam estas effusões serosas, que surprehendem certos indivíduos no gôso d'uma saúde perfeita. Em virtude d'esta acção do frio sobre a superfície cutanea a innervação do systema capillar sanguíneo é notavelmente modificada.

Com effeito, a physiologia do systema nervoso diz-nos que, quando um nervo é vivamente excitado por uma impressão anormal, a sua excitabilidade es-gota-se fatalmente por excesso d'actividade, sobrevindo passando algum tempo uma phase de repouso que con­stitue a nevrolysia.

D'esta maneira concebe-se bem que a excitabili­dade nervosa dos filetes sympathicos, que animam as fibras musculares lisas das paredes vasculares, sendo exagerada por uma refrigeração súbita e intensa, se es­gote, e se produza consecutivamente a paralysia d'es-tas mesmas fibras. D'aqni deve resultar a perda da contracção tónica ou tensão especial, em que, no es­tado normal, se acham as tunicas dos vasos sangui-

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neos, e em seguida a sua dilatação ; pois que as paredes vasculares deixando então de oppôr á tensão sanguí­nea a resistência sufficiente, cedem logo á pressão in­travascular.

0 afflaxo de sangue para o systema capillar em maior quantidade, a sua circulação mais retardada, e a maior tensão sanguínea, são os phenomenos que n'es­tas circumstancias se observam, e as condições neces­sárias para a producçâo da exosmose hydropica nos pontos anatomicamente mais predispostos para a rea-lisação d'esté phenomeno : as areolas do tecido cellu lar e as cavidades das serosas.

Portanto, podemos admittir, com muita verisimi-lhança, que o mechanismo intimo das hydropisias pri­mitivas consiste na dilatação paralytica do apparelho capillar, devida ao enfraquecimento da excitabilidade nervosa dos vaso-motores por excesso d'aelividade. E' esta a theoria que mais satisfaz o nosso espirito, e que se acha corroborada por numerosas experiências, fei­tas pelos physiologistas mais distinctos.

Os derramamentos deserosidade verdadeiramente primitivos são apenas aquelles que se desenvolvem sob a influencia da acção súbita e intensa do frio sobre a superfície cutanea, e por isso é que se chamam tam­bém hydropisias primitivas—a frigore.

Tem-se invocado também, como causas occasio-naes d'esté grupo de hydropisias, a suspensão acci­dental e rápida dos catamenios, a cessação do fluxo hemorrhoidario, e a acção do frio sobre a superfície gastro-intestinal pela ingestão de bebidas refrigerantes e em grande abundância. Mas, n'estes casos, o cara­cter primitivo da hydropisia é sempre contestável, e o problema a resolver é mais complexo ; porque é mui-

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to possível descobrir na série mórbida um elemento primitivo e d'ordem mais elevada.

Assim, por exemplo, a hydropisia que pôde pro-duzir-se em consequência da ingestão rápida d'uma certa quantidade de bebidas frias, não deve ser altri buida somente á acção do frio sobre o tegumento in­terno. E' necessário também altender a que esta effu-são serosa deve ter sido evidentemente precedida d'u­ma alteração qualitativa e quantitativa do sangue, aná­loga áquella que se determina experimentalmente pela injecção d'agua nas veias.

E' verdade que, em todas estas circumstancias, o processo pathogenico da hydropisia é idêntico, por que é sempre a uma perturbação funccional occorrida no apparelho capillar sanguíneo que deve ser attribui-do o derramamento liydropico. A differença está ape­nas em que, umas vezes, a perturbação funccional tem por causa única e immediata a refrigeração acci­dental vinda de fora, outras vezes, pelo contrario, des-envolve-se sobre a influencia d'iim estado pathologico já conslituido, e do qual ella não é senão uma mani­festação secundaria.

No nosso doente foi evidentemente a acção refri­gerante da chuva, que o surprehendeu durante a jor­nada d'esta cidade para a sua localidade, e as alter­nativas de calor e frio a que se expôz depois de che­gar a casa, que perturbaram o funccionalismo do sys-tema capillar do tecido cellular sub cutâneo e do teci­do das serosas, a ponto de produzir as codecções se­rosas que aqui observamos.

De certo que, se este individuo fosse robusto e estivesse collocado em boas condições bygienicas, não seria victima d'esté padecimento. Porém, as más con-

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dições hygienicas era que elle vivia, e, até certo ponto, a alimentação de que fazia uso, devia concor­rer muito para que o seu organismo se achasse en­fraquecido e se abatesse, no momento da impressão anormal, de maneira a não poder resistir-lhe.

A quantidade de serosidade derramada, que se observava na occasião em que o doente nos foi confi­ado, seria toda devida directamente á impressão do frio e á perturbação funccional dos capillares? Parece-nos que não.

Passado o tempo sufficiente depois da impressão anormal do frio, houve a effusão serosa, tanto no teci­do cellular como nas cavidades do pericárdio, das pleuras e do peritonêo. D'estes derramamentos sero­sos, aquelle que, com uma quantidade de liquido re­lativamente pequena, devia prejudicar mais pela im­portância do órgão sobre que directamente actuava e pela pequena latitude que podia adquirir, era o hy-dropericardio.

Por isso, logo que na cavidade do pericárdio se accumulasse uma certa quantidade de serosidade, os movimentos cardíacos difficullar-se-iam immediatamen-te, embaraçando-se em seguida toda a circulação; o que devia concorrer para que a estase sanguínea no systema venoso geral se tornasse ainda maior do que já era, e augmentasse assim a exosmose hydropica.

Ë' d'esté modo que podemos explicar, não só as congestões pulmonar e hepática, que appareceram al­guns dias depois da invasão da hydropisia, mas ainda o augmento de volume que o doente diz ter sentido, depois da apparição d'estas hyperhemias, nas regiões invadidas pela hydropisia primitiva.

PROGNOSTICO

A hydropisia não pôde ter um prognostico geral; ella depende de tantas causas, pôde ter logar em ca­vidades tão importantes e delicadas, pôde adquirir uma extensão tão variável, pôde ser acompanhada de complicações tão numerosas e graves, que é impossí­vel indicar, d'um modo geral e sem distincção, as probabilidades de cura, de reincidência, ou de termi­nação fatal. No entretanto, podemos dizer que a hy-dropisia é um phenomeno grave; mas subordinando esta gravidade á sua natureza e causa, á sua sede e extensão, ao estado geral do doente, e ás compli­cações que podem sobrevir.

Pelo que diz respeito á natureza e causa, a hy-dropisia que nos serviu de exemplar apresenta um prognostico benigno. Os derramamentos serosos, cha­mados primitivos e produzidos pelo frio, teem ordi­nariamente uma marcha rápida e uma terminação fe­liz, sendo quasi sempre isentos de complicações gra­ves. No nosso doente, porém, esta evolução favora-

- m — vel foi bastante modificada cm consequência das ou­tras circumslancias.

Esta collecção serosa occupava regiões tão im­portantes, e existia em tão grande quantidade, que, quando pela primeira vez nos acercamos do leito do doente, nos fez receiar uma terminação funesta.

Com cffeito, o hydropcricardio perturbando os movimentos cardíacos, e por conseguinte a circulação gera!; o hydrothorax, ainda que não muito extenso, era comtudo sufficienle para que, juntamente com a congestão pulmonar e com a difficuldade dos mo­vimentos do diaphragma, compromettesse a funcção da hematose; a ascite attingindo grandes dimensões, a ponto de distender consideravelmente as paredes abdominaes, e devendo difflcultar a absorpção dos produetos da digestão e causar outras perturbações na funcção digestiva, em virtude da compressão exer­cida pelo liquido sobre a massa intestinal, são razões mais que sufficientes para que então formássemos tal juizo. Passado algum tempo, porém, a marcha, que ulteriormente seguiu a moléstia, obrigou-nos a modificar d'um modo favorável este prognostico.

O estado geral do doente deve egualmcnle ser ornado em séria consideração, quando se trata da prognose.

O estado de abatimento em que se achava o or­ganismo d'esté individuo devido, já ás más condições hygienicas em que vivia, já á grande quantidade de serosidade derramada, jááinsufíiciencia da hematose e da nutrição, devia necessariamente collocar o do­ente em condições muito desfavoráveis para poder resistir, como era para desejar, a esta hydropisia.

Em virtude d'estas considerações não admira

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que as colleeções serosas permanecessem por mais tempo do que ordinariamente costumam, não ob­stante ter-se estabelecido uma diurese abundantíssima e uma diarrhea intensa, como veremos adiante nas observações diárias, e que além d'isso houvesse a reincidência que mais tarde observamos.

Foi por isso que formulamos, debaixo d'esté pon­to de vista, um prognostico muito reservado, conser-vando-o durante quasi todo o decurso da doença.

Outros accidentes não menos perigosos vêem ás vezes aggravar o prognostico; queremos referir-nos ás lesões que então se observam no tegumento externo.

A distensão, ás vezes extrema, que a exosmose hydropica produz na pelle, compromeltendo a sua vitalidade, faz com que haja n'ella grande tendência para as inflammações rebeldes ou rapidamente gan-grenosas, sobrevindo quer d'uma maneira espontânea, quer na occasião de alguma violência externa; o que levou Hippocrates a formular o seguinte aphorismo : hydropicis ulcera in corpore or ta, non facile sanan-tur. Estes accidentes adquirem ás vezes tal intensia-dade que são capazes, por si só, de fazerem succum-bir os indivíduos hydropicos.

No nosso exemplar, apesar de haver uma dis­tensão bastante pronunciada na pelle dos membros inferiores e da parede abdominal, não tivemos de receiar taes complicações, por que não houve o tem­po sufficiente para que a vitalidade d'esté tecido se comprometesse, a ponto de apparecerem estas altera­ções somáticas, nem mesmo o doente, em virtude dos cuidados que o cercaram, se expôz a causa algu­ma que as provocasse.

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TRATAMENTO

Para completarmos este trabalho resta-nos fallar do tratamento, único alvo a que devem mirar todos os nossos esforços e estudos em medicina, visto que sem elle tudo o mais se tornaria completamente inutil. Só attingiremos este fim, quando tivermos estabele­cido bem as indicações therapeuticas a satisfazer.

Estas indicações fundando se não só no conhe­cimento da doença e da relação que existe entre ella e os meios therapeuticos de que a sciencia dispõe pa­ra a combater; mais ainda no conhecimento do do­ente e das circumstancias de todo o género que o cercam, está claro que não podemos indicar um tra­tamento único e especial para cada moléstia. Apenas podemos apontar os meios geraes que aproveitam na generalidade dos casos.

Com o tratamento das hydropisias acontece exa­ctamente o mesmo.

Antigamente, quando se considerava a hydropi-sia como uma única doença, independente de qualquer estado mórbido anterior e tendo uma marcha e sym-

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ptoraas próprios, uma só indicação therapeutiea se apresentava a preencher : a evacuação do liquido der­ramado por um dos três emunctorios naluraes, esco-lhendo-se uma ou outra (Testas vias segundo os ca­sos particulares. E para isso, recorria-se também a uma única ordem de medicamentos, a que davam o no­me de hydragogos, palavra derivada de oíwj», agua, e «yw, conduzo.

Hoje porém, sabendo-se que a hydropisia está li­gada a alguma alteração, quer dos sólidos, quer dos fluidos do organismo, na maioria dos casos bem ma­nifesta e apreciável, devemos seguir um caminho dif­férente e muito mais racional : em primeiro logar, sa­tisfazer a indicação causal, debellando a causa que ge­rou a collecção serosa, porque — sublata causa, tol-litur effectus; em segundo logar, preencher a indica­ção symptomatica, provocando a saída do liquido der­ramado, se por ventura, a causa mórbida nos escapa, ou a medicação causal não dá resultado algum.

Para satisfazer a primeira indicação, os meios the-rapeuticos são variadíssimos. Ha para cada causa hy-dropigena um grupo de medicamentos a que podemos recorrer. Esta medicação, muitas vezes, torna-se pou­co profícua, ou mesmo inutil, porque ha muitas lesões, geradoras da exosmose serosa, que estão acima dos recursos de que a sciencia dispõe.

Assim, não é raro vêr, n'estes casos, a hydropi­sia persistir, ou antes não ceder senão momentanea­mente, para se reproduzir na primeira occasião des­favorável, como se observa particularmente nas doen­ças do coração.

No entretanto, o nosso primeiro dever é procu­rar reconhecer a causa do derramamento hydropico,

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e empregar todos os esforços para a debellarmos ou pelo menos, para a minorarmos quanto seja possivel. Se com isto não conseguirmos resultado algum, ou por que a lesão hydropigena seja incurável, ou porque ella nos escape, ou mesmo porque os seus effeitos es­tejam já muito adiantados, então é que devemos re­correr á segunda indicação.

Esta indicação satisfaz-se com os différentes meios que favorecem a absorpção dos líquidos derramados. O melhor meio para obtermos este resultado consiste em determinar uma espécie de inspissação do sangue, isto é, prival-o d'uma parte do seu soro e tornal-o as­sim mais apto para tornar a receber aquelle que dei­xou passar atravez das paredes vasculares, para as areolas do tecido cellular ou para as cavidades sero­sas.

A natureza apresenta-nos 1res vias : o tubo diges­tivo, a superfície cutanea e o apparelho renal, pelas quaes podemos realisar este fim. D'onde resulta o emprego das medicações purgativa, sudorífica e diuré­tica.

Sendo qualquer d'estas três medicações eminen­temente espoliadora, devemos ser muito prudentes e cautelosos no seu emprego, para não prejudicarmos as forças do doente, a ponto d'elle não poder resistir á sua moléstia.

E' escusado dizer que não é indifférente a esco­lha entre estas medicações, as quaes não podem ser administradas indistinctamente em todas as condições. Em geral, damos a preferencia aos diuréticos, por que não só produzem uma espoliação menos prejudicial, mas actuam mais directamente sobre a circulaçao'ge-ral.

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Os sudoríficos são muito úteis sobretudo nas hy-dropisias produzidas por um resfriamento, por que teem, n'este caso, a grande vantagem de satisfaze­rem as duas indicações. Nas outras espécies de hy-dropisias só devem ser empregados, quando a acção dos diuréticos falhe.

Os purgantes, pelo poder espoliador enérgico que possuem, debilitam consideravelmente as forças do individuo hydropico, e, pela irritação maior ou menor que determinam no canal intestinal, obstam até certo ponto que se alimente bem o doente; o que traz comsigo um grande inconveniente, principalmen­te nos casos em que é necessário lançar mão de uma boa alimentação. E' por isso que não devemos recor­rer a estes agentes therapeuticos, senão quando os effeitos da medicação diurética, ou mesmo da medi­cação sudorífica, faltarem, ou quando quizermos actuar mais directamente sobre a circulação da veia das portas, como, por exemplo, acontece em uma ascite, proveniente d'um embaraço d'esta circulação.

Foi, segundo as considerações que acabam de ser expendidas, que instituímos a therapeutica no nosso exemplar.

Sabendo nós que esta hydropisia se tinha succe-dido a um resfriamento notável, mandamos, no pri­meiro dia em que visitamos o doente, administrar-lhe um medicamento que provocasse uma diaphorese, e ao mesmo tempo mitigasse a tosse que tanto o in-commodava. Este medicamento foi a alcoolatura d'a-conito.

No dia seguinte, vendo-se que com este agente nada se tinha conseguido, e que a superficie cutanea se linha recusado á acção diaphoretica, e como era

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forçoso actuar sem perda de tempo, pois que a quan­tidade dos líquidos derramados era considerável, so­bre tudo na cavidade peritoneal, dirigimos por isso a nossa attenção para o emunciorio renal, cuja funcção se achava muito diminuída, instituindo uma medica­ção diurética.

Não obstante a diurese ter augmentado bastante com esta medicação, e ter sobrevindo como complica­ção uma diarrhea abundante, que n'estas circumstan-cias devia ter uma influencia benéfica, tinham passa­do já uns dez dias, e todavia os derramamentos sero­sos apresentavam-se quasi no mesmo estado.

Em presença d'isto, resolvemos voltar á medica­ção sudorífica, e insistir n'ella, ainda que as primei­ras tentativas fossem frustradas. Mandamos pois dar ao doente um hydro-infuso de flores de sabugueiro com o acetato de ammoniaco, recommendando o aga­salho conveniente.

Os effeitos produzidos por esta medicação, e observados no dia seguinte, foram bem sensíveis. A transpiração effeituou-se em toda a superfície cutanea, e, apesar de não ser tão abundante, como era de es­perar, foi comtudo sufficiente para que os derrama­mentos serosos apparecessem muito diminuídos.

Sustentamos ainda esta medicação por algum tempo, durante o qual as melhoras foram-se de tal modo pronunciando, que passados uns quatorze dias já não havia liquido algum derramado nas cavidades serosas, nem infiltrado no tecido cellular subcutâneo.

Este ponto vem demonstrar-nos mais uma vez a efflcacia da medicação causal, e a preferencia que ella nos deve merecer todas as vezes que fôr possi-vel.

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Acontece ás vezes que, apesar do emprego d'es-tas diversas medicações, somos obrigados a recorrer a alguma operação, que dê uma saida directa ao li­quido derramado nas cavidades ou infiltrado no teci­do cellular.

Nunca devemos lançar mão d'esté tratamento cirúrgico, senão quando a quantidade de serosidade fôr tão considerável, que prejudique funcções impor­tantes e ponha em risco a vida do doente; por isso que é um meio puramente palliativo, e uma causa de accidentes gravíssimos, susceptíveis de trazerem uma terminação fatal.

Assim, a punção do pericárdio só deve ser pra­ticada, quando a abundância do derramamento enfra­queça consideravelmente a acção contractil do cora­ção, e determine uma dyspnéa intensa e contínua ; a thoracentese, quando o doente fôr ameaçado de sufocação; e a paracentèse, quando haja uma diffi-culdade respiratória bem pronunciada, ou ameaça de rotura ou de mortificação nos tegumentos.

Na anasarca não está indicada a intervenção cirúr­gica, senão quando se receie a gangrena da pelle pe­la ischemia, resultante já da distensão maxima d'esté envolucro, já da compressão exercida pela serosidade sobre os ramúsculos vasculares, que concorre também para embaraçar a circulação venosa peripherica.

N'estes casos, a natureza encarrega-se muitas vezes de prevenir esta grave complicação, formando na superfície cutanea varias phlyctenas, por onde se escapa uma grande porção de liquido infiltrado. Quan­do este esforço salutar da natureza falta, surge então a necessidade de intervirmos.

As punções capillares múltiplas, feitas com uma

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agulha ordinária fina, de maneira que penetre até ao tecido cellular sub-cutaneo, e fiquem com três deci-metros de distancia umas das outras, são o meio de que devemos servir-nos n'estas circumstancias ; pois que é o mais simples, o mais innocente e o que apre­senta effeitos mais rápidos. As escarificações feitas com uma lanceta, e as fricções feitas com o óleo de croton, além de não offerecerem estas vantagens, teem o grave inconveniente de produzirem com muita facilidade a erysipéla e a gangrena da pelle.

O bydropericardio, o hydrothorax e a anasarca, que existiam no nosso doente, nunca apresentaram indicação alguma que nos obrigasse a lançar mão do tratamento cirúrgico.

Não aconteceu porém o mesmo com a ascite. O liquido derramado na cavidade peritoneal foi tão abun­dante e distendeu de tal modo as paredes abdominaes que nos primeiros dias receiamos muito que fosse com-promettida a vitalidade dos tegumentos d'esta região. No entretanto, esperamos alguns dias, a fim de ver­mos se evitávamos a punção abdominal; o que feliz­mente conseguimos.

Se a ascite continuasse por mais algum tempo n'aquelle estado, devíamos praticar a paracentèse, para prevenirmos uma condição favorável á reproducção do liquido, devida á relaxação definitiva que então cos­tuma produzir-se nas paredes do abdomen, em virtu­de da sua distensão excessiva e muito prolongada.

Além das duas indicações fundamentaes, de que acabamos de fallar, manifesta-se muitas vezes no fim das hydropisias uma terceira indicação lherapeulica, que consiste em fazer desapparecer as différentes altera-

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ções determinadas pela effusão serosa no estado geral do doente.

Assim, a exosmose serosa mais ou menos abun­dante, que constitue a hydropisia, o tratamento mais ou menos longo e espoliativo que é quasi sempre de costume empregar-se n'estes casos, e as perturbações que se dão nas principaes funcções da economia, ex-plicam-nos sufficientemente o emmagrecimento e a di­minuição de forças, que frequentes vezes se observam

"na declinação ou depois da terminação d'estes pa­decimentos.

Para debellarmos este estado, susceptível de con­servar e de favorecer uma infiltração serosa mais ou menos extensa, devemos sem duvida alguma lançar mão d'uma medicação tónica e d'uma alimentação bem substancial, assim como de todos os meios hygienicos altinentes a reanimar e a fortalecer o organismo do doente.

E' principalmente a este estado de enfraqueci­mento, que devemos attribuir a reincidência que teve logar no nosso doente, e da qual fallaremos nas ob­servações diárias que agora se seguem.

MARCHA DA DOENÇA

E

OBSERVAÇÕES DIÁRIAS

Dia 23 de fevereiro—Pelas razões que já ficam expendidas, prescrevemos a seguinte fórmula, a fim de provocar uma diaphorese.

R.e—Agua 120 grammas. Álcoolatura d'aconito . 20 gottas.

Misture.

Para tomar d'uma só vez ás 4 horas da tarde. E mandamos dar-lhe a 3.a dieta, composta de 240

grammas de pão para serem divididas pelas três refei­ções, um caldo ao almoço, outro ao jantar com 120 grammas de carne de vacca, e outro á ceia.

Dia 24—O medicamento não produziu efíeito al­gum, não obstante o doente ter o agasalho conveniente. As dejecções fazem-se regularmente; a urina apresenta ainda as mesmas qualidades e apenas foi excretada na quantidade de três decilitros, pouco mais ou menos, durante as 24 horas. A auscultação continua a dar a mesma mistura de sons anormaes em toda a exten-

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são dos dous pulmões; a tosse foi de tal modo intensa que não permittiu ao doente conciliar o somno ; expe-ctorou bastante. O3 sons do coração ainda cstào quasi imperceptíveis; o pulso apresenta os mesmos caracteres, dando 70 pulsações por minuto. As collecções serosas continuam no mesmo estado.

Como a superficie cutanea não se prestou á acção da medicação diaphoretica, instituímos a seguinte, com o fim de tornar a secreção urinaria mais abundante:

R.c—Scilla em pó 5 centigrammas. Folhas de digital em pó) „ n. .„. ,„ . , p l aa—Jo milligrammes. (Jalomelanos . . . J Xarope commum q. b.

F . e. a. uma pílula.

Para tomar quatro por dia nos intervallos das re­feições.

R.e—Grama e fragaria —ãa— 8 grammas. Agua . . . . — 500 grammas. Ferva até ficar em — 360 grammas.

Coe e junte: Assucar areado . . . . 20 grammas.

Para tomar em quatro doses juntamente com as pílulas.

Dia 2õ—A secreção urinaria conserva-so no mes­mo estado, bem como tudo o mais, excepto a tosse que diminuiu alguma cousa.

Para tornarmos a medicação diurética mais enér­gica, addicionamos ao decocto de grama e fragaria as seguintes substancias:

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Nitro purificado . . . w . . 2 grammas. Alcooleo de digital de Darwin . . 20 gottas.

Para ser tomado nas mesmas condições.

Dia 26 —A diurese foi mais abundante; excretou cerca d'um litro de urina, a qual apresenta-se muito transparente e descorada. As dejecções foram abun­dantes. Os derramamentos estão no mesmo estado. As paredes abdominaes ainda se acham excessivamente distendidas.

Dia 27—A diurese continua a augmentar (cerca de doua litros). Ha diarrhea.

O membro superior direito apparece muito mais inchado do que o esquerdo; o que é sem duvida alguma devido ao decúbito lateral direito, em que o doente se acha muitas vezes. Nas outras regiões a hydropisia não augmentou. A tosse continua em declinação, bem como a expectoração. Ainda se ouvem os sons anormaes dos pulmões, mas em menor quantidade ; o ar penetra com dificuldade na base destes órgãos.

A pedido do doente, mandamos dar-lhe um bife ao almoço, e substituir a carne cosida do jantar por um outro bife.

Dia 28—Continua tudo no mesmo estado.

Dia 1° ãe março—A diarrhea augmentou. A diu­rese foi um pouco mais abundante do que a d'hontem. As paredes do abdomem apresentam-se mais âaccidas, posto que muito pouco. Os sons do coração e o pulso, assim como a dyspnéa estão no mesmo estado.

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Dia 2—À diurese e a diarrhea continuam na mes­ma. A urina não dá albumina pelo calor. Â tosse e a expectoração estão consideravelmente diminuídas. O membro inferior esquerdo apparece um pouco diminuí­do de volume. As outras regiões conservam sensivel­mente o mesmo estado.

Mandamos dar ao doente um decilitro de vinho ge­neroso, para dividir pelo jantar e ceia.

Dia 3—Encontramos tudo no mesmo estado.

Dia 4—A diarrhea augmentou ainda mais, as de­jecções são muito serosas. A secreção urinaria continua na mesma quantidade. O pulso está um pouco mais sen­sível e cheio, mas menos frequente, dando 64 pulsações por minuto.

Dia 5— A diarrhea ainda continua na mesma abun­dância. O edema dos membros inferiores tem diminuí­do alguma cousa, mas os derramamentos das cavidades serosas conservam-se no mesmo estado. A congestão dos pulmões tem-se modificado alguma cousa.

A dyspnéa continua, havendo trinta e cinco inspi­rações por minuto.

Como a digital tem produzido bons effeitos diu­réticos, e como ainda não se manifesta sedação alguma no Bystema circulatório, que contraindique este medi­camento, insistimos na mesma medicação.

Dia 6—A diurese effeitua-se na mesma abundân­cia. A diarrhea augmenta cada vez mais, sendo consti­tuída somente por serosidade. As paredes abdominaes apresentam-se um pouco mais flaccidas; o edema das per-

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nas é menor. A tosse e a expectoração estão muito at-tenuadas. Os sons anormaes dos pulmões vão diminuin­do; nos vertices o murmúrio vesicular é exagerado. Os sons cardíacos ainda se acham quasi imperceptíveis; o pulso dá 60 pulsações por minuto.

N'estes dias anteriores não tratamos de combater a diarrhea, porque temol-a considerado como uma be­néfica complicação, que podia auxiliar poderosamente a absorpção da serosidade derramada. Hoje, porém, ven­do nós que ella tende a augraentar cada vez mais, que já existe em grande abundância ha uns sete dias sem ter beneficiado a hydropisia, que a sua continuação pô­de prejudicar seriamente as forças d'esté individuo, e que emfim está impressionando muito desfavoravelmen­te o doente, julgamos muito racional empregar agora os meios convenientes para a debellarmos.

Por isso, supprimimos a medicação de que o doen­te estava fazendo uso, sem receio de que a diurese di­minua, visto que a acção da digital costuma continuar ainda por alguns dias, não obstante a sua suppressão. Deixamos ficar, até amanhã, o doente sem medicação alguma.

Dia 7—A diarrhea e a diurese continuam ainda na mesma quantidade. O pulso apresenta-se molle e muito demorado, dando apenas 46 pulsações por minuto. Não se observa diminuição alguma na hydropisia.

Apesar da grande quantidade de líquidos que o doente tem excretado pelo apparelho renal e pelo canal intestinal, as collecções serosas não teem diminuído de um modo tão sensível, como era de esperar. Pareceu-nos pois ser agora occasião opportuna para voltarmos pela segunda vez á medicação sudorífica, com o fim de

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despertarmos as fuccções da pelle, que se acham per­turbadas, em virtude da causa que deu origem a este pa­decimento. Mandamos por isso agasalhar bera o doente e prescrevemos a seguinte fórmula:

R.*—Flores de sabugueiro . . 9 grammas Agua fervendo . . . . 360 grammaa

,t ^ Infunda, côe e junte: Acetato d'ammoniaco liq. 15 grammas Assucar areado . . . . 30 grammas

Para tomar, ás 4 horas da tarde, em quatro do­ses, administradas com o intervallo de um quarto de hora.

O acetato d'ammoniaco acha-se aqui bera indica­do, não só pela sua acção sudorífica, mas ainda pela estimulação que deve produzir na circulação, tornando-a mais activa. Embora esta acção seja temporária, em to­do o caso é muito proveitosa e util nas circumstancias, em que se encontra o systema circulatório d'esté indivi­duo.

Dia 8—A secreção urinaria augmentou alguma cousa. A diarrhea diminuiu, mas ainda é bastante in­tensa. O doente suou com a applicação do diaphoretico, e encontra-se bastante melhorado. Os derramamentos das cavidades serosas, bem como a anasarca, diminuí­ram d'uma maneira bem sensivel.

Percutindo as paredes abdominaes, observamos que o som claro, em logar de estar limitado á região epi-gastrica, occupa uma maior extensão. Os sons cardía­cos ouvem-se melhor; o pulso está mais cheio e apre­senta 64 pulsações por minuto. Os pulmões acham-ae

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também em melhor estado. A tosse ainda existe, mas muito attenuada.

Attendendo ás melhoras obtidas pelo medicamento administrado hontem, attendendo a que elle vai actuar não só sobre a causa da hydropisia, como sobre o pró­prio liquido, e attendendo também a que se produziu uma diaphorese, ma3 não tão abundante, como devia ser, o que nos revela que as funcções da pelle fcinda não se acham bem restabelecidas, julgamos muito con­veniente insistir na mesma medicação.

Mas, como a acção d'um sudoriíico é muito enér­gica e debilita bastante as forças do organismo, a sua repetição seria aqui muito imprudente. E, além d'isso, como n'este nosso caso convém mais ter a superfície cutanea em uma transpiração lenta, mas prolongada por todo o dia, do que provocar uma diaphorese abundan­te e única, modificamos a administração d'esté medica­mento, mandando dal-o em doses menores e com inter-vallos maiores, e addicionamos-lhe os pés de Dower, preparado muito conveniente n'estas circumstancias, visto que, além de reforçar a acção diaphoretica, deve mitigar o syraptoma tosse que ainda existe.

O doente fica pois tomando, durante as 24 horas, quatro papeis com vinte centigrammas de pós cada um, bebendo por cima de cada papel meio quarteirão do hy-dro-infuso de flores de Babugueiro composto, que hontem formulamos.

Recommendamos o maior agasalho, e que o medi­camento fosse dado um pouco morno, assim como a agua que o doente pedisse para beber.

Dia 9—O doente transpirou durante o dia e a noite alguma cousa. A diarrhea cessou completamente.

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A diurese elevou-se a uma quantidade considerável; evacuou cerca de 8 litros de urina muito transparente e quasi incolor.

E' extraordinária esta polyuria, attendendo á trans­piração que se manifestou na superficie cutanea, e a que as secreções renal e cutanea costumam contrabalan-çar-se.

A hydropisia vai diminuindo em todas as regiões. Julgamos hoje necessário satisfazer a indicação,

deduzida do estado geral do doente, afim de levantar­mos as suas forças. A diarrhea abundante de que elle soffreu, a diaphorese que temos provocado, e também a propria moléstia, devem evidentemente ter concorrido para enfraquecer o seu organismo; o que, além d'isso, é confirmado pelo mesmo doente, que diz sentir-se mui­to fraco.

Foram estas rasõas que nos levaram a instituir a Beguinte dieta: 360 grammas de pão divididas pelas três refeições; um bife e chá ao almoço; um caldo, 120 grammas de carne assada e meio decilitro de vinho ge­neroso ao jantar; outro caldo, a mesma porção de car­ne assada e a mesma quantidade de vinho á ceia.

Como a medicação instituída hontem produziu al­guns resultados, deixamos ficar o doente no uso da mes­ma therapeutica.

Dia 10—A transpiração continua lentamente; de noite é mais abundante. A quantidade de urina excre­tada desceu a quatro litros pouco mais ou menos. O pulso apresenta 60 pulsações por minuto. Os sons do coração ouvem-se melhor, mas ainda indicam que ha algum liquido na cavidade do pericárdio.

Percutindo as paredes thoracicas, observamos que

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o som claro occupa maior extensão; o som obscuro está limitado a um pequeno espaço da base. Os espaços in-tercostaes e as costellas vão-se tornando cada vez maia visíveis. No abdomem, apesar do som claro occupai' maior extensão, ainda existe bastante liquido. O edema dos membros superiores e do tronco desappareceram com­pletamente.

Dia 11—O doente continua a transpirar. A secreção urinaria íoi egual á de hontem. O vo­

lume do abdomem acha-se diminuído, e as suas pare­des estão mais flaccidas.

O doente raostrou-nos desejos de que se lhe au­gmentasse a dieta, e como não houvesse inconveniente algum n'isso, antes, pelo contrario, ha vantagem, acce-demos ao seu pedido, preserevendo-lhe a seguinte: 480 grammas do pão para se dividirem pelas três refeições; um bife e chá ao almoço, um caldo o 180 grammas de carne cosida ao jantar, outro caldo e a mesma porção de carne cosida á ceia. Ficou com o mesmo vinho.

Dia 12—A diaphorese foi em bastante quantida­de. A mesma diurese. Os sons cardíacos ouvem-se mui­to melhor; o pulso tem 6 i pulsações por minuto. A ascite tem diminuído muito. Os membros inferiores ain­da se conservam com algum edema.

Insistimos ainda na mesma medicação, attendendo aos bons resultados que d'ella temos colhido.

Dia 13— A mesma diurese. O hydropericardio desapparoceu completamente,bem como o hydrothorax. Os sons do coração ouvem se já bem distinctos, posto que um pouco enfraquecido, o que não deve admirar-

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nos se attendermos ao estado do doente. O pulso apre-8cnta-se cheio, e dá 72 pulsações por minuto. O edema dos membros inferiores vai diminuindo. A ascite é o derramamento que tem apresentado mais renitência. Pela auscultação vê-se que no pulmão esquerdo não existe sons anormaes, e que no pulmão direito ainda se ouvem alguns destes sons,que nos indicam a exis­tência d'um estado congestivo maior ou menor, entre­tido provavelmente pela posição quasi constante do do­ente no decúbito lateral direito.

Dia 14—Transpirou pouco. A diurese existe na mesma quantidade. O resto encontra-se no mesmo es­tado.

Dia 15—A diurese foi em menor quantidade: cerca de três litros. A mesma transpiração. A ascite e o edema dos membros inferiores conservam-se no mes­mo estado.

Dia 16—A mesma diurese. Ainda continua a transpiração. O edema dos membros interiores acha-se muito diminuído : da parte média da perna até á virilha existe em muito pequena quantidade; na parte inferior da perna é que existe ainda em maior quanti­dade. A ascite encontra-se também muito diminuida; as paredes abdominaes ofíerecem agora pouca resistên­cia. Ha dous dias que o doente não tem dejecção al­guma, pelo que mandamos administrar-lhe um clyster d'oleo de rícino.

Dia 17 — A quantidade de urina excretada ex-

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cedeu, proximamente um litro, a do dia anterior. O clyster produziu algum effeito.

Dia 18—A diurese foi em menor quantidade; três litros pouco mais ou menos. Não teve dejecção alguma durante as 21 horas, e por isso maadamos dar-lhe ou­tro clyster d'oleo de riciao. O edema dos membros in­feriores occupa somente as pernas e os pés. Na cavi­dade peritoneal ainda existe algum liquido.

Dia 19—Ainda continua a constipação de ventre, não obstante ter tomado o clyster. Não tem suado. Ha apenas edema dos malleolus. O volume do abdo-mem apresenta-se quasi no seu estado normal.

Em vista d'isto, supprimimos a therapeutica de que o doente fazia uso, e prescrevemos um purgante, com o fim de não só expellir as substancias excremen-ticias, que se acham accumuladas no canal intestinal, mas também provocar, pelo fluxo de líquidos produzido n'este apparelho, a absorpção da pequena quantidade de serosidade, que ainda existe na cavidade do perito-nêo.

Para conseguirmos estes effeitos, lançamos mão da seguinte fórmula:

R.e—Foliolos de sene . . . 12 grammas. Aniz estrellado. . . . 1 gramma. Agua fervendo . . . . 360 grammas.

Infunda, côe e junte: Tartarato de potassa neutro . lõ grammas. Assucar areado . . . . 30 grammas.

Para tomar amanhã em três doses.

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A dieta foi mudada para a seguinte : 240 gram­mas de pão para as très refeições; um caldo de gallinha ao almoço; outro caldo e um quarto de gallinha ao jan­tar, e outro caldo á ceia.

Dia 20—A secreção urinaria augmentou, elevan-do-se a cinco litros a quantidade de urina. Esta noute teve quatro dejecções abundantes e muito serosas, e por isso não tomou o purgante que hontem lhe tínha­mos receitado. Instituímos como auxiliar da diurese a seguinte therapeutica:

R.e—Grama e fragaria — ãa — 8 grammas. Agua 500 grammas. Ferva até ficar em . . 360 grammas-

Côe e junte: Nitro purificado 2 grammas.

Alcooleo de digital de Darwin . 20 gottas. Asaucar areado 30 grammas.

Para tomar em trcs dÓ3es nos intervallos das re. feições.

Voltamos á mesma dieta que lhe tinha Bido dada no dia 11.

Dia 21 — A diurese diminuiu bastante. As deje­cções são regulares. O edema dos malleolus e a ascite já desappareceram completamente. O doente está bom; apenas se sente debilitado, e mais magro do que era anteriormente.

Dia 22—A diurese eetá no seu estado normal, assim como as dejecções. Suppriraimos a therapeutica

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de que ó doente estava fazendo U30, e peraittimos-lhe que se levantasse da cama e passeasse pela enferma­ria.

Dias 23 a 31—Não houve novidade alguma.

Dia 1° de abril—Foi despedido, saindo completa­mente curado da hydropisia com que entrara.

No dia 23 de abril, e3te individuo entrou nova­mente no hospital com uma reincidência do mesmo pa­decimento.

Interrogado o doente sobre a historia d'eata rein­cidência, disse-nos que passados alguns dias depois que saiu do hospital, sobreveiu-lhe uma diarrhea bastante abundante que o perseguiu durante oito dias, e que ha uns dez dias começou de sentir um entorpecimento e uma inchação nos péa e nas pernas, assim como algu­ma difficuldade em caminhar. Continuou todavia a an­dar assim per algun3 dias; mas, como visse que este estado não se modificava, resolveu então recolher-se outra vez ao hospital.

Pelo exame que fizemos do estado actual do do­ente, reconhecemos a existência d'um edema pouco pronunciado nos pés e nos dous terços inferiores das pernas. Todas as funcções da economia se encontram perfeitamente normaes.

O doente apresenta-se enfraquecido, com um as-

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peck» anemico, e com o volume das partes molles bas­tante diminuído.

Posto isto, passemos agora a ver qual seria a causa, que determinou este edema.

Parece-nos que não será muito difficil admittir, como causa principal desta reincidência, uma dyscrasia da massa sanguínea. São muitas as razões que pode­mos adduzir a favor d'esté nosso juizo.

As más condições hygienicas em que o doente vivia antes de entrar pela primeira vez no hospital, a grande quantidade de serosidade derramada nas cavi­dades serosas e infiltrada no tecido cellular, a medica­ção eminentemente espoliadora que empregamos para combater a hydropisia, e a diarrhea abundante de que o doente soffreu já por duas vezes, deviam necessariamente produzir uma alteração considerável na crase sanguí­nea. De mais, as funcções da pelle ainda não se acha­vam de tal modo restabelecidas, apesar da medicação convenientemente instituída para esse fim, que esta parte do organismo soffresse impunemente qualquer intempérie a que accidentalmente se expozesse.

Portanto, não admira que, com esta dyscrasia sanguínea e com esta predisposição da pelle para a in­filtração serosa, se produzisse, em virtude d'um resfri­amento bem insignificante, o edema que actualmente observamos, e que se localisou na região que andava mais directamente exposta ao tempo, o onde a acção da gravidade è maior.

Considerando, pois, a dyscrasia sanguínea como causa muito mais poderosa d'este edema, do que a acção de qualquer resfriamento, que o doente experi­mentasse, pozemos de parte a medicação sudorífica, e

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recorremos a um tratamento tónico e levemente diuré­tico, acompanhado d'uma alimentação apropriada.

Por isso mandamos administrar ao doente quatro pilulas de iodureto de ferro por dia: uma ao almoço, duas ao jantar, e outra á ceia; e nos intervallos das refeições três doses de meio quarteirão cada uma do seguinte medicamento:

R.e—Bagas de zimbro contusas . . 9 grammas. Agua fervendo 360 grammas.

Infunda, côe e junte: Alcooleo oxy-nitrico 20 gottas. Assucar areado 20 grammas.

Ficou com a seguinte dieta: 360 gramas de pão pa­ra dividir pelas três refeições; um bife e chá ao almoço; um caldo, 120 grammas de carne assada e meio quar­teirão de vinho ao jantar; outro caldo e a mesma por­ção de carne assada e de vinho á ceia.

Dias 24 e 25—Tudo se conserva no mesmo esta­do. A secreção urinaria é normal.

Dia 27—O edema acha-se diminuido. A quanti­dade de urina excretada elevou se a dous litros.

Dia 29—A diurese tem augmentado. O edema das pernas já desappareceu; apenas existe na região mal­leolar e nos pés.

A pedido do doente prescrevemos a seguinte die­ta : 480 grammas de pão divididas pelas três refei­ções; um bife e chá ao almoço; um caldo e 180 gram­mas de carne cosida ao jantar, e outro caldo com

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egual porção de carne á ceia. Ficou com o mesmo vi­nho.

Dia l.°de maio—Já não existe edema algum nos membros inferiores; por isso supprimimos o hydro-in-fuso de bagas de zimbro composto, ficando somente com as quatro pílulas de Blancard por dia.

Dia 4—Permittimos ao doente que se levantasse da cama e desse alguns passeios pela enfermaria.

Dia 11—Mandamos administrar-lhe cinco pílulas de Blancard por dia: duas ao almoço, duas ao jantar e uma á ceia.

Dias 11 a 22—Nada houve de extraordinário.

Dia 23—Saiu do hospital completamente curado do edema, e muito melhorado do seu estado geral.

PROPOSIÇÕES

A n a t o m i a — N ã o ha communicação directa entre os va­sos uterinos e os vasos da placenta.

P h y s i o l o g i a — A distribuição do calor animal está sub­ordinada á innervação vaso-motora.

M a t e r i a medica—Todos os purgantes produzem a sua acção, não por meio de simples effeitos osmoticos, mas provo­cando um catarrho da mucosa intestinal.

m e d i c i n a o p e r a t ó r i a — N a s lesões graves da articu­lação femoro-tibial preferimos sempre, havendo indicação, a am­putação pela coxa á reseeção das superficies articulares.

P a t k o l o g i a e x t e r n a — N o tratamento das varizes a injecção intra-venosa com o licor iodo-tannico é o meio mais in­nocente o mais efficaz,

P a t h o l o g i a i n t e r n a — 0 mechanismo das hydropisias dyscrasicas é, no estado actual da sciencia, muito obscuro.

A n a t o m i a n a t h o l o g í c a — Todo o processo de re­união mediata ou immediata é de natureza inflammatoria.

Partos—Nunca ha competência entre aversão e a appli-cação do forceps.

Hygiene—Preferimos os hospitaes-barracas temporá­rios aos hospitaes permanentes.

Approvada. Pôde imprimir-se. O CONSELHEIRO DIRECTOR,

Monteiro. Costa Leite.