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  • 8/18/2019 MFLambert.Resiliências mediadas

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    Maria de Fátima Lambert [Politécnico do Porto]

    Resiliências mediadas e pensamentos moderados - Marta Strambi e Mauricius Farina 

    Exposição na Quase Galeria/ Porto – Fevereiro 2016

    Pensamento 1.

    “Quando a paisagem se machuca e amarrota, precisa tomar remédio.”

    Esta poderia ser a frase emblemática a proferir quando da visita a resiliências mediadas,

    projeto conjunto e convergente, ainda que não diretamente aferido – nem em termos

    estéticos, nem em termos artísticos. Ou seja: não se trata de uma articulação direta de obras

    produzidas por dois artistas, dirigindo pela morfologia ou técnica os respetivos vigores

    criativos. O desafio endereçado consistiu numa partilha do espaço, onde ambas

    individualidades respirassem seus desígnios subjetivos, multiplicando intencionalidades e

    descartando concordâncias postiças que por vezes se desenvolvem “sem norte”.

    Pensamento 2.

    “Remédios para a alma curam árvores entortadas, paredes retorcidas, portões amordaçados

    de luta de boxe psicadélico.” 

    Sempre ouvi dizer que os comprimidos e os xaropes para a tosse gostavam de fazer ruídos,

    arruinando a paciência dos copos de água (que ajudam a engolir os comprimidos) e das

    colheres de sobremesa que medem a doçura que dilui as cocegas na garganta. Certíssimo, os

    remédios de qualidade – que sejam sofisticados e felizes – sabem fazer-se ouvir. Há mesmo

    uma diferenciação: há remédios especializados em sons de ópera burlesca; outros preferem

    lieds de Schubert para viagens de inverno (vulgo Winterreise)… A saber, ainda, que existem

    aqueles medicamentos que preferem Lady Macbeth of the Mtsensk District . Então, daqui se

    infere que mediante as poções e sob efeito de gostos tão diversificados…até as fachadas azuis

    das casas ficam hieráticas – como estátuas do período arcaico da Grécia – e os anúncios de

    Neon acreditam que, quando forem grandes, se transformam em serigrafias de Andy Wahrol.

    Pensamento 3.

    “As ruas sublevam-se na revolta da cidade que ainda queria ter sossego de espírito e carreiras

    de elétricos (bondes) a cruzar velocidades vertiginosas de 7,5 kms à hora.” 

    Verifica-se que as alheiras de caça à venda no “açougue” da esquina devem ser candidatas a

    uma comenda da suprema ordem estética: gostos pitorescos em estado de gula…Ora isso é

    uma altíssima e irrefutável ascensão e queda da beleza, quando se trata de encarar uma

    parede amassada com murro no estomago do plano diretor municipal? Haverá chá de cidreira

    que cure tais amolgadelas psicoafectivas num dos eixos prioritários da cidade? OMG (Oh My

    God). Esquecendo que em hora de ponta, os semáforos transitam, mudando-se para os

    subúrbios onde fazem mais falta, pelo que o asfalto se apresenta levantado. Só isso. Para

    quem pensasse que as carpetas da rua gostavam de dançar tango argentino…errado. A

    inclinação não tem nada de coreografia voluptuosa, tão-somente remete para condições de

    mal-estar estomacal por debaixo da calçada. E mais acresce que rua de cidade que se preze,

    pelo menos de dois em dois anos se aperalta de alcatrão novo. Por isso é importante levantarpedra e “bora lá” por aí adiante que a circunvalação está à vista. 

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    Pensamento 4.

    “Haja Deus! Não é que as pessoas desafiam a gravidade, entrando numa rua inclinada que

    nunca se sabe vai soçobrar?” 

    Repetir o que antes se comentou é redundante, senão pelo menos excessivo… Aqui precisa

    lembrar-se como é doce o paladar de um desenho que se esvai em fios quase sedosos,

    pendendo sobre si mesmos, implorando uma carícia no coração. Se houvera cantigas

    medievais de Santa Maria, melhor cura se tivera. Já os poetas galaicos sabiam dirigir súplicas a

    amores funestos (palavra muito bonita mesmo, concordam?), disfarçados de preces

    benfazejas e dóceis. E por que outro motivo havia de em Santiago de Compostela existirem

    tantas fábricas de chocolate, não fosse ele preciso para acertar as agulhas de corações

    enviesados, tresmalhados e outras aflições congéneres?

    Pensamento 5.

    “Aqui que ninguém nos ouve, que ninguém nos vê…não lhe parece reconhecer a sua voz nessesonzinho reconfortante de fundo de casa vazia?” 

    Ecoa, ecoa, vai seguindo em frente, para trás, acima e abaixo, para a esquerda, para a

    direita…haja movimento e dinamismo, vá. Caso contrário, se fosse para as conversas ficarem

    apenas no fio do vento do Norte, porque teria Leon-Battista Alberti regimentado os seis

    movimentos principais do corpo para organizar composições que, mais tarde ou mais cedo,

    iriam derivar no horror vacui ? Contentes, por certo estavam contentes, os maneiristas, pois

    que as pinturezas estivessem bem recheadinhas de coisas imaginosas. Qual vazio, qual coisa

    nenhuma: é a conferência sobre o nada do John Cage, agarrando o ritmo do coração a

    deleitar-se em ausências, pausas e demais omissões filosóficas. Está-se a ver que não sabe o

    que é música concreta?

    Pensamento 6.

    “Seja resiliente; seja indulgente; seja mediado. Seja.” 

    Retomando Kant: abençoado seja o desinteresse estético que nos iluminou a todos, até que se

    percebesse como é bem melhor pintar de preto a caixa de bolachas (em folha de alumínio) do

    que ter que remirar paladares voluptuosos e coloridos que nos agradem. Parcimónia de

    gostos, tolhidos por especialistas, impositivos e ougados por que se ouça a sua logística que de

    sublime, nada tem. Vá lá. Não esmoreça, senhor público que Pirandello já lhe tratou da saúde,

    coadjuvado pelo Samuel [Beckett] que gosta de fim de partida. Traga as cadeiras, estimado

    Ionesco, junte-se a nós. Resiliência: é a palavra de ordem. Vamos tomar um café em chávena

    [xícara] fria? Não, pense que as xícaras [chávenas] vivem no Museu mais ali ao lado onde se

    ouvem suspiros de vidro apaziguado pelo esverdeado das paredes onde as moçoilas tangem

    languidas insinuações sobre a Cabeça de São Pantaleão.

    Pensamento 7.

    “Sabia que o rei gostava de andar de bicicleta pela estrada de Sintra – ou de Cascais – que

    afinal não veio para a exposição? E gostou de ver as casas no Alentejo pintadas de azul e

    branco ao sol da quietude a deslaçar como canja com hortelã fervida?” 

    Cansou-se o pensamento que deixou de ser moderado e esticou as frases com interrogaçõesque mais parecem anéis de lulas intercaladas com pedacinhos de pimentos verdes. Por isso

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    precisamos de remédios para a digestão. Quer ver como se agiliza o ouvido a um passeante em

    frente a uma churrasqueira? Porque não o preveni que a farmácia mais próxima está para lá,

    mas também está para aqui? A divulgação está feita. O rei lançou o velódromo quase pelos

    ares afora, parecia que adivinhava que as imagens amarrotadas seriam as mais lúcidas e

    onduladas, predizendo os saltitos tímidos de gatos, cujo pensamento inquieto que se quer

    irreverente, quando afinal é muito sério… Os costumes eruditos que se vestem de calções e

    sapatilhas aerodinâmicas apreciam imensamente pedalar em calçadas à portuguesa que só

    existem na avenida da liberdade. No mais, contentam-se em saber que o Sul está a descer para

    abaixo e o Norte tem de se esforçar para subir acima da linha do mar. O mar está ausente e

    apesar de revolto não está amassado em papel. Amassado, amassado só as saquetes de chá,

    cujos corações desistiram de se apaixonar por bules de louça inglesa, pois na loja de chineses

    só há pyrex para o lanche com scones do rei. O rei toma comprimidos chiques às 17h.05

    minutos…que nem mais. 

    Pensamento 7.“Se o sol entrar demasiadamente pela janela, descoloram a negritude da alma e os

    comprimidos derretem.” 

    Então as caixas de remédios, as gavetinhas de almas centrifugadas contraem-se, ficam com

    tantas rugas – que nem os cremes de pó de ouro atenuam a passagem das horas (que não as

    de Pessoa) – e advém uma estética de desalento que é uma dor d’alma. Moral da história:

    convertem-se em fotografias amarrotadas, existe uma fusão que se infunde respeito e assinam

    em cruz, em branco ou carimbam prateados minuciosos nas bordas dos copos pois folheados a

    ouro é vulgar. Usa-se mais reverberações cromáticas reflexivas e pululantes.

    Bula:

    1. 

    …tomem-se os pensamentos 1 a 1, com intervalos de dias a dias a dias a dias - como

    bem anunciou augusto de campos.

    2.  …adquiram-se frases feitas para reativar modalidade espirituosas e delicadas

    conforme o céu esteja mais compacto ou esparso de nuvens. Nuvens rarefeitas

    congestionam o pensamento.

    3.  …cumpram-se os receituários precavidos que nem todos somos Prometeu e sabemos

    roubar o fogo aos deuses do Olimpo. Fiat Lux.

    Não, não quero ir por aí. Prefiro ficar, não me obriguem a ir por aí. Resiliências mediadas vá

    que não vá, desde que os pensamentos sejam moderados.

    Maria de Fátima Lambert