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Maria de Fátima Lambert Incorporal, simulacro ou intangível « E nada pode existir excepto o que aí está. (…) E assim como não há palavras para a superfície, ou seja, Palavras que digam o que na realidade é, que não é Superficial mas um núcleo visível, também não. (…)” 1 Intangível, incorporal e simulacro são três conceitos que atravessam, de forma irreversível, a produção artística contemporânea, quer no respeitante à sua intencionalidade estética, quer quanto à sua substância iconográfica e/ou semântica. Glosando artes visuais, música (e outras existências sonoras), performance, dança, cinema e tudo o que, mais e mais, singularmente se sabe, eis que alastram e se inscrevem no âmago e panorama da cultura actual. Significam, também, o questionamento do que seja ou não real, o que se considera realidade ou como se pode enquadrar a arte enquanto produto existente que transporta razões e decisões de teor, por vezes, distanciadíssimos da verdade, autenticidade ou entendimento. Assim, convertem-se em metáforas interrogativas e problematizadoras sendo, em simultâneo, conteúdos semânticos e impulsos para conversões estéticas, tópicos explicitadores do que seja a versão contemporânea da mimesis, sua virtualidade, afastamento ou aproximação: “Já não se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia. Trata-se de uma substituição no real dos signos do real pelo seu duplo operatório, máquina sinalética metaestável, programática, impecável, que oferece todos os signos do real e lhes curto-circuita todas as peripécias.” 2 Intangível, incorporal [incorpóreo] e simulacro conformam-se e argumentam peças isoladas ou complementadas, instalações e projecções, demonstrando que são fundamento inscrito na tradição visual e historiográfica da arte ocidental, quanto presença incontornável na história da estética. Para tanto, evoque-se a pregnância da Estética da Luz, no período medieval (Roberto de Grosseteste, Stº Alberto Magno, S. Boaventura…); atenda-se ao primado do hermético e aos esoterismos vários, casos da poesia de Ausías March ou da filosofia de Ramon Llull…entre tantos. Mais avançando, evidenciam-se autores que determinaram a sua criação sob auspícios destes 3 conceitos e ainda aqueles que deles se aproximaram ou tomaram como extrapolação. Certo é que, em estilos particulares, essa referencialidade foi consubstancializadora: no(s) simbolismo(s) e Nabis mas igualmente no Abstraccionismo expressionista de um Kandinsky, nas assunções gráficas imaterializadoras de Paul Klee... Na emergência cultural do pós-2ª-guerra, os princípios intencionalizados por Yves Klein, as asserções consignadas por Piero Manzoni traduziram uma formatação tendencialmente conceptualizadora que se encontrou impregnada, não somente pela ânsia e compulsividade da actuação pictural/objectual/performativa, mas correspondendo a uma decisão, em termos de organização estética, de teor intimista e/ou de valência gregária e ideologizada. Sem requerer uma enunciação exaustiva de autores saliente-se a sua intensidade ou consistência em tendências artísticas afectas a obras videográficas, de 3D e instalação, performance, fotografia e desenho…por vezes, agindo em concatenação e exigindo-se mutuamente para serem obra de valência total (gesamskunstwerk…). Talvez o Zeitgeist, essa envolvência inerente a um dado período histórico, nos compulsione ou dirija para assegurar uma produção contrariadora (?) em prol de conceitos que exorcizam quanto, também, se mostram obcecados pela efemeridade, precariedade, imaterialidade e desejo conceptual, efectivados através da subversão, ironia, denúncia e polissemia (crítica, ontológica e epistemológica) … donde atravessar (transgredir, espera-se…) até certas zonas intensas da simulação e do simulacro – argumentados e investigados já nos anos 70, quer por artistas como Christian Boltanski, quer por filósofos como Jean Baudrillard. Episódios, apenas alguns episódios, dessa travessia realizada através do incorporal [incorpóreo], do simulacro e/ou do intangível…pois tudo (também) pode ser residual. Assumindo configurações múltiplas, as concretizações artísticas e/ou estéticas (prioritariamente matéricas ou conceptuais, de acordo com os diferentes autores) rectificam incertezas e 1 John Ashbery, Auto-retrato num espelho convexo e outros poemas, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, pp.167-171 2 Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, Lisboa, Relógio d’Água, 1991, p.9

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Intangível, incorporal e simulacro são três conceitos que atravessam, de forma irreversível, a produção artística contemporânea, quer no respeitante à sua intencionalidade estética, quer quanto à sua substância iconográfica e/ou semântica. Glosando artes visuais, música (e outras existências sonoras), performance, dança, cinema e tudo o que, mais e mais, singularmente se sabe, eis que alastram e se inscrevem no âmago e panorama da cultura actual. Significam, também, o questionamento do que seja ou não real, o que se considera realidade ou como se pode enquadrar a arte enquanto produto existente que transporta razões e decisões de teor, por vezes, distanciadíssimos da verdade, autenticidade ou entendimento. Assim, convertem-se em metáforas interrogativas e problematizadoras sendo, em simultâneo, conteúdos semânticos e impulsos para conversões estéticas, tópicos explicitadores do que seja a versão contemporânea da mimesis, sua virtualidade, afastamento ou aproximação.

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Maria de Fátima Lambert

Incorporal, simulacro ou intangível

« E nada pode existir excepto o que aí está. (…) E assim como não há palavras para a superfície, ou seja, Palavras que digam o que na realidade é, que não é Superficial mas um núcleo visível, também não. (…)”1

Intangível, incorporal e simulacro são três conceitos que atravessam, de forma irreversível, a produção artística contemporânea, quer no respeitante à sua intencionalidade estética, quer quanto à sua substância iconográfica e/ou semântica. Glosando artes visuais, música (e outras existências sonoras), performance, dança, cinema e tudo o que, mais e mais, singularmente se sabe, eis que alastram e se inscrevem no âmago e panorama da cultura actual. Significam, também, o questionamento do que seja ou não real, o que se considera realidade ou como se pode enquadrar a arte enquanto produto existente que transporta razões e decisões de teor, por vezes, distanciadíssimos da verdade, autenticidade ou entendimento. Assim, convertem-se em metáforas interrogativas e problematizadoras sendo, em simultâneo, conteúdos semânticos e impulsos para conversões estéticas, tópicos explicitadores do que seja a versão contemporânea da mimesis, sua virtualidade, afastamento ou aproximação:

“Já não se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia. Trata-se de uma substituição no real dos signos do real pelo seu duplo operatório, máquina sinalética metaestável, programática, impecável, que oferece todos os signos do real e lhes curto-circuita todas as peripécias.”2

Intangível, incorporal [incorpóreo] e simulacro conformam-se e argumentam peças isoladas ou complementadas, instalações e projecções, demonstrando que são fundamento inscrito na tradição visual e historiográfica da arte ocidental, quanto presença incontornável na história da estética. Para tanto, evoque-se a pregnância da Estética da Luz, no período medieval (Roberto de Grosseteste, Stº Alberto Magno, S. Boaventura…); atenda-se ao primado do hermético e aos esoterismos vários, casos da poesia de Ausías March ou da filosofia de Ramon Llull…entre tantos. Mais avançando, evidenciam-se autores que determinaram a sua criação sob auspícios destes 3 conceitos e ainda aqueles que deles se aproximaram ou tomaram como extrapolação. Certo é que, em estilos particulares, essa referencialidade foi consubstancializadora: no(s) simbolismo(s) e Nabis mas igualmente no Abstraccionismo expressionista de um Kandinsky, nas assunções gráficas imaterializadoras de Paul Klee... Na emergência cultural do pós-2ª-guerra, os princípios intencionalizados por Yves Klein, as asserções consignadas por Piero Manzoni traduziram uma formatação tendencialmente conceptualizadora que se encontrou impregnada, não somente pela ânsia e compulsividade da actuação pictural/objectual/performativa, mas correspondendo a uma decisão, em termos de organização estética, de teor intimista e/ou de valência gregária e ideologizada. Sem requerer uma enunciação exaustiva de autores saliente-se a sua intensidade ou consistência em tendências artísticas afectas a obras videográficas, de 3D e instalação, performance, fotografia e desenho…por vezes, agindo em concatenação e exigindo-se mutuamente para serem obra de valência total (gesamskunstwerk…). Talvez o Zeitgeist, essa envolvência inerente a um dado período histórico, nos compulsione ou dirija para assegurar uma produção contrariadora (?) em prol de conceitos que exorcizam quanto, também, se mostram obcecados pela efemeridade, precariedade, imaterialidade e desejo conceptual, efectivados através da subversão, ironia, denúncia e polissemia (crítica, ontológica e epistemológica) … donde atravessar (transgredir, espera-se…) até certas zonas intensas da simulação e do simulacro – argumentados e investigados já nos anos 70, quer por artistas como Christian Boltanski, quer por filósofos como Jean Baudrillard. Episódios, apenas alguns episódios, dessa travessia realizada através do incorporal [incorpóreo], do simulacro e/ou do intangível…pois tudo (também) pode ser residual. Assumindo configurações múltiplas, as concretizações artísticas e/ou estéticas (prioritariamente matéricas ou conceptuais, de acordo com os diferentes autores) rectificam incertezas e

1 John Ashbery, Auto-retrato num espelho convexo e outros poemas, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, pp.167-171

2 Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, Lisboa, Relógio d’Água, 1991, p.9

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disponibilizam a elasticidade receptiva do espectador. O que significada que, quando confrontados com as obras, atendendo aos seus conteúdos quer iconográficos – nas artes plásticas, é certo – quanto aos conteúdos semânticos, qualquer receptor/sujeito acredita, explora, denuncia ou erradica as respectivas apreensões (depois das percepções), as compreensões e ou as interpretações do que vê, se olha ou contempla. Uma certa segurança, todavia, estabelece a esperança neste processo, pois o facto do que parece ser, não ser; o que se pode (aparentemente) tocar, não ser susceptível de ser tocado – ou não se querer tocar; o que mostra ser omisso de corporeidade ou qualquer seu substituto, pode afinal ser carnalidade, fisicalidade…Enfim, nem sempre o que nos é apresentado é. Pode existir, transitória ou demoradamente, ser instante ou duração, mas depende frequentemente de si, quer o si-autor, quer o si-receptor (…então, e afinal, é…).

Incorporal: em termos “negativos”, ou seja, por confronto e oposicionalidade, as suas definições podem implicar as noções de corporalidade, fisicalidade, presencialidade; em termos “positivos” remete para acepções de lacuna, falta de, ausência…Assim, o incorporal reflecte a não existência de corporalidade; possuindo a qualidade de não possuir corporeidade (pois é incorpóreo). Pode “revestir-se” de formalismos diferentes, conformar-se em fronteiras estabelecidas ainda que virtuais, ilusórias ou insustentáveis. Ou configurar-se em evanescências que induzem a penetração em territórios efémeros, precários, fugazes. Mas também propugnando a condição visionada de uma transcendência análoga, aproximal ou intermedial. Projectando-se para campos de vivências promulgadas em cromatismos pulsáteis, votos de luminosidade intersticial… [Nas argumentações do Estoicismo afirmam-se 4 incorporais: tempo, lugar, vazio e o exprimível. O incorporal deixava assim de ser uma essência (o incorporal em si mesmo) para ser reconhecido em elementos concretos, susceptíveis de serem designados. Os incorporais, infere-se pertenceriam ao corpo, ou pelo menos pressupõe-se-lhes um vínculo…Os incorporais estariam livres dele (corpo) simultaneamente…e por aí adiante…] Intangível: associo imediatamente à afirmação impositiva de Cristo (Jardineiro) perante Maria Madalena – Noli me Tangere. Poder-se-ia reconstituir a história da Arte Ocidental através dos seus inúmeros estilos e variantes, seguindo a iconografia revisitadora do episódio bíblico. Pintor que se prezasse não se furtaria a incluir no seu repertório pictórico um ou mais encenações da cena. (Por analogia, quem não ouviu, em algum episódio da sua vida: “não me toque”…talvez significando, a determinação de afastar de dor, de exorcizar a austeridade, dissolver a revolta ou acreditar na repulsa. Como se, num dado momento, se quisesse imitar Cristo, afastando o objecto de desejo, de rejeição ou de abdicação.) Quer o incorporal, quer o intangível, podem endereçar ao simulacro, alimentando-o ou exigindo-o. Simultaneamente, o simulacro pode apropriar-se do incorporal ou do intangível agregando-lhes qualidades que supõem, embora sendo inverosímeis, impossíveis ou ilusórias. A história do simulacro pertence fortemente ao séc.XX, com particular incidência e impositividade nas suas derradeiras décadas (enquanto desenvolvida em reflexões filosóficas, sociológicas quanto estéticas e criativas) pelo que sempre se invoca (reafirme-se) a relevância de Baudrillard mas também numa outra focagem Jean-Jacques Wunenburger (Imaginário e Utopias), Jean Chateau (Fontes do Imaginário) ou Gillo Lipovetsky (Efemeridade estético-sociológica e Analítica antropológica do societário)… O que não exclui a preponderância do simulacro enquanto categoria estética desejada por estilos e assumida por correntes da História da Arte, como se sabe: …trompe l’oeil, trompe l’idée…parafraseando Magritte em leitura de Michel Foucault! Numa primeira abordagem, considerem-se o incorporal, o intangível e o simulacro enquanto categorias estéticas que derivam e recorrem a outras categorias estéticas que lhes “retroactivas” ou “prospectivas” como é caso do sublime, da beleza, da força ou da genuinidade. Por outro lado, constatam-se alguns tópicos – pertença de outra consignações epistemológicas - que lhes podem ser agregados, para uma conformação reflexiva que se posiciona e desenrola, em substâncias, formulações e ideias, relevantes quanto se está perante as obras inscritas nesta mostra…

A arte contemporânea é, frequentemente, recepcionada e considerada pela maioria do público como algo quase “intangível” - quando não mesmo “incorporal” e também residindo na ordem do “simulacro”…- isto verifica-se, quando os seus receptores (público) verbalizam a dificuldade em aceder às obras produzidas e apresentas na actualidade, o que significará, pois, uma certa condição de intangibilidade da arte…em termos de sua compreensão, interpretação…

Os conteúdos, decididos por alguns autores, propiciam, através da assunção de perfis

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explícitos, as lúcidas configurações, morfologias destacadas que se aproximam mais, ora da intangibilidade, ora da incorporalidade ou do simulacro/simulação. O simulacro, entendo-o como matéria arquetipal (flexível em termos de conteúdos que procedem de uma metodologia construtiva da obra) para a simulação. Esta é uma missão a concretizar, trabalhada a partir da consciência epistemológica, ética e ideológica do simulacro – para além das premissas individuais de cada artista/autor, comungando do âmago semântico (e plasticizante em termos de sua pragmaticidade criativa).

O incorporal, o intangível e o simulacro têm-se alimentado de iconografias que anotam, interpretam ou recorrem a tipologias e géneros picturais, fotográficos e, mais recentemente, videográficos: figurabilidade do corpo e identidade (retratados nomináveis, simbólicos, históricos ou mitológicos), paisagens (inventadas, transfiguradas…), composições geométricas ou deambulações expressivo/abstracionalizantes, entre outros. Para além das nomenclaturas desenvolvidas, mediante a opção por modalidades subjectivistas afectas e denotativas da actualidade e presente, estipulam novas apropriações, não se esgotando em variantes ou modos pré-existentes. Não se entendam estas consubstancializações – representacionais, presentativas, evocativas, celebratórias, etc…- subsumadas a coordenadas espaciais; exigem noções de temporalidade, nas subtilezas ontológicas (e antropológicas) comprometidas com a instantaneidade, a duração, a permanência, a fugacidade ou a intermitências e sobreposicionalidades de tempos vividos (efectivos e mensuráveis ou equacionados noutras circunstâncias existenciais - oníricos, deambulatórios, alucinatórios, de êxtase quiçá… Concluindo: tempo é entendido nas suas acepções complementares, antagónicas embora cúmplices:

“O tempo é espaço interior – o espaço é tempo exterior. (Síntese dos mesmos.) Figuras temporais, etc. Espaço e tempo nascem ao mesmo tempo. A força dos indivíduos temporais mede-se pelo espaço – a força dos indivíduos espaciais mede-se pelo tempo (duração).”3

Em termos antropológicos e estética ao evocar estes 3 conceitos, é quase automática a associação à solidão – do artista/autor e do espectador/receptor: “Je suis seul, assis en face de l’immense grise de la mer murmurante...je suis seul…seul comme je l’ai toujours été partout, comme je le serai

toujours à travers le grand Univers charmeur et décevant…»4

MARCELO MOSCHETA

“No Inverno, o globo encolhe mentalmente. As latitudes cavalgam-se, sobretudo quando a noite cai. Os Alpes por eles, não são obstáculo. Cheira a gelo. Cheira, acrescentaria eu, a Neolítico e Paleolítico. Ou doutra maneira, a futuro. Pois que a Idade do Gelo é uma categoria do futuro, que é esse tempo em que finalmente não se ama ninguém, nem mesmo a si próprio. (…) No passado, aqueles que amas não morrem. No passado, traem-se ou desaparecem ao longe.”5

“Circulo Polar Artico” – 2007 A proposta da obra Circulo Polar Ártico é definir um espaço em relação a seu observador, colocando-o no centro do eixo "geográfico/espacial" para poder visualizar melhor o trabalho. Como é voltada para dentro, delimita o raio de seu domínio através dos 4 cantos de um quadrado seccionados por uma esfera, onde o desenho do círculo é completado apenas na imaginação do observador. Tais relações são o reflexo daquilo que o homem cria em relação ao seu entorno, pois como delimitar passagem da linha dos pólos a não ser através de cálculos matemáticos que nos falam que "aqui passa a linha que divide o pólo"? O espaço criado é em abstrato em sua natureza e poesia em sua essência. Subjetividade mostrada também nas imagens que enganam os olhos do observador, imitando a paisagem do ártico com seus icebergs, em trucagens de fotografia e manipulação de imagem digital - as imagens foram

3 Fragmentos de Novalis – selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes, Lisboa, Assírio &Alvim, 2000, p.113

4 Isabelle Eberhardt, Lettres et Journaliers, Paris, Actes du Sud, 1987, p.125

5 Josif Brodsky, Paisagem com inundação, Lisboa, Cotovia, 2001, pp.93/95

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tiradas de gelo sobre a pia de meu atelier . Crio assim paisagens polares sem nunca ter pisado em tais latitudes. Minha referência são as grandes explorações so século XIX, onde os últimos lugares desconhecidos do planeta eram os mais difíceis de se chegar, e suas imagens habitavam somente a imaginação daqueles românticos tardios. Quando se adentra a obra para descobrir o que é mostrado, colocamo-nos no ponto zero deste pequeno planeta, Prontos para descobrir através da rotação de nossos próprios corpos o sentido daquilo que vemos, a curiosidade premiada em pequenas doses de "inverdades", onde custamos a crer que a realidade pode ser algo tão simples quanto o que vemos. Pois tudo está ali, escancarado aos olhos, os fios, os cabos que suspendem a obra, os parafusos. Todo o "engenho do mundo" fica à mostra e define, como disse Italo Calvino: O LUGAR GEOMETRICO DO EU.

A obra de Marcelo Moscheta fundamenta-se em imagens internas, imagens mentais, imagens inventadas pelo autor que as reverte em produções fotográficas simulando a realidade que, in loco, pelo próprio, tivesse sido cativada. As suas imagens pensadas são projectadas, externalizadas concentrando-se em séries específicas que percorrem territórios e ultrapassam a fiabilidade. Subjaz a exigência da viagem em acepções divergentes. Assim como concretiza viagens e permanências efectivas (factuais), partilha com os espectadores registos de paisagens, fragmentos de natureza que existem em estado de simulacro. A consciência da viagem, o que significa a razão de percorrer distâncias de modo a adquirir algo, ou seja, possuir excertos de tempo na paisagem, no recorte a que seja possível aceder, com intuito de o receber e devolver, mau grado a sua instabilidade ontológica.

“A paisagem em volta esvaziada de sentido, reflectindo-se nos meus olhos, brotava dentro de mim…” 6

“Espanha” – 2009: A idéia de paisagem, realizada em suas porções constitutivas, como as pedras que encontrarei do outro lado do rio Minho, me trarão as possibilidades de realização da obra no contexto da XV Bienal de Cerveira. Como um colecionador de objetos sem importância alguma, gostaria de desenvolver uma ação de viajante que atravessa uma fronteira e busca elementos presentes na paisagem do local para servirem de própria representação daquele espaço. O ato de coletar pedras de determinado local e transportá-las a outro local é talvez um dos primeiros traços de civilização, momento na qual o homem entende-se transformador de determinado espaço e por conseguinte, possui o poder de interferir na Criação dada. Tal ato, carrega consigo a idéa de pertencimento - o lugar onde estavam / o lugar onde estão - e de memória intrinsecamente depositada no interior de tais pedras, seu mineral constituinte, sua massa, suas características, sua idade nos milênios que atravessou. Como um arqueólogo que visita um outro planeta onde a paisagem lhe é estranhamente familiar, eu recolho, classifico e organizo pedras. Procuro entender assim o lugar, o meu e o das próprias rochas, e tudo o mais aquilo que possa haver para se saber. Assim, trago a Espanha para dentro de Portugal, pedaços que atravessam as fronteiras e se reorganizam segundo parâmetros outros que não a geologia, a geografia, a política ou a física. Um país/lugar contido dentro de outro, representado nos desenhos que se assemelham a fotografias como se fossem um catálogo da memória do lugar, uma reclassificação da paisagem onde os objetos carregam em si toda a informação do lugar de onde vieram. Vejo a paisagem como um contraponto para medir a si mesmo, um referencial externo que possa dar a exata medida do tamanho do eu. Idéia romântica que presta reverência às últimas grandes explorações do século XIX, onde os pólos do planeta e os cumes dos montes mais altos eram por certo, uma descoberta do lugar ao mesmo tempo que uma descoberta do limite próprio do homem. Hoje, meu limite se estende para além dos paralelos e meridianos deste planeta, todo um universo virtual me é disponibilizado para interagir. Minha relação com a paisagem repousa numa tentativa primeira de construir um lugar ideal, uma imitação da natureza como retrato fiel das relações de perfeição e equilíbrio. Quero assim, abarcar todas as possibilidades de entender um local, não somente por meios sensíveis como o desenho ou a fotografia, mas através de formas racionais de se entender lugar: latitude, longitude, altitude, cálculos matemáticos e referências científicas. Os mistérios da força que age em segredo na natureza são recriados, por vezes de maneira brutal, outras, de forma delicada e quase imperceptível, num ato de compreender de maneira integral a matéria da qual somos formados.7

6 Yukio Mishima, O templo dourado, Lisboa, Assírio & Alvim, 1985, p.149

7 Marcelo Moscheta in Memorial Descritivo do Projeto, Abril 2009

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A obra será um site specific, realizado na residência a desenvolver em Vila Nova de Cerveira nas semanas que antecedem a Bienal. O artista confrontar-se-á com a incorporalidade europeia da cessação de fronteiras, cruzando o rio e trazendo elementos naturais para a margem portuguesa. Cabe retomar os questionamentos que inflectem os conceitos de não-lugar (Marc Augé) e dos espaços sem lugar - heterotipias (Michel Foucault). Os elementos da natureza transitam na plenitude da sua matericidade, outorgando uma evenemencialidade à composição que daí advirá. A instalação adquire uma substância, uma carga ideológica que transcende a morfologia que institui e que, todavia, não transparece para o espectador numa contemplação que esteja avisada. Se em CPA as matérias/elementos (na acepção cosmogónica) são o ar e a água solidificada, congelada, em Espanha, tem-se o primado da terra. Num e outro caso, verifica-se a pertinência da argumentação bachelardiana para a condensação poética da matéria que sustenta a criação artística. Recorde-se a quase obsessiva acção investigativa de Marcelo Moscheta que antecede a concretização das suas séries. Na recentíssima obra A New Method for Assisting the Invention in the Composition of Clouds, o autor retrocede até aos Estudos sobre Nuvens de Alexander Colzens, a partir dos quais (também na sequência de uma residência) desenvolveu uma apropriação actual, celebrando ainda a circunstancialidade da obra do artista setencentista inglês.

« Quelques fois le paysagiste comme le poète, faute d’avoir étudié la nature, viole le caractère des sites. Il place des pins au bord d’un ruisseau, et des peupliers sur la montagne…» 8

JOÃO TABARRA Ao longo de uma vasta produção videográfica, a linguagem estética do artista português veio consolidando uma abordagem inédita e pioneira. Manipulando um complexo encadeamento multidisciplinar de conhecimentos, a sua viagem pelos campos da literatura, filosofia, teorias sociológicas ou antropologia contribuem para uma criação de excelência da imagem. Somente quem domine as cronologias do saber como no seu caso, pode aplicar-se à concepção de vídeos concentrados e ricos em referências e estímulos psico-cognitivos e plásticos, sendo simultaneamente trabalhos estéticos de resistência – de âmbito sociológico: “...algumas fotografias e vídeos de Tabarra são mais um ruptura, um sem-sentido a que apenas se concede uma saída razoável: o desespero. Mas desespero com humor, e menos desespero.”9 O produto destas conexões reverteram numa obra da maior magnitude, onde a associabilidade entre às constantes mutações do mar contemplado se sucedem os nomes de autores emblemáticos na cultura e ciência ocidentais, numa osmose caricatural e profunda que deixa em aberto o campo hermenêutico para qualquer espectador: refiro-me ao muito recente filme de síntese, intitulado @SEA (2009). Entre a iconografia e a iconologia, os temas abordados, ironizam as condições do humano isolado que se quer sozinho, mas também assume a condição gregária de similitude e diferença. Nas 3 obras, todas datadas de 2007, a incorporalidade do próprio artista surge plasmada em Atelier, simulando uma aventura de descida da escadaria do espaço de trabalho, evocativa dos primeiros “passeios” lunares dos astronautas. Em síntese, essa ausência simulada de gravidade, associa-se ao retardamento (deliberado ou efectivo) do acto de descer. Sendo um dos movimentos basilares, descer é um desempenho recorrente que serviu de temática e problema na iconografia do século XIX e XX que não somente naquele de ilustração ou incidência científica. No 3º quartel de oitocentos foram captados, pela câmara rudimentar de Edward Muybridge, os movimentos de ascensão e descida; em inícios de novecentos, nas pinturas cubo-futuristas (para lhes atribuir uma designação aproximativa) de Nu descendo a escada e de Jovem triste num comboio, da autoria de Marcel Duchamp. Assim se manifestam e cruzam em diferentes tempos de criação, através de correntes e missões da gestação artistisca e tecnológica, os estudos sobre a locomoção. Sua decomposição e remontagem. Em Atelier, o domínio da gravidade encontra-se agregado à identidade pessoal, numa variante singular que seja também um auto-retrato. A identidade própria na sua directriz imagética está muito presente (quase sempre presente) na sua videografia e também nas suas séries fotográficas. É uma assunção do auto-retrato ficcional e ficcionado que usa para propósitos de valência cinematográfica. A ironia subtil e acutilante ignora o tempo e o espaço,

8 Chateaubriand, “Lettre sur le paysage en peinture » (Paris, Ladvocat, 1830), in Le Paysage, Org. Aline

François-Colin et Isabelle Vazelle, Paris, Les Éditions de l’Amateur, 2001, p.15 9 David Barro, João Tabarra, Santiago de Compostela, Ed. Dardo, 2007, p.26

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situando-se em cenários detalhadamente seleccionado, quanto os adereços e atributos que o artista-actor manobra em prol de uma luta pela sabedoria, a liberdade de exercer a crítica e a axiologia utopista. As citações cinematográficas são explícitas, caso de The moonwatchers defeat, em homenagens requintadas a autores como Stanley Kubrick ou, numa outra perspectiva e acepção a Pasolini – veja-se a celebração estelar (que poderia dialogar com as Constelações ou Construído Estrelas de Albano Afonso) substância pulsátil em Batalla del suicidio - working class angels para Pasolini.

“Atelier” – 2007 Em “Atelier”, Tabarra convoca deliberadamente esse universo para o seu lugar de trabalho, estabelecendo desta forma uma fuga para dentro, redireccionando-se no sentido do seu próprio encontro. As passadas lunares que, vitorioso, ali encena são a projecção mais imediata desse sentimento de maturação individual. "The moonwatchers defeat" – 2007 O osso, ícone estranhamente pousado frente a um personagem velado no primeiro vídeo, aparece num movimento que, ascendente, simula o arremesso operado pelo macaco vitorioso na cena “kubrikiana”, que ali se transforma em nave e aqui se desintegra fatalmente, provocando uma dramática ruptura evolutiva, com um único e seco projéctil. "Batalla del suicidio - working class angels para Pasolini" – 2007 A resistência aqui operada ao obscurantismo do poema funda-se numa alegórica e quasi-divina sobrexposição, através de um processo progressivamente cumulativo de corpos luminosos que habitam, estranhamente suspensos, o enquadramento, sonorizado com o registo repetido e obsessivo da inscrição em papel, pelo autor, do poema de Pasolini que dá título à obra.10

DANIEL CANOGAR

“Les grandes passions sont quelquefois comme les montagnes ; on en approche sans soupçonner leur élévations et leurs tourments ; à mesure qu’on grimpe, les déchirements se font de toutes parts. On croit qu’on se reposera au sommet; mais, après tant d’efforts, on ne trouve sur la cime que le vertige et l’aveuglement. On en revient le cœur silloné comme les flancs de la nature. De loin, c’est peu de chose ; au pied, c’est superbe ; en haut, c’est effrayant.»11

No passado mês de Fevereiro, e sob o título Fogos Fátuos, Daniel Canogar apresentou no Matadero de Madrid, 5 instalações, organizadas em torno de, pelo menos, dois denominadores comuns: materiais obsoletos aos quais recorre e que transfigura numa conveniência estética carregada de transcendência, quanto de crítica societária e ideológica. Nos depósitos de cassettes de VHS, de cabos telefónicos ou de jukeboxes inoperativas, Daniel Canogar organiza uma estética subtil, quanto dinâmica, e conceptualmente penetrante. O artista espanhol recorre a fitas de cassettes de vídeo VHS, respeitando-lhes os conteúdos filmográficos que traduz numa composição lumínica e policromática sequencializada em intervalos e reverberações corresondendo à intensidade dramática dos enredos em causa – por exemplo Blade Runner de Ridley Scott ou Dial M for Murder de Hitchcock.

“Scanner” – 2009: Un gran nudo de cables eléctricos, telefónicos e informáticos cuelgan del techo de la sala como si se tratara de una gran telaraña. Sobre estos cables se proyectarán líneas blancas, que al caer sobre la forma enrevesada de los cables, transforman el conjunto con un potente efecto de chispas de luz que parecen recorrer la longitud de los cables. La obra recuerda al bombeo del sistema circulatorio humano, así como al pulso que activa las redes informáticas de nuestra realidad electrónica.12

Em Scanner, a matéria manipulada esteticamente são os cabos eléctricos, de telefone ou de equipamentos informáticos, que se enredam numa conjugação quase barroca, recebendo as incidências lumínicas que, dada a sua expansividade no espaço negra, lhes confere uma categorização escultural. Todavia, atenda-se a que não é somente uma questão de espaço, é uma

10

Lígia Afonso in “João Tabarra – G”, Arte Capital,http://www.artecapital.net/criticas.php?critica=113, consultado

em 13 Fevereiro 2009 11

Théophile Thoré, “Salon de 1846 – VI. Les paysagistes », in Le Paysage, Org. Aline François-Colin et

Isabelle Vazelle, Paris, Les Éditions de l’Amateur, 2001, pp. 29-30 12

Daniel Canogar in Scanner, http://www.danielcanogar.com/page_es/index.html, consultado em 21 Abril 2009

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questão de tempo. Mas o tempo consignado em distintas acepções: o tempo cronometrado para a deliberada organização de intervalos cromáticos, na sua duração cruzada com a vibração instantânea, e um tempo quase mítico (Octávio Paz) que se deduz da ambiência (leia-se envolvência) propiciada, precisamente, pelas codificações estabelecidas no software aplicado. Como o próprio artista comenta, sempre lhe interessou alterar os formatos fotográficos tradicionais, recorrendo às instalações e às projecções, a sistemas de multi-projecções concretizadas através de cabos de fibra óptica; assim atingiu o seu objectivo, ou seja, expandir, ultrapassar as fronteiras das áreas fotográficas e induzindo os espectadores a submergirem nas próprias imagens: “Estas obras investigan como la identidad del sujeto queda alterada en el espacio del espectáculo.” Nomeadamente, desenvolveu projectos onde o espectador imerso em imagens espectrais, deixa de ser um espectador passivo, pois compete-lhe activar a instalação, pelos movimentos/acções de ocultar ou desocultar imagens enquanto se desloca no espaço.13 Os espectadores são sempre solicitados, impulsionados a experienciar com intensidade as suas evidências estéticas: quer quando os seus corpos tornam opaca, transitoriamente os espaços que absorvem as projecções, pois se tornam ostáculos, quer quando os seus corpos geram sombras e outras ilusões fugazes que assim reagem em consonância com a obra do autor. Os espectadores podem ser absorsores de luz ou de códigos policromáticos, o que lhes confere uma aura de intangibilidade e incorporalidade para além da sua concreção humana. Precariamente, no tempo e no espaço, são unidades evanescentes, simulacros de imaterialidade. A tecnologia digital é abordada, é manipulada por Daniel Canogar de modo a ser um parceiro operativo que se torna substância cúmplice para abarcar os seus conteúdos, ideias e externalidades. Mas também a referência à história recente da técnica e tecnologia audiovisual nas

suas distintas formulações e formatos: “La arqueología de los nuevos medios siempre ha sido una importante fuente de inspiración para mi proceso creativo.”14 Fundamenta e plasma a denunciar através de meios intermediais, focando temas como o excesso de informação, questionando a obsolescência dos equipamentos e de alguns procedimentos tecnológicos, ao atribuir-lhes e definindo-lhes novas operacionalidades e missões. A tecnologia digital humaniza-se e serve propósitos ideológicos como em “Clandestinos” (2006), incidindo sobre os problemas mais dramáticos da actualidade em termos globais mesmo. As projecções permitem gerar transformações morfológicas acentuadas, estabelecendo uma retórica imagética complexa. As mutações irrompem, num encadeamento cujos protagonistas podem ser figurações humanas em escala quase liliputiana, quer elementos naturais, quer formulações de valência abstracta, onde podem predominar ora linhas rectas – verticais, horizontais mas sobretudo oblíquas, ora o dinamismo curvilíneo, espiralado e labiríntico. Os cabos eléctricos, e demais materiais, serão em última instância, metáforas do humano, na sua precariedade e ramificações societárias. As sombras, as silhuetas, no que seja a substância de sua incorporalidade e intangibilidade, geram o simulacro, apropriando-se em diferentes plataformas: substantiva, qualificativa, demonstrativa, interpretativa, portanto na complexidade estética finalizadora.

ALBANO AFONSO

“Passam anjos como bandos de aves. O mais silencioso senta-se no meu regaço. É noite. Falamos baixo para não acordar a Humanidade, profundamente adormecida. É na escuridão que os corações sofrem e se tornam fiéis.” Heinrich von Kleist

“O Pássaro e o Unicórnio" - 2008/2009 “O Lobo, o Pássaro e a Lua” – 2008

Ambas instalações trabalham conteúdos que relatam fábulas e estórias aparentemente simples que servem de campo semântico e iconográfico para experimentação visual, através da luz. Combina figuras zoomorfas recortadas, colocadas numa estrutura rotativa que absorve a luz, projectando-se a sua sombra instável na parede. É uma associação entre animais e uma fauna imaginária, mitológica. As narrativas desenvolvem-se a partir de cada um dos espectadores, graças à sua subjectividade, às aproximações que deseje ou recuse. Independente de narrativas ou enredos visuais, que se expandem através das projecções, a intencionalidade estética restabelece a relevância e dinamismo da luz. Recordem-se as acepções da luz no âmbito da estética medieval que fundamenta –

13

Casos de: “Alien Memory”, “Obscenity of the Surface” e “Sentience” 14

Daniel Canogar (Maio 2005) in “Artist’s Statement”, http://www.danielcanogar.com/page_es/index.html,

consultado em 22 Dezembro 2008.

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salvaguardadas as diferenças – a sua obra: 1. a luz como splendor; 2. luz como lumen; 3. luz como color. Certifique-se que nestas instalações se reconhecem as 3 acepções. A luz que se propaga através de superfícies propiciadoras à sua expansão e “itinerário”; a luz como veículo lumínico, conteúdo e substância; a luz gozando de suas propriedades cromáticas.

“Auto-retratos Modernos Latino Americanos/Europeus” – 2005/2006 Albano Afonso realiza uma travessia histórica pela iconografia ocidental, focando-se na recorrência dos auto-retratos. Por tradição estética, na pintura (posteriormente na fotografia), no olhar que se dirige de um a outro, do eu sou ao outro que se supõe seja, o denominador comum reside precisamente no olhar; esse olhar que habita o rosto, antes mesmo de se exercer na sua plenitude, de se estender à totalidade de si. Tais são alguns tópicos básicos que a antropologia filosófica nos ensina. O eu reconhece-se no outro, questão primeira e última da identidade versus alteridade. A constituição, o reasseguramento da identidade própria passa pelo outro, pelos outros. Certo, por vezes, tal reassseguramento parece-se demais com intranquilidade, com incerteza, com angústia. Ou seja, si mesmo perante os outros consciencializa medos, ansiedades, tensões…mas todas essas vivências certificam que se é, que se está a existir em pleno. Daí, talvez uma ou outra vez, qualquer um de nós se ter perguntado quanto existe de si nos outros rostos, quando muito os rostos se contemplam. Iniciou-se o culto da individualidade do artista, preparado ao longo do século XIV e XV, em termos socio-culturais, activado a partir das transformações na mentalidade, no direccionamento do pensamento filosófico e na dogmaticidade teológica. Nesta perspectiva, não surpreende a importância que os artistas modernos e contemporâneos lhes concederam, nas suas obras. Recuperem-se, igualmente, as múltiplas referências a autores como Leonardo, Alberti ou Miguel Ângelo. Torna-se emblemática a revisitação fundamental do conceito de uomo universalis, acordada à necessária conceptualização iconográfica, retrospectiva, afecta nitidamente no Renascimento e Maneirismo, enquanto momento sócio-cultural e artístico de referência obrigatória. A única fronteira admitida pelos homens da Renascença, segundo David le Breton, residia naquela fronteira que lhes era devolvida pelo mundo.15 Neste políptico, constituído por 24 unidades, intercalam-se apropriações de alter-identidades retratadas por pintores, com as auto-imagens do próprio Albano Afonso. O denominador comum, entre este painel e as projecções lumínicas, reside na inundação do foco que desfaz os traços anatomofisiológicos que conferem exactamente a identidade de cada. Assim, a intangibilidade da identidade própria é acentuada duplamente: os auto-retrato dos pintores atravessados pela cronologia tampouco emitem directamente a fisionomia dos artistas que se auto-retrataram; num segundo momento, a leitura desses auto-retratos que Albano Afonso escolheu é tomada pela imagem do seu rosto que cohabita na superfície da obra. Existe uma dupla “corporalidade” que se anula mutuamente, gerando pois a “incorporalidade” consolidada; consolida-se uma auto-identidade que é projectada e outras que são absorvidas.

ADRIANA MOLDER “Tudo mudou porque nós o mudámos; mudou tanto a geografia exterior como a interior.”16

“Festa” (série The Passenger) – 2008 e “Ballrrom” (série The Passenger) – 2008

Posicionam-se protagonistas em cenas perdidas que podem desencadear finais bem diferentes, assim como os tópicos dos guiões podem, igualmente, enveredar por direcções divergentes antes da finalização dramática. A sedução mitíco-cinematográfica dirige diferentes séries de Adriana Molder, focando-se nalguns casos nos retratos exacerbados de actrizes/personagens dos tempos áureos de Hollywood, como ocorre com as “suas” divas do film noir…. As heroínas possuem personalidades complexas e os traços dos rostos espelham essa intensidade mais teatralizada do que filmográfica. Destes desenhos os homens quase sempre se ausentam. Os rostos exploram feições enigmáticas,

acentuando interpretações ambivalentes e equívocas pois: “Adriana Molder desvia-nos do real objectivo do seu trabalho estabelecendo ainda mais um grau de distância entre o objecto, ela mesma, o espectador, o modelo... Finge imitar macaqueando quando, evidentemente, está a inventar, a usar a imitação não para se aproximar do modelo mas para se desviar dele, dos seus sentidos e atenções, para armadilhar todas as interpretações, para gerar

15

Cf. David le Breton, Anthropologie du Corps et Modernité, p.41 16

Thomas Bernhard, Trevas, Lisboa, Hiena, 1993

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personagens autónomas (…)”17

As fisionomias dos retratados, apesar de apresentados numa escala monumental, expõem a sua fragilidade que é acentuada pelas características dos próprios materiais utilizados: a tinta-da-china é absorvida pelo papel de esquisso, organizando texturas e espessuras na ordem da percepção visual, além da factualidade pictórica. Festa e baile são situações gregárias, de convívio e socialização estereotipadas, sucedendo-se geração após geração; numa e outra tipologia de ritual exacerbam-se atitudes de protagonismo e sublinham-se disputas de estatuto. À semelhança de outras séries desenvolvidas pela artista, ficam campos abertos para os espectadores construírem interpretações sem fim. As transparências, a translucidez, a densidade da tinta, distendem-se ou concentram-se nos intervalos e sobreposições controladas pela artista que assim domina as morfologias da sua composição. Os títulos endereçam para situações, desempenhos, estereótipos e decisões. Mas tudo se encontra impregnado de ambivalências e equívocos, à semelhança do que sucede na vida real. São simulacros, não simulações, da vida real…são igualmente deliberações pertencentes aos desenvolvimentos que apenas as ficções nos habituam a seguir em narrativas literárias, quer poéticas, quer em prosa…Mas a picturalidade desenvolve com a maior pujança e penetração as definições das personagens, nelas permitindo a introjecção de sentimentos, afectos ou ideias que residem em vidas historicamente cotejadas.

“Tencionava sim explicar-te o que Joseph deixou no mundo como rasto, no interior daquela pasta castanha que obstinadamente teimava em levar consigo para todo o lado. Essa pasta foi encontrada aberta, todo o seu conteúdo espalhado junto das roupas dele. É uma colecção de imagens repleta da tua presença, mas também cheia de outros e outras, e ainda dele mesmo. Não serão talvez os estranhos factos do desaparecimento de Joseph, aquilo que pretendo contar-te com esta carta, mas sim invocar a estranheza que significa uma alma deixar atrás de si, quase como uma obra, um conjunto de imagens a que podes também chamar uma colecção, se assim preferires. Contudo, minha querida, o que sabes tu deste homem? O que te é dado saber sobre quem quer que seja? Nada, e nem mesmo tudo aquilo que ele deixou para trás, e que me cabe a mim agora enviar-te, poderá fornecer-te o mínimo indício quanto a Joseph, mesmo depois de teres partilhado com ele a tua vida. É certo que eu não deveria sequer enviar-te estas imagens, pois delas não farás grande coisa, e na verdade não servem simplesmente para nada. Decididamente, não tas vou descrever. Observa-as, e julga por ti mesma.18

Outra história poder-se-ia ser agregada, procedendo do mundo ficcional e cinematográfico ao realizar uma evocação criativa, a partir de tópicos do filme The Passenger, de Michelangelo Antonioni, realizado em 1975. No filme, o protagonista, encarnado por Jack Nicholson, é um repórter em África que assume a identidade de um indivíduo morto. Quando regressa à Europa, é portador de um caderno de anotações do morto, a viúva procura reconstruir a situação e as memórias e o enredo complexifica-se com o aparecimento de personagens que deambulam entre Londres e Barcelona…E assim, outras narrativas mais por diante (com a permissão da artista, pois os espectadores hoje também são inventores…).

Da Série Reis (Cabeças perdidas dos reis de Judá da Notre Dame de Paris) – 2003

“As Cabeças enterradas dos Reis de JudáDentro da terra estão 21 cabeças à espera de serem descobertas. (Como eram muitas, deram muito trabalho a enterrar). Os corpos decepados ficaram no chão, ali perdidos, sem saberem o que fazer, até que mais tarde no dia ele chegou. Não havia tempo a perder, agrupou as cabeças em grupos de 1, pois elas eram muito grandes, e enterrou-as no seu enorme quintal. Depois, foi mais fácil carregar os corpos aos bocados, só precisaria de umas dez, vinte, trinta pessoas. Tudo isto durou a noite toda e, pela manhã, já não havia nenhum vestígio real. David, Salomão, Abiam, Asa, Nadab, Basa, Elá, Zimeri, Omeri, Acab, Jorão, Acazias, Jeú, Joás, Joacaz, Amacias, Jeroboão II, Azarias, Zacarias, Chalum, Menaém, Pecaías, Jotam, Acaz, Ezequias, Manassés, Amon, Josias, Joaquim, Joiaquin, Sedecias. Só um lugar vazio. Passou algum tempo, mas na pedra ainda há vestígios da terra.” 19

17

João Pinharanda, “Copycat”, in http://www.adrianamolder.com/, consultado em 9 maio 2009 18

Por mim, limitar-me-ei a citar o início de um poema:« Rappelez-vous l’objet que nous vimes, mon âme,Ce beau

matin d’été si doux:Au detour d’un sentier une charogne infâmeSur un lit semé de cailloux… »Adriana Molder,

“The Passenger” in http://www.e-vai.net/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=745, consultado a 20

maio 2009. 19

Adriana Molder, “Reis” in http://www.adrianamolder.com/, consultado em 14 maio 2009

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Locais no tempo ou periodizações históricas imiscuem-se às consignações que a Arte soube consolidar enquanto matérias mitológicas. Os Reis de Judá, essas cabeças perdidas que a pedra garantiu são retomadas na pintura translúcida e volátil quanto adensadora de sentimentos que a artista soube evidenciar. A concentração, o “dilaceramento”, a fluidez mas também a fixação negra, que a aguarela e a tinta-da-china proporcionam confere uma dimensão de uma maior transcendência e distanciamento àquelas figuras que o tempo e o mito já haviam tornando longínquas. É manifesta, e simultaneamente subtil, a analogia às cabeças de pedra esfacelada e trespassada pelo tempo (meteorológico e cronológico) nas galerias dos Reis, na fachada Oeste da Catedral de Nôtre Dame. De autoria anónima, as cabeças datam do séc. XIII e viajaram da tridimensionalidade à bidimensionalidade na convocação simulacral de Adriana Molder. Em termos históricos, durante a Revolução Francesa, alguns revoltosos, convencidos, de que estas cabeças retratavam os reis de França, vandalizaram-nas…

SAMUEL RAMA “Toda a verdade tem um antes e um depois: ambos são possibilidades. Depois é uma possibilidade. Antes foi uma possibilidade. Mas, na realidade, é tudo igual.”20

Segundo Hans Carossa21

, o homem seria a única criatura da terra que teria vontade de olhar o interior de outra. A vontade de olhar, confere-lhe a condição de desenvolver a capacidade de uma visão penetrante, conferindo-lhe (numa certa acepção) uma espécie de “violência perceptivo-visual”. A acuidade de visão de Samuel Rama, ao perscrutar lugares que lhe exigem a vontade olhar por dentro, externaliza-se através de procedimentos e estratégias analógicas no respeitante às séries fotográficas que vêm realizando de alguns anos a esta data. Existe no artista, esse fascínio pela profundidade quer em termos de conhecimentos teóricos, quer a nível essencial quanto aos espaços cavados, quase impenetráveis. São os domínios que aos quais, as distintas cosmogonias têm atendido – desde os primórdios da humanidade - nas suas efabuações e mitos. Os deuses do interior da Terra, do mundo subterrâneo, designavam-se na mitologia grega por deuses ctónicos. Na série apresentada por Samuel Rama, esses deuses estão presentes. Agridem a paisagem à superfície, revolvendo-lhe as entranhas. Por isso, existem minas, pedreiras, todos esses lugares onde as escavações podem desenvolver-se e moldar territórios. Miguel Ângelo acreditava que a forma pré-existia na matéria e que ao escultor bastava retirar o excesso para que a escultura fosse desocultada, assumindo a sua identidade singular. A terra (matéria, pó, pedra…) seria, pois, uma espécie de epiderme que alberga tudo aquilo que pode germinar, perecer, engolir ou enterrar. Esse efeito de “sucção”, de força centrípta, que se estende pela vastidão susceptível de ser demarcada pelo homem, pode ser corrompida pela a acção que tem um objectivo destinado e o acto do fotógrafo que persegue os locais que se estendem e mergulham sobre si, desvelando as suas marcas, vestígios, rastos ou indícios. Este dimensionamento quase peierciano que Samuel Rama pretende, domina e faz-se reconhecer num domínio que remete para o mundo ctónico mais do que para o telúrico…

“Escavação”, 2009: De escavações feitas directamente sobre a terra resulta uma experiência escultórica que para além de retirar matéria, acrescenta espaço. A fixação desse espaço através da linguagem fotográfica pretende trabalhar a noção de paisagem em duas direcções opostas, mas apesar de tudo simultâneas. A noção de paisagem ordenada pela perspectiva renascentista italiana, que governa e gera o dispositivo fotográfico tradicional e a noção de paisagem ordenada por uma perspectiva que se aproxima da noção de perspectiva invertida. Enquanto que o primeiro modo de organização do campo visual ordena e regula uniformizando o espaço levando-o para lá do espectador, a perspectiva invertida tenta engendrar um espaço que coloque o ponto de fuga do lado do espectador, de forma que este já não olha para fora através de um recorte do enquadramento mas sim directamente implicado na imagem, pois o ponto de fuga está tendencialmente no seu espaço. (…) Positivo e negativo são também tidos em conta dentro de uma preocupação escultórica, isto é, se uma concavidade no espaço real é registada fotograficamente ela pode tornar-se convexidade no negativo fotográfico e vice versa. 22

20

Fragmentos de Novalis (ed. Bilingue), p.16 21

Cf. Gaston Bachelard, La terre et les rêveries du repos, Paris, Ed. José Corti, 1979 22

Samuel Rama in Terra de Ninguém, Maio 2009 (texto inédito)

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A sua obra radica em valores originários que são substâncias de cosmogonias. (Não se sabe se, procedendo de uma qualquer harmonia, ou endereçados para um Kaos…) A terra lavrada significa o domínio progressivo da consciência dos humanos sobre si mesmos, dirigindo-os para a sedentarização. Mas a terra pode ser lavrada sem que dela germinem frutificações ou alimentos; antes, o acto humano de a volver, de a agitar, significará uma dominação, tanto quanto uma veneração…; o homem dela retirará excedentes, excessos ou excrescências que evoluem, se transfiguram em estruturas, construções, efabulações sem destino porventura. Da terra saem fragmentos, tornando-a local de mutações externas às suas transformações milenares e intrínsecas. Através de um procedimento de apropriação intermediada, as fotografias negam e afirmam-se, num compósito de unidades que dialogam, entretecendo incorporalidades visíveis e intangibilidades tácteis pois a nossa percepção detém-se e retorna a nós mesmos, apenas viajando pela capacidade metamorfoseante que o acto do fotógrafo que é um acto escultórico pois domina a matéria para a devolver “à terra”, ou seja, a nós que habitamos a terra. Escrevia Jean Chateau23 que toda imaginação tanto implica esquemas operacionais quanto imagens pesadas. Resta saber como se conciliam, como se defrontam, como se tornam cúmplices, ganhando visibilidade, tornando-se realizações externas nas obras. A imaginação relaciona-se com a categoria do “parecer, quase se confundindo imagem com representação. A imagem, segundo o filósofo francês seria algo de “mais pesado e mais próximo do sensível”, considerando – como se sabe – que coexistem tipologias de representação que são exclusivas do humano: símbolo, signo, simulacro…O simulacro situar-se-ia na plataforma inferior pois procura criar uma ilusão ao mesmo tempo que a deseja da forma mais fidedigna possível…quase “cópia” que suponha uma intenção realista (relacione-se a certas reflexões atribuídas a Platão…) A imagem é o território de expansão e substância do simulacro (já os Epicuristas o afirmavam) exige o objecto e o torna presente na ausência…Do simulacro foi gerado o símbolo, pois nele persiste e se guarda algo do objecto significado…é algo agarrado à “terra”, à matéria”…ainda! Mas o símbolo é um substituto, enquanto que o simulacro se esvai sem procurar assegurar uma reciprocidade existencial substitutiva. O simulacro delata-se a si mesmo como causa e consequência identitárias. As fotografias apropriam-se de uma matéria sensível; possuem-na na precisa duração que tarda a sua transfiguração…

« C’est dans le paysage surtout que le sentiment de la vie est un don rare et délicat. Peu d’hommes voient le paysage, parce qu’ils ne regardent point dans les campagnes ce qui est impalpable et presque invisible, mais ce qui est réel pourtant et de première importance, ce qui est l’harmonie et le tout, le ciel et l’air simplement. (…) De même, en paysage, le ciel commence à l’épiderme de la terre.»24

COMMON CULTURE – “Adorno’s Disc”- 2004:

In ‘Adorno’s Disco’ Common Culture promote Theodor Adorno as the superstar DJ. Set within an empty nightclub, a DJ is hired to orchestrate the spectacular light show in synch with the atonal music of Arnold Schoenberg's ‘Phantasy for Violin and Piano Accompaniment, Op. 47’. If Adorno turned to the Modernist form of Schoenberg’s music as an autonomous aesthetic site, resistant to and separate from the light entertainment of the culture industry, Common Culture returns the modernist form to the dance-floor. Only Schoenberg’s “anti –trance” anthem is no floor-filler. 25

Theodor W. Adorno, o filósofo foi compositor, tendo sido discípulo de Schoenberg. Na sua obra musical explorou, designadamente, pressupostos afectos ao dodecafonismo, situando-se, pois, num recorte contemporâneo que é muito do conhecimento público em geral. Antes se confina a estudiosos, profissionais, melómanos ou curiosos…Se da sua obra filosófica, com relevância para a Estética Musical emana – segundo alguns – certa impenetrabilidade, no respeitante às suas partituras, elas correspondem, igualmente, a uma condição de receptividade que se pauta por idêntica “intangibilidade”, estranheza…Aliás, situação que é partilhada pela maioria das peças que integram a música contemporânea dita erudita que se estabeleceu a partir de parâmetros – por analogia às demais artes – situados em campos descontaminados e inauditos, quanto aos princípios de composição, execução e, consequentemente, interpretação. Tanto mais que no caso da criação musical contemporânea (e não me cingindo ao caso Adorno) se exigem músicos e/ou

23

Cf. Jean Chateau, Les Sources de l’imaginaire, Paris, Ed. Universitaires, 1977 24

Théophile Thoré, “Salon de 1846 – VI. Les paysagistes », in Le Paysage, Org. Aline François-Colin et

Isabelle Vazelle, Paris, Les Éditions de l’Amateur, 2001, p.33 25

Common Culture in Adorno’s Disco, Maio 2009

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equipamentos (electro-acústicos, tecnológicos, por exemplo) que as potencializem…quase recuperando, por extrapolação, a dualidade acto/potência ou matéria/forma da filosofia aristotélica... O colectivo inglês “Common Culture” é constituído por David Campbell, Mark Durden e Ian Brown. Fundado em 1996, na cidade de Liverpool, caracteriza-se pelo desenvolvimento de produções fotográficas e videográficas, cujo propósito reside no registo de situações, actos, desempenhos e demais eventos, localizados no que sejam as manifestações culturais “vulgares” e/ou “comuns”. Numa reincidência hauseriana, a definição de arte popular, de arte para as massas versus arte erudita, são componentes conceptuais abrangidas pela conceptualização e acção estética do grupo. Manipulando a estética e arte eruditas traduzem com ironia e sob formatações caricaturais, conteúdos existentes que se relacionam com a cultura popular para as massas. Na sequência de “Mobile Disco”, um DJ solitário foi fechado numa galeria vazia durante 4 horas, desenrolando a sua performance de trabalho habitual, assumindo-a de forma estóica. A focagem do registo, encontra-o localizado atrás do seu balcão, coreografando as luzes para registos musicais correntes, perante uma audiência inexistente. Este vídeo explorava a capacidade de glamour assumida por um DJ, o fascínio de um profissional fora do seu lugar habitual de desempenho. Em “Adorno’s Disc”, o DJ do club escolhido viu-se perante um CD de Arnold Schoenberg, compositor que desconhecia por completo, quanto mais as características da composição que lhe foi pedido manipulasse em termos de luz...como se de uma noite na discoteca se tratara! O DJ reagiu ao desafio, procurando adequar as sonoridades aos procedimentos de desenhos de luzes que normalmente costumava realizar. Este confronto de culturas, o trabalho num terreno musical estranho e ignorado foi o desafio que Common Culture pretendeu registar. Eis distintos parâmetros de simulacro: no próprio título a atribuição a Adorno (que criticava fortemente a arte dita popular) do epíteto de DJ; a suposta adequação de desempenho de um profissional (DJ) a uma tipologia de música que desconhecia e à qual teve de corresponder em desempenho específico; a assunção de um produto lumínico que tem autonomia por si, sem a afectação do enquadramento de intenções e ideias que o colectivo tomou para desencadear a sua gestação e mutações.

“For accustomed to believing in image, an absolute idea of value, his world had forgotten the command of essence: Thou Shall Not Create Unto Thyself Any Graven Image, although you know the task is to fill the empty page. From the bottom of your heart, pray to be released from image. Time is what keeps the light from reaching us. The image is a prison of the soul, your heredity, your education, your vices and aspirations, your qualities, your psychological world. I have walked behind the sky. For what are you seeking? The fathomless blue of Bliss.” – Derek Jarman in Blue, 1993 MIGUEL ÂNGELO ROCHA –

O ar enche os espaços vazios sem os denunciar. O vazio é retido, agrilhoado num contentor quase regular, em vidro, que a qualquer momento parece ser capaz de respirar tanto que irrompa e viaja pelo espaço onde se configura. Quando materiais diferentes se tornam cúmplices numa obra que será um todo, a sua expansibilidade gráfica no plano torna-se perigosa e as evocações do imaginal agem, com subtileza, em prol de reasseguramento identitário. Já não mais se tratará de uma acepção de simulacro/cópia, antes um simulacro expansivo e polissémico que escapa a formatações epistemológicas rígidas. A madeira é um elemento participe da ordem da natureza quando estabelecida para ser sempre, além dos ciclos geracionais e sua erosão prospectiva. Não é imperecível, é semelhante e substitutiva, embora plena de complexidades, desenhada em fugas, espessuras, odores, fluorescências, frutificações e o mais que cessa, no momento preciso em que é madeira e não mais árvore, tronco ou ramo…A eventualidade artificiosa, de ser de novo uma configuração dinâmica no espaço, cujo contorno a torna inédita acontece quando, por algo próximo do acaso, alguém a decida, usando-a para outros propósitos: garantindo-lhe alguma percentual possibilidade de ser outrem – objecto estético. Estas são deambulações acerca das matérias que exigem o sopro (anima) do humano para conformar as formas de vidro de acordo com estipulações gráficas convenientes…quanto sejam a acção do artista ao relacionar os materiais que deixaram de ser matérias para os manipular em resposta aos seus desígnios de artisticidade. O procedimento do artista é, em si, uma actuação volitiva que se apropria, relaciona e convoca visões internas, reminiscências e nominações. Designadamente quando atribui titulações às suas produções. Os títulos das obras são até certo ponto a derradeira manifestação, a proclamação do incorporal,

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intangível e simulacro.

"Viridiana", 2009: M.A.R. confere alteridades (leia-se presenteia as suas obras com alter-egos) ao denominar as suas criações, num procedimento de referencialidade e celebração, através dos títulos de outras obras de arte. Viridiana remete para a polémica e incontornável obra/filme de Luís Buñuel. Não o cineasta ao tempo de Idade de Ouro ou de Le Chien Andalou mas aquele que Franco permitiu regressara a Espanha para dirigir um filme em inícios dos anos 60. Todavia, o filme altercava demasiado os padrões comportamentais, as regras da moral social, os “ainda-dogmas” da Igreja Católica, pelo

que foi censurado: “Ficou muito mais alusivo e portanto melhor; agradeço de coração à censura franquista…”, disse ao tempo Luís Buñuel. O filme tornou-se um paradigma do questionamento auto-gnósico, promotor e exorcismo de fantasmagorias (o fantasmático, o pulsional), onde desejo e temor se associam, num produto que nos recorda os antagonismos da vontade e representação schopenhaueriana, à qual se agregaria a indecisão e incerteza de Kierkegaard e, ainda (e finalmente) a vontade decisória de Nietzsche. Mas a obra de M.A.R. existe sem a sustentação deambulatória desta indexação a Buñuel. É uma existência per se, autónoma, descontaminada…apenas o público é que necessitará de requintadas muletas intelectuais para se situar. Deixemo-nos conduzir pelos desenhos corporalizados, exercendo um movimento contrário e, concordando com a materialização tridimensionalda daquilo que é suposto existir na planificação do desenho e pintura somente. A direcção ascensional desta escultura olha para uma luz que é intangível talvez. E a “mesa-trouvée” funciona como um simulacro (excedente, resíduo…) de sua funcionalidade e legitimidade simbólica para se converter num acessório participe da criação escultural.

“A escultura intitula-se "Viridiana" que é o título de um filme do Buñuel. Este título ocorreu-me de um modo muito espontâneo. Numa primeira fase de experimentação com a mesa e os vidros, a palavra "Viridiana" surge de um modo imediato na minha cabeça e agora, ao rever esse momento, penso que tenha sido uma associação fonética das palavras vidro e "Viridiana". Num segundo momento e nos que se lhe seguiram, essa referência ao filme é deliberada embora a escultura seja autónoma e esta referência ao filme não "explica" a escultura e vice-versa. Trata-se de uma "justaposição", de confrontar uma palavra com um objecto. A "palavra", que é um "título", é um nome próprio (personagem principal do filme do Buñuel) e é uma referência exterior à escultura.”26

"Lunaire", 2009: “Holy crosses are the verses Where the poets bleed in silence, Blinded by the peck of vultures Flying round in ghostly rabble. On their bodies swords have feasted, Bathing in the scarlet bloodstream. Holy crosses are the verses Where the poets bleed in silence. Death then comes; dispersed the ashes— Far away the rabble’s clamour, Slowly sinks the sun’s red splendour, Like a royal crown of glory. Holy crosses are the verses.”27

Do ar procede também a matéria poética que a imaginação do artista concretiza. No ar, sustentada numa parede a peça de escultura irá residir. A metáfora lunar possui pelo menos duas acepções (e simplificando o caso): lunar endereça-nos para o espaço exterior e intangível; lunar é qualificativo de uma personagem que vive no imaginário colectivo: o Pierrot. No caso, M.A.R. na sequência da concepção da sua obra tridimensional evocou o melodrama (para

voz e piano) intitulado Dreimal sieben Gedichte aus Albert Girauds 'Pierrot lunaire’, do músico da

Escola de Viena. É uma obra paradoxal, pelo que talvez a recepção da peça de M.A.R. possa

conduzir-nos por interpretações formalistas impregnadas pela ambiguidade tríadica também. É

26

Depoimento de Miguel Ângelo Rocha, 20 de Maio 2009 27

“The Crosses” in Pierrot Lunaire, texto de Albert Giraud; música de A. Schoenberg.

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constituída por 3 elementos diferenciados e singulares que se interligam, talvez por analogia aos 3 temas/partes que integram a composição de Schoenberg…28. Entrelaçam-se, quer em termos matéricos, quer cromáticos, iludindo as condições de percepção primeva e dirigindo para uma apropriação através do tacto e da audição, portanto…

"Lunaire" (Lunar) é uma escultura de parede, cujo título vem da obra musical do Arnold Shoenberg que se intitula "Pierrot Lunaire". A escultura não é uma "ilustração" da obra do Shoenberg mas, mais uma vez, uma "justaposição".29

CODA

Um dos denominadores comuns que exprime conteúdos e ideias, dos artistas na presente mostra, é a paisagem. Trata-se de assegurar visibilidades da paisagem que se recortam ou estendem, nas singularidades de cada autor, comprovando que é viável celebrar o poder da imaginação - que é cúmplice da racionalidade mais rigorosa e, também, dos procedimentos e conhecimentos tecnológicos mais actualizados. A primazia da imaginação criativa, pode remeter para as argumentações de Baudelaire, designadamente quando analise e reflecte sobre a presencialidade da paisagem que no caso da presente mostra, reverbera através de registos diferenciados e demonstrando as capacidades inúmeras da sua apresentação, vestígio, simbologia ou transfiguração.30 Além do que atrás se comenta, a paisagem contempla-se, recordando as palavras de Javier Maderuelo. A paisagem pensa-se e deseja-se, na sua totalidade ou parcelarmente, fragmentada, mas deseja-se. É um facto, na sua tríplice condição de incorporal, intangível e simulacro… (Mesmo para quem seja apressado, que não aprecie a natureza ou dispense assegurar-se dela em duração.) Quando se refere a “paisagem” não se esgota a sua tomada de consciência na paisagem natural ou natureza. Pensa-se na paisagem que pode ser o isolamento presencial de uma figura, de um conjunto de protagonistas ou na dinâmica de linhas e objectos que se enredam num espaço contra-pontístico e contra-perspectivistico…nalguns dos casos. ...Quanto se procura o conhecimento de uma qualquer acepção de paisagem, sente-se saudade por não o possuir, não ser susceptível de ser atingida ou se constatar a sua acepção de simulacro. Parafraseando Clarice Lispector, “só passa quando se come a presença…”

“É necessário saber começar e acabar quando se quer – ou então é necessário adquirir-se uma vontade. A vontade é sempre razoável – e forte. Só quando se quer é que se pode. Não se tem, porém, nenhuma vontade firme, ou mesmo absolutamente vontade alguma, quando se for insensato e assim se agir – e se comece e feche como um livro, sendo ele inteligente e bom.”31

A paisagem de sítio nenhum, desencarnada, é reveladora da iconoclastia antropológica vivida. A incursão na paisagem estética reflectia uma intencionalidade efectiva, pretendendo uma aproximação por via da ironização, da reciclagem filosófica, da crítica histórica da pintura (incidindo sobre si mesma), mas significou, também, nos inícios deste milénio, um retomar, com propriedade autoral, da própria pintura. Incorporal, intangível e simulacro fundamentam ou contribuem para a paisagem a existir em obra, enquanto essência conceptual e confirmação produtiva. O tempo é substância coincidente com a representação da paisagem/matéria onde se encontram vestígios do humano preso no tempo, agarrado sem salvação (?) ao espaço. Os sectores isolados da paisagem direccionam-se para a apropriação do olhar em linha de horizonte, mesmo quando imposta na sua verticalidade; podem, ainda, articular-se a elementos arquitectónicos donde se excluem presenças físicas. Está-se perante obras – sejam fotografias, projecções de luz, peças tridimensionais, pinturas ou vídeos - onde as figuras induzem à espiritualidade dignificante da natureza. Relembre-se, tomando como paradigma, que na obra de

28

Consiste em 3 grupos de 7 poemas cada, correspondendo a temas específicos que são cantados por Pierrot. 1º tema:

amor, sexo e religião; 2º tema: violência, crime e blasfémia; 3º tema: regresso à terra natal, Bérgamo, perseguido pelos

seus fantasmas e obsessões. 29

Depoimento de Miguel Ângelo Rocha, 21 de Maio 2009 30

“Je sais bien que l’imagination humaine peut, par un effort singulier, concevoir un instant la nature sans l’homme,

et toute la masse suggestive éparpillée dans l’espace sans un contemplateur pour en extraire la comparaison, la

métaphore et l’allégorie.» Charles Baudelaire, “VII. Le paysage », (1859) in Le Paysage, Op.Cit, pp.62-63 31

Fragmentos de Novalis, Op. Cit, p.19

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Caspar D. Friedrich, subjaz a tripla vivência do tempo: o tempo necessário à contemplação, para observação exacta das formas; o tempo interior para fixar em pintura “o depois de ter visto”, quando, seguindo Schelling, se dissipa a nebulosa que distingue o mundo real do mundo ideal de modo a pintar uma imagem do que as aparências tenham revelado e, finalmente, o tempo vivido no exterior, a olhar a natureza de essência divina – as obras da natureza e obras humanas – todas as formas recolhidas nos seus cadernos de esboços.32 O Sublime não é matéria constitutiva da obra, mas disponibilidade actuante/actuada no fruidor que vivencia a obra; assim se parte para o estabelecimento de aspectos que induzem para a instituição do sublime. Refere-se a um valor estético, cujo factor primordial é a presença ou sugestão de uma vastidão transcendente de grandeza, ou de poder, heroísmo, extensão no espaço ou tempo. Difere da grandeza ou grandiosidade no que respeita ao facto desta ser susceptível de ser completamente medida ou apreendida. Por contraste, o sublime, se por um lado pode ser apreendido e tocado como um todo, é sentido como transcendente pelos nossos parâmetros de medida ou concretização. Dois elementos que são enfatizados em diferentes graus, por diferentes autores e, provavelmente, variando consoante os observadores: veneração, estímulo de habilidades e elevação do self, em efectividade empática, ao objecto. (Pense-se no conceito de erlebnis...) O elemento de magnitude na beleza foi notado por Aristóteles, que lhe concedeu um lugar proeminente na tragédia. A paisagem reflecte certa espectralidade do incorporal e do intangível bem como a apropriação do simulacro, provando que: “Alle Wirklichkeit hat ein Vor und ein Nach – beides sind Möglichkeiten – Nacht ist Möglichk[eit]. Vor war Möglichkeit. In ihr ist aber alles zugleich.“33

Fátima Lambert

Out.2008/Maio 2009

32

Cf. a propósito da obra e estética de Caspar David Friedrich (5 de Setembro 1774 – 7 de Maio 1840), o ensaio de

Catherine Lepront, Caspar David Friedrich – Des paysages les yeux fermés, Paris, Gallimard, 1995. 33

“Toda a verdade tem um antes e um depois: ambos são possibilidades. Depois é uma possibilidade. Antes foi uma

possibilidade. Mas, na realidade, é tudo igual.” (Tradução minha). Cf. Fragmentos de Novalis, p.16.