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meus chinelos bettina lenci

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para Moema

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Capítulo 1

Domingo, 13 de fevereiro de 2016. É meio dia. O humor de

Dora está cinza como o inverno que envolve a árvore desfeita

de folhas entrevistas pela janela.

“Meus chinelos, meus chinelos!”

Desviar a visão de Astrid é impossível porque a poltrona

destinada aos visitantes fica em frente à sua cama. Dora

não pensa na agonia da amiga em busca dos seus chinelos.

Acorrentada às lembranças, ela se culpa por substituir

o sofrimento de Astrid, mergulhando em seus próprios

pensamentos. Desamparada, rememora os dias ensolarados

da terra natal de ambas, amigas desde infância em Tanger.

Dora vê os chinelos da amiga colocados - pela diligente

enfermeira,- em frente aos pés de Astrid, mas ela continua a

chamar, agoniada, “Meus chinelos”! “Meus chinelos”!

“Como começa isso?” O mal de Alzheimer lhe desperta

pensamentos confusos. Ao menos, ali sentada, Dora pode

ficar em silêncio de reza, velando o sono da demência.

Rotineiramente ela visita sua amiga. Não sente pena de Astrid

mas, pergunta-se por que cumprir o ritual acompanhando

a inexorável e impiedosa decadência da brilhante mente

da pessoa clamando por chinelos que estão aos seus pés.

O quarto é grande. O silêncio pesado, o ar rarefeito. Num

instinto de sobrevida, Astrid precisa de todo ar para si. No

teto, o remendo de uma parede demolida, provavelmente para

dar a sensação à doente de que não vai sufocar como uma

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flor de estufa em extinção. O tom das paredes verde claro, as

cortinas graciosamente floridas com leves e murchas rosas

apagadas combinam com o papel de parede. O quarto é

agradável e feminino. A colcha rosa está dobrada aos pés da

cama.

-”Esta colcha me deixa nostálgica” irrompe Dora irritada,

pouco atenta à decoração do quarto. Respira fundo e passa

da irritação à angústia. Imagina ter inspirado um cheiro

agridoce de cereal armazenado, o cheiro do sofrimento! O

futuro incerto lhe causa opressão e a passagem do tempo,

uma dor cáustica na boca do estômago: “estou só”!

“Meus chinelos”! “Meus chinelos” ouve novamente.

A enfermeira chega e os calça novamente com delicadeza.

Se Dora tivesse que descrever Astrid diria que ela lembra

Edith Piaff, cantora francesa do pós-guerra. Dela emanava

uma energia solar apesar da sua fragilidade física e

emocional. Seus rompantes eram irascíveis, coléricos. De

baixa estatura, o andar desajeitado, musculosa, cabelos

ruivos encaracolados, unhas do pé sempre vermelhas e da

mão muito compridas. Esboçou leve sorriso ao lembrar-se da

vaidade excessiva de Astrid, altiva como uma tocha olímpica

de vencedor de maratona. Dora fez contas: “nasci em 45, ela

em 46.” Este cálculo a entristeceu: estavam juntas desde a

escola primária.

Sem prévia indicação, Astrid levanta os braços para

que a ajudem a sair da cama. Emagrecida, curvada e

trôpega, dependurada no braço da enfermeira, ela indica

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o grande terraço. Dora a acompanha. Profusão de vasos

dependurados, trepadeiras subindo pelas paredes e uma rara

coleção de orquídeas tornara-o romântico. Astrid cuidara

pessoalmente desta parte da casa. Escolhera flores que a

lembravam das cores do seu país de origem: maravilha e

amarelo, cor das primaveras no continente africano.

Os vasos vermelhos, envelhecidos, destacam-se da parede

ocre das areias do deserto e o piso é de ladrilhos geométricos

azuis, amarelos e vermelhos, característicos dos paises

árabes. O terraço era cercado por um balcão cuja grade

remetia ao início do século XIX francês.

Nascidas na Argélia de nacionalidade francesa, ambas

estudaram no mesmo colégio de freiras e juntas terminaram

a faculdade de letras em Paris. Astrid acabara de conseguir

o seu diploma quando casou-se com um diplomata francês.

Cansada do diplomata e da França, conheceu um médico

inglês e mudou-se para a Inglaterra. De natureza inquieta e,

sedenta pelas novidades da revolução dos estudantes em

1968 em Paris, formou-se doutora em Filosofia, com vários

livros publicados e bem aplaudidos.

Dora cai repentinamente em si: “como ela fora ambiciosa, ao

contrário de mim”. Ela completara seus estudos, suficientes

para dar aulas em escolas e casar com Tomas, um talentoso

e requisitado marceneiro. Ao entrar no terraço ficou aliviada.

Era vivo, respirava natureza e disso Dora entendia.

Astrid rejeita o braço da enfermeira e pede o braço da amiga.

A passo de tartaruga dirige-se para a coleção de orquídeas,

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mas nada expressa. A angústia de Dora retorna. No dia

anterior haviam tomado chá e bolo como se nada houvesse

mudado. Hoje, Astrid estava imersa em um mundo envolvido

de brumas.

- “Será que ela sabe que está perdendo o juízo”?

Tentou ainda encontrar um ponto de contato, mas em vão.

Silenciosamente agradeceu a Deus por ter o privilegio de

ver orquídeas tão lindas! Deixou a amiga aos cuidados da

enfermeira, deu-lhe um beijo na testa e saiu. No carro, um

som estridente doía ainda: “Meus chinelos”! “Meus chinelos”!

Capítulo 2

A cada nova visita, sentada na poltrona florida, de tamanho

desproporcional às suas medidas avantajadas, as reflexões

de Dora transformavam-se em novos espaços vazios pedindo

por explicações. Ultimamente, uma delas , a mais insistente,

era sobre Deus, única resposta para aceitar porque sofria

tanto com o estado de demência da inseparável amiga. Do

fundo da memória desprendeu-se uma frase:

“ Se Deus é bom por que nos faz sofrer tanto?” dúvida já

expressa por Dostoievsky.

Astrid não seguia uma crença e negava todas enquanto

Dora, com fé, obedecia aos rituais e preceitos bíblicos. Os

pais da amiga eram russos, fugitivos da revolução de 1918,

ambos intelectuais. Filha única, falava perfeitamente o

russo, gostava de vodka e dançar à exaustão. Os pais de

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Dora emigraram da França para a Argélia atraídos pelo clima

ameno e as oportunidades oferecidas pelo governo francês.

O pai, gerente de contabilidade e a mãe cuidadora da família.

Enquanto Astrid crescia num lar liberto de convenções, Dora

crescia num lar recluso e silencioso. Astrid seguiu a carreira

acadêmica e Dora o magistério.

Os assuntos que Astrid discutia não eram os dela, mas o

prazer de ouvi-los era o mesmo que esquecer-se dos seus.

Capítulo 3

Hoje, Dora trouxe biscoitos com a intenção de reparti-los,

mas percebeu que não haveria conversa. Novamente sentada

na poltrona florida, imersa nas profundezas contraditórias da

dúvida, sobressaltou-a um pedido de perdão!

“Por que isso de repente”? Uma vaga sensação de dúvida

sobre a misericórdia de Deus instilava-se em seu espirito.

Precisava sair do quarto. Sem despedir-se, exaurida e

impotente perante tão grandes mistérios, dirigiu a caminho

de casa. Como um corte de lâmina afiado

perpassou fugitivo: “Não vou entender o mundo sem ela!

Astrid saberia explicar porque destas sensações. Ela sempre

sabia tudo”!

Decidiu encontrar as cartas escritas por Astrid para ela.

–“Lá talvez descubra alguma pista que me leve a entender

porque éramos tão amigas se tão diferentes uma da outra.”

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Capítulo 4

Lá fora, a primeira neve, por ser incipiente, colore de branco

os ainda galhos marrons. Alguns montinhos de neve, depois

de um tempo, caem para derreter-se em poças de água

gelada. A meteorologia prevê mais frio e nevoa intensa para o

final de semana.

Hoje, ao entrar no quarto superaquecido de Astrid,

encontrou-a sentada na “sua” poltrona florida, mais parecida

com um botão de rosa como o roupão que usava, da mesma

cor. Seus olhos de azul profundo brilhavam, uma xícara de

chá vazia na mesinha ao lado e os biscoitos que trouxera no

dia anterior no prato onde já faltavam alguns.

Astrid cumprimentou-a com um aceno de mão e lhe disse

que fazia tempo que não a via. Dora entendeu que ela a havia

convidado a sentar-se e oferecia chá e biscoitos. Dora não

contou que lá esteve todos os dias.

Forçou um sorriso pálido e respondeu que estivera ocupada

com o trabalho, a família, a casa. Só hoje conseguiu dar uma

escapada para visitá-la e que sim, aceitava chá e biscoitos.

“Que assunto abordar”? O resguardo para tal situação a

incomodava e decidiu informa-la sobre a meteorologia: do frio

esperado, da neve e vento. Levantou-se para verificar se ela

estava bem agasalhada, mostrou-lhe as galochas coloridas e

perguntou se não queria um par para ir passear no parque um

dia desses, que viria buscá-la, poderiam tomar um chocolate

quente e voltar. Com seu costumeiro sorriso maroto,

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confirmou o passeio. Para manter a conversa viva, Dora

perguntou se ela estava lendo e se gostaria que lhe trouxesse

o livro mais vendido do momento. Astrid aceitou a sugestão.

Aliviada, Dora encontrou o assunto que procurava. Começou

a contar a história. Astrid a ouvia atentamente indicando que

apreciava o conteúdo romântico de um homem e uma mulher,

cujo homem se apaixona por outra em um aeroporto. Viajam

para o mesmo lugar e fazem amor num quarto de hotel. A

história se passava nos Estados Unidos na época da guerra

do Vietnã. No final, ele volta para a primeira mulher, mas nada

mais dá certo na sua vida.

Dora não pôde continuar: a amiga cochilava! Tocou levemente

no seu braço, ela abriu os olhos e indagou se ela gostaria que

continuasse. Frente à sua impassibilidade, comeu o resto dos

biscoitos e lhe falou ao ouvido que terminaria a história outro

dia.

A caminho de casa, parou num bar.

-“ Há dias não me sinto tão bem”! Olhou pela janela e viu

um passarinho dando de comer para os seus filhotes e seu

pensamento voltou-se para a sua família.

O olhar de Dora continuou fixo no ninho de passarinho e

o café esfriou. Sentia alegria junto à família e seu lar. Ela

gostava de viver.

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Capítulo 5

Hoje Dora decidiu conversar com Lester e não subiu as

escadas para o quarto de Astrid. Encontrou-o na frente

de um copo de wisky que tomava em pequenos goles. As

cortinas listradas semicerradas, o sofá de veludo envelhecido

sobre um tapete “rapê, poltronas cobertas com tecido

de flores, móveis antigos sobre os quais se empilhavam

livros negligenciados, montes de papéis escritos e sobre

outros, mais livros entre máscaras africanas. Nas paredes,

reproduções de orquídeas e quadros de paisagens bucólicas.

Num canto, o busto em mármore de Sócrates circundado por

uma poltrona de leitura fortemente iluminada. O conjunto era

íntimo, confortável e cheirava a tabaco queimado.

Lester, era o simpático segundo marido de Astrid. Um inglês

de paletó xadrez e cachimbo eternamente apagado entre os

lábios, professor de Medicina aposentado.

A grande tristeza de Astrid foi a de não ter tido filhos. Dizia

ser feliz ao conviver com os filhos do marido e seus netos.

Dora observou que as plantas que ornavam as mesas

laterais da sala haviam sumido, ausente o antigo ar de sala

cuidada. Hoje era uma sala que abrigava um senhor de idade,

inconformado, sem saber o que fazer da sua vida de marido

de esposa ausente.

Dora pensou em falar de Astrid, mas, calmamente, predispôs-

se a ouvir. Lester lamentou a ausência dos filhos e amigos.

- Como recebê-los sem Astrid? A vida fugiu desta casa!

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Quanto tempo mais tudo isso vai durar? Dora sentiu um pesar

cortês e não respondeu. Sabiam que poderiam ser anos. Dora

arrepiou-se. “E se ele morrer antes dela”?

A noite caiu e a sala tornou-se tenebrosa.

Prometendo-se a fazer companhia a seu velho amigo,

suspirou e saiu, desta vez sentindo-se útil e participante

da doença de Astrid sem antes concluir que Lester está

necessitado de cuidados afetivos.

Dora ainda tinha um longo caminho a percorrer até chegar

em casa, a neblina começara a baixar, o jantar para a família

ainda por fazer.

Capítulo 6

No final de semana, Dora decidiu não sair de casa. Por uma

vez a informação meteorológica havia acertado: o tempo

piorou e, aproveitando a desculpa, permitiu-se voltar à sua

cozinha aos potes e cozidos, aos filhos, à horta e jardim e de

vez em quando espiar o marido assistindo ao jogo de golfe na

TV.

No domingo, antes de escurecer, desceu até o depósito à

procura das cartas. Não as achou e teve preguiça de procurá-

las. Lá embaixo fazia frio.

Percebeu-se inquieta.

- Amanhã volto para visitar Astrid, disse ao marido que

respondeu não ser razoável ir lá todos os dias. Retrucou que

era uma missão e pedia a Deus que a ajudasse a cumpri-la.

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O que não disse era que lá podia silenciosamente pensar

sobre si. Não julgou este sentimento nem ser uma traição ao

marido, à amiga ou a Deus para quem rezava todos os dias.

“Por que tantas indagações?” pensou com seus botões,

sentindo uma dor de cabeça crescente: “Amanhã sentarei na

“minha” poltrona e pensarei sobre isso”!

Foi dormir e dormiu bem!

Capítulo 7

O dia na casa de Dora começava cedo. A manhã prometia ser

ensolarada. Ao servir o café para a sua família, em mais uma

segunda feira normal, havia esquecido o assunto da noite

anterior; iniciou a viagem até a casa de Lester sem antes

passar no tintureiro e açougue.

Tinha a vaga sensação de ter esquecido alguma coisa.

Recuperou a dor de cabeça da véspera. Ela voltava sempre

que pensava em algo sem conseguir concluir. A casa dos

seus amigos estava com as cortinas da sala cerradas. A

empregada, de branco e preto, veio abrir a porta e Dora

imediatamente perguntou se algo havia acontecido.

- Não, não, Dra Astrid quis descer para fazer companhia ao

Doutor e pediu que eu preparasse o almoço para ambos. A

senhora fica?

- Mas porque as cortinas cerradas?

-Ah sim, a doutora não gosta de luz.

“Que tragédia, pensou baixinho: ela que amava a

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luminosidade pede para não ofuscá-la.”

- Sim, sim, gostaria muito de ficar para o almoço. Obrigada!”

Abriu cautelosamente a porta envidraçada do salão e ouviu

um grito de alegria ecoar até ela.

- “Quuuuuuerida! Há quanto tempo! Você me confina a esta

sala e à companhia deste amável senhor.”

“Meu Deus, exclamou Dora para si. Ela não reconhece o

marido ou, está ironizando o momento, sua especialidade.”

- Ele decidiu me convidar para almoçar, olhando

sedutoramente para Lester. Você me acompanha?

Dora fez um sinal afirmativo com o polegar. Nada importa

neste momento decidiu e, alegremente, sentou-se.

-Astrid, você está bem?

- Quem, eu? Por que a pergunta?

Embaraçada, Dora não soube responder de pronto.

- Todo mundo me olha de um jeito como se eu não estivesse

bem. Cochichando ao ouvido de Dora e, apontando o dedo

para Lester perguntou:

- ele também acha? Tem uma pessoa que fica comigo no

quarto, emendou, o tempo todo olhando para mim com o

mesmo olhar apreensivo do seu agora. Detesto que me olhem

com aquiescência como se eu estivesse louca. Detesto que

me peguem no braço como se eu fosse uma criança prestes

a rolar escada a baixo.

Provocativa, perguntou à amiga se também ela a considerava

doente. Jamais Dora ousaria lhe dizer que estava com

Alzeimer. Uma profunda tristeza vazia, a da perda, a alcançou.

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Retomou o monólogo falando sobre o final de semana,

programas de TV, escola dos filhos. Ela sentia-se bem por

estar ali, simplesmente presente, “ouvindo” o diálogo mudo

entre dois doentes. Um por solidão, outro por demência

progressiva.

Capítulo 8

Dora voltou no dia seguinte. Astrid estava no seu terraço

mexendo na terra, com suas grossas luvas, um chapéu de

abas e vestida com jeans e uma camiseta branca. Imortalizou

aquele momento.

“Ela está tão bem, ontem também, será que se enganaram

quanto ao diagnóstico?”

A enfermeira não estava por perto. Pairava a paz e nada havia

aparentemente mudado. Uma armadilha para quem, como

Dora, só sabia viver os fatos e a realidade.

- Astrid, começou Dora, dando-lhe um abraço próximo do

coração.

- Dora que bom que você veio, interrompeu Astrid.

“Eu sei que o meu diagnóstico é Alzeimer. Antes que tudo

se apague, você me daria meu anel de volta? Você gostava

do meu e eu do seu. Trocamos e dissemos que o anel

representava a nossa aliança. Preciso dele. Quando esfregá-lo

no meu dedo saberei que ainda estou por aqui. Entende?

Dora não pode impedir uma lágrima. Não sabia se estava

ofendida, se dolorosamente triste, ou claramente ciente que

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sua amiga estava partindo de perto dela.

- Claro, Astrid, o seu está em casa. Ontem amassei pão e o

tirei.

Abraçaram-se longamente e Dora chorou.

Saiu dali, sem fugir, mas com a certeza que tinha que ir

embora.

O anel simbolizava a amizade de jovens, os laços ligados por

uma vida pela frente. Ao romper o antigo contrato, ambas

haviam assumido os seus destinos. Ela, ao aceitar a troca,

rompeu um laço de dependência. No carro, olhou a sua lista

de supermercado e decidiu fazê-lo.

Capítulo 9

Dora não visitou a amiga por uns dias. Queria encontrar as

cartas e embrulhar o anel como um presente. Amarraria um

laço dourado. As cartas guardaria para sempre.

Cuidou de suas rosas e temperos. Pensou em seu marido e o

tempo que o deixou só, voltada para si, introspectiva.

Passou a tarde procurando as cartas. Fora a fiel depositária

dos sonhos, das ambições e angústias de sua amiga.

Encontrou-as na mesma caixa que continha o sapato que

compusera o seu primeiro vestido longo de formatura.

Sabia que Astrid a amava.

Voltando cuidadosamente as cartas lidas ao túmulo do

esquecimento, Dora repousou sua angústia no ordenamento

das coisas da vida.

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A cada final do dia sentava-se para tomar uma xícara de chá

quente.

Sua vida nada comparável à vida glamorosa da sua amiga,

resumia-se à cuidar de gente, bichos e plantas. Ao cuidar,

amava.

Capítulo 10

Hoje foi visitá-la. Encontrou, empalidecido, Lester que a

chamou com voz agoniada. Contou-lhe uma procissão

de dificuldades no trato com esposa, problemas a serem

resolvidos e, por fim, uma história de horror.

O médico lhe disse que o diagnóstico para Astrid não era

Alzeimer. Que, apesar dos sintomas parecidos, sua doença

foi causada por uma bactéria que se alojara no cérebro e o

destruía devastando a pessoa. Chama-se Jakob Creutzfeldt.

explica Lester.

“ Quer dizer que Astrid até na sua morte ficou ligada ao

especial, ao diferente. “

“Tenho que amparar Lester! Como?” Abraçou-o, deu-lhe uma

bebida forte.

Não lhe ocorreu nada a não ser calar-se e deixar destilar a

crua verdade para dentro do coração deles. “O médico me

garantiu que ela não sofre e não sofrerá pois terá a cada dia

menos memória. Ela vai nos deixar logo”!

“Quanto antes, melhor!” pensou Dora para logo em seguida

rechaçar a culpa por tal desejo.

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Não subiu para ver Astrid. No lugar, ficou bastante tempo

junto ao seu amigo, sentados no escritório submersos na

meia luz, o ambiente exalando cheiro de tabaco.

Ao fechar a porta atrás de si, a caminho da calçada, seu único

pensamento era dar uma parada no bar tomar um café com

bolo e observar se os passarinhos haviam feito seu ninho

para gestar novos filhotes. Voltou a pensar na misericórdia

de Deus que, se por um lado levava, de outro trazia a eterna

continuidade da vida. Os ovos estavam lá.

“Qual seria o pensamento de Astrid se a realidade fosse

inversa: ela morrendo?” Não soube responder.

Lágrimas de saudades molharam o guardanapo e com um

estranho alívio percebeu que não havia nada para indagar ou

entender. A morte não pede razão nem se desfoca perante a

dor.

Decidiu nunca mais duvidar da existência de Deus! Além

Dele, as estações do ano a guiavam neste seu périplo de

autoconhecimento. Vivia um momento de reflexão intensa e

transformação fervorosa.

Em casa relatou à família, em poucas palavras, o futuro de

sua amiga. Sentia-se bem em contar como passara a tarde

daquele dia.

Capítulo 11

Dora deixou de visitar a doente na hora da sua sesta. Hoje ela

esforçou-se para almoçar com Astrid e percebeu o quanto

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a mal já avançara. Ela segurava o garfo e brincava com a

comida. Esparramava-a no prato, voltava a juntá-la e assim

sucessivamente até que a enfermeira deu-lhe de comer na

boca. Pareceu à Dora que Astrid a havia reconhecido ao lhe

perguntar se lembrava das cores do deserto mas, percebeu

que ela não a ouvira e Dora respondeu para ninguém: - são as

cores que você escolheu para as paredes do seu jardim!

A enfermeira lhe confirmou que a doença havia afetado sua

audição.

Astrid levantou, com dificuldade, uma bengala na mão. Os

olhos embasados pelas lágrimas, Dora entendeu, naquele

momento, o que as separava.

Astrid não acreditava em destino, religião e Deus. Para ela,

nem a vida nem a morte faziam sentido! Nem o amor nem

a alegria. Acreditava no pensamento e razão. Na lógica e na

ciência. Ela, ao contrário amassava pão, seu marido gostava

de assistir futebol e os filhos, faziam bagunça: “Estou viva!

Estou deixando os domínios de Astrid.” Exclamou para si em

pensamento.

Ajudou a amiga a deitar-se na cama, leve como os

passarinhos fazendo o seu ninho, sentou na “sua” poltrona

florida e, vazia de qualquer reflexão preenchida com o

sentimento de liberdade, ficou até o sol desaparecer detrás

da grade do terraço levando as cores do deserto e da suas

infâncias. Por tempo sem medida, ficou olhando para aquela

criatura inerte, perdida em algum lugar desconhecidos para

os viventes. Ao sair, pairava a escuridão que desce quando

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não há vida impregnada nas paredes, portas e janelas de uma

casa. Era noite fechada quando chegou em sua casa.

Capítulo 12

Dora agradecia – escondida de Deus - o destino de Astrid.

Este lhe ofereceu a oportunidade de refletir a vida além da

cerca de sua pequena horta. Tinha certeza de que Conviviria

em paz com o mundo celeste e o mundo dos homens criando

para si um único universo, indivisível, sobre o qual reinava

Alguém que tudo comandava.

Seguia sua promessa de visitar Lester. A realidade prostrada

à sua vista, o havia tirado do torpor. As cortinas foram

abertas. As cores voltaram para o terraço. Havia flores no

vaso, a receita de biscoito de Astrid voltou a ser servida.

Entre o terminar da primavera e o outono, Astrid deixou de

falar, perdeu o controle de seus sentidos e movimentos, não

se alimentava. O seu fim, uma só agonia.

Um dia, as folhas amareladas já caídas no chão da entrada

da casa , seus olhos azuis pousaram sobre Dora que sentiu

um calafrio de corpo inteiro. Ela teve a sensação que eles

ainda a viam mas durou um piscar de olhos. Sem aviso, o

corpo de Astrid descontrolou-se, o rosto se contorceu caindo

desfalecida.

Uma injeção em seu braço fino como um graveto, prostrou-a.

Num relance absurdo, Dora lembrou da história de João e

Maria, João estendendo o osso de galinha para a malvada

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bruxa através das grades.

“Qual seria a prisão de Astrid”? Indagou-se.

Em frente ao seu café, no bar, olhou pela janela para averiguar

se os passarinhos ainda usavam o mesmo galho para

criar a sua “família”. Procurou, saiu para ver melhor, voltou

conformada que não estavam mais ali.

“Ou acharam um galho mais seguro ou morreram de frio e

fome.”

Nesta noite, Dora não preparou o jantar para a família. No

quarto chorou muito.

Capítulo 13

Dias depois , o telefone tocou e Astrid havia falecido. Dora

rezou. Subiu no seu carro mini couper verde, foi até a casa de

Lester. Chovia. A chuva chorava por ela. Na volta, não parou

no bar para tomar café e comer bolo.

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c bettina lenci, dez 2018

Todos os direitos reservados.

Proibida a reprodução total ou parcial

projeto gráfico Ciro Girard

revisão Áurea Rampazzo

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Bettina Lenci, nascida em 1945,

realizou-se tendo como

início profissional a história

da arte e a fotografia.

É uma empresária que descobriu

que lendo e escrevendo é possível

criar um mundo com um olhar

agudo sobre o cotidiano de todos nós.

Escreve regularmente

no seu blog Legado Vivo, onde se

encontram disponíveis esse e outros

livros de sua autoria.