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Page 1: Metodologia qualitativa de pesquisa - scielo.brscielo.br/pdf/%0d/ep/v30n2/v30n2a07.pdf · Metodologia qualitativa de pesquisa Heloisa Helena T. de Souza Martins Universidade de São

289Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 289-300, maio/ago. 2004

Metodologia qualitativa de pesquisa

Heloisa Helena T. de Souza MartinsUniversidade de São Paulo

Resumo

Este artigo apresenta reflexões sobre o que significa fazer ciênciano âmbito dos métodos e técnicas qualitativos da sociologia.Tem como pressupostos uma compreensão de metodologiacomo o conhecimento crítico dos caminhos do processo cientí-fico, que indaga e questiona acerca de seus limites e possibilida-des; e o reconhecimento de que todo conhecimento sociológicotem, como fundamento, um compromisso com valores. A pesqui-sa qualitativa é definida como aquela que privilegia a análise demicroprocessos, através do estudo das ações sociais individuaise grupais, realizando um exame intensivo dos dados, e caracte-rizada pela heterodoxia no momento da análise. Enfatiza-se anecessidade do exercício da intuição e da imaginação pelo so-ciólogo, num tipo de trabalho artesanal, visto não só como con-dição para o aprofundamento da análise, mas também — o que émuito importante — para a liberdade do intelectual. Discutem-seas principais críticas feitas à pesquisa qualitativa, em especial asacusações de falta de representatividade e de possibilidades degeneralização; de subjetividade, decorrente da proximidade entrepesquisador e pesquisados; e o caráter descritivo e narrativo deseus resultados. Neste contexto, reflete-se sobre os problemaséticos envolvidos nesse tipo de pesquisa, e retoma-se brevementea história que culminou com o predomínio do enfoque quantita-tivo, especialmente na sociologia norte-americana do pós-guer-ra. Em conclusão, o texto propõe que hoje o mais importante éproduzir um conhecimento que, além de útil, seja explicitamenteorientado por um projeto ético visando a solidariedade, a harmo-nia e a criatividade.

Palavras-chave

Sociologia — Metodologia qualitativa — Pesquisa sociológica.

Correspondência:Heloisa Helena T. de Souza MartinsFFLCH / USPDepto de Sociologiae-mail: [email protected].

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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 287-298, maio/ago. 2004290

Qualitative research methodology

Heloisa Helena T. de Souza MartinsUniversidade de São Paulo

Contact:Heloisa Helena T. de Souza MartinsFFLCH / USPDepto de Sociologiae-mail: [email protected].

Abstract

This article presents considerations about what it means to doscience within the context of qualitative methods and techniquesin sociology. It is founded on the conception of methodology asthe critical knowledge of the ways of the scientific process, aknowledge that questions and investigates its own limits andpossibilities, and also on the recognition that all sociologicalknowledge has at its basis a commitment to values. Qualitativeresearch is defined by its stress on the analysis of micro-proces-ses through the study of individual and group social actions,carrying out an intensive assessment of data, and characterizedby heterodoxy in the analysis. It emphasizes the need for theexercise of intuition and imagination by the sociologist, in a kindof handmade work, seen not only as a condition for an in-depthanalysis, but also – and that is very important – for the freedomof the intellectual. The main criticisms made against qualitativeresearch are discussed, especially the allegations of lack ofrepresentativeness and possibilities for generalization; ofsubjectivity due to the closeness between researcher andresearched, and the descriptive and narrative character of itsresults. Within this context, considerations are made on theethical problems involved in this kind of research, and a briefreview is made of the history that culminated in the dominanceof the quantitative approach, particularly in the postwar NorthAmerican sociology. The text concludes by proposing that it ismost important today to produce knowledge that, besides beinguseful, is also explicitly oriented by an ethical project aiming atsolidarity, harmony and creativity.

Keywords

Sociology – Qualitative methodology – Sociological research.

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As considerações aqui apresentadas par-tem, em larga medida, de meu lugar de soció-loga e de minha experiência na docência deMétodos e Técnicas de Pesquisa, disciplinaobrigatória do curso de Ciências Sociais, volta-da, sobretudo, à metodologia qualitativa depesquisa. Inicio, portanto, tratando de algunsconceitos que estarão presentes na minha argu-mentação.

Antes de mais nada é preciso esclarecerque metodologia é entendida aqui como o co-nhecimento crítico dos caminhos do processocientífico, indagando e questionando acerca deseus limites e possibilidades (Demo, 1989). Nãose trata, portanto, de uma discussão sobre téc-nicas qualitativas de pesquisa, mas sobre ma-neiras de se fazer ciência. A metodologia é, pois,uma disciplina instrumental a serviço da pes-quisa; nela, toda questão técnica implica umadiscussão teórica.

Outra distinção importante, extraída doestudo Fundamentos empíricos da explicaçãosociológica, de Florestan Fernandes (1959), é aque se deve estabelecer entre, de um lado,métodos técnicos ou métodos de investigação —ou seja, processos pelos quais a realidade éinvestigada, ou ainda, “as manipulações analíti-cas através das quais o investigador procuraassegurar para si condições vantajosas de obser-vação dos fenômenos” (Fernandes, 1959, p. 13)— e, de outro, métodos lógicos, isto é, os pro-cessos de formação das inferências e de expli-cação da realidade, que Florestan chama demétodos de interpretação.

Um rápido olhar pela história da socio-logia permite perceber que essa área do conhe-cimento foi sempre marcada pela necessidadede definir seu objeto com clareza e precisão,bem como de compreender como se aplicam osfundamentos da ciência e os princípios dométodo científico no campo sociológico. Oobjetivo dessa busca foi a superação das aná-lises impressionistas e extracientíficas acercadas sociedades e a valorização da ciência en-quanto forma de saber positivo, um discursointelectual diante da realidade, que pressupõe

“determinados procedimentos de obtenção,verificação e sistematização do conhecimento euma concepção do mundo e da posição dohomem dentro dele” (Fernandes, 1977, p. 50).

Tratava-se, fundamentalmente, da ne-cessidade de “fazer ciência”, segundo procedi-mentos do método científico. Reconhecendoque o “método é o mesmo em todos os ramosdo saber” (Fernandes, 1959, p. 54-55), os so-ciólogos tinham como tarefa realizar a transfe-rência desse método para a investigação dosfenômenos sociais. O objetivo era o de definirum método essencialmente sociológico que pu-desse dar conta do seu objeto. Isto porque a so-ciologia foi sempre apresentada como tendouma base científica frágil, em decorrência das di-ficuldades de tratamento de um objeto como oser humano, tão sujeito a modificações, comple-xo e que, principalmente, reage a qualquer ten-tativa de caracterização e previsão. Além do que,a análise do comportamento humano é feita porum observador humano falível e tendendo adistorcer os fatos.

Roberto Da Matta apresenta uma análi-se, na perspectiva da hermenêutica, da relaçãosujeito/objeto que considero interessante apre-sentar aqui. Segundo esse antropólogo, temosque considerar a “interação complexa entre oinvestigador e o sujeito investigado” que com-partilham, mesmo que muitas vezes não se co-muniquem, “de um mesmo universo de expe-riências humanas” (1991, p. 23). O que permi-te superar nossos preconceitos em relação ao“outro”, ao diferente, é a possibilidade de dia-logar com o nativo. É nessa possibilidade dediálogo que reside a principal diferença com asciências naturais e o seu objeto: o objeto dasciências sociais “é transparente e opaco” (p. 27),tem o seu ponto de vista, as suas interpretações,que muitas vezes colocam as nossas em xeque.

Assim, na sociologia, como nas ciênciassociais em geral, diferentemente das ciênciasnaturais, os fenômenos são complexos, nãosendo fácil separar causas e motivações isola-das e exclusivas. Não podem ser reproduzidosem laboratório e submetidos a controle. As re-

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construções são “sempre parciais, dependendode documentos, observações, sensibilidades eperspectivas” (Da Matta, 1991, p. 21). Mas, sepor um lado, isso tudo não inviabiliza a obser-vação, por outro, é preciso reconhecer que napesquisa sociológica não é possível ignorar ainfluência da posição, da história biográfica, daeducação, interesses e preconceitos do pesqui-sador (p. 22). Com isso quero deixar claro quepara mim, como para autores como Thiollent(1980) e Becker (1977), no trabalho de pesqui-sa sociológica, a neutralidade não existe e a ob-jetividade é relativa, diferentemente do queocorre no positivismo — do qual, aliás, partemmuitas das críticas feitas à metodologia qualita-tiva. Tem-se aqui, portanto, uma posição maispróxima à de Max Weber (1864-1920) do queà de Émile Durkheim (1958-1917). A sociologiaweberiana parte do reconhecimento de quetodo conhecimento sociológico tem, como fun-damento, um compromisso com valores. Aobjetividade, portanto, provém de critérios queserão definidos pelo pesquisador em relaçãoaos problemas que ele está investigando.

Assim, diante da diversidade de perspec-tivas, o “fazer ciência” não segue um únicomodelo ou padrão de trabalho científico. Aocontrário, a sociologia foi sempre marcada peladiversidade de métodos (e de técnicas) de in-vestigação e de métodos de explicação. Veja-mos de forma bastante simplificada, no níveldos métodos e técnicas qualitativos o que sig-nifica “fazer ciência”. É preciso esclarecer, antesde mais nada, que as chamadas metodologiasqualitativas privilegiam, de modo geral, da aná-lise de microprocessos, através do estudo dasações sociais individuais e grupais. Realizandoum exame intensivo dos dados, tanto em amplitudequanto em profundidade, os métodos qualitativostratam as unidades sociais investigadas como to-talidades que desafiam o pesquisador. Neste caso,a preocupação básica do cientista social é a estreitaaproximação dos dados, de fazê-lo falar da formamais completa possível, abrindo-se à realidadesocial para melhor apreendê-la e compreendê-la.Se há uma característica que constitui a marca

dos métodos qualitativos ela é a flexibilidade,principalmente quanto às técnicas de coleta dedados, incorporando aquelas mais adequadas àobservação que está sendo feita.

No final de Brancos e negros em SãoPaulo, de Florestan Fernandes e Roger Bastide(1959), há um plano de pesquisa no qual seregistra uma farta quantidade de métodos e téc-nicas utilizadas pelos autores (observação direta,observação participante, entrevistas, biografias,documentação de arquivo, etc.). Foi durante arealização daquela pesquisa que, pela primeiravez, na Universidade de São Paulo, um pesqui-sador trouxe os pesquisados para o interior dainstituição e criou um grupo de discussão so-bre o tema da pesquisa — iniciativa que faziaparte do processo de levantamento de dados.Assim, dependendo do problema sociológicoformulado, abria-se um campo extremamenterico de possibilidades de investigação — obvi-amente não isento de problemas, como se veráa seguir.

Outra característica importante da meto-dologia qualitativa consiste na heterodoxia nomomento da análise dos dados. A variedade dematerial obtido qualitativamente exige do pes-quisador uma capacidade integrativa e analíticaque, por sua vez, depende do desenvolvimentode uma capacidade criadora e intuitiva. A maiordificuldade da disciplina de métodos e técnicas depesquisa está na dificuldade de ensinar como seanalisa os dados — isto é, como se atribui a elessignificados — sendo mais fácil ensinar a coletá-los ou a realizar trabalho de campo. A intuiçãoaqui mencionada não é um dom, mas uma resul-tante da formação teórica e dos exercícios prá-ticos do pesquisador. Já no desenvolvimento doemprego de metodologias quantitativas, o que seprocura é justamente o contrário, isto é, contro-lar o exercício da intuição e da imaginação,mediante a adoção de procedimentos bem de-limitados que permitam restringir a ingerência ea expressão da subjetividade do pesquisador.

Obviamente, não se pretende aqui afir-mar que uma metodologia é superior à outra.Um cientista social não se forma enquanto tal

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se não souber lidar tanto com o instrumentalqualitativo quanto com o quantitativo. O uso deuma metodologia ou de outra dependerá mui-to do tipo de problema colocado e dos objeti-vos da pesquisa. Em certos momentos da his-tória de afirmação da sociologia como ciência,uma das metodologias teve predominância so-bre a outra, e é preciso entender o porquêdessas escolhas. O ponto principal que queroenfatizar, no que se refere especificamente àmetodologia qualitativa, é que com ela, a pes-quisa depende, fundamentalmente, da compe-tência teórica e metodológica do cientista so-cial. Trata-se de um trabalho que só pode serrealizado com o uso da intuição, da imagina-ção e da experiência do sociólogo (o que nãosignifica que no caso da metodologia quanti-tativa também não seja requerida a competên-cia: é que, neste caso, a formalização técnicaacaba dominando o pesquisador).

Em Sociologia como uma forma de arte,Robert Nisbet (2000) afirma a importância daimaginação e da intuição no trabalho sociológi-co. Para ele, muito do que se fez na sociologiaclássica teria a ver com procedimentos intelec-tuais que aproximam o sociólogo muito mais deum artista do que de um cientista social presoa regras metódicas. Certamente, Nisbet preservaas diferenças que há entre o conhecimento so-ciológico e o artístico. Para ele, porém, é impor-tante resgatar momentos em que foi grande aaproximação entre esses domínios e nos quais aintuição e a imaginação possibilitaram o desen-volvimento tanto de um quanto de outro. Umtrabalho assim entendido exige que o sociólogoafirme a sua responsabilidade intelectual atravésde um tipo de trabalho artesanal, visto não sócomo condição para o aprofundamento da aná-lise, mas também — o que é muito importante —para a liberdade do intelectual.

Principais críticas

Apesar da importância que essa concep-ção de sociologia e seus representantes alcança-ram na sociedade e na universidade, não falta-

ram críticas e restrições. A proximidade (ainda quemuitas vezes meramente física) entre o sujeito eobjeto do conhecimento, requisito metodológicocentral da metodologia qualitativa, favoreceria ocomprometimento subjetivo do pesquisador econduziria a trabalhos de caráter especulativo epouco rigorosos, arriscando, assim, a neutralidadee a objetividade do conhecimento científico. Eram,por isso, considerados estudos descritivos eexploratórios, devido às dificuldades de se che-gar a uma explicação resultante da comparaçãoe da generalização. Para muitos, tratava-se deestudos pré-científicos.

Um primeiro aspecto abordado pela crí-tica à metodologia qualitativa diz respeito àquestão da representatividade. Como essametodologia trabalha sempre com unidadessociais, ela privilegia os estudos de caso —entendendo-se como caso, o indivíduo, a co-munidade, o grupo, a instituição. O maior pro-blema, neste sentido, segundo os críticos, seencontraria na escolha do caso: até que pon-to ele seria representativo do conjunto de ca-sos componentes de uma sociedade?

A indagação acerca da representatividadeestá relacionada às possibilidades de generali-zação e se baseia na noção estatística de amos-tra. Pensar em amostra é reportar-se a um con-junto selecionado em determinada população,da qual seria representativo. A constituição daamostra deve ser casual, aleatória. É possível,por esse ponto de vista, medir o desvio daamostra em relação a determinada população eempregar coeficientes que indicam com preci-são a existência de distorções ou erros, bemcomo as possibilidades de efetuar uma genera-lização em direção à população. Entretanto, aose trabalhar com o caso, como garantir que oindivíduo escolhido ou a comunidade selecio-nada, por exemplo, são representativos do con-junto do qual fazem parte? Seja como for, doponto de vista estatístico, restarão sempre dú-vidas acerca da representatividade.

Um segundo problema comumente apon-tado diz respeito à subjetividade, que resulta daaproximação entre sujeito e objeto (empírico) do

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conhecimento, pesquisador e pesquisado. Há ummétodo, principalmente usado pela antropologia,mas também pela sociologia, denominado obser-vação participante, que dentre todos é o quemais levanta questões sobre aquela aproxima-ção. Em qualquer tipo de pesquisa, seja em quemodalidade ocorrer, é sempre necessário que opesquisador seja aceito pelo outro, por um gru-po, pela comunidade, para que se coloque nacondição ora de partícipe, ora de observador. Eé preciso que esse outro se disponha a falar dasua vida. Trata-se do que Bronislaw Malinowski(1978) chamava de “a necessidade de mergulharna vida do outro”, para que essa vida possa, emalguma medida, ser reconstituída.

Esse mergulho na vida do grupo e emculturas às quais o pesquisador não pertencedepende de que ele convença o outro da ne-cessidade de sua presença e da importância desua pesquisa. Para que a pesquisa se realize énecessário que o pesquisado aceite o pesquisa-dor, disponha-se a falar sobre a sua vida, intro-duza o pesquisador no seu grupo e dê-lhe li-berdade de observação. Esse mergulho na vidade grupos e culturas aos quais o pesquisadornão pertence, exige uma aproximação baseadana simpatia, confiança, afeto, amizade, empatia,etc. Para os positivistas, essa referência a sen-timentos é motivo para dúvidas a respeito docaráter científico do conhecimento produzido.Como é possível — dizem eles — fazer umapesquisa, garantir a objetividade e a neutralida-de, partindo-se de um relacionamento marca-do, por exemplo, pela amizade? Esse mal-estarpositivista gera uma constante acusação defalta de confiabilidade em relação a dadosobtidos a partir da relação entre pesquisador epesquisado marcada por sentimentos.

O antropólogo Sidney Mintz realizouuma pesquisa em Porto Rico com o objetivo deestudar as relações de trabalho na agroindústriado açúcar. Durante a pesquisa, Mintz manteveintenso relacionamento de amizade com umnativo, Taso, que se tornou seu principal infor-mante. Posteriormente, o antropólogo decidiuvoltar àquele país e fazer uma história de vida

daquele nativo.1 Como era de se esperar, algunscríticos fizeram sérias objeções ao trabalho,uma das quais, justamente, por se tratar de umrelato mediado pela amizade. Supunha-se que,ao fazer um relato da própria vida a Mintz,aquele nativo teria exposto ao amigo norte-americano apenas informações que preservassemjunto a ele uma imagem positiva acerca de simesmo, e teria omitido aquelas que, de algumaforma, pudessem abalar a amizade. Mintz publi-cou então um artigo para refutar essas objeções,afirmando que foi justamente por serem amigosque foi possível realizar a história de vida: “Foipor causa de sua inteligência, sua amabilidade eseu desejo de ajudar que ele me tornou seuamigo. Foi porque éramos amigos que me atrevia propor que, uma vez mais, trabalhasse comi-go. Porque éramos amigos, acredito, ele concor-dou” (Mintz, 1984, p. 52).

Abro aqui um parêntese nessas conside-rações sobre o método da história de vida parachamar a atenção para o fato de que em nos-sos dias ganhou grande expressão o movimentoda história oral, por meio de associações, con-gressos e publicações relacionados a ela, coma participação de sociólogos, antropólogos ehistoriadores. Há uma voga recente na qualinúmeros cientistas sociais se vêem como rea-lizadores de história oral. Deve-se, porém, fri-sar que quem faz história oral são os historia-dores. Cabe aos cientistas sociais obter os re-latos orais por meio de entrevistas, construirhistórias de vida, como sempre o fizeram. His-tória oral é um movimento voltado não à co-leta de documentos já produzidos, mas à ela-boração de novos documentos a partir de re-latos e entrevistas de informantes que não ne-cessariamente têm uma projeção na vida públi-ca ou alguma notoriedade, mas que se encon-tram em condições de relatar algo sobre suaparticipação na história. O recurso ao depoi-mento oral, como forma de construção dodocumento, tem levantado várias questões (e

1. Publicada com o título Worker in the cane. New Haven: Yale UniversityPress, 1960.

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objeções) que dizem respeito à memória. Areferência “às peças que a memória prega”baseia-se na compreensão de que entre o tem-po do acontecimento e o tempo presente dorelato o informante, a cuja memória se apela,viveu um conjunto de experiências que, decerta forma, orientam a visão que ele tem dopassado. Seu olhar presente para o já vivido sofrea interferência daquelas experiências; muitasvezes ele não espelha a “verdade” sobre a vidapassada, mas se limita a lembrar aquilo que elequer ou pode recordar, à luz das vivências maisrecentes. Nesse sentido, o informante estariafazendo interpretações, e não expondo a ver-dade. Essa é uma questão que freqüentementepreocupa os historiadores, que sempre reco-mendaram que se fizesse a crítica do dado, dafonte, do documento, para averiguar sua vera-cidade. Daí a constante desconfiança acerca daconfiabi-lidade de certos relatos.

É, portanto, sempre problemática essabusca de apreensão da verdade dos aconteci-mentos narrados por um informante. Como umapossibilidade de resposta a esse tipo de preocu-pação lembro a perspectiva teórica de CliffordGeertz (1978), segundo a qual os cientistassociais lidam sempre com interpretações, sendoque a por eles construída é a interpretação dainterpretação fornecida pela pesquisado: “por de-finição, somente um ‘nativo’ faz a interpretaçãoem primeira mão: é a sua cultura” (p. 25).

Outra crítica refere-se aos problemas téc-nicos relacionados à coleta, ao processamento eà análise dos dados no âmbito da metodologiaqualitativa. Também aqui os críticos apontampara dificuldades na coleta de informações, namedida em que ela depende da confiança esta-belecida entre pesquisador e pesquisado. Alémdisso, os métodos qualitativos exigem um gran-de investimento de tempo e pessoal bastantequalificado sociologicamente para essa tarefa,sobretudo considerando a ampla variedade dematerial a que se pode ter acesso. A imensamassa de dados obtida dificulta a organizaçãoe análise, fazendo com que a eficácia do estu-do dependa, sobretudo, da capacidade do pes-

quisador e da definição de caminhos para omelhor aproveitamento do material coletado. Deuma maneira geral, as críticas acentuam o caráterdescritivo e narrativo, além de ilustrativo que amaioria dos trabalhos apresenta, especialmentequando utilizam o método da história de vida.

Um quarto ponto importante das críticasdiz respeito à suposta impossibilidade de os re-sultados de uma pesquisa com base na meto-dologia qualitativa, especialmente os estudos decaso, servirem de base para generalizações. Aessa objeção se devem contrapor também osargumentos que expus anteriormente sobre oproblema da representatividade e do critérioestatístico. Não cabe, a meu ver, no uso dametodologia qualitativa, a preocupação com ageneralização, pois o que a caracteriza é oestudo em amplitude e em profundidade, visan-do a elaboração de uma explicação válida parao caso (ou casos) em estudo, reconhecendoque o resultado das observações são sempreparciais. O que sustenta e garante a validadedesses estudos é que “o rigor vem, então, dasolidez dos laços estabelecidos entre nossasinterpretações teóricas e nossos dados empíricos”(Laperrière, 1997, p. 375).

Questões éticas

A metodologia qualitativa, mais do quequalquer outra, levanta questões éticas, princi-palmente, devido à proximidade entre pesqui-sador e pesquisados. Ainda que a maioria dospesquisadores (especialmente os sociólogos) de-dique pouca atenção a essa questão, existeuma elaborada discussão — principalmente entreos antropólogos — que procura dar conta dosproblemas decorrentes da relação de alteridadeentre os dois pólos na situação de pesquisa.Refiro-me, particularmente, às possíveis conse-qüências para a vida de pessoas, grupos eculturas da presença (e da intromissão) de in-divíduos portadores de saber, estilo de vida ecultura diferentes. A presença de pesquisadores,muitas vezes disfarçada, pode envolver os ob-servados, pode manipulá-los de acordo com

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seus interesses e objetivos, introduzindo ten-sões, provocando rupturas. Segundo Zaluar(1986), o cientista social não deve esquecerque a relação que se estabelece entre o obser-vador e o observado é uma relação social epolítica.

Para o pesquisador, com muita freqüên-cia, o mais importante é a pesquisa a ser feita,e os outros são vistos como informantes, ouseja, devem estar a serviço dele para lhe forne-cerem os dados que lhe são fundamentais —“fundamentais”, na verdade, para a sua carrei-ra e não para a vida daquele grupo ou para osindivíduos que dele fazem parte. Ele se colocaacima dos outros, da mesma maneira, aliás,como a própria ciência, enquanto discurso ide-ológico, freqüentemente se coloca em relaçãoa tudo o mais: o saber científico é “o” conhe-cimento a partir do qual todos os outros sãoarticulados, entendidos e explicados. Essa prer-rogativa dá ao pesquisador e a seu trabalhouma força que ele nem sempre busca analisarou controlar.

Outro aspecto importante dessa discus-são reside no fato de que os cientistas sociaistendem freqüentemente a tomar como objetode investigação grupos sociais com os quaistêm alguma identificação política. Neste caso,temos que estar constantemente alertas, espe-cialmente quando usamos metodologia qualita-tiva, para que, em vez de cientistas, não nostransformemos em militantes de uma causa oude um movimento, que olham e procuram en-tender a realidade não como ela é, mas comogostaríamos que ela fosse. Esse tipo de conhe-cimento é expressão da ideologia e não daciência. Seja como cientistas (ou mesmo comoassessores), a nossa relação com o outro, quetambém é sujeito portador de um conhecimen-to, não deve ser marcada pela intenção defornecer uma direção, segundo um projetopolítico que é o nosso. Ou de olhar para o“nosso objeto” a partir de uma concepçãopolítica que, antes de permitir uma análiseobjetiva, nos leve a realizar avaliações. Temosque fornecer um conhecimento que ajude es-

ses sujeitos a se fortalecerem enquanto sujeitosautônomos, capazes de elaborar o seu projetode classe. Autonomia dos sujeitos pressupõe aliberdade no uso da razão. O papel dos cientis-tas deve ser, portanto, o de fornecer um conhe-cimento que ajude o outro a se fortalecercomo sujeito autônomo capaz de elaborar seupróprio projeto político. A autonomia dos su-jeitos pressupõe precisamente a liberdade nouso da razão. Não cabe ao cientista reforçarideologias existentes, mas fornecer instrumen-tos para desvendá-las e superá-las.

Um pouco de história

Gostaria de explicitar o ponto de vistacom o qual dialogo o tempo todo, isto é, olugar de onde partem essas críticas feitas àmetodologia qualitativa. Refiro-me aos cientis-tas sociais que, por influência da sociologianorte-americana, têm uma outra concepção dasociologia como ciência e das suas possibilida-des de compreensão da realidade social. En-quanto a metodologia qualitativa está muitomais voltada a aspectos micro-sociológicos, aorientação norte-americana que tem prevaleci-do volta-se para aspectos macro-estruturais ebusca um desenho de pesquisa que trabalhecom uma multiplicidade de casos. Defendem,assim, um padrão de investigação que recebeuo nome de Survey Research.

Esse movimento acentuou-se no perío-do posterior à Segunda Guerra Mundial e esti-mulou o predomínio dos métodos quantitativosde investigação. Duas grandes pesquisas, rea-lizadas nos Estados Unidos durante aqueladeflagração, serviram como matriz desse padrãode trabalho: uma, dirigida por Theodor Adorno(1903-1969), foi chamada de The AuthoritarianPersonality; outra, dirigida por Samuel Stouffler,denominada The American Soldier. Mas a influ-ência mais decisiva foi a do austríaco PaulLazarsfeld, radicado nos Estados Unidos após tersido convidado pela Fundação Rockefeller, dequem recebera uma bolsa de pesquisa. Ele idea-lizou a criação do Bureau of Applied Social

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Research, da Universidade de Colúmbia, uma es-pécie de multinacional de pesquisa que levouesse padrão de pesquisa para a Europa, no finaldos anos 1950, e depois para a América Latina.

Sob sua influência, passaram a ser reali-zadas pesquisas por encomenda de clientes,muitos dos quais eram agências do Estado nor-te-americano. Em sua maioria, atendiam a de-mandas mercadológicas e publicitárias, e eramsustentadas por financiamentos exteriores à uni-versidade. Nos anos 1960, por exemplo, 50% darenda da Universidade de Colúmbia provinhadesses contratos de pesquisa. Tal modelo atéhoje influencia boa parte das instituições depesquisa nos Estados Unidos. O próprio Adorno— que trabalhou nesse Centro de Pesquisa —entrou em conflito com essas práticas, quandose propôs a fazer a chamada “crítica dos clien-tes”, enquanto Lazarsfeld preconizava um “aten-dimento dos desejos do cliente” (Pollack, 1986,p. 58). Wright Mills (1959), que também esteveligado a esse Centro de 1945 a 1948, fez umareflexão crítica sobre aquele modelo em A ima-ginação sociológica.

Esse tipo de pesquisa retoma o modelo dasciências exatas e naturais. Lazarsfeld, que estudouFísica e Matemática, se aproximou das ciênciassociais por meio da estatística e de estudos rela-cionados com a psicologia social. Ele dizia que nãolhe interessavam os problemas que estava pesqui-sando, mas sim as técnicas a serem utilizadas. Oparadigma adotado era o de uma ciência asséptica,objetiva e, por isso, descomprometida com juízosde valor. A sociologia, enquanto ciência, aparecianão como resultado da “reflexão livre, a intuiçãoe a imaginação, mas da rigorosa aderência aosprocedimentos” (Nisbet, 2000, p. 115). Teve iní-cio, como acentua Nisbet, a primazia do mito dométodo. Sob a égide da neutralidade e da objeti-vidade científica, privilegiou-se a Survey Research,um conjunto de técnicas empíricas que se firmoucomo o único válido e aceitável, como forma dese opor ao ensaísmo e à ideologização do conhe-cimento sociológico.

Desse ponto de vista, a transformaçãometo-dológica ocorrida foi freqüentemente con-

siderada como a profissionalização da sociolo-gia, em oposição ao artesanato intelectual ou-trora predominante. O sociólogo (na universida-de, mas principalmente em centros de pesquisa)apropriava-se de um aparato instrumental mo-derno e cada vez mais sofisticado, que lhe ga-rantiria a realização de trabalhos consideradosrealmente científicos, discutidos e elaboradospor uma equipe de pesquisa, interdisciplinar, re-quisitando amplos recursos, incorporando a lin-guagem da informática e, principalmente, apre-sentando e publicando resultados importantíssi-mos... para a construção de sua carreira.

Nesse processo, o sociólogo relegou aoesquecimento questões fundamentais que esta-vam profundamente ligadas à emergência dasociologia, e que permitiram entendê-la “comouma reação ou resposta intelectual, ou mais es-pecificamente ideológica, às principais lutas so-ciais e políticas dos últimos duzentos anos, quefoi traduzida para um contexto acadêmico eprofissional” (Shaw, 1982, p. 31). À medida quea sociologia se afirma como profissão — e nãomais como vocação (idéia ligada às noções deofício, de artesanato) — o sociólogo profissio-nal, comprometido apenas com o desenvolvi-mento da ciência (e muitas vezes com os inte-resses de quem financiava a pesquisa), deixoude se preocupar com questões éticas relaciona-das ao uso de seu conhecimento tais como: aquem interessa o seu trabalho? Para quem tra-balha? Por que está desenvolvendo determina-do projeto de pesquisa? Quais as implicaçõesde seu trabalho?

Esse formalismo metodológico (tambémchamado de cientificismo ou de empirismo abs-trato) começou a ser criticado no final dos anos1950, mas foi mais intensamente contestadodurante os 60 e início dos 70 do século passa-do. A principal crítica relacionava-se ao fato deque o desenvolvimento do chamado ponto devista estatístico coincidiu com o crescimento deum compromisso ideológico da disciplina comdiferentes aspectos da ordem vigente. Sociólogoscomo Mills (1982), Nisbet (2000) e Dahrendorf(1966) apontaram os dilemas da sociologia que

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298 Heloisa H. T. de S. MARTINS. Metodologia qualitativa de pesquisa.

se debatia entre o empirismo abstrato e a gran-de teoria. Na realidade, a sociologia passou poruma crise, em decorrência da própria crise por quepassava a sociedade ocidental do após-guerra,bem como da tensão entre os sociólogos e ainfluência predominante do estrutural-funciona-lismo, como aponta Martin Shaw (1982, p. 38).

A própria retomada da metodologia qua-litativa nos anos recentes, especialmente aredescoberta da história de vida, a meu ver,resultou, por um lado, do predomínio de cor-rentes teóricas voltadas para a problemática dosujeito e da interpretação que ele faz de suasituação social e, de outro, pela crise do mar-xismo, pelo menos do questionamento dodeterminismo economicista e da afirmação deinterpretações dentro do materialismo históricoque buscam recuperar a problemática do indi-víduo, da pessoa singular, vendo-a como umsingular universal, como uma particularizaçãoda história humana (Sartre, 1966).

Ou ainda, a tentativa de ver o indivíduonão mais como objeto, mas como sujeito do co-nhecimento e da história. E o sociólogo, então,deixa de ser o intelectual preocupado com asua trajetória profissional e reaparece comoaquele comprometido com o destino da huma-nidade, realizando a promessa da sociologia(Mills, 1959).

Podemos dizer hoje, tanto no que se re-fere às ciências sociais quanto às ciências na-turais, que a concepção clássica de ciência temsido posta em discussão, visando uma recons-trução e desdogmatização. No plano episte-mológico, por exemplo, alguns filósofos con-testam se, de fato, pode-se atribuir à ciência afinalidade de descobrir a verdade sobre o mun-do empírico. Para um certo ponto de vista, aquestão não é a de discutir o que fazer a res-peito de nossas opiniões, idéias ou juízos devalor sobre a sociedade, mas, sim, de procurarfazer com que imagem que temos dela seja útilpara ela, ou seja, se somos capazes de desen-volver hábitos de ação permitindo confrontar arealidade, de maneira a garantir ganhos no sen-tido intersubjetivo, em criatividade, em solida-

riedade e de capacidade de ouvir todos aque-les que sofrem. O argumento é de que o dese-jo de objetividade deve ceder lugar ao desejode solidariedade.

Ou dito de outra maneira, se no momen-to do nascimento das ciências sociais no sécu-lo XIX a maior preocupação era, conforme omodelo das ciências naturais, neutralizar o maispossível os interesses políticos e éticos do ana-lista, para atingir mais facilmente a realidadeobjetiva ou a verdade, o que esses autores pre-conizam é que hoje o mais importante é pro-duzir um conhecimento além de útil, explicita-mente orientado por um projeto ético visandoa solidariedade, a harmonia e a criatividade(Pires, 1997).

A antropóloga francesa Yolande Cohen2

(1993) fala da importância dos movimentossociais para essa retomada de sentido, na me-dida em que os movimentos sociais passaram aexigir das ciências sociais uma outra posturadiante deles. A aproximação do pesquisador emrelação a seu objeto de pesquisa atende, antesde tudo, à necessidade de ele se colocar aolado dos movimentos sociais, realizando pesqui-sas que lhes sejam úteis. Tal compromisso, en-tretanto, não significa que o pesquisador nãotenha que zelar pelo caráter científico de suaprodução intelectual.

Observo, por fim, que a principal inspi-ração para uma retomada de sentido do traba-lho sociológico talvez venha do próprio WrightMills, cuja obra foi recuperada pelos críticos doformalismo metodológico, sobretudo a impor-tância que esse autor tem para a reafirmaçãoda imaginação sociológica — que ele tomavacomo uma qualidade do espírito e como umaexpressão do conhecimento sociológico quedeve ser transmitido para aqueles aos quais esseconhecimento interessa.

Por esse ponto de vista, todo conheci-mento deve ser dirigido a alguém ou a um gru-

2. Professora de História da Universidade de Quebéc, especialista emhistória das mulheres. Suas pesquisas se voltam principalmente para ahistória dos movimentos sociais e identitários na França e no Canadá du-rante o século XX.

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299Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 289-300, maio/ago. 2004

po que dele tem necessidade, e está relaciona-do ao que ele chamava de “política da verdade”— pela qual um conhecimento teria de se trans-formar em discurso político eficaz. Ao escrever,um autor deve preocupar-se com a possibilidadede que seu discurso venha a ser apreendido pelooutro que dele necessita. É isso que contribuirápara a difusão da imaginação sociológica — umasensibilidade, uma qualidade do espírito que cons-truirá um novo estilo de pensamento e uma nova

maneira de explicar o mundo que nos cerca. So-mente os cientistas sociais conseguem trabalharcom as categorias que permitem elaborar esse co-nhecimento; porém, uma vez que esse conheci-mento tenha algum sentido, ajudará a transformara maneira de pensar e de ser do público. Essa de-manda, a meu ver, está presente hoje em mui-tas das discussões que vêm se desenvolvendonas ciências sociais, especialmente nas que di-zem respeito à metodologia qualitativa.

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Recebido em 27.06.04Aprovado em 04.08.04

Heloisa Helena T. de Souza Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da USP. Publicou os livros O Estado e a burocratização do sindicato no Brasil (1989) e Igreja emovimento operário no ABC: 1954 -1975 (1994). Atualmente estuda o tema Juventude e Trabalho.