método complexo e desafios da pesquisa

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  • Mtodo complexo e desafios da pesquisa*

    Maria da Conceio de Almeida

    A Vontade de Ordem

    O que uma pesquisa cientfica? olhar o que ningum olhou, ver o que

    ningum viu? olhar o que outros j olharam e ver o que no viram? olhar o que j

    olharam, ver o que j foi visto e articular dimenses que no foram compreendidas?

    observar sistematicamente novos indcios sobre fenmenos j estudados com vistas a

    compreender suas transformaes?

    Mesmo que oscile entre esses postulados, a pesquisa pode ser considerada como

    uma atividade de ponta na construo de narrativas cientficas sobre os fenmenos do

    mundo, sejam esses fenmenos fsicos, metafsicos, culturais, microscpicos ou

    macroscpicos. por meio dessa atividade que os conhecimentos acumulados so

    ampliados, transformados, ganham historicidade e se mantm vivos porque em

    permanente metamorfose.

    De uma perspectiva antropolgica, isto , no que diz respeito s aptides

    humanas de duplicar e representar o mundo, imputar sentido s coisas e relacionar

    informaes, a pesquisa emerge da curiosidade e do desejo de ordenar o caos. Perguntar

    e responder por que e como as coisas so como so, bem como estabelecer causas,

    dinmicas, direes e durao dos fenmenos configuram, juntos, o horizonte maior da

    atitude investigativa nos humanos. Tal atitude, que ganha contextos e contornos

    diferenciados na produo da cincia, excede a esse domnio uma vez que alimenta

    tambm outras constelaes narrativas e estticas do pensamento, como a especulao

    filosfica, os mitos e a arte. Bem-vistas as coisas, poder-se-ia afirmar que, no domnio

    da cincia, a pesquisa a metamorfose, em patamares hiper-complexos, da curiosidade

    e da vontade de ordem que esto na base da condio humana.

    Como toda construo humana, entretanto, a concepo do que venha a ser

    pesquisa vai mudando de acordo com o desenvolvimento histrico da cincia, articulado

    ao surgimento de problemas e fenmenos que exibem uma face nova, ou at ento

    impossvel de ser concebida. Certamente os princpios que orientavam o tratamento

    sistemtico de um tema ou problema no tempo de Ren Descartes diferem,

    * ALMEIDA, Maria da Conceio de. Mtodo complexo e desafios da pesquisa. ALMEIDA, M.C.;

    CARVALHO, E.A. Cultura e pensamento complexo. Natal: EDUFRN, 2009. p. 97-111.

  • 2

    fundamentalmente, dos princpios em construo hoje no cenrio de uma cincia

    complexa e transdisciplinar. Estamos, sobretudo a partir das primeiras dcadas do

    sculo passado, a viver o tempo de uma bifurcao no que diz respeito ao modo de

    articular informaes para construir conhecimento. Tal bifurcao se afasta das posturas

    estritamente analticas do velho paradigma do Ocidente, que consagrou os mitos da

    neutralidade cientfica e da separao entre sujeito e objeto, e elegeu a sequncia

    observao/demonstrao/verificao/experimentao/comprovao como o modelo

    padro para compreender a realidade.

    A vontade de impor ordem ao caos, to importante nas narrativas mticas e

    cientficas, por vezes se converte em sentimento de ordem. Essa converso da vontade

    em sentimento ocorre de forma anloga ao que acontece com a ideia de verdade quando

    se transforma em sentimento de verdade, conforme discute Edgar Morin no Mtodo 3

    (1999, p. 160-162). Assim, durante a consolidao das cincias modernas nascidas no

    sculo XVII uma obsesso pela procura da ordem se estabelece como um princpio

    inegocivel do sujeito cognoscente. No percebida como uma construo do

    pensamento, a ordem passou a ser compreendida como uma evidncia, o que acaba por

    oferecer ao cientista uma paz infinita, alegria infinita, como fala Morin (1999). Para

    ele,

    em Descartes, a evidncia nasce do acordo estabelecido entre a Ordem do

    Esprito (as ideias claras e distintas) e a Ordem do Universo. Pode ser mesmo

    que, na base de todo conhecimento intelectual, a harmonia que parece estabelecer-se por adequao entre o intelecto e a coisa (definio clssica de verdade) comporte o sentimento de evidncia (MORIN, 1999, p. 162).

    Mas isso no tudo. Como desdobramento e ampliao do sentimento de ordem

    e de defesa da evidncia, dois cenrios passam a estabelecer o protocolo padro das

    prticas investigativas. Problematizaremos agora esses cenrios.

    O primeiro cenrio diz respeito suposio de uma realidade imutvel,

    autnoma e independente do observador. Dessa perspectiva, seriam suficientemente

    boas e rigorosas tcnicas de observao e experimentao para que o fenmeno deixe

    aparecer a ordem que lhe subjacente. Ora, toda observao datada e apenas permite

    expor o momento atual da dinmica de um fenmeno sob certas circunstncias e

    contextos. As coisas e os fenmenos tm uma histria, evoluem, se transformam em

  • 3

    parte, se auto-organizam intrinsecamente ou auto-eco-organizam-se. Da porque toda

    generalizao perigosa, uma vez que , quase sempre, uma ampliao indevida das

    escalas de tempo e espao em relao a uma situao fenomnica parcial, eventual. A

    pesquisa, nesse sentido, um artifcio cognitivo que congela e paralisa

    momentaneamente o real, como condio para construir narrativas interpretativas.

    Quanto ao real fenomnico, ele mesmo continua seu fluxo, sua histria, sua evoluo.

    Assim como para Edgar Morin, essa concepo tambm est na base do pensamento de

    Ilya Prigogine, para quem at mesmo nas cincias fundamentais h um elemento

    temporal, narrativo, e isso constitui o fim das certezas (PRIGOGINE, 2001, p. 16).

    Mais que isso, diz Prigogine, h criatividade no seio da natureza, sendo a criatividade

    humana uma emergncia da criatividade geral. No contexto do pensamento complexo e

    das cincias da complexidade, a atividade da pesquisa s poderia ser, ento, um

    dilogo com a natureza (PRIGOGINE, 2001) e nunca a dissecao de um cadver, de

    um fragmento morto, sem vida e inerte.

    O segundo cenrio se caracteriza pela supervalorizao da redundncia e da

    repetio dos fenmenos, o que significa suprimir ou reduzir a importncia da

    desordem, da variao e dos desvios. Na grande maioria das pesquisas cientficas, as

    metodologias e tcnicas de abordagem se restringem a delimitaes apriorsticas de

    categorias e variveis que tm por finalidade captar a dinmica geral e o padro dos

    fenmenos estudados. O auxlio de tcnicas estatsticas que tratam com preciso do

    desvio padro, dos coeficientes de representatividade e da reduo do erro

    compreendido como verdadeiro passaporte para a constatao de como o fenmeno

    e se desenvolve. Se tais tcnicas de aferir a invarincia so proveitosas para

    determinados fenmenos de baixa complexidade, elas no permitem compreender os

    fluxos de vida dos sistemas complexos, que operam longe do equilbrio (PRIGOGINE,

    2001). Ordem-desordem, padro-desvio, repetio-variao so pares indissociveis,

    conforme as cincias da complexidade. E mais. Em se tratando de fenmenos culturais,

    sobretudo o que se apresenta como marginal e desviante (portanto o que as pesquisas

    obcecadas pela ordem e pelo padro no levam em conta) que se constitui em provvel

    tendncia que se tornar padro no futuro. A histria humana est repleta de exemplos a

    esse respeito: pequenos grupos minoritrios com novas ideias religiosas, morais, ticas

    ou ecolgicas (exemplificados por Jesus Cristo, Gandhi e pelos movimentos feministas

    e ecolgicos nas dcadas de 1960 e 1970) ajudam a visualizar a importncia do desvio e

    da desordem na histria humana.

  • 4

    De forma ousada, Ilya Prigogine amplia esse argumento. Sem reduzir a fora do

    que coletivo, ele d destaque s aes individuais, ao no previsvel e ao inesperado.

    O papel dos pilotos britnicos foi crucial para decidir o desfecho da Segunda Guerra

    Mundial. Para Prigogine, vivemos tempos de incerteza, de flutuaes e os dados no

    foram lanados. Da porque as aes individuais continuam a ser essenciais

    (PRIGOGINE, 2001, p. 19-20). Ser que os historiadores seriam capazes, na poca da

    Segunda Guerra, de prever o papel dos pilotos britnicos? Certamente, no. Sempre

    haver o imprevisto, o inacessvel, o desvio e a desordem que impulsionam novas

    ordens. Conceber a realidade a partir dessa perspectiva pode reduzir a iluso de que a

    pesquisa um raio X da histria da matria, da vida, dos fenmenos, das sociedades, do

    homem.

    Dois importantes fragmentos da obra de Edgar Morin exibem com vigor alguns

    pontos crticos no que se refere concepo da ordem e da prtica de pesquisa movida

    pelo pensamento complexo. O primeiro fragmento discute a dialgica constitutiva da

    trindade ordem-desordem-complexidade e abre a segunda parte do livro Cincia com

    conscincia em sua edio portuguesa (1982). O segundo fragmento inicia o captulo III

    do livro Sociologia, em sua edio espanhola (1995) e expe as reflexes do autor sobre

    uma pesquisa na comunidade de Plozvet no ano de 1960. Vamos por partes.

    Para Alm da Ordem

    Por meio da metfora dos trs olhares, Morin (1982) sintetiza a evoluo das

    cincias da matria, da vida e do homem em suas relaes com a ordem e a desordem.

    Quanto s cincias da matria, diz o autor, o primeiro olhar s percebe a desordem: ao

    olhar para o cu, vemos um amontoado de estrelas dispersas ao acaso. Olhando uma

    segunda vez, percebemos

    uma ordem csmica, imperturbvel cada noite, aparentemente desde sempre, e para sempre, o mesmo cu estrelado; cada estrela no seu lugar; cada planeta realizando seu ciclo impecvel. Mas vem um terceiro olhar: vem

    porque h injeo de uma nova e formidvel desordem nessa ordem; vemos

    ento um universo em expanso, em disperso; as estrelas nascem, explodem,

    morrem. Esse terceiro olhar exige-nos que concebamos conjuntamente a

    ordem e a desordem (MORIN, 1982, p. 71).

  • 5

    Quanto s cincias da vida,

    primeira vista, era a fixidez das espcies, reproduzindo-se impecavelmente,

    de forma repetitiva ao longo dos sculos, dos milnios, numa ordem

    impecvel. E depois, ao segundo olhar, parece-nos que h evoluo e revoluo. Como? Por irrupes do acaso, acidentes, perturbaes

    geoclimticas e ecolgicas... e eis-nos confrontados com a necessidade de um

    terceiro olhar, isto , de pensar conjuntamente a ordem e a desordem para

    conceber a organizao e a evoluo vivas. Quanto histria humana,

    inversamente, o primeiro olhar no foi o da ordem, mas o da desordem. A

    histria foi concebida como a sucesso de guerras, de atentados, de

    assassinatos, de conspiraes, de batalhas: foi uma histria shakespeariana,

    marcada pelo sound and fury. Mas veio o segundo olhar, nomeadamente a

    partir do sculo passado [XIX], no qual se descobrem determinismos

    infraestruturais, no qual se procuram as leis da histria, no qual os

    acontecimentos se tornam epifenomenais, e, muito curiosamente, desde o sculo passado as cincias antropossociais, cujo objetivo todavia

    extremamente aleatrio, esforam-se por reduzir o acaso e a desordem,

    estabelecendo, ou julgando estabelecer, determinismos econmicos,

    demogrficos, sociolgicos (MORIN, 1982, p. 71).

    V-se, assim, que enquanto as cincias naturais descobrem e tentam integrar a

    desordem ordem, as cincias humanas tentaram expulsar a primeira. A partir dessa

    concluso, Edgar Morin (1982, p. 72) sugere a necessidade de conceber um quarto

    olhar, um novo olhar, isto , um olhar dirigido para o nosso prprio olhar, como muito

    bem disse Heinz von Foerster. Esse quarto olhar diz respeito a uma nova concepo de

    ordem e ao fato de nos incluirmos em nossa viso de mundo. O conceito de ordem no

    simples nem monoltico, diz Morin. A noo de ordem ultrapassa pela sua riqueza e

    diversidade o antigo determinismo e as ideias de leis imutveis, estabilidade,

    constncia, regularidade, repetio, estrutura. Isto significa dizer que a ordem se

    complexificou; que h vrias formas de ordem. Ela j no annima e geral, mas est

    ligada a singularidades (MORIN, 1982, p. 72-73). A nova ideia de ordem apela s

    noes de organizao, interao, sistema e, sobretudo, apela para o dilogo com a

    ideia de desordem.

    Compreende-se pois que o conceito de ordem relativizou-se. Complexificao e

    relativizao andam juntas. J no existe mais ordem absoluta, incondicional, eterna

    (MORIN, 1982, p. 73). Quanto desordem, tambm ela transformou-se e ultrapassa a

    contingncia do acaso, embora o comporte.

    Direi mesmo que a ideia de desordem mais rica do que a ideia de ordem,

    porque comporta necessariamente um polo objetivo e um polo subjetivo. No

    polo objetivo ela se manifesta nas agitaes, disperses, irregularidades,

  • 6

    instabilidades, perturbaes, encontros aleatrios, acidentes, desorganizaes,

    rudos e erros (MORIN, 1982, p. 74).

    No polo subjetivo ela se expressa pela indeterminabilidade e incerteza prprios

    dos sistemas complexos e do esprito humano.

    No possvel ento conceber ordem sem desordem, nem desordem sem ordem.

    Um universo que fosse apenas ordem seria um universo sem devir, inovao, criao.

    Do mesmo modo, um universo que fosse apenas desordem no conseguiria construir

    organizao, portanto seria incapaz de conservar a novidade, evoluir e se desenvolver,

    argumenta Edgar Morin.

    Essa longa referncia dialgica que constitui o par ordem-desordem abre o

    caminho para a construo do tetragrama ordem-desordem-interao-organizao,

    operador cognitivo importante do mtodo complexo arquitetado por Morin. Tal

    tetragrama, longe de prefigurar um modelo pragmtico para a construo do

    conhecimento pela pesquisa, requer e depende de um sujeito capaz de compreender e

    pr em ao a dialgica entre organizao e ambiente, objeto e sujeito. Do ponto de

    vista das cincias da complexidade, estamos diante de uma reconsiderao do que seja o

    campo do conhecimento.

    O campo real do conhecimento no o objeto puro, mas o objeto visto,

    percebido e co-produzido por ns. Essa fenomenologia a nossa realidade de

    seres no mundo. As observaes feitas por espritos humanos comportam a

    presena ineliminvel da ordem, desordem e organizao nos fenmenos

    microfsicos, macrofsicos, astrofsicos, biolgicos, ecolgicos,

    antropolgicos etc. O nosso mundo real o de um universo do qual o observador nunca poder eliminar as desordens e de que nunca se poder

    eliminar a ele mesmo (MORIN, 1982, p. 78).

    Para Morin (1982, p.79), se dessas ideias no possvel inferir uma lio direta

    nem uma receita pragmtica,

    H contudo um convite direto a romper com a mitologia ou a ideologia da

    ordem. A mitologia da ordem no est s na ideia reacionria segundo a qual

    toda inovao, toda novidade significa degradao, perigo e morte mas est

    tambm na utopia de uma sociedade transparente, sem conflito e sem

    desordem.

  • 7

    Essas consideraes nem de longe permitem inferir abstraes desencarnadas de

    um intelectual desprovido da experincia da pesquisa. Assim como no ope vida e

    ideias, assim tambm Morin (1969) no separa suas reflexes epistemolgicas sobre o

    mtodo e o pensamento complexo de suas investigaes pontuais. o caso, por

    exemplo, das pesquisas sobre o rumor de Orlans (que trata do desaparecimento

    misterioso de moas dos provadores de roupas em lojas de comerciantes judeus); ou

    sobre o comportamento da juventude francesa; ou junto comunidade de Plozvet em

    1965, a partir da qual discute a questo do mtodo e das tcnicas de abordagem na

    pesquisa de campo.

    O Mtodo Vivo

    curioso observar como a construo dos seis volumes de O Mtodo o

    primeiro volume publicado em 1977 parece estar em perodo de incubao na

    pesquisa empreendida por Edgar Morin doze anos antes, na comunidade de Plozvet.

    No livro Sociologia (1995), um Edgar pesquisador-de-campo expe a dupla face do

    mitolgico Jano quando religa a prtica etnogrfica (observao, registros em dirio de

    campo, entrevistas, questionrios, gravao) com uma reflexo epistemolgica sobre os

    labirintos da investigao. A perspectiva da qual parte nosso Jano-Edgar difere,

    substancialmente, dos postulados de uma

    sociologia dominante que reduz a sociedade exclusiva noo de sociedade

    ps-industrial, circunscreve o singular concreto em monografias descritivas e

    elimina pura e simplesmente o eventual, considerando-o como acidente,

    como contingente que precisa ser descartado para conceber a verdadeira

    realidade social, que tende repetio, regularidade, ou seja, estrutura

    (MORIN, 1995, p. 186).

    O eventual, no sentido de acontecimento ou fenmeno minoritrio e no regular,

    tem uma importncia crucial para a abordagem do processo de mudana social, segundo

    Morin. Ele um teste ativo sobre o sistema no qual atua, ao mesmo tempo em que

    intervm de forma mltipla e decisiva na histria humana. Aquilo que era excludo

    como insignificante, impondervel ou estatisticamente minoritrio, aquilo que perturba

    a estrutura ou o sistema, tudo isso para ns extremamente significativo como

    revelador, desencadeante, enzima, fermento, vrus, acelerador, modificador (MORIN,

    1995, p. 189).

  • 8

    exemplar a narrativa detalhada sobre como o grupo de pesquisadores fazia uso

    de tcnicas de abordagem denominadas por Morin de vias de aproximao da realidade

    (observao fenomenogrfica, entrevistas e participao nas atividades da comunidade,

    exibio de filmes etc.). Uma leitura superficial desse fragmento do livro Sociologia

    tenderia a ver ali uma receita de como fazer pesquisa de campo em comunidades.

    Sabemos, lamentavelmente, que so centenas os livros de receitas de pesquisa em todas

    as reas do conhecimento. Nas cincias sociais esses manuais de metodologia causam

    fascnio, so consumidos fartamente e se constituem em lucro editorial certo. Distante

    da receita, entretanto, a centralidade da narrativa de Morin se situa na exposio de

    elementos reflexivos sobre os limites de uma sociologia paradigmatizada, monoltica e

    inflexvel em suas prticas investigativas. Falando sobre o dirio do pesquisador, dir:

    O dirio no uma acumulao de notas, uma relao que, por si mesma,

    comporta uma rememorao em cadeia de fatos registrados

    inconscientemente (impresses, sentimentos), que pode ser um segundo olhar

    do prprio observador, uma matria que permite iludir a relao observador-

    fenmeno, quer dizer, elucidar o problema-chave de todo esforo de

    objetivao: o par sujeito-objeto da investigao (MORIN, 1995, p. 195).

    Autocrtica dos pesquisadores em equipe, avaliao permanente dos roteiros e

    caminhos previstos, iniciativa, flexibilidade, participao afetiva e, sobretudo, o uso da

    sensibilidade pessoal, so apostas e riscos das investigaes multidimensionais. Na base

    dessas apostas est um mtodo que permite o desenvolvimento de um pensamento apto

    a ir do singular concreto totalidade na qual se integra, e vice-versa (MORIN, 1995, p.

    192). Da porque a observao dever ser simultaneamente panormica e analtica.

    Fazendo uso da literatura, estratgia narrativa habitual em toda sua obra, Edgar

    Morin usa aqui imagens preciosas para falar do pesquisador e das pesquisas. Para ele,

    precisamos atuar por vezes como Balzac (descrio enciclopdica da realidade), por

    vezes como Stendhal (observar o detalhe significativo). Nesse panorama, perde sentido

    a oposio entre micro e macropesquisa. Pergunta Morin (1995, p. 204): um

    paradoxo afirmar que quanto mais particular um estudo, mais geral deve ser?.

    Prxima a uma cincia do sensvel, a atitude fenomenolgica expe o horizonte

    das investigaes alimentadas pelo pensamento complexo. Se trata, portanto, a partir

    de um impulso fenomenolgico, de oferecer alimento teoria e ao concreto, ambos

  • 9

    correlativamente atrofiados, subdesenvolvidos, sufocados numa middle range entre a

    teoria e o concreto, pobre de uma e mutilada da outra (MORIN, 1995, p. 187).

    Um mtodo vivo, em permanente reconstruo, capaz de articular objetividade e

    subjetividade. Princpios gerais que apelam e exigem criatividade, sensibilidade e

    inventividade do pesquisador, ao mesmo tempo em que permitem distinguir rigidez de

    rigor cientfico. Essa pode ser uma sntese provisria sobre o desafio do mtodo

    complexo na atividade de pesquisa. E mais: longe do divrcio entre teoria e prtica,

    pesquisa fundamental e pesquisa aplicada to a gosto das agncias de fomento

    pesquisa oportuno escutar mais uma vez Edgar Morin (1995, p. 206): quanto mais

    emprica a investigao, mais reflexiva ela deve ser.

    Criatividade e Mtodo

    Sinalizo agora para argumentos centrais sobre a questo do mtodo, das

    metodologias e das tcnicas de pesquisa. Limito-me a duas referncias do autor nos

    volumes 1 e 3 de O Mtodo. Lemos na primeira obra que o mtodo

    Ope-se concepo dita metodolgica, na qual se reduz a receitas tcnicas. O mtodo cartesiano inspira-se num princpio fundamental ou

    paradigma. Mas aqui [no mtodo complexo] a diferena reside precisamente

    no paradigma. J no se trata de obedecer a um princpio de ordem (que

    exclui a desordem), de clareza (que exclui o obscuro), de distino (que

    exclui as aderncias, participaes e comunicaes), de disjuno (que exclui

    o sujeito, a antinomia, a complexidade) isto , a um princpio que liga a

    cincia simplificao lgica. Trata-se, ao contrrio, a partir de um princpio

    de complexidade, de ligar o que estava disjunto (MORIN, [1979?], p. 26).

    No Mtodo 3, Edgar Morin mais enftico ao fazer a distino entre mtodo e

    metodologia.

    Deve-se lembrar aqui que a palavra mtodo no significa de jeito nenhum

    metodologia? As metodologias so guias a priori que programam as pesquisas, enquanto que o mtodo derivado do nosso percurso ser uma ajuda

    estratgia (a qual compreender ultimamente, certo, segmentos

    programados, isto , metodologias, mas comportar necessariamente

    descoberta e inovao). O objetivo do mtodo ajudar a pensar por si mesmo

    para responder ao desafio da complexidade dos problemas (MORIN, 1999, p.

    38).

  • 10

    A construo propositiva do mtodo complexo de Morin inaugura uma

    concepo que permite diferenciar duas significaes do termo mtodo no interior do

    conhecimento cientfico. Assim, quando falamos de mtodo como programa (sequncia

    pr-estabelecida de passos que devem ser respeitados na investigao), estamos nos

    referindo ao mtodo cientfico que emerge do paradigma da cincia cartesiana, da

    fragmentao. Quando falamos de mtodo como estratgia (flexibilidade e mudana

    nos roteiros iniciais em funo da dinmica do tema ou da realidade observada), nos

    referimos ao mtodo complexo que diz respeito a uma cincia em construo.

    estratgia que apela o pensamento complexo. A criao de vias de

    abordagem (expresso que substitui metodologias para Morin) o que se espera do

    sujeito sensvel complexidade do tema ou fenmeno que quer conhecer, com o qual

    quer dialogar. Aqui, certamente, o pesquisador abre mo dos cardpios de receitas

    oferecidos pelos manuais de pesquisa para criar suas prprias estratgias de abordagem,

    seus operadores cognitivos. Produzir um conhecimento pertinente o que se espera

    dele: relacionar o fragmento e o contexto, o local e o global a arte esperada das

    pesquisas multidimensionais e complexas. Esta a razo pela qual a investigao local

    exige tambm muita estratgia, inveno e, se quer ser cincia, tambm deve ser arte

    (MORIN, 1995, p. 185).

    Pesquisa como Religao de Saberes

    Seria no mnimo contraditrio discutir os desafios da pesquisa de base complexa

    e multidimensional sem ter experimentado esses desafios. , pois, com a inteno de

    expor outras apostas, riscos e desafios que fao referncia a uma pesquisa desenvolvida

    por mim, Wani Pereira e uma equipe flutuante de doutorandos, mestrandos e alunos de

    graduao desde o ano de 1986. Estou convencida de que, ultrapassando a noo

    paradigmtica da pesquisa cientfica, esse um projeto de vida. O contexto de

    referncia emprica o cenrio da Lagoa do Piat (no estado do Rio Grande do Norte),

    seus habitantes, o ecossistema local, a vulnerabilidade climtica, as mudanas na

    atividade pesqueira e os saberes tradicionais sobre o ambiente, a histria do lugar, a

    medicina natural etc. Uma contextualizao e a histria crtica da pesquisa encontra-se

    em Almeida e Pereira (2006).

    Como um laboratrio vivo que instiga produo de conhecimentos novos e

    reflexo sobre a cincia nas reas da biologia, cincias mdicas, histria, literatura,

  • 11

    etnomatemtica e ecologia, entre outras, a pesquisa j fez nascer quatro teses de

    doutorado, trs dissertaes de mestrado, algumas monografias de graduao, alm de

    alguns livros que registram os saberes de parte daquela populao sobre temas diversos.

    A natureza me disse (2007) de autoria de um pescador-agricultor e construtor de barcos,

    talvez seja um exemplo da complexidade de um pensamento que se interroga

    simultaneamente sobre cosmologia, previso climtica e a incerteza do conhecimento

    nos nveis locais e globais.

    Um estudo diagnstico e crtico a respeito das condies ecolgicas, econmicas

    e tcnicas da atividade pesqueira, que se iniciou com o intercmbio de pesquisadores

    das reas de biologia, histria e antropologia, operou uma mudana de interesses e

    objetivos com o passar do tempo. Centrada no desafio de fazer dialogar conhecimento

    cientfico e saberes da tradio, a pesquisa tem investido, fundamentalmente, em

    construir aproximaes entre estratgias distintas do pensamento sobre os fenmenos do

    mundo.

    Uma concepo aberta, mas persistente, a respeito da complexidade do

    conhecimento, da religao dos saberes e da atividade transdisciplinar tece o tapete das

    diversas pesquisas pontuais. Sintetizo assim essa concepo, tal como ela se apresenta

    no momento atual pois ela tem se auto-organizado em funo do caminhar das teses,

    mestrados, etc. A macroconcepo da qual partimos advoga a necessidade de

    diversificar a aposta na religao dos conhecimentos. No se restringindo ao dilogo

    entre as reas da cincia cincia da matria, da vida e do homem a reorganizao do

    conhecimento em patamares complexos requer o inadivel dilogo e

    complementaridade entre a cincia e outras cosmologias narrativas sobre o mundo.

    Uma verdadeira nova aliana entre cultura cientfica e cultura humanstica s

    possvel a partir de uma ecologia das ideias que acolha os saberes milenares da tradio

    dos quais se valem numerosas populaes do planeta. Tal ecologia se afasta dos

    princpios relativistas de uma antropologia disciplinar que insiste em traduzir um saber

    em outro, em reduzir as estratgias mltiplas de um aos cdigos interpretativos e

    analticos do outro.

    Utopia? Ampliao desmesurada da misso que nos cabe hoje? Talvez. Mas se

    esse horizonte longnquo no h porque no abrir as primeiras picadas e caminhos

    marginais. Pesquisas e intervenes pontuais e mesmo minoritrias podem fazer chegar

    s escolas outros modos de ler, compreender e interpretar o mundo que no so

    contempladas nos pragmticos e monolticos currculos educacionais. Crianas,

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    adolescentes e professores abertos s surpresas e mistrios do mundo e do

    conhecimento podero ento compreender a j consagrada frase de Michel Foucault

    para quem h mais ideias na terra do que os intelectuais imaginam. Mais que isso, se

    compreendermos que intelectual todo sujeito capaz de tratar de forma sistemtica,

    permanente, com obstinao e incerteza os fenmenos sua volta, teremos que ampliar

    o espao desse personagem da cultura.

    Distante da sacralizao da cincia ou sacralizao dos saberes da tradio, a

    religao dessas duas estratgias de conhecimento diversas e mltiplas em seus

    prprios domnios permitir abrir brechas importantes na monocultura da mente

    (SHIVA, 2003) que caracteriza o grande paradigma do ocidente. (MORIN, 1993). As

    pesquisas pontuais, alimentadas pela perspectiva multidimensional e atentas dialgica

    local-global e particular-universal tm um papel importante a desempenhar nessa

    direo. Mais que isso, por vezes so justamente as pesquisas pontuais a matriz qual

    se recorre, permanentemente, para dar sustentao a reflexes mais ampliadas da

    realidade. Tal atitude fenomenolgica oferece substncia viva quase sempre ausente

    pronturios tericos da cincia da fragmentao.

    Referncias

    ALMEIDA, Maria da Conceio; PEREIRA, Wani Fernandes. Lagoa do Piat:

    fragmentos de uma histria. Natal: Editora da UFRN, 2006.

    MORIN, Edgar. O Mtodo 1: a natureza da natureza. Traduo de Maria Gabriela

    Bragana. Portugal: Europa-Amrica, s/d. [Edio brasileira: O Mtodo I a natureza da natureza. Traduo de Hilana Heineberg. Porto Alegre, Editora Sulina, 2002].

    MORIN, Edgar. La rumeur dOrlans. Paris: ditions du Seuil, 1969.

    MORIN, Edgar. Cincia com conscincia. Traduo de Maria Gabriela Bragana

    Lisboa: Europa-Amrica, 1982.

    MORIN, Edgar. Sociologa. Traduo de Jaime Tortella. Madri: Tecnos, 1995.

    MORIN, Edgar. O Mtodo 3: o conhecimento do conhecimento. Traduo de Juremir

    Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 1999.

    PRIGOGINE, Ilya. Carta para as futuras geraes. In: CARVALHO, E. de A.;

    ALMEIDA, M. da C. de. (Org.). Cincia, razo e paixo. Belm: Editora da UEPA,

    2001.

    SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente. Perspectivas da biodiversidade e da

    tecnologia. Traduo de Dinah de Abreu Azevedo. So Paulo: Editora Gaia, 2003.

    SILVA, Francisco Lucas da. A natureza me disse. Organizao de Maria da Conceio

    Almeida e Paula Vanina Cencig. (Natal: Flecha do Tempo, 2007.