mÉrito e flexibilidade - francisco longo

Upload: laissa-da-mota-trindade

Post on 07-Jul-2015

1.188 views

Category:

Documents


8 download

TRANSCRIPT

MRITO E FLEXIBILIDADE A gesto das pessoas no setor pblico

MRITO E FLEXIBILIDADE A gesto das pessoas no setor pblico

Francisco Longo

EdiesFundap

Governador do Estado Jos Serra Secretrio de Gesto Pblica Sidney BeraldoFUNDAO DE DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVOFUNDAP

Diretora Executiva Neide S. Hahn Coordenao editorial Carlos H. Knapp Traduo Ana Corbisier Lucia Jahn Luis Reyes Gil Paulo Anthero Barbosa Reviso Helena Jansen Reviso tcnica Pedro Anibal Drago Sandra Souza Pinto Capa Cristina Penz Ilustrao da capa baseada na escultura Le Chariot (1950), de Alberto Giacometti Editorao eletrnica Ricardo SerrainoFevereiro/2007 2004 by Ediciones Paids Ibrica, S.A. Reproduo proibida sem a expressa autorizao da Fundap. Dados Internacionais de Catalogao da Publicao (CIP) (Centro de Documentao da Fundap, SP, Brasil) Longo, Francisco Mrito e flexibilidade: a gesto das pessoas no setor pblico / Francisco Longo; traduo Ana Corbisier, Lucia Jahn, Luis Reyes Gil, Paulo Anthero Barbosa; reviso Helena Jansen; reviso tcnica Pedro Anibal Drago, Sandra Souza Pinto. So Paulo: FUNDAP, 2007 248 p. Traduo de: Mrito y flexibilidad: la gestin de las personas en las organizaciones del sector pblico. ISBN 978-85-7285-102-2 1. Administrao de pessoal. 2. Administrao de pessoal Setor pblico. 3. Gesto de pessoas Setor pblico. I. Fundao do Desenvolvimento Administrativo Fundap. II. Ttulo. CDD 360.1

EDIES FUNDAP Rua Cristiano Viana, 428 05411-902, So Paulo, SP Telefone (11) 3066 5584 Fax (11) 3081 9082 [email protected]

Para Alejandro e Alberto Longo

SUMRIOAgradecimentos Apresentao da edio brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 1. A gesto das pessoas nas sociedades contemporneas. . . . 23 2. O que o emprego pblico tem de diferente. A funo pblica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 3. Gerir pessoas no setor pblico: um sistema integrado de valor estratgico . . . . . . . . . . . . . . . 77 4. Os grandes subsistemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 5. As tendncias de reforma da gesto das pessoas nas democracias avanadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129 6. Dirigentes pblicos prossionais: por que, para que e como . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 7. Os desaos do futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 Eplogo: mrito e exibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223 Bibliograa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

AGRADECIMENTOSComo autor deste livro, tenho uma dvida de gratido para com muitas pessoas. Entre elas est antes de mais nada uma longa lista de gestores pblicos que participaram dos programas do IDGP da Esade1 nos quais exerci a docncia. Tenho conscincia de ter recebido, deles, estmulos e ensinamentos muito valiosos. Devo mencionar tambm os governadores e dirigentes que confiaram na minha capacidade de consultor e assessor ao longo destes anos. E tambm os meus alunos de nove promoes de MBA da Esade, que ano aps ano desafiaram minha capacidade para formar gestores de pessoas. As coisas que aprendi com todos eles contriburam para filtrar minhas percepes, aproximar realidade os meus pontos de vista e melhorar minha habilidade para comunic-los. Esade, a instituio em que desenvolvo meu trabalho h mais de dez anos, deve ser especificamente destacada neste pargrafo. Sua configurao aberta e horizontal, que oxal seja capaz de conservar durante muito tempo, proporcionou-me o ambiente estimulante e de cooperao, necessrio a todo o trabalho intelectual, e o contato com as pessoas cuja contribuio generosa foi bsica para o meu crescimento profissional. Sua cultura humanista e plural facilitou o engate de minhas convices com os valores prprios do ambiente organizacional em que trabalho. Sou consciente do privilgio que isso significa. Nesse ponto, dirijo minha gratido a Llus Pugs, o diretor que me contratou, e a Carlos Losada, que um dia me sugeriu a incorporao e depois, com a responsabilidade atual de diretor geral, manteve sua confiana em mim. Dentro do Esade, recebi dos meus companheiros do Instituto de Direo e Gesto Pblica numerosas contribuies e uma influncia que, sem dvida, se traduzem naquilo que este livro ter de mais valioso. Em especial a freqente colaborao na docncia, na pesquisa e na consultoria de Koldo Echebarra, hoje licenciado, foi uma importante influncia para configurar a minha forma de entender a gesto pblica, como tambm o foi o estreito contato profissional que mantive esses anos com Xavier Mendoza, Alfred Vernis, Albert Serra e o j citado Carlos Losada. Tambm expresso meus agradecimentos a Manolo Frez, Rafa Jimnez Asensio, Pere Puig, Manel Peir, Enric Colet, Roberto Quiroga,

1

NT: IDGP o Instituto de Direccin y Gestin Pblica, instituio da Esade (Escuela Superior de Administracin de Empresas), uma das dez mais prestigiosas Business Schools da Europa.

10

MRITO E FLEXIBILIDADE

Sam Husenman, Tamyko Ysa, Eduard Gil, Joat Henrich, Cristina Navarro e as demais pessoas que colaboram com o IDGP. Alguns colegas do departamento de Direo de Recursos Humanos da Esade leram trechos do manuscrito e me passaram seus valiosos comentrios. o caso de Carlos Obeso e de Ricard Serlavs, a quem devo um reconhecimento especial por ser o inspirador do modelo de gesto de recursos humanos que adotei na poca, apliquei e desenvolvi nos ltimos anos e que, adaptado gesto pblica, apresento neste livro. A relao de trabalho com outras pessoas do mundo acadmico proporcionou-me valiosas referncias e comentrios que beneficiam o livro. Nesse ponto, devo citar Joan Subirats e toda a equipe do IGOV da Universidade Autnoma de Barcelona; Manuel Villoria, do Instituto Universitrio Ortega y Gasset; Manuel Zafra e Frederico Castillo, do CEMCI de Granada; Miguel Snchez Morn, da Universidade de Alcal de Henares; Alberto Palomar, da Universidade Carlos III; Carlos Vignolo, da Universidade do Chile; Regina Pacheco, da Fundao Getlio Vargas de So Paulo; e Oscar Oszlak, da Universidade de Buenos Aires. Agradeo tambm a Michael Barzelay, da London School of Economics, e a Sonia Ospina, da New York University, pelos comentrios sobre um material prvio em que apoiei uma parte do livro. Considero a experincia de dirigente pblico, no meu caso, como uma fonte decisiva para o crescimento pessoal e profissional. Em particular, os oito anos de trabalho na municipalidade de Barcelona foram para mim uma autntica escola de gesto pblica, sem a qual este livro no teria sido possvel. A coincidncia entre o perodo de desenvolvimento do projeto olmpico de 1992 e uma etapa de transformao urbana sem precedentes, liderada pelo governo da cidade, fez daqueles anos uma experincia difcil de se repetir. Eram muitos os que comigo faziam parte da equipe do prefeito Pasqual Maragall e me proporcionavam teis aprendizados. Na impossibilidade de nome-los, recorro a um agradecimento genrico dirigido a todos. Personalizarei esta meno em Albert Galofr, com quem ainda compartilhei, depois daquela experincia, muitas horas de consultoria e amizade. Diversos trabalhos encomendados durante os ltimos anos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento me proporcionaram marcos de estudo e experincias que contriburam para enriquecer vrias partes do livro. Em particular, a elaborao de um marco analtico para a avaliao de sistemas de servio civil e o acompanhamento de sua aplicao nos diagnsticos institucionais de uma vintena de pases da Amrica Latina e do Caribe me brindaram com excelentes e raras oportunidades para contrastar os modelos conceituais utilizados.

AGRADECIMENTOS

11

Recebi do Departamento de Assuntos Econmicos e Sociais das Naes Unidas e do Centro Latino-Americano de Administrao para o Desenvolvimento o pedido de elaborar um anteprojeto da Carta Ibero-Americana da Funo Pblica e de defend-lo, como relator, perante a Conferncia de Ministros de Administrao Pblica e Reforma do Estado, em junho de 2003, em Santa Cruz de la Sierra (Bolvia). Essa tarefa me obrigava a sintetizar e enquadrar em formato peculiar as minhas concepes bsicas sobre a gesto pblica do emprego e das pessoas, a fim de torn-las acessveis a diferentes ambientes institucionais e susceptveis de serem compartidas por diferentes governos. A aprovao da Carta pela cpula dos chefes de estado e de governo e sua converso em documento oficial da ONU pela Assemblia Geral so os primeiros resultados, que espero sejam seguidos por iniciativas de aplicao de seus princpios nos pases da comunidade ibero-americana. Em todo caso, justo que eu faa constar aqui minha gratido s instituies que confiaram em mim para esse trabalho. Carmen, minha mulher, revisou o manuscrito, como faz habitualmente, tratando de polir minha linguagem. Sou grato a ela por isso e, principalmente, por tantas outras coisas.

APRESENTAO DA EDIO BRASILEIRAEscrevo estas linhas de apresentao quando acaba de se celebrar, em Barcelona, um seminrio internacional, auspiciado pelo CIDOB2, sobre a profissionalizao do emprego pblico na Amrica Latina. Com Carles Rami, meu colega da Universidade Pompeu Fabra, tive o prazer de co-dirigir o seminrio, que contou com a participao de reputados especialistas de ambos os lados do Atlntico. Durante as sesses, como no poderia deixar de ser, os dois grandes temas que do ttulo a este livro, mrito e flexibilidade, assim como a relao entre ambos, foram profundamente abordados e discutidos de ngulos diversos, dando lugar a pontos de vista s vezes antagnicos. Retive especialmente dois dos temas de debate e me permito coment-los resumidamente aqui. O primeiro centra-se na idia de mrito; mais especificamente, em suas dimenses formal e substantiva, e na convenincia de distingui-las entre si.

2

NT: CIDOB: Centro de Investigacin de Relaciones Internacionales y Desarrollo. Centro de Pesquisa de Relaes Internacionais e Desenvolvimento.

12

MRITO E FLEXIBILIDADE

Freqentemente, o mrito, enquanto atributo do emprego pblico, pensado fundamentalmente na primeira dessas dimenses. Assim concebido, um sistema de mrito converte-se num conjunto de garantias formais cujos efeitos benficos se produziriam diramos com fraseologia jurdica erga omnes, ou seja, projetando-se para o exterior dos governos e organizaes pblicas e pensando nas necessidades da sociedade em seu conjunto. Uma vez que a sociedade necessita de administraes compostas por profissionais capazes de emitir decises conformes com a legalidade e protegidas contra a captura e a corrupo, a criao dessas garantias imprescindvel. Entretanto, para dentro das organizaes, isto , para o governante ou o dirigente pblico, essas garantias operam basicamente como limitaes, como condicionamentos de suas decises de manejo do emprego pblico que restringem sua margem de deciso discricional. A partir disso fcil concluir que essas limitaes podem comprometer a eficcia das decises e processos de gesto das pessoas e que precisam, por isso, ser compensadas por polticas flexveis que restabeleam um equilbrio adequado. Nesta perspectiva, mrito e flexibilidade se situariam no marco de um trade off, de um dilema fundamental que confronta os requisitos de profissionalidade da ao pblica, de um lado, com sua pretenso de eficcia, de outro, de tal modo que os avanos em um campo significassem retrocessos no outro e vice-versa. No meu entender, a questo muda de modo fundamental se abordarmos a noo de mrito por sua dimenso material e substantiva. Nessa aproximao, as garantias do mrito protegem a profissionalidade da administrao porque conseguem que as decises de manejo do emprego pblico persigam e assegurem a idoneidade das pessoas, isto , o mais alto grau de adequao de todas suas capacidades (de suas competncias, diramos no jargo atual dos recursos humanos) para o desempenho das tarefas que devem cumprir. Para conseguir essa idoneidade, os instrumentos de gesto devem garantir adequadamente a busca, a escolha, o estmulo e a recompensa dos melhores em cada caso. Deste ponto de vista, as decises sobre o emprego devem ser meritocrticas nos governos e organizaes do setor pblico para proteger os cidados e os mercados da arbitrariedade e da corrupo. Razes semelhantes recomendam os ajustes meritocrticos tambm em outros tipos de organizao, inclusive nas empresas do setor privado, para produzir os resultados almejados pelas estratgias e objetivos de cada uma. Quando contemplamos o mrito dessa forma, a profissionalidade dos servidores pblicos deixa de ser vista como uma limitao eficcia dos governos e se converte, pelo contrrio, em seu pr-requisito. A superao do saque, do clientelismo e da apropriao de setores e sua substituio por modelos me-

AGRADECIMENTOS

13

ritocrticos de emprego pblico no produzem unicamente maior segurana jurdica nas sociedades que realizam essas mudanas, mas tambm mais eficcia, eficincia e efetividade em bancos centrais, na fiscalizao de arrecadao de tributos, nas polcias, nos hospitais e nos servios sociais. A relao entre mrito e flexibilidade deixa de ser de confronto. Na realidade, se desejarmos alcanar a idoneidade das pessoas nos contextos contemporneos, precisaremos de frmulas cada vez mais flexveis no acesso, na carreira, na capacitao e na recompensa; e essa flexibilidade reforar, em lugar de debilitar, a dimenso meritocrtica do emprego pblico. O segundo dos temas mencionados, no muito distante deste, nos introduz mais uma vez no que Bresser Pereira3 denominou a questo da seqncia. Em muitos foros continua viva a idia, a meu ver falaciosa e ademais desmentida pelos fatos, de que na Amrica Latina os esforos reformadores devem se concentrar na construo de burocracias weberianas para, depois, num futuro indeterminado, incorporar as reformas flexibilizadoras da gesto de recursos humanos que hoje constituem moeda comum no primeiro mundo. fcil notar que essa viso se apia na aproximao formalista da idia de mrito que acabamos de discutir. Na obra citada, o ilustre poltico e acadmico brasileiro argumenta vigorosamente contra esse discurso. De minha parte, depois de concordar com ele, remeto-me modestamente ao eplogo deste livro em que se acha uma argumentao sobre esse ponto. Na minha opinio, ela substancialmente vlida. Como se deduz dos pargrafos anteriores, as convices que me levaram a escrever Mrito e Flexibilidade continuam vivas, no substancial, no momento de sua publicao em lngua portuguesa no Brasil. No preciso mencionar que esse fato para mim motivo de profunda satisfao, que agradeo muito sinceramente Fundap e, em especial, ao estmulo da minha admirada amiga Evelyn Levy. Ao longo dos ltimos anos, desde meus primeiros seminrios na ENAP de Braslia, tm sido freqentes os encontros com acadmicos e gestores pblicos brasileiros com os quais sempre encontrei um alto grau de sintonia, tanto nas preocupaes como tambm, quase sempre, nos enfoques. Tambm no Brasil a modernizao da gesto dos recursos humanos se encontra sistematicamente entre os grandes temas de qualquer agenda de reforma da gesto pblica. Ns a encontramos quando revisamos o modelo de

3

Bresser Pereira, L. C., Democracy and Public Management Reform. Building the Republican State. Oxford University Press, 2004.

14

MRITO E FLEXIBILIDADE

gesto do PPA4 na esfera federal, quando acompanhamos a experincia de gesto dos servios assistenciais e culturais por meio das organizaes sociais do Estado de So Paulo ou quando analisamos as carreiras e a avaliao do desempenho nessa apaixonante experincia de reforma conhecida como Choque de Gesto, em Minas Gerais. Ela est igualmente presente nas principais preocupaes dos secretrios de gesto reunidos nessa importante plataforma de inovao e reforma institucional que o Consad5. Tambm no Brasil, os temas relativos aos recursos humanos so, com freqncia, os mais resistentes a reformas; aqueles em que so mais habituais as percepes de insatisfao com o logrado. Nada que revele caractersticas idiossincrticas dos contextos institucionais brasileiros, mas sim, como este livro pretende evidenciar, traos comuns das tentativas de melhorar a gesto pblica das pessoas em qualquer lugar e circunstncia. Para o bem ou para o mal, o comportamento humano nas organizaes uma varivel sobre a qual difcil influir. Ao mesmo tempo, exercer essa influncia constitui uma questo central para a eficcia, eficincia e efetividade das organizaes, que se acentua nos servios pblicos e que, portanto, se torna irrenuncivel para os inovadores e reformadores da gesto pblica. A todos eles, felizmente numerosos no Brasil, dedicada em primeiro lugar a edio deste livro em portugus. Oxal lhes seja til. Barcelona, janeiro de 2007 Francisco Longo

4 5

PPA, Plano Plurianual institudo no governo Fernando Henrique Cardoso. Consad: Conselho Nacional de Secretrios de Estado de Administrao.

INTRODUO mais importante conhecer os temperamentos e caractersticas das pessoas que os das ervas e das pedras. Esta uma das coisas mais sutis da vida: os metais se conhecem pelo som e as pessoas pelo que dizem. As palavras demonstram a retido, mas os fatos muito mais ainda. So necessrios, em grau mximo, reflexo, observao e capacidade crtica. Baltasar Gracin, Orculo Manual y Arte de Prudencia, 1647 Mais de vinte e cinco anos de dedicao gesto pblica, na administrao e no mundo acadmico, foram fortalecendo minha convico da importncia crucial do fator humano como chave para explicar os xitos e fracassos dos governos e das organizaes do setor pblico. Na condio de dirigente, experimentei na primeira pessoa o carter crtico do comportamento humano nas organizaes, seu extraordinrio peso nos resultados de qualquer iniciativa ou projeto, e tambm a complexidade de suas motivaes, a fluidez e pluralidade dos fatores que o influenciam, o quanto rdua a tarefa de decifrar as origens e procurar as respostas aos problemas que afetam as pessoas no trabalho. Tenho experimentado a dificuldade adicional que o ofcio de gerir pessoas traz implcito nos ambientes pblicos; a ambigidade das prioridades, seu carter mutvel, a brevidade dos ciclos polticos, a reticncia para medir e avaliar, o peso imenso da inrcia, as numerosas limitaes legais e, principalmente, as restries intangveis de natureza cultural. Como docente, o prolongado contato com dirigentes pblicos nos programas do Instituto de Direo e Gesto Pblica (IDGP) do Esade tornou-me consciente tanto do interesse com que so abordadas as questes relacionadas ao fator humano, como do dficit de preparao especfica que pode ser constatado na maioria dos casos. Os conhecimentos e habilidades relacionados com a gesto das pessoas no so normalmente levados em conta entre os requisitos de capacitao exigidos para exercer responsabilidades de direo no setor pblico. Este fato no impede que, s vezes, nos intercmbios que caracterizam a formao para dirigentes, aflorem as boas prticas, os casos de sucesso e as experincia inovadoras. Em geral, no obstante, a percepo dominante entre os gestores pblicos combina a crtica dos modelos de gesto existentes com uma aguda sensao, prxima do desalento ou do ceticismo, a respeito de como difcil mud-los.

16

MRITO E FLEXIBILIDADE

A experincia como consultor de governos e organizaes pblicas ratificou para mim muitas destas percepes e as tornou extensivas a diferentes pases e ambientes institucionais. Hoje a gesto do emprego pblico e das pessoas que fazem parte dele preocupa cada vez mais aqueles que dirigem as organizaes e os sistemas multiorganizacionais do setor pblico. A demanda de idias, estratgias, metodologias e instrumentos que permitam melhor-la cresceu de modo significativo. Foi ficando evidente que as mudanas legais, as reestruturaes organizacionais e a modernizao tecnolgica, embora sejam importantes, no so suficientes para mudar em profundidade o funcionamento das organizaes pblicas. A verdadeira mudana aquela que consegue penetrar nas mentes dos indivduos e transferir-se para suas condutas. O olhar se volta conscientemente para as pessoas e , na maioria das vezes, um olhar de interrogao, dvida e perplexidade. Em suma, melhorar a gesto das pessoas visto em nossos dias como um dos desafios principais da gesto pblica e, ao mesmo tempo, como o que enfrenta maiores obstculos e resistncias. Dessa dupla convico sobre a importncia e a dificuldade desse empenho nasce este livro.

A QUEM SE DIRIGE ESTE LIVRO E COMO PRETENDE FAZ-LOEste um livro sobre gesto pblica, o que quer dizer no mnimo duas coisas. A primeira, que ele assume a orientao pluridisciplinar que caracteriza a referida perspectiva e incorpora, sem complexos, contribuies e enfoques prprios da economia, do direito, da cincia poltica, da sociologia e de outras disciplinas cientficas. A segunda, que ele se fundamenta numa noo ampla do management, que vai alm da mera importao de tcnicas nascidas no mundo empresarial privado. A gesto pblica modula seu instrumental analtico partindo da especificidade do pblico e incorpora no s modelos tericos e ferramentas, mas tambm um conjunto de valores necessrios para o bom funcionamento e a renovao dos sistemas pblicos e suas organizaes. O livro tem uma pluralidade de destinatrios: os primeiros so os dirigentes pblicos, no sentido mais amplo da expresso. Inclumos a todas as pessoas que assumem, nas organizaes do setor pblico, responsabilidades que compreendem a direo de equipes humanas; desde aqueles que, no vrtice estratgico das administraes, adotam decises que afetam milhares de empregados, at aqueles que gerenciam pequenos centros ou servios dotados de poucas pessoas. Todos eles seus objetivos, problemas e preocupaes tm sido a principal referncia inspiradora deste trabalho.

INTRODUO

17

O livro pretende ser tambm til para aqueles que se ocupam da administrao pblica a partir da reflexo acadmica ou da consultoria, assim como esperamos para aqueles que o fazem a partir da poltica ou do sindicalismo. Pode igualmente ser proveitoso para os empregados pblicos e para os jovens que aspiram fazer da gesto pblica sua profisso e desejam melhorar seu conhecimento sobre uma parcela bsica dela. No fica descartado, inclusive, que possa captar o interesse de outros pblicos. Afinal, fala de questes que acabam afetando a vida da maioria. H tempos estou convencido de que a modernizao da gesto pblica geralmente se produz quando seus temas saem do crculo restrito dos especialistas e passam para a esfera do debate pblico. Acredito que qualquer cidado interessado no funcionamento das organizaes pblicas encontrar nestas pginas algumas reflexes teis, quer concorde com elas ou no. Embora minha experincia tenha sido gestada principalmente no ambiente institucional espanhol, e este fato se transfira inevitavelmente para o que escrevo, o livro no foi produzido pensando apenas no leitor desse Pas. Ao contrrio, tenho tentado fazer com que as anlises e reflexes sejam, no fundo e na forma, acessveis e teis a leitores de outras latitudes. Como poder comprovar quem siga adiante, tanto os modelos conceituais como os referenciais utilizados caracterizam-se por uma vocao de universalidade e uma orientao comparada. Em particular, teve-se presente a todo momento a possvel utilidade do livro para os leitores latino-americanos. A freqncia e intensidade dos contatos com governos e organizaes pblicas da Ibero-Amrica ao longo dos ltimos dez anos tornaram-me particularmente sensvel maneira de tratar a questo pblica que caracteriza essa parte do mundo, to distante e to prxima. A probabilidade de que este livro seja de interesse ser tanto maior quanto mais aberto mudana for o esprito com que se empreenda sua leitura. No IDGP da Esade adotamos como sinal de identidade um compromisso com os inovadores do setor pblico. Este compromisso est presente no livro, que incorpora nossa crena na questo pblica, em seu papel insubstituvel para o bem-estar e o progresso de nossas sociedades, mas tambm no seu imenso potencial de melhora, imprescindvel para adaptar-se s exigncias de uma demanda social intensa e mutante. O livro aborda um assunto de especial complexidade. H questes para as quais o desenvolvimento cientfico e tecnolgico acabou criando protocolos de respostas predeterminadas. As incidncias relacionadas gesto das pessoas costumam pertencer, ao contrrio, quela categoria de problemas que Schumacher chama de divergentes; aqueles que, quanto mais conhecimento especializado incluem, mais solues possveis admitem. Alm disso, em matria de

18

MRITO E FLEXIBILIDADE

recursos humanos, essas solues so quase sempre a mdio ou longo prazo, o que obriga a adotar decises cujo xito ou fracasso no pode ser verificado imediatamente. Por outro lado, as questes que afetam as pessoas e seu trabalho costumam ser objeto de pontos de vista diferentes, que refletem a diversidade de interesses e valores dos grupos humanos afetados. O conflito com freqncia faz parte da situao. A necessidade de harmonizar na medida do possvel as preferncias e expectativas de uns e outros obriga a assumir uma viso no dogmtica das coisas ou, o que d no mesmo, um enfoque contingente das respostas. O peso do contexto, do situacional, determinante, o que reduz o valor prescritivo do precedente e obriga a investir em diagnstico. A capacidade para ler adequadamente cada realidade concreta, com as singularidades e matizes que lhe so inerentes, uma condio do sucesso. Toda esta complexidade normalmente aumenta nos ambientes pblicos pelo peso que a dimenso poltica tem neles. A gesto pblica das pessoas um territrio intrincado, onde fcil perder-se. Este livro pretende fornecer elementos de orientao que tornem mais fcil transitar por esse territrio, mas no a qualquer preo. No quisemos oferecer ao leitor uma viagem organizada, daquelas que levam a passar de um ponto a outro atravs de um itinerrio prfixado, tornando mais cmoda a vida do viajante custa de selecionar para ele umas poucas pores de realidade e apresent-las superficialmente. Optou-se de forma deliberada por outro enfoque: aquele que tenta apresentar as coisas em toda a sua complexidade, procurando ao mesmo tempo oferecer as pistas e referncias possveis para facilitar uma leitura adequada da realidade nos diferentes contextos. Assim, o livro mais uma bssola ou, quando muito, um mapa, uma carta de navegao, que o viajante-leitor dever usar segundo suas circunstncias e convenincia.

O QUE O LIVRO CONTM E COMO FOI ORDENADOMeu objetivo principal ao empreender a tarefa de escrever este livro era apresentar o modelo global de gesto pblica das pessoas que venho utilizando e aplicando h anos na docncia, na pesquisa e na consultoria, para projetar depois sobre ele uma anlise das principais tendncias de mudana que as organizaes do setor pblico enfrentam em nossos dias. Na hora de fazer isso, deparei-me com a necessidade de contextualizar este propsito num quadro mais amplo: o da gesto das pessoas no setor pblico, qualquer que seja a natureza destas, isto , incluindo entre elas, de modo bem destacado, as empresas e organizaes do setor privado.

INTRODUO

19

A essa finalidade foi dedicado o captulo 1, cujo objetivo oferecer uma panorama geral, obrigatoriamente sinttico, dos aspectos e tendncias apresentados pela gesto dos recursos humanos nas sociedades atuais. Para chegar a esse ponto, foi necessrio abordar primeiro uma srie de mudanas cuja natureza, de algum modo, faz com que precedam a gesto como tal; nos ltimos anos elas transformaram substancialmente o universo do trabalho humano, tanto em sua dimenso formal como nos elementos intangveis que fazem parte da relao de emprego. Portanto, em linhas gerais, descrevemos esse cenrio cheio de paradoxos e claros-escuros, para, a partir dele, explorar as principais orientaes que podem ser reconhecidas como tendncias de fundo de nossa poca, tanto na literatura da gesto como na prtica empresarial. A noo de flexibilidade, caracterstica das abordagens contemporneas gesto das pessoas, aparece aqui pela primeira vez e nos acompanhar ao longo de todo nosso percurso posterior. A introduo a esses contedos nos obrigava, por sua vez, a entrar na explorao do que o emprego pblico tem de especfico. A pergunta : em que se apiam, na realidade, os aspectos singulares, as diferenas que fazem com que as mudanas e as orientaes de gesto mencionadas no primeiro captulo cheguem de forma distinta ou matizada s organizaes do setor pblico? Desta questo vamos nos ocupar no captulo 2, que apresenta e desenvolve a noo de funo pblica (tratada expressamente como sinnimo de servio civil, termo mais usado em certas latitudes). Elucidar o que e o que no funo pblica nos parecia imprescindvel para precisar at que ponto a gesto do emprego pblico e das pessoas que o integram deve ser entendida como um territrio singular. aqui que aparece e desenvolvida a idia do mrito e da necessidade de garanti-lo para tornar possvel a existncia de administraes profissionais. O profissionalismo da administrao pblica um atributo exigido tanto pela segurana jurdica como pela eficcia dos servios pblicos, e requer um conjunto de arranjos institucionais que a preservem e a protejam. Determinar onde termina neles a proteo dos bens de interesse geral e onde comea a dos privilgios corporativos dos funcionrios ser uma questo que teremos que elucidar em cada caso. Nesse captulo examinada a natureza distinta desses arranjos em diferentes pases e ambientes, e so apresentados assim os traos bsicos dos diferentes modelos de funo pblica. Este parecia o ponto adequado para expor o modelo de gesto que estamos propondo. A isso dedicamos o captulo 3. Nele, definimos a gesto dos recursos humanos como um sistema integrado, colocado a servio da estratgia organizacional, cujo objetivo produzir resultados que estejam de acordo

20

MRITO E FLEXIBILIDADE

com ela. Conseguir essa sintonia estratgica particularmente complicado nos ambientes pblicos, cujas caractersticas de ambigidade e instabilidade conduzem ao dilema da estratgia, que abordamos neste ponto e que constitui sem dvida o principal obstculo que o gestor pblico encontra em sua tarefa. Por outro lado, falar de resultados obriga-nos a precisar primeiro o alcance da noo e a explorar depois os elementos que relacionam as pessoas com os resultados. As polticas e prticas de gesto das pessoas produzem resultados graas a seu impacto sobre duas variveis principais: o dimensionamento dos recursos humanos, de um lado, e o comportamento dos indivduos, de outro. Por sua vez, a influncia sobre esta segunda varivel a conduta das pessoas no trabalho se desenvolve por meio da gesto de dois fatores bsicos: as competncias das pessoas e sua vontade de esforo ou motivao. So desenvolvidas nesse captulo todas estas noes, inseridas nos cenrios caractersticos da gesto pblica, e, por ltimo, so descritos, tambm a partir dessa perspectiva, os principais fatores situacionais que exercem influncia em tudo isso. A apresentao do modelo continua no captulo 4, que o desenvolve por meio da apresentao de sete subsistemas bsicos: os de planejamento, organizao do trabalho, gesto do emprego, desempenho, compensao, desenvolvimento e relaes humanas e sociais. Foi acrescentada uma parte dedicada organizao da funo de recursos humanos. Para cada um desses subsistemas, descreve-se em primeiro lugar seu objetivo ou finalidade fundamental, e depois detalham-se as relaes existentes com os demais subsistemas, seguindo a orientao integrada que fizemos referncia. A seguir, identificam-se os processos e prticas nos quais eles se desdobram para alcanar suas finalidades. Foi incorporada para cada subsistema uma relao de pontos crticos, enunciados como proposies de boa prtica em cada um dos campos abordados, que pode ser utilizada como instrumento de comparao na anlise e avaliao de experincias concretas de gesto. Finalmente, foram includas consideraes especficas que a anlise de cada subsistema deve levar em conta. Depois de apresentado o modelo de gesto, o passo seguinte identificar as tendncias de mudana que esto sendo produzidas nos sistemas e organizaes do setor pblico de nossa poca. As ltimas duas dcadas foram o cenrio de numerosas transformaes na gesto pblica das pessoas, especialmente nos pases do mundo desenvolvido. Dessas reformas, cujo alcance e profundidade tm sido bastante desiguais, assim como das dinmicas abertas por elas, ocupamo-nos no captulo 5. De novo, o lema da flexibilidade nos aparece aqui como um fio condutor de boa parte das orientaes de mudana. Para apresent-las, comeamos descrevendo o diagnstico que lhes deu fundamento, cujos contedos se inserem nas orientaes prprias do discurso ps-burocrtico

INTRODUO

21

ou gerencialista da chamada nova gesto pblica. Abordamos depois o sentido das mudanas, detalhando as estruturas e polticas que tm sido objeto preferencial das transformaes, assim como a direo e o alcance destas nos diferentes cenrios institucionais, e conclumos com uma srie de reflexes a ttulo de balano. Algumas das mudanas identificveis nas reformas mencionadas convergem para um tema ao qual, por sua especial importncia para a gesto pblica contempornea, demos um tratamento diferenciado. Trata-se do surgimento, desenvolvimento e consolidao da gerncia pblica ou direo pblica profissional. Dedicamos a esse tema o captulo 6, no qual, depois de descrever o fenmeno e seu significado, no contexto das reformas da gesto pblica antes apontadas, fazemos nosso o modelo de exerccio da funo dirigente divulgado por Mark Moore e seus colegas da Kennedy School de Harvard, e tentamos definir as bases por meio das quais ele pode ser incorporado ao desenho institucional dos sistemas pblicos. Apresentamos para isso um quadro de responsabilidade voltado para a direo pblica, integrado por quatro elementos bsicos: um mbito discricionrio, um sistema de controle e prestao de contas, um regime de prmios e sanes, e um conjunto de valores de referncia. Abordamos em seguida a nada fcil tentativa de identificar um espao dirigente profissional, o que nos leva a explorar a delimitao entre cargos polticos e dirigentes, para o que propomos um modelo contingente baseado na anlise de quatro variveis bsicas. O captulo termina com uma reflexo a respeito das reas nas quais se deveria intervir para alcanar um grau aceitvel de institucionalizao da gerncia pblica. O captulo 7 e ltimo dedicado identificao dos principais desafios oferecidos atualmente pela gesto das pessoas nas organizaes do setor pblico. Isso obriga a examinar, de sada, uma das situaes possveis: a de uma eventual minimizao progressiva do emprego pblico como conseqncia da tendncia de privatizar a gesto dos servios pblicos, o que sem dvida tiraria importncia dos esforos voltados para reform-lo. Descartada essa opo, e argumentada a necessidade decorrente de investir na melhora dos sistemas pblicos de gesto do emprego e dos recursos humanos, abordam-se alguns eixos prioritrios de interveno, ordenados pelos diferentes subsistemas que foram descritos anteriormente. Alude-se depois mudana nas regras do jogo, tanto formais como informais, que essas mudanas exigem. Por ltimo, incluise uma parte destinada a explorar os desafios do futuro, passando em revista primeiro as competncias que ser necessrio incorporar e desenvolver nos sistemas pblicos, para concluir enunciando os temas que esto convocados a configurar a agenda dos prximos anos.

22

MRITO E FLEXIBILIDADE

O livro finaliza com um breve eplogo para onde convergem dois grandes eixos, em torno dos quais se d a reflexo de fundo, ou seja, os dois atributos essenciais que, a nosso ver, devem ser incorporados por qualquer sistema pblico de gesto das pessoas: mrito e flexibilidade. A idia que articula esta reflexo final que ambos os componentes devem ser tratados como dois princpios condutores complementares que, longe de competir entre si, se reforcem reciprocamente. Como ler este livro? Para quem disponha de tempo e interesse, a recomendao que o faa pela ordem em que acabamos de apresentar o contedo. Afinal, a forma pela qual organizamos nossas idias e construmos o discurso subjacente aos diferentes temas. No entanto, no a nica maneira possvel de faz-lo e, portanto, sugerimos outras opes. O leitor interessado em conhecer imediatamente o marco conceitual em que se assenta nossa viso do assunto pode comear a leitura diretamente pelo captulo 3 e complet-la com a do 4. A partir da, fica a seu critrio, se desejar, selecionar, nos demais captulos que integram o sumrio, aquelas matrias que despertem especialmente seu interesse, sem que a ordem em que o faa acarrete, a nosso ver, maiores problemas de compreenso. Por sua vez, os leitores cujo interesse principal prescinda dos aspectos mais tericos e se concentre nas tendncias de mudana no emprego pblico, podem comear pelo captulo 5, continuar com a primeira parte do 6 a que apresenta a ecloso da administrao pblica e terminar com o 7. Se dispuserem de um pouco de tempo, provavelmente lhes ser til ler antes o primeiro captulo, destinado, como dissemos, a situar as mudanas num contexto mais amplo que o do setor pblico em sentido estrito. Em todo caso, se um leitor, qualquer que seja a seqncia escolhida, deseja aprofundar a noo de mrito, que , como temos dito, um dos elementos bsicos de qualquer sistema de gesto pblica das pessoas nos estados democrticos de direito, encontrar no captulo 2 os modelos conceituais e os argumentos correspondentes.

1. A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEASEste primeiro captulo destina-se a apresentar um panorama geral das principais tendncias atuais da gesto do emprego e dos recursos humanos. O propsito caracterizar a situao global em que hoje se situa o emprego pblico, cuja gesto constitui a reflexo principal do livro. Os aspectos e as orientaes aqui descritos pretendem, portanto, servir de referncia ou de contraponto a esse assunto central. A necessidade de apresentar uma realidade multifacetada e complexa num espao limitado obriga a desenhar este pano de fundo com uma tcnica de grandes traos, ou seja, a dar prioridade sntese em lugar da profundidade analtica, conciso em vez da riqueza expositiva. Tudo isso priva inevitavelmente o resultado de desenvolvimentos e de matizes que teriam exigido uma extenso maior.

A NOVA PREEMINNCIA DAS PESSOASEntre os numerosos trabalhos que nos ltimos anos tratam de interpretar as mudanas sociais, tentando vislumbrar o futuro das sociedades e de suas organizaes, seria difcil encontrar algum que no tenha destacado o valor do fator humano. Na nossa poca, pelo menos para aqueles que escrevem sobre ela, as pessoas importam. Desde a sobrevivncia ou o crescimento empresarial at a prpria competitividade das naes, os grandes objetivos de qualquer projeto coletivo contemporneo parecem depender em boa medida da correta proviso, desenvolvimento e utilizao do capital humano. A preeminncia das pessoas destacada por abordagens de carter muito diferente. Os enfoques quantitativos costumam colocar nfase na magnitude do investimento e na necessidade de garantir taxas de retorno adequadas. As abordagens qualitativas sublinham mais a conexo dos recursos humanos com a produo de vantagens competitivas, destacando seu vnculo com o desenvolvimento do conhecimento, a inovao tecnolgica e a gesto da complexidade; fatores, todos eles, determinantes do sucesso das empresas e das sociedades atuais. Os livros e revistas de management repercutem esta coincidncia e tm sido o veculo de uma abundante produo terica que revalorizou a gesto das pessoas, entronizando-a entre as prticas empresariais de valor estratgico. A importncia do ativo humano tem fundamentado orientaes de mudana que

24

MRITO E FLEXIBILIDADE

atravessam a estrutura da empresa em todas as direes. Para cima, aumentando as opes bsicas relacionadas com as pessoas no nvel das decises estratgicas. Para os lados, produzindo transferncias de responsabilidade a partir das unidades especializadas at a linha de comando. Para baixo, por meio de processos de delegao (empowerment) destinados a incrementar o poder de deciso nos nveis em que se produz a interao com o mercado. Paralelamente, e congruentemente com tudo isso, as polticas de pessoas se orientam para a gesto do talento e o compromisso dos indivduos. Dispor dos melhores a cada momento e alinhar seus objetivos vitais com os da empresa passam a ser os objetivos centrais. Sem dvida, em toda esta exploso h influncias da moda, como tantas vezes ocorre no mundo da gesto empresarial. Com freqncia, as invocaes retricas da importncia das pessoas maquiam apenas prticas de gesto que as desmentem contundentemente. Perto de ns, o nmero de pessoas em trabalho precrio e em aposentadoria antecipada e prematura seria uma mostra disso. O desperdcio desse ativo humano supostamente estratgico ainda mais evidente nos abundantes exemplos de reduo de pessoal ou downsizing que nos ltimos anos tm proliferado em muitas empresas do mundo desenvolvido. Freqentemente, tais processos tm sido menos uma resposta a situaes de crise, ou medida de estrito saneamento de custos, e mais a conseqncia de sucessivas operaes de reengenharia destinadas eliminao de qualquer aparncia de gordura, resultante das cifras de pessoal. So fatos que deixam patente o sucesso conseguido por uma viso de empresa flexvel, que interioriza uma obsesso por converter todas as pessoas, e a todo momento, em custo varivel. A vinculao dos incentivos (compensao, carreira etc.) da alta direo das empresas rentabilidade econmica a curto prazo, caracterstica da filosofia de gesto que coloca nfase na criao de valor para o acionista, ou a utilizao de tcnicas contbeis EVA (Valor Econmico Agregado), que ponderam nos resultados o custo de oportunidade dos ativos fixos utilizados, criaram nos gestores a tendncia a evitar qualquer investimento de carter estrutural (Cappelli e outros, 1997, p. 38 e seguintes.), acentuando assim essas tendncias. Em geral, a tenso entre a viso de mdio e de longo prazo exigida pelas polticas de recursos humanos e a lgica reativa e a curto prazo com que so adotadas habitualmente as decises nos turbulentos ambientes empresariais de nossos dias uma fonte de dificuldades para aqueles que querem situar as pessoas no centro do cenrio. Por sua vez, explica porque essa nova preeminncia das pessoas no tanto uma caracterstica comum, generalizvel s empresas atuais, e sim um trao diferenciador daqueles projetos empresariais com autntica vocao de sustentabilidade. S quando se busca o sucesso a longo prazo

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

25

que se est disposto a avaliar adequadamente investimentos que, como ocorre com freqncia com os de capital humano, oferecem um retorno consideravelmente demorado no tempo. Ainda mais contraditrias com as alegaes de centralidade do capital humano so as operaes de cirurgia de dotaes, cuja finalidade puramente o incremento conjuntural da capitalizao na bolsa. Como soube ver Sennett (2000, p. 52), o mero anncio da reorganizao de uma empresa eleva o valor da ao. Quando se incluem drsticas redues de pessoal, a eficcia do fenmeno ainda maior. O acesso a cotas estratgicas da propriedade das empresas por parte de investidores institucionais cujo interesse no promover projetos empresariais sustentveis mas especular a curto prazo nos mercados de capitais favorece a ampliao do fenmeno. Assim, temos observado s vezes, nos ltimos anos, como esses anncios de reduo so impudicamente divulgados, justamente nas pocas de maior bonana nos resultados empresariais. De qualquer modo, sem negar o quanto de contraditrio tem a situao exposta, a centralidade estratgica das pessoas nas organizaes contemporneas abre caminho para alm da retrica do fashion management e de seu aproveitamento por mero interesse. O volume de recursos de diversas origens aplicado pelas empresas gesto dos recursos humanos cresceu significativamente. A posio interna da funo de recursos humanos cresceu de nvel e status organizacional. A consultoria estratgica de recursos humanos tem se consolidado como um setor de servios profissionais em alta, para alm das oscilaes conjunturais derivadas do ciclo econmico. Novas prticas de gesto, impregnadas dessa atribuio de valor ao ativo humano, abrem caminho na realidade de muitas empresas. Quais so essas orientaes emergentes da gesto das pessoas? At que ponto questionam paradigmas enraizados no funcionamento e na cultura das organizaes? Antes de tentar um esboo de resposta a estas questes, parece necessrio examinar algumas mudanas importantes produzidas, ao longo dos ltimos anos, no mundo do trabalho.

AS MUDANAS NO MUNDO DO TRABALHOUm conjunto de mudanas de amplo alcance alterou ao longo das duas ltimas dcadas, nas economias e nas sociedades do mundo desenvolvido, o contexto do trabalho humano (Bridges, 1995; Giarini e Liedtke, 1996; Brewster e outros, 1997; Cappelli e outros, 1997; Fundacin Encuentro, 1998; Pfeffer,

26

MRITO E FLEXIBILIDADE

1998b; Navarro, 1999; Sennett, 2000; Beynon e outros, 2002). So transformaes que no advm, no entanto, de uma causa nica. O vertiginoso desenvolvimento tecnolgico, especialmente o produzido no campo da informao e das comunicaes, mas tambm aquele que afetou a biogentica e as fontes energticas, tem sido sem dvida um dos fatores decisivos. A mundializao dos intercmbios de toda ordem, a macia incorporao das mulheres ao trabalho, assim como a crise dos valores da modernidade, que desde a revoluo industrial e durante muitas dcadas formaram o substrato cultural das empresas e das sociedades, so tambm fatores poderosos de mudana, amplamente destacados pela literatura sociolgica contempornea. As transformaes s quais nos referimos afetaram tanto a estrutura das relaes no ambiente de trabalho (entendendo como tal o conjunto de elementos formais ou formalizveis dessas relaes), como a cultura subjacente, isto , os aspectos intangveis: modelos mentais, valores dominantes, normas de conduta etc. So mudanas de amplo espectro, que afetam as formas pelas quais as pessoas tm acesso ao mercado de trabalho, a sua experincia sobre o processo de trabalho e suas expectativas sobre segurana no emprego (Beynon e outros, 2002, p. 297). Enunciamos a seguir alguns dos aspectos que nos parecem mais destacveis.

O contrato de trabalho: em direo ao m do taylorismoA uniformidade e padronizao que caracterizava a relao de emprego da era industrial tornou-se em nossos dias diversidade e flexibilidade. Os produtos ou servios podem ser produzidos e distribudos atravs de redes globais (Giarini e Liedtke, 1996, p. 194), o que criou uma tendncia redefinio e descentralizao do lugar de trabalho. Os desenhos empresariais na rede estimulam o surgimento de novas modalidades de articulao das relaes entre a organizao e o trabalhador. O trabalho itinerante ou a distncia abre caminho como uma frmula que pode ser til para ambas as partes. A reduo de custos empresariais em infra-estrutura e espao fsico combina-se, para o trabalhador, com a disponibilidade flexvel do prprio tempo, to conveniente para os novos modelos de vida pessoal e familiar. Freqentemente, essa remodelao do tecido contratual se fundamenta numa distino entre trabalhadores essenciais, os que so vitais para produzir a vantagem competitiva a longo prazo e a sobrevivncia da organizao, e que portanto devem estar permanentemente empregados; e trabalhadores perifricos, aqueles cujos postos so menos importantes para a empresa e cujas habi-

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

27

lidades podem ser compradas com maior facilidade externamente (Hegewish, 1999, p. 115), o que os sujeita com freqncia a polticas de alta rotatividade. Como conseqncia de tudo isso, o binmio dependncia/autonomia do trabalho por conta alheia comea a ser conjugado de formas muito diversas. Mltiplos tipos de relao de emprego, nos quais os mecanismos de prestao e contraprestao se diversificam, substituem o contrato de trabalho tradicional. Os contornos dessas relaes se esfumam e do lugar a figuras o trabalhador autnomo, o emprego em tempo parcial, o trabalhador designado atravs de uma empresa de trabalho temporrio, o consultor de processos que coexistem no ambiente de trabalho com os empregados que mantm relaes formais mais convencionais. O diretor de recursos humanos de nossos dias comea a no saber com clareza quem deve ser convidado para a festinha de fim de ano.

O enfraquecimento do emprego estvelEsse novo contrato de trabalho tende a perder uma parte considervel da estabilidade que o caracterizava. As conseqncias deste fato so de grande importncia. Para compreender todo o seu alcance, preciso recorrer noo de contrato psicolgico, entendido como o equilbrio intangvel subjacente articulao formal da relao de emprego, e que se materializa no conjunto de percepes tcitas que so interiorizadas pelas partes dessa relao. O contrato psicolgico subjacente relao de trabalho da era industrial podia ser esquematizado como lealdade em troca de segurana. O trabalhador entregava seu esforo e se comprometia com os interesses e objetivos de sua empresa, que em contrapartida lhe assegurava trabalho estvel e perspectivas de progresso profissional. Certamente, esse esquema bsico admitia modulaes em funo do tipo e da cultura da empresa, que acentuavam ou diluam o substrato paternalista do modelo, mas o ncleo deste podia ser considerado comum. A aspirao do trabalhador era encontrar uma boa empresa, ou seja, aquela que mais se ajustava ao padro definido. Por sua vez, o empregador se esforava por estimular no trabalhador o sentido de pertinncia que caracteriza uma relao deste tipo. Em nossos dias, esse edifcio contratual desabou estrepitosamente. O trabalho para toda a vida praticamente desapareceu do horizonte de nossos trabalhadores, em especial dos mais jovens. A expectativa temporria de uma vida de trabalho se torna muito mais duradoura que o primeiro posto de trabalho, e provavelmente mais que a prpria empresa na qual se encontra o primeiro emprego. O ajuste entre a pessoa e o emprego se descentraliza, passa

28

MRITO E FLEXIBILIDADE

a ser uma responsabilidade transferida exclusivamente ao indivduo. J se foram os dias afirma Supiot (2001) em que as organizaes empregadoras aceitavam de bom grado que, como compensao por assumir o controle e a direo da vida das pessoas, elas deviam assumir alguma responsabilidade sobre o emprego futuro e a segurana salarial de seus empregados. As pessoas encaram o trabalho, cada vez mais solitariamente, como um itinerrio no qual a mudana de empregador ser inevitvel, o que provavelmente implicar administrar vrias vezes, no percurso, processos de ajuste que tero o mercado de trabalho como cenrio. O conceito que para alguns (Waterman e outros, 2000, p. 403) simboliza a nova relao, e redefine o contrato psicolgico entre as organizaes e seus empregados o de empregabilidade, que significa (Pfeffer, 1998b, p. 162) que as empresas proporcionam trabalhos interessantes que ajudaro o trabalhador a desenvolver sua capacidade, mas no prometem uma permanncia a longo prazo no posto. Em seu lugar, a nica promessa que a experincia e as habilidades adquiridas iro abrir-lhe melhores possibilidades de encontrar emprego quando tiver necessidade de um novo. Como afirma Bridges (1995, p. 76), nessa nova relao a esfera do posto de trabalho, de ambos os lados da fronteira da organizao, converte-se num mercado; manter alto seu valor de mercado ser uma preocupao fundamental do trabalhador nos cenrios do futuro. As boas empresas de nossos dias no seriam j as que prometem uma estabilidade que no est ao seu alcance, mas aquelas que garantem a manuteno e o desenvolvimento de uma alta empregabilidade, ou que pelo menos facilitam, caso necessrio, a recolocao de seus empregados excedentes, utilizando para isso os numerosos servios de outplacement que comearam a ser oferecidos pela consultoria de recursos humanos. A capacidade de adquirir novos conhecimentos e habilidades ser um ingrediente bsico da empregabilidade. Processos contnuos de aprendizagem e desaprendizagem sero, por isso, consubstanciais em tais cenrios.

Do homo faber ao homo sapiensA entrada na sociedade do conhecimento pressups a converso do talento das pessoas num ativo crucial para as organizaes (Obeso, 1999, p. 23 e seguintes). Este fato implica, por um lado, uma perda de peso do trabalho menos qualificado, que tende a mecanizar-se ou a ser providenciado fora. Por outro lado, tornou prioritria a captao e o desenvolvimento de trabalhadores qualificados, freqentemente portadores da vantagem competitiva, cuja gesto

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

29

exige formas e mtodos muito diferentes dos que tm caracterizado as burocracias empresariais da era industrial. A capacidade de atrair, reter e motivar o talento impe-se como um fator diferenciador da gesto contempornea dos recursos humanos. A construo de uma boa marca de empregador concentra j os esforos daquelas empresas que perceberam que necessrio ser competitiva no mercado do trabalho qualificado para s-lo tambm naquele mercado para o qual produzem seus bens ou servios. O que acabamos de dizer no pode nos levar a ignorar, se no queremos incorrer numa evidente simplificao da realidade, a existncia de nutridos mercados perifricos de trabalho, nos quais se realizam as transaes que afetam a mo-de-obra de inferior qualificao. A necessidade de gerenciar adequadamente tanto a relao com esses mercados como as pessoas que nutrem esse segmento dos recursos humanos no pode ser ignorada. Esquecer dos normais lembra Serlavs (1996, p. 10) , sobre os quais descansa a responsabilidade de assegurar e dar continuidade aos primeiros da classe, um erro pelo qual os gestores de pessoas costumam pagar muito caro. Por isso, a idia, amplamente difundida e divulgada, de que as empresas comearam a travar uma guerra pelo talento, no est isenta de contestaes. Pfeffer (2001, p. 249 e seguintes) chama ateno para elas, destacando os seguintes possveis efeitos negativos dessa orientao: a) a nfase no rendimento individual (glorificar as estrelas) pode criar concorrncia interna destrutiva e enfraquecer o trabalho de equipe; b) exaltar os talentos dos de fora pode subestimar os de dentro; c) pode produzir um efeito de profecia auto-cumprida, conseguindo fazer com que certas pessoas cheguem a ser menos capazes depois de terem recebido sistematicamente menos ateno e recursos; d) tende a minimizar a importncia das questes de ordem sistmica e cultural e dos processos empresariais freqentemente mais importantes para o sucesso do que o fato de encontrar o melhor, e e) pode desenvolver uma atitude arrogante e auto-satisfeita (j ganhamos a guerra, o melhor pessoal o nosso) que deteriore significativamente a capacidade de percepo objetiva da prpria organizao. De qualquer modo, indiscutvel a afirmao de que em nossa poca o talento das pessoas conta. Especialmente se no limitarmos nossa viso do talento mera posse de conhecimento. O verdadeiro homo sapiens de nossos dias aquele que, alm de possuir conhecimento, dispe da capacidade para contextualiz-lo, recri-lo, aplic-lo, codific-lo, difundi-lo e compartilh-lo. O que nos leva a um paradoxo, mais um, num universo como o do trabalho contemporneo, repleto deles: nunca o conhecimento foi to importante como hoje, e nunca como hoje, por contraditrio que possa parecer, os componentes propriamente cognitivos do talento humano precisam ser, no entanto, mati-

30

MRITO E FLEXIBILIDADE

zados e relativizados. Os conhecimentos devem estar vinculados posse de qualidades sem as quais no produzem sucesso no trabalho. Como veremos a seguir, nas situaes de trabalho atuais a noo de qualificao se enriquece, deixa de identificar-se com os conhecimento tcnicos especializados e se estende (Dalziel, 1996, p. 32 e seguintes) a um conjunto mais amplo de competncias, no qual outras caractersticas humanas, especialmente as que possuem uma dimenso relacional, adquirem, cada vez mais, um significado determinante (Longo, 2002).

Os paradoxos de um mercado de trabalho globalOs pases europeus tm vivido nos ltimos anos um crescimento significativo do desemprego, que se converteu na principal preocupao dos governos (Conselho Europeu, 1997). Alguns pases, dos quais a Frana o exemplo mais destacado, desenvolveram planos nos quais o setor pblico desempenhava um papel relevante nos processos de aprendizagem e insero no trabalho, ligados a novas oportunidades de emprego. Ainda hoje, na Espanha, o desemprego , de longe, como revelam as pesquisas, a principal preocupao dos cidados. Paralelamente, e de modo paradoxal, o crescimento da demanda de empregados qualificados excedeu, s vezes muito, a capacidade do mercado de trabalho para prov-los. A crise generalizada dos sistemas educacionais acentuou esse desajuste que, embora tenha afetado principalmente os trabalhadores do conhecimento, acabou estendendo-se a setores de qualificao mdia da indstria e dos servios, insuficientemente nutridos pelos sistemas regrados de educao profissional. Estudos recentes (Jimnez e outros, 2002) prognosticam para a Espanha, em poucos anos, como conseqncia principalmente da queda demogrfica, um excedente de postos de trabalho oferecidos em todos os setores da atividade econmica. Se isso for certo, estaramos, por contraditrio que possa parecer em relao ao quadro atual, diante de uma situao iminente de endurecimento da concorrncia entre as empresas no mercado de trabalho, especialmente no que se refere, como j dissemos, captao de pessoal qualificado. Esta concorrncia se desenvolve num mercado cada vez mais global, o que acentua seus aspectos mais paradoxais. Embora em alguns casos vejamos um acirramento, como apontvamos, da concorrncia entre empregadores pela captao e reteno de talento, em outros onde a interface entre tarefas e qualificaes o permite o que fica acirrado a concorrncia entre pases e territrios pela captao das empresas, utilizando o custo do trabalho como

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

31

elemento diferenciador. As prticas do que vem sendo chamado de dumping social (manuteno de salrios baixos e condies de trabalho precrias para atrair investimentos) e os processos de des-localizao de empresas (mudanas de sedes e de pessoal, procura de custos de trabalho mais baixos) so fenmenos caractersticos dessas situaes. Alguns especialistas tm destacado o efeito de tudo isso sobre o recorte dos direitos trabalhistas e o enfraquecimento da posio dos sindicatos (Giarini e Liedtke, 1996, p. 223).

A reordenao do tempo de trabalhoA dimenso temporal do emprego passou para o centro do cenrio, reestruturando as relaes de trabalho (Supiot, 2001). No contexto empresarial fala-se de um novo sistema de concorrncia centrado na economia do tempo, que leva em conta o tempo empregado para produzir bens, para inovar e para comercializar novos produtos e servios (Beynon e outros, 2002, p. 122). A importncia do tempo de trabalho vem se fundamentando num conjunto de dinmicas diferentes, e nem sempre interrelacionadas, que afetam tanto o sistema produtivo como o sistema social. Por um lado, os novos ambientes da empresa vm exigindo, cada vez mais, uma capacidade flexvel de resposta que as regulaes padronizadas da jornada de trabalho no facilitam (Brewster e outros, 1997). As jornadas anualizadas os contratos fazem constar um nmero anual de horas de trabalho, permitindo certas flutuaes no horrio mensal ou semanal para adaptar-se aos fluxos de demanda, estoques etc. , as reservas de horas para trabalho imprevisto ou sazonal, a compensao de horas extras por tempo livre ou simplesmente o prolongamento no remunerado da jornada de trabalho a mais comum e freqentemente esquecida (Hegewish, 1999, p. 125) das modalidades de flexibilidade temporria tm sido, entre outras, as frmulas cada vez mais utilizadas nessa direo. Por sua vez, a reordenao do tempo de trabalho abriu caminho para melhoras de produtividade que fundamentaram algumas tentativas de reduo da jornada de trabalho, nos moldes das polticas pblicas de luta contra o desemprego. Um modelo de novo pacto social chegou a desenhar-se em torno da organizao de tempo de trabalho. A Frana foi o pas que apostou mais forte nisso, embora as mudanas polticas tenham levado a uma certa reconsiderao da iniciativa. Os processos de mudana neste campo foram acelerados, por outro lado, por fenmenos como a macia incorporao da mulher ao trabalho, ou as necessidades, que tm aumentado, de conciliar o trabalho com a vida pessoal e familiar, que estimularam modalidades de trabalho em tempo parcial, a dis-

32

MRITO E FLEXIBILIDADE

tncia, e outras (Fundacin Encuentro, 1998, p. 174; Giarini e Liedtke, 1996, p. 236 e seguintes). Esta no foi, no entanto, uma tarefa fcil. Para alguns especialistas, os trabalhadores devem se esforar hoje mais por conservar seus empregos e por manter seu prprio tempo privado e familiar separado daquele que oferecem ao seu empregador (Perrons, 1998). Por sua vez, Sennett (2000, p. 61) destacou o carter contraditrio da flexibilizao do tempo de trabalho, aparentemente desenvolvido de forma mais livre, mas igualmente controlado, embora de forma diferente: Nas instituies, e para os indivduos, o tempo foi liberado da jaula de ferro do passado, mas est sujeito a novos controles e a uma nova vigilncia vertical. Tudo isso levou, nesse terreno, a processos de ajuste, nem sempre fceis, entre as necessidades empresariais e as preferncia pessoais dos trabalhadores, cujo resultado tem sido, em geral, uma ampla diversificao e flexibilizao dos modelos de jornada, que perderam uma boa parte da uniformidade e imutabilidade que caracterizava a ordenao dos tempos de trabalho nas empresas da era industrial.

A empresa diversa, multicultural e individualizadaA globalizao rompe as barreiras e intensifica os movimentos da fora de trabalho atravs das fronteiras nacionais. Esta intensificao dos fenmenos migratrios est transformando aspectos substanciais das sociedades contemporneas, especialmente no primeiro mundo. A plena incorporao das mulheres ao trabalho se une ao surgimento de minorias sociais em atividades produtivas que antes lhes eram vedadas. Numerosas e diferentes identidades grupais coabitam nos mesmos ambientes de trabalho. A Diviso de Assuntos Econmicos e Sociais das Naes Unidas inclui, na noo de diversidade social na esfera do trabalho, as diferenas de gnero, raa, etnia, religio, orientao sexual e aptido psicofsica, assim como as que emanam do substrato e dos status familiar, econmico, educacional e geogrfico (Undesa-IIAS, 2001, p. 1). Certamente, no estamos mais falando apenas de fatos que afetam os nveis baixos da estrutura de tarefas das organizaes, mas que comeam a apresentar, como inevitvel num mundo globalizado, traos que se introduzem na gesto de profissionais e dirigentes e que atravessam toda a organizao do trabalho. Estas situaes transferem para a gesto das pessoas novas perguntas, a saber: como minimizar os aspectos negativos da diversidade sobre a capacidade dos grupos humanos para satisfazer as necessidades de seus membros e funcionar com eficcia? Como, paralelamente, maximizar os efeitos positivos

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

33

da diversidade sobre a criatividade, a qualidade das decises e a maior participao na governabilidade organizacional? Como reduzir as diferenas entre os grupos de identidade concorrentes no lugar de trabalho e destacar os interesses comuns, ao mesmo tempo em que se avaliam e se apreciam as contribuies originadas justamente da diversidade social? Como assegurar uma adaptao rpida e suficiente das polticas e prticas de pessoal a fim de garantir que o trabalho se converta num ambiente acolhedor para empregados que no passado ficavam excludos? (Ospina, 2001, p. 21). A gesto da diversidade passa a converter-se assim num imperativo organizacional e num novo desafio para os gestores. Por sua vez, incorpora novas oportunidades, que no devem ser ignoradas. A flexibilidade funcional exigida pela empresa atual, como assinalaremos mais adiante, requer a diversidade funcional, ou seja, a diversificao de caractersticas humanas relevantes para o desempenho, tais como as diferenas em conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, atitudes, personalidade e estilos cognitivos e de conduta. Pois bem, alguns especialistas tm destacado que a diversidade funcional se nutre em boa medida da diversidade social, enquanto a resistncia a admiti-lo reduz as oportunidades de encontrar as pessoas mais adequadas no momento devido (Schneider e Northcraft, 1999). Trata-se de fenmenos que, como outros que temos apontado, no s requerem uma ateno especfica e o desenvolvimento de um instrumental de gesto ad hoc, como, principalmente, uma mudana de modelos mentais. Provavelmente, a prpria noo de identidade grupal comea a ficar para ns insuficiente para explicar a verdadeira diversidade da empresa contempornea. A expresso empresa individualizada (Ghoshal e Bartlett, 1997) fala-nos de um passo a mais: o necessrio para destacar o indivduo como o verdadeiro protagonista da diversidade no trabalho. No fundo, o que est acontecendo que o trabalho humano deve comear a ser visto como um territrio povoado por pessoas, cada uma das quais sem prejuzo das mltiplas identidades de grupo, freqentemente assimtricas e sobrepostas, e dos aspectos comuns que as assemelham em certas coisas apresenta caractersticas prprias. Cada trabalhador expressa interesses e preferncias que se desprendem especificamente dessa individualidade. Podemos colocar isso da seguinte forma, embora soe redundante: as organizaes de nossos dias necessitam cada vez mais de uma gesto personalizada das pessoas. Talvez a biogentica resolva um dia o problema da diversidade da fora de trabalho, mas por enquanto o mundo do trabalho se tornou cada vez mais fluido, paradoxal, fragmentado, heterogneo; e sua gesto, forosamente, tende a se tornar cada vez mais flexvel, individualizada e complexa.

34

MRITO E FLEXIBILIDADE

AS NOVAS ORIENTAES DA GESTO DAS PESSOASAgora, sim, o momento de ns nos perguntarmos sobre a influncia de todas estas mudanas nas convices e nas tendncias que caracterizam a gesto contempornea das pessoas. Trata-se de uma pergunta que no tem resposta fcil. No existe atualmente um modelo indiscutvel, um paradigma dominante ao qual possamos nos referir; pelo contrrio, a teoria da gesto de recursos humanos apresenta a aparncia de um frum ou gora na qual se entrecruzam debates e propostas de feio diferente. Apesar de tudo, possvel, sim, apontar para algumas tendncias que, pela intensidade e extenso com que parecem estar influenciando as prticas reais das organizaes, podem ser vistas como enfoques que transcendem as modas do management e merecem por isso ser consideradas como orientaes de fundo no perodo em que vivemos. Vamos a seguir apont-las de modo breve e sistemtico, advertindo que no se tratam de enfoques antagnicos, mas freqentemente complementares, embora no isentos de certos elementos contraditrios. A forma pela qual os apresentamos obedece pretenso de introduzir uma sistemtica que facilite a leitura, mas no implica desconhecer as abundantes inter-relaes e sobreposies que existem entre eles.

O lema da exibilidadeSe uma nica palavra pudesse servir como lema das orientaes contemporneas do emprego e dos recursos humanos, e isso tanto na literatura sobre gesto como nos ambientes acadmicos e empresariais, essa palavra seria sem dvida flexibilidade. Flexibilidade um termo carregado de significados possveis que, como costuma ocorrer, entram s vezes em conflito. Vale a pena, por isso, fazer um esforo para esclarecer de que coisa, ou melhor, de que coisas estamos falando quando o utilizamos neste campo. O debate contemporneo sobre a flexibilidade no trabalho inicia-se na Europa no final da dcada de 1970 e no incio da de 1980 (Farnham e Horton, 2000, p. 7), ligado a um conjunto de fatos sociais entre os quais se encontram: 1) a mudana nos mercados mundiais e o incremento da concorrncia global; 2) a mudana tecnolgica, especialmente a registrada no campo da informao e das comunicaes; 3) a volatilidade dos mercados de produto; 4) o desemprego crescente, e 5) o trnsito da economia industrial para a chamada era ps-industrial. So cenrios que afetam diversos atores sociais, em torno de um conjunto de questes como a educao e a formao continuada,

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

35

a legislao social, os sistemas salariais, a jornada de trabalho, a igualdade de oportunidades e a flexibilidade das organizaes de servio pblico (Comisso Europia, 1997). O paradigma da empresa flexvel (Atkinson e Meager, 1986, p. 2-11), supostamente capaz de fazer frente ao conjunto de desafios que derivam de tais cenrios, incorpora diversos tipos de flexibilidade no que se refere gesto dos recursos humanos. A flexibilidade numrica, definida como a capacidade das companhias para ajustar o nmero de trabalhadores ou de horas de trabalho s mudanas ocorridas na demanda. A flexibilidade funcional, ou capacidade de reorganizar as competncias associadas aos empregos, de maneira que os titulares dos postos possam desenvolv-las atravs de um leque de tarefas ampliado horizontalmente, verticalmente ou em ambos os sentidos. O distanciamento, concebido como a substituio de contratos de trabalho por contratos mercantis ou pela subcontratao, a fim de concentrar a organizao na vantagem competitiva ou encontrar frmulas menos onerosas de administrar as atividades no nucleares. A flexibilidade salarial, que se identifica com a capacidade da empresa para conseguir que suas estruturas de retribuio estimulem a flexibilidade funcional, se revelem competitivas no que respeita s competncias mais escassas no mercado de trabalho e recompensem o esforo e desempenho individual dos empregados. Implcitas neste conjunto de enunciados (em sentido similar, Institute of Personnel and Development, 1994), encontramos duas vises da flexibilidade, presentes, em doses variveis, nos processos e discursos de mudana dos sistemas de gesto das pessoas. Embora no se tratem, em sentido estrito, de vises reciprocamente excludentes, elas costumam corresponder aos enfoques dominantes de gesto adotados em cada caso. A primeira dessas vises da flexibilidade ancora-se numa percepo dominante das pessoas como restrio e se centra na reduo dos custos de pessoal. Ela combina com os discursos empresarias da reengenharia, da reduo de pessoal (downsizing), das competncias-chave e da empresa em rede, e se orienta principalmente para a deteco e eliminao de excedentes e para a converso dos custos de pessoal, fixos em variveis. A segunda viso tende a perceber as pessoas mais como oportunidade, e coloca a nfase na flexibilidade da Gesto de Recursos Humanos (GRH) como apoio criao de valor por parte das pessoas. Sintoniza-se com os discursos empresariais da qualidade

36

MRITO E FLEXIBILIDADE

total (Fundao Europia para a Gesto da Qualidade, 1999), do nivelamento de estruturas e da promoo de autonomia pessoal para decidir (empowerment), ou com as prticas de alto desempenho (Pfeffer, 1998b, p. 44 e seguintes), e se orienta principalmente para a melhora qualitativa das polticas de recursos humanos, especialmente das mais relacionadas com o envolvimento e o compromisso das pessoas. Em sentido anlogo, faz-se distino entre uma gesto de recursos humanos dura, caracterizada por uma aproximao mais instrumental e uma nfase clara na minimizao dos custos, e uma branda, integrada pelo conjunto de polticas destinadas a maximizar a integrao organizacional, o compromisso dos empregados e a qualidade do trabalho (Storey, 1995). Sob um prisma diferente, o das preferncias e expectativas dos atores em jogo, outras duas vises so possveis e necessrias (Ridley, 2000, p. 33). De um lado, do ponto de vista dos interesses das organizaes, a flexibilidade se relaciona com os mecanismos por meio dos quais se consegue que as estruturas organizacionais, os processos de trabalho e as prticas de pessoal incrementem o controle dos gestores sobre os recursos humanos. De outro, a partir da perspectiva das pessoas, a flexibilidade tem a ver com as mudanas que habilitam os trabalhadores a exercer maior controle sobre suas vidas, como ocorre, para citar um s exemplo, com a relao entre a maternidade e o uso do emprego em tempo parcial. Levando em conta esta ambivalncia, afirmou-se que o desenvolvimento das novas modalidades de emprego flexvel pode ser considerado em parte como o resultado da mtua interao de fatores situados no lado da oferta e no da demanda (Beynon e outros, 2002, p. 123). Ambas as dimenses contribuem, em propores a serem determinadas em cada caso, para as mudanas nos sistemas de GRH. Em algumas ocasies, so perspectivas compatveis e complementares que se reforam reciprocamente. s vezes, no entanto, entram em conflito e obrigam os gestores a definir opes que privilegiam uma ou outra. Seja como for, a orientao dos sistemas de gesto do emprego e dos recursos humanos para a flexibilidade no deve se dar custa da perda de continuidade e coeso. Um excesso de flexibilidade pode produzir danos (Lundblad e outros, 1996), como um comportamento organizacional anrquico, uma liderana enfraquecida pela dificuldade de exerc-la sobre pessoas cujo vnculo com o posto fraco ou por uma cultura organizacional dispersa, fragmentada e pouco comprometida com o propsito comum. Mayrhofer (1996) utilizou o exemplo da coluna vertebral para tornar visvel a necessidade de que as organizaes adaptveis combinem, em propores adequadas, elementos flex-

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

37

veis e rgidos. Richards (1995, p. 16) nos lembra por sua vez que a flexibilidade no equivale pura reatividade diante de estmulos externos, nem pressupe a carncia de uma estratgia de recursos humanos. Ao contrrio, devem ser levadas em considerao as necessidades da poltica de pessoal a longo prazo e integrar as diferentes partes da gesto de recursos humanos num sistema mais flexvel. Por isso, [...] flexibilidade e estratgia no se contrapem: se do a mo.

A gesto por competnciaAs idias sobre a gesto por competncia impregnaram a GRH ao longo das duas ltimas dcadas, a ponto de alguns autores chegarem a falar de uma mudana de paradigma que substituiria uma organizao baseada no posto por uma organizao baseada nas competncias (Lawler, 1994). A noo de competncia aparece na gesto contempornea dos recursos humanos a partir de uma srie de estudos empricos desenvolvidos nos Estados Unidos em princpios da dcada de 1970. Um artigo de McClelland em The American Psychologist, do ano de 1973, considerado por alguns como o momento fundacional dessa orientao. Esses estudos constatam o vnculo existente entre o sucesso no trabalho (resultados obtidos pelas pessoas no trabalho) e a prtica reiterada de uma srie de comportamentos observveis no contexto de sua atividade produtiva. A explorao e identificao desses comportamentos, assim como sua anlise por meio de certas tcnicas, os relacionam com a posse de determinadas qualidades ou caractersticas pessoais. descoberta transcendente que tais qualidades vo alm dos conhecimentos tcnicos especializados, tradicionalmente considerados determinantes da qualificao profissional, para penetrar em motivos, traos de carter, conceitos de si mesmo, atitudes ou valores, habilidades e capacidades cognitivas ou de conduta. Isso leva McClelland a desqualificar os exames e provas tradicionais como prenunciadores do sucesso no trabalho. A McBer Associates, consultoria criada por McClelland, elaborou para diferentes companhias norte-americanas modelos de competncias baseados neste enfoque. Em 1982, um dos membros da McBer, Richard Boyatzis, desenvolveu por encomenda da American Management Association uma pesquisa cujo objetivo era identificar as competncias que diferenciam os managers excelentes dos que produzem resultados meramente aceitveis, e estes ltimos dos menos bemsucedidos. Participaram deste estudo 1.800 dirigentes, titulares de 41 postos diferentes e pertencentes a 12 companhias. A publicao desse estudo contm

38

MRITO E FLEXIBILIDADE

a definio, j clssica, das competncias como caractersticas subjacentes a uma pessoa, causalmente relacionadas com uma atuao de sucesso num posto de trabalho (Boyatzis, 1982). Embora a pesquisa identificasse dezenove competncias genricas que os dirigentes deveriam possuir (mais tarde esse dicionrio genrico seria refinado e ampliado por seu autor), Boyatzis enfatizou desde o primeiro momento o peso do contexto, sublinhando a necessidade de definir modelos de competncias prprios de cada organizao. Em estreita relao com este enfoque encontra-se a noo de inteligncia emocional, popularizada pelo best-seller de Goleman (1996). A inteligncia emocional foi definida como uma forma de inteligncia social que inclui a capacidade de manejar os sentimentos e emoes prprios e os dos outros, fazer distino entre eles e usar essa informao como guia dos prprios pensamentos e ao (Salovey e Mayer, 1990). Num desenvolvimento mais recente, em que esta noo foi aplicada anlise da liderana, sustentou-se que 80 a 90% das competncias, que permitem distinguir os lderes que se sobressaem, pertencem ao domnio da inteligncia emocional, e no s capacidades cognitivas (Goleman, Boyatzis e McKee, 2002, p. 306). A gesto por competncia pressupe sua utilizao como um padro ou norma para a seleo de pessoal, o planejamento de carreiras e a sucesso, a avaliao do desempenho e o desenvolvimento pessoal (Hooghiemstra, 1992). Este enfoque converte as competncias num eixo central dos sistemas de gesto das pessoas, tal como hoje so entendidas e praticadas num nmero crescente de empresas e organizaes de todo tipo. Como j apontamos, entramos numa poca em que os conhecimentos especializados adquiridos num certo momento vm sua vida til se reduzir progressivamente, enquanto os processos permanentes de aprendizagem e re-qualificao so vistos como inerentes ao sucesso no trabalho. Parece razovel pensar que as competncias genricas, que tornam possveis esses processos de ajuste, podem chegar a ter tanta ou mais importncia que o grau de saber tcnico especfico possudo num momento dado. Se esta uma reflexo importante para os indivduos, j que est ligada sua empregabilidade, no o menos para as empresas, cujo ativo humano ser com freqncia tanto mais valioso quanto mais adaptvel. Gerenciar por competncias implica dedicar uma ateno prioritria aos elementos qualitativos do investimento em capital humano. Neste enfoque encontram seu fundamento conceitual algumas inovaes importantes da gesto dos recursos humanos em nossos dias. Referimo-nos a orientaes que afetam os sistemas de organizao do trabalho, como o caso do desenho de postos em banda larga (broadbanding); os de incorporao, como se detecta no uso crescente da entrevista de incidentes crticos ou dos centros de avaliao

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

39

(assessment centers); os de desenvolvimento de pessoas, como ocorre com os modelos de carreira horizontal, ou os de compensao, que incorporam crescentemente os planos de retribuio por competncias. A todas elas iremos nos referir mais adiante.

O capital intelectual como vantagem competitivaEmbora a gesto por competncia centre sua ateno, como vimos, nas pessoas e em suas qualidades e caractersticas individuais, a noo de competncia serviu de base para orientaes de gesto baseadas na dimenso coletiva daquelas, e em sua difuso e interiorizao por parte da organizao. Os conceitos de competncia distintiva ou competncias-chave (core competences), extensamente difundidos, entre outros, por Pralahad e Hamel (1990, 1995), transferem do ambiente exterior para o interior da empresa, e fundamentalmente para as pessoas, a reflexo sobre a vantagem competitiva. Aquilo que a organizao sabe fazer melhor que seus concorrentes a chave do sucesso. Em comparao com os produtos que a empresa capaz de obter e lanar no mercado, suas competncias-chave so mais estveis e no diminuem com o uso. Pelo contrrio, nas palavras dos autores citados, as competncias aumentam quando so aplicadas e compartilhadas. A concorrncia real entre as empresas, chega a dizer Hamel (1991, p. 83), numa frase que em espanhol parece um jogo de palavras, a concorrncia entre competncias (NT)6. Ou, o que vem a dar na mesma: diferentemente do que ocorre quando a concorrncia entre produtos, a concorrncia entre as empresas est diretamente relacionada com a aquisio, posse, difuso e aplicao de conhecimentos e habilidades. A criao e manuteno de uma vantagem competitiva concebida desta forma depende no s da qualidade da soma dos recursos humanos individuais reunidos pela empresa, mas da prpria capacidade desta ltima para aprender coletivamente. Os mesmos Pralahad e Hamel (1990, p. 82) identificam a core competence com a aprendizagem coletiva, em especial sobre como coordenar diversas habilidades na produo e integrar fluxos mltiplos de tecnologias. Por isso importante que as empresas consigam converter-se em organizaes que aprendem (learning organisations), em empresas capazes de criar conhecimento. Durante a dcada de 1990, obras como as de Senge (1992) e Nonaka e Takeuchi (1995) desenvolveram esse enfoque de gesto tendo a

6

NT: em espanhol, competencia entre competencias.

40

MRITO E FLEXIBILIDADE

aprendizagem organizacional como centro. Considerando que a aprendizagem, sem discutir sua dimenso grupal e seu impacto organizacional, um fenmeno protagonizado sempre por indivduos, a relao dessas orientaes com a gesto das pessoas fica evidente e estreita. As companhias que desejem ser organizaes que aprendem devero propor a si mesmas e desenvolver um conjunto de polticas e prticas de gesto cujo centro sejam as aes e relaes humanas no interior da organizao. Em estreito contato com tudo isso est a noo, difundida mais recentemente, de capital intelectual. Como assinalou Stewart (1997, p. 55), quando os mercados de capitais avaliam as companhias trs, quatro ou dez vezes acima do valor contabilizado de seus ativos, esto dizendo simplesmente o seguinte: os ativos materiais de uma empresa baseada no conhecimento contribuem muito menos para o valor de seu produto ou servio final do que os ativos intangveis, ou seja, os talentos de seu pessoal, a eficcia de seus sistemas de gesto, o carter das relaes com seus clientes etc. Estas coisas so, consideradas em conjunto, seu capital intelectual. Este capital deve ser gerenciado e sua gesto vai muito alm do armazenamento e da manipulao de dados. Pode ser definida (Aza, 1999, p. 67, citando Marshall e outros) como a tarefa de reconhecer um ativo humano enterrado na mente das pessoas, e convert-lo num ativo empresarial que possa ser acessado e que possa ser utilizado por um maior nmero de pessoas, de cujas decises depende a empresa. Em outras palavras, a inteligncia se torna um ativo quando adquire uma utilidade externa ao livre fluxo das idias no crebro; quando se d a ela uma forma coerente (um banco de dados, uma listagem postal, a agenda de uma reunio, a descrio de um processo); quando ela capturada de uma forma que permita sua descrio, compartilhamento e explorao, coisas que seriam impossveis se permanecesse dispersa. O capital intelectual conhecimento til empacotado (Stewart, 1997, p. 67). Como gerenci-lo? Obeso (1999, p. 35 e seguintes), citando Davenport e Prusak, enumera quatro enfoques reconhecveis na prtica empresarial: a) armazns de conhecimento: o conhecimento catalogado como algo externo aos seus criadores, e armazenado em documentos fsicos ou eletrnicos; b) acesso e transferncia de conhecimentos: centrados no desenho de procedimentos para favorecer a transmisso de conhecimentos entre possuidores e usurios potenciais; c) ambientes favorveis ao conhecimento: centram-se em criar conscincia e receptividade cultural a respeito do uso e da transmisso de conhecimento; d) projetos de medio e melhora: sua nfase est nas tcnicas de avaliao do conhecimento disponvel.

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

41

Sem dvida, a gesto do capital intelectual tem um aspecto duro (hard), que est ligado ao uso das tecnologias: procedimentos de comunicao on-line, de prospeco de dados, sistemas especialistas etc. Sem prejuzo disso, seu centro se encontra muito prximo da gesto das pessoas, especialmente daquela gesto que se desenvolve em organizaes de profissionais. Nahapiet e Ghoshal (1998) relacionaram os bons resultados das organizaes na gesto do capital intelectual com sua riqueza em capital social interno amplitude e densidade das redes internas de intercmbios de conhecimento baseados na confiana interpessoal e na existncia de normas de reciprocidade. Essa aproximao reala os elementos prprios da gesto das pessoas como chave do sucesso. Afinal, nenhuma intranet ser capaz de criar conhecimento ali onde este no exista, ou de difundi-lo em contextos organizacionais nos quais os incentivos existentes estimulam mais a sua apropriao com exclusividade do que seu compartilhamento.

As prticas de alto desempenhoSob o lema de alto desempenho ou de alto compromisso (Lawler e outros, 1995) podemos agrupar um conjunto de orientaes, polticas e prticas empresariais de gesto dos recursos humanos que tenham como objetivo a obteno do mximo possvel de alinhamento, envolvimento e produtividade dos empregados. O fio condutor dessas polticas a busca de maior grau de identificao entre as expectativas e preferncias individuais e os objetivos de desempenho derivados da estratgia de empresa. O que faz da empresa um lugar atraente para os empregados? Basicamente, a alta qualidade de trs relaes interconectadas: a relao entre os empregados e seus trabalhos; a relao dos empregados entre si, e a relao entre eles e suas chefias (Great Place to Work Institute, 2003). Agrupamos aqui, sem pretenso de sermos exaustivos nem sistemticos, algumas prticas de gesto destinadas a satisfazer essas aspiraes e melhorar assim os resultados empresariais.

O enfoque do empowermentTransferir para as pessoas uma esfera to ampla quanto possvel de poder de deciso, e responsabiliz-las por isso, surge como conseqncia tanto da adoo de determinadas teorias sobre o comportamento humano, como de reflexes derivadas da prpria evoluo do trabalho e das tecnologias, especialmente nos ambientes apropriados dos servios.

42

MRITO E FLEXIBILIDADE

Assim, por um lado, uma crescente tendncia de incorporar gesto das pessoas aquelas teorias sobre a motivao que acentuam a identificao com a tarefa (Hackman e Oldham, 1975, 1979) leva a salientar na medida do possvel o significado do posto de trabalho para a pessoa, assim como a percepo desta de ser responsvel pela execuo da tarefa e dos resultados da referida execuo. Isso, por outro lado, mostra coerncia com o incremento do peso dos servios na economia produtiva, que implica a generalizao de processos nos quais a produo e a distribuio se concentram e so protagonizados pelo indivduo, em direta interao com o mercado. A prpria qualidade do servio prestado requer nesses casos uma ampliao significativa da margem de deciso das pessoas. Nas organizaes de profissionais que caracterizam a economia do conhecimento, essas exigncias so sentidas de maneira particularmente intensa. A criao de equipes de trabalho autodirigidas (Pfefffer, 1998b, p. 83) uma das modalidades de empowerment que combina a descentralizao da deciso com o estmulo da interao grupal. O trabalho em equipe, sem dvida outro dos mitos de nossa poca, revela-se particularmente necessrio quando a complexidade do ambiente exige articular a combinao multifuncional de diferentes saberes tcnicos em contextos no hierrquicos, como mecanismo adequado para produzir respostas de qualidade. Nonaka e Takeuchi (1995, p. 160 e seguintes), entre outros, destacaram a relao das equipes com a produo de inovao. Quer tendo como destinatrios indivduos, quer equipes de trabalho, a descentralizao do poder de deciso, substituindo o controle hierrquico pela autodireo, relaciona-se estreitamente com uma destacada tendncia contempornea do desenho de estruturas organizacionais, que consiste na eliminao de nveis de hierarquia intermediria. Essa eliminao de camadas (delayering) nas cadeias de autoridade formal das organizaes expressa, ao mesmo tempo, a influncia do enfoque do empowerment e a preferncia por estruturas planas. Nestas, os fluxos de informao ascendente, descendente e lateral circulam com maior velocidade e facilitam por isso a agilidade da resposta estratgica das organizaes s mudanas cada vez mais freqentes do ambiente empresarial.

A gesto do desempenhoAtualmente os enfoques sobre o desempenho das pessoas no trabalho tendem a superar as abordagens tradicionais, centradas na medio do rendimento, assim como os correspondentes debates em torno das tcnicas e mtodos de avaliao mais confiveis e vlidos, e vo introduzindo orientaes de

A GESTO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

43

gesto de carter mais relacional, centradas no crescimento profissional das pessoas. Estes novos enfoques do desempenho so coerentes, por um lado, com a desconfiana, prpria de nossa poca, nos artefatos centralizados prprios das burocracias taylorianas; por outro lado, se assentam em concepes dinmicas do desempenho, que o vinculam ao desenvolvimento do potencial das pessoas. Em concordncia com tudo isso, a gesto do desempenho profissional tende a ser vista cada vez mais como uma forma de estimular as competncias e a motivao dos empregados para