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O que acha do mensalão um homem aparentemente tão bem informado como dom Raymundo Damasceno, 76 anos, arcebispo de Aparecida e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)? A Folha de S.Paulo, um dos principais diários do País, o ouviu a respeito em meados de setembro e publicou nota com o seguinte título: “Presidente da CNBB afirma que men-salão está comprovado”. E parece que é isso mesmo – já na abertura do texto, o jornal diz que, para dom Damasceno, “a existência do esquema do mensalão petista está comprovada”.

A informação merece reparos. A Fo-lha é um jornal conservador; sua posição editorial é de defesa da condenação dos chamados mensaleiros. E, no caso da nota citada, uma edição mais cuidadosa do texto deixaria margem a dúvidas sobre a posição do entrevistado. Dom Damasceno, de acordo com o segundo parágrafo da nota, diz uma coisa e seu oposto, em sequência: “O processo aí no Supremo está nos dizendo que o fato existiu. Ou então estão fazendo um julgamento fictício”. No entanto, não é de estranhar que o alto prelado católico condene os mensaleiros e julgue que, por A + B, o Supremo Tribunal Federal (STF) provou a existência do “esquema do mensalão petista”. Isso por vários motivos. O primeiro dos quais é o de que as pessoas são, de um modo geral, muito mal informadas, especialmente quando as questões são complicadas, como nesse caso.

Retrato do Brasil contou a história da Ação Penal (AP) 470, na qual o STF julgou o mensalão, em 13 grandes repor-tagens que reproduzimos nesta edição. Os fatos principais podem ser resumidos em quatro pontos:

1. Já no segundo turno da eleição presidencial de 2002, que elegeu o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, o Partido dos Trabalhadores (PT), antes, de modo geral, execrado pelos homens

do dinheiro, tornou-se o preferido dos financiadores da campanha e arrecadou mais do que seu adversário de então, o PSDB de José Serra.

2. Entre o início de 2003 e meados de 2005, dois pequenos bancos mineiros, Rural e BMG, emprestaram à SMP&B, uma grande agência de publicidade de Belo Horizonte, 56 milhões de reais para serem transferidos ao PT. A agência, por sua vez, por ordens do comando petista, repassou os 56 milhões a pessoas do próprio partido, a Duda Mendonça, o marqueteiro da campanha de Lula, e a

alguns de seus aliados, especialmente o PL, do então vice-presidente da Repúbli-ca, José Alencar.

3. Em junho de 2005, Roberto Jefferson, deputado federal e presidente do PTB, ao ser acusado pela revista Veja numa história de corrupção existente na estatal Correios, denunciou a distribuição do dinheiro emprestado à SMP&B, operação que ele, de algum modo, conhecia por seu partido ter sido um dos beneficiários do esquema petista. Jefferson, no entanto, espertamente batizou a distribuição dos recursos de “mensalão” – como se fosse uma

espécie de mesada para comprar votos de parlamentares –, que seria realizada sob o comando de José Dirceu, então chefe da Casa Civil do presidente Lula. Jefferson apontou o publicitário Marcos Valério, um dos diretores da SMP&B, como a figura-chave na distribuição do dinheiro. Em 14 de julho, por iniciativa do próprio advogado de Valério, Marcelo Leonardo, toda a lista de beneficiários dos 56 milhões de reais distribuídos foi entregue ao então procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, e, logo depois, divulgada pela imprensa.

4. O caso, que era o de uma típica distribuição clandestina de dinheiro para campanhas eleitorais, mudou ra-dicalmente com a descoberta, logo a seguir, em 3 de agosto, de que o diretor de Marketing do Banco do Brasil (BB), o petista Henrique Pizzolato, tinha sido o receptador de cerca de 300 mil reais do dinheiro distribuído. O BB tinha con-trato de publicidade com a DNA, outra empresa com a participação de Valério. A DNA aplicara em publicidade 73,8 milhões de reais do BB, vindos de um fundo chamado Visanet, formado pelas comissões obtidas com a venda de car-tões da bandeira Visa. E logo surgiu o que é basicamente a tese central, o pilar da acusação contra os petistas: os 300 mil reais recebidos por Pizzolato eram uma propina, e não dinheiro repassado por ele ao PT, como o diretor do BB alegou. Essa propina teria sido dada a ele por Va-lério para a compra do apartamento em que morava. Os 73,8 milhões do fundo Visanet não tinham pagado publicidade alguma. A DNA usara esse dinheiro para simular a existência dos 56 milhões de empréstimos dos bancos mineiros repas-sados ao PT. Ou seja, em palavras mais simples: os empréstimos dos bancos eram o disfarce para um grande desvio de dinheiro público, o dinheiro roubado pelo PT do BB.

RB demonstra exaustivamente, com esta reedição das 13 grandes reportagens

Reflexões sobre a política, a opinião pública e a mídia que as informa

Para entender o mensalão

Ponto de vista

Com o escândalo, Lula chegou a cair muito

nas pesquisas. Depois se recuperou, voltou a ser o guia da opinião popular. Como disse, saiu por aí, “elegendo postes, iluminando o

Brasil”

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que publicou sobre o assunto desde fevereiro de 2012, que a tese mestra do mensalão é falsa e, neste Ponto de Vista, procura esclarecer por que isso ocorreu. O exemplo de dom Damasceno mostra que mesmo pessoas que deveriam estar suficientemente esclarecidas sobre o assunto ainda permanecem confusas. Quando o julgamento da AP 470 come-çou, em agosto do ano passado, segundo apurou o Instituto Datafolha em pesquisa nacional, 73% das pessoas achavam que os acusados deveriam ser condenados e presos, embora apenas 16% do total se considerassem “bem informados”, 39% se achassem “mais ou menos informa-dos” e 20%, “mal informados”. Além disso, 46% dos entrevistados conside-ravam o julgamento “parcial” e apenas 39%, “imparcial”.

Quando o STF decidiu que 12 dos mensaleiros, condenados por pequena diferença de votos, deveriam ter direito a uma espécie de segunda instância de jul-gamento, com o reexame dos autos pelo próprio tribunal, mas com um novo revi-sor, nova pesquisa nacional do Datafolha mostrou que 79% das pessoas queriam a prisão imediata dos réus. No entanto,

41% achavam que o Supremo tinha feito um “péssimo” trabalho, enquanto apenas 20% do total de entrevistados achavam que o STF realizara um trabalho “ótimo ou bom” (29% o consideravam “regular”).

Tudo indica que, de modo geral, a opinião pública, tanto a esclarecida como a menos esclarecida, se acomodou com uma versão da história parecida com a que teria manifestado o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo e hoje um dos principais assessores do papa Francisco, quando, de acordo com documentos vazados pelo WikiLeaks, du-rante conversa com Christopher McMul-len, então cônsul-geral dos EUA em São Paulo, em março de 2006, responsabili-zou o ex-ministro Dirceu pelo escândalo do mensalão e afirmou que o presidente Lula “não merecia isso”. Dom Cláudio absolveu o PT e sua figura – digamos assim – monumental. Segundo teria dito na tal conversa com o representante do governo americano, Lula foi “mal servido de pessoas que possuíam seus próprios interesses”. No caso de Dirceu, teria dito dom Claudio, o ex-ministro “aparelhou o governo para atender à ânsia de poder

do PT”. O encontro foi relatado em te-legrama enviado ao Departamento de Estado americano em 14 de março de 2006 e repassado ao diário O Globo pelo WikiLeaks.

Note-se que os próprios petistas queriam a prisão dos mensaleiros na mesma intensidade pretendida pelos não petistas. Entre os pesquisados pelo Datafolha no levantamento já citado, de agosto do ano passado, 73% do total queriam a prisão imediata dos mensa-leiros; quando a pesquisa considerava apenas os petistas, o resultado era o mesmo: 73% dos identificados com o partido também queriam “a condenação e a prisão imediatas” dos réus.

Essa “opinião pública” a respeito do mensalão mudou com o tempo: no auge do escândalo, no final de 2005, as pesquisas mostravam que, na eleição presidencial do ano seguinte, Serra, o então possível candidato da oposição pelo PSDB, estava à frente de Lula. Já em março do ano seguinte, a situação se inverteu e Lula passou a ser o prefe-rido. O petista só não ganhou a eleição presidencial de 2006 no primeiro turno porque foi levantada contra o partido

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Lula, Dilma e Haddad, na campanha à Prefeitura paulistana, no ano passado: o grande líder petista e os eleitos para iluminar o País

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outra tese de corrupção, a dos chama-dos “aloprados”, com a prisão de alguns petistas de posse de dinheiro vivo para ser utilizado na campanha eleitoral e a exposição dos montes de notas apre-endidas com eles pelo Jornal Nacional, da TV Globo, exatamente na véspera do primeiro turno do pleito. Já nas eleições seguintes, de 2010, para presidente, e de 2012, para prefeitos, o PT, de Lula – não o de Dirceu, ressalve-se –, voltou a ser o guia político da opinião pública popular: como o próprio Lula declarou, referindo-se à vitória de Dilma Rousseff e à de Fernando Haddad, ele foi elegendo “postes” e “iluminando o Brasil”.

Em setembro de 1993, em viagem de campanha pela Amazônia como pré-candidato a presidente da Re-

pública para a eleição do ano seguinte, que disputou e perdeu para Fernando Henrique Cardoso, Lula declarou que ha-via no Congresso Nacional “uma maioria de 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses”. A frase virou letra da banda de rock nacional Os Pa-ralamas do Sucesso: “Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou / São 300 picaretas com anel de doutor”. Ela reflete parcial-mente uma crendice popular: a de que os políticos profissionais brasileiros são como Justo Veríssimo, um imaginário deputado federal de Pernambuco, ora interpretado por Chico Anysio e autor dos bordões: “Eu quero apenas me ar-rumar”, “Detesto pobre” e “Quero que pobre se exploda”. Em setembro passado, uma pesquisa nacional do Ibope sobre as instituições brasileiras mostrou que 81% das pessoas achavam que nossos partidos políticos são entidades do tipo “Justo Veríssimo”, “corruptos ou muito corruptos”, enquanto, por exemplo, ape-nas 35% enquadravam os empresários nessa mesma situação.

O PT surgiu das impressionantes lutas dos operários e de outras cate-gorias de trabalhadores do campo e da cidade ocorridas no final dos anos 1970 e, de início, capitalizou um conhecimento antigo, o de que a história da política é, no fundo, a história da luta das classes sociais em defesa de seus interesses. Lula foi candidato a governador de São Paulo pelo PT em 1982, nas primeiras eleições após a reforma partidária feita pela ditadura, quando os partidos de algum modo ligados à tradição marxis-ta – PCB, PCdoB e MR-8 – ainda viviam em semiclandestinidade, apresentando

candidatos pela legenda do atual PMDB. O lema da campanha petista para o governo paulista, “Trabalho, terra e liberdade”, sintetizava a defesa de uma nova democracia.

Um novo regime democrático, de ca-ráter socialista, surgira como necessida-de, desde meados do século XIX, quando o mundo foi sacudido por uma onda de re-voluções. Naquela época, a despeito das palavras de ordem “Liberdade, “igualda-de” e “fraternidade” anunciadas pelas revoluções burguesas de Inglaterra, EUA e França nos dois séculos anteriores, os direitos dos trabalhadores da cidade e do campo sob o sistema capitalista eram poucos, suas condições de trabalho eram péssimas e sua exploração, intensa. Nessas circunstâncias, os partidos e movimentos formados para defender os

interesses dos trabalhadores passaram a pregar a necessidade de construção de um tipo de democracia mais ampla. As vitórias das revoluções socialistas na Rússia, em 1917, na China, em 1949, e em Cuba, em 1959, por exemplo, animaram essas esperanças. No Brasil, o PT surgiu desse movimento. “Vote no três, porque o resto é burguês”, “Trabalhador vota em trabalhador” e “Vote no Lula, um brasi-leiro igualzinho a você” eram os slogans da campanha petista de 1982.

O PT que chegou ao poder com a posse de Lula em 2003, no entanto, tinha sofrido uma metamorfose. Ela se operou, formalmente, em três anos, na virada do século. Em 1999, o partido escolheu uma nova direção e decidiu afastar-se do movimento “Fora FHC”, uma ampla agitação popular apoiada por praticamente toda a esquerda. Em

meados de 2002, sob intensa pressão dos conservadores, Lula decidiu assinar a “Carta ao povo brasileiro”, com a qual se comprometeu a respeitar todos os compromissos assinados com o capital fi-nanceiro pelos governos liberais iniciados com a vitória de Fernando Collor de Mello em 1989 para presidente da República. Os dois acontecimentos estão intimamente relacionados e precisam ser vistos no seu contexto.

Em 1999, Fernando Henrique Cardo-so iniciara seu segundo mandato e uma nova etapa de sua política econômica. No primeiro, de 1995 a 1998, deu andamento a uma política de estabilização monetária fundamentada na atração de capitais internacionais por uma espetacular elevação dos juros internos, iniciada no governo Collor. Com o apoio de uma ex-periente equipe de economistas ligados ao mercado financeiro, deu os toques finais nessa política com o Plano Real. Os juros descomunais fizeram disparar a dívida pública e, a despeito de o presi-dente ter sido reeleito, o País quebrou em fins de 1998. FHC pediu, então, socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI).

A nova política econômica foi definida com a nomeação de Armínio Fraga – um sagaz gestor de fundos internacionais associado ao famoso banqueiro George Soros – para a presidência do Banco Central (BC). E foi essa nova política que pôs de pé o tripé de fundamentos da integração da economia brasileira ao sistema financeiro internacional, hoje em vigor. A relativa estabilidade da nova moeda brasileira com a queda da inflação de mais de 1.000% ao ano para a casa dos 10% anuais, como que por milagre, se deveu, de fato, à grande entrada de dólares atraídos por juros altíssimos, à abundância de capitais no mercado ex-terno e, ainda, à política de atrelamento do real ao dólar.

Dizia Marcílio Marques Moreira, mi-nistro da Fazenda do governo Collor, que os capitais são como o vento: só entram se podem sair. Os capitais só vieram por-que tinham garantias para sair... e bem. O Plano Real garantia aos que viessem aplicar aqui – os que transformassem seus dólares na moeda do País – a saída ao par: ou seja, para cada real que trou-xessem ao BC na entrada, receberiam, quando da viagem de volta, um dólar. Já em 1997, no entanto, começou uma crise no centro do sistema capitalista. A abundância de capitais externos acabou e, mesmo acelerando as privatizações

Com a ajuda de Duda Mendonça, o PT entrou

no jogo: abandonoua mobilização

popular por umanova democracia

e ganhou por cima. Ainda assim, não satisfez o inimigo

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com a ampliação das concessões feitas aos compradores de fora, como aconte-ceu na venda do sistema Telebras, o País quebrou porque os capitais não vieram mais. Ao contrário, saíram às manadas, e o balanço de pagamentos brasileiro com o exterior passou a apresentar déficits sucessivos e só se equilibrou quando o País se internou no FMI, se ajoelhou para rezar por sua cartilha e então recebeu os dólares para pagar o capital que migrou de volta para os aplicadores.

No início de 1999 o governo FHC não tinha mais, portanto, a moeda forte, de valor igual ao do dólar, da qual se vangloriava. O real tinha dois pilares de sustentação: a garantia de juros reais positivos para que os aplicadores em tí-tulos da dívida pública não tivessem seus rendimentos corroídos pela inflação e a geração de um superávit orçamentário anual do governo para pagar juros e im-pedir que sua dívida saísse de controle. A solução construída por Fraga no BC foi acrescentar aos dois pés um terceiro, o câmbio flutuante, para que o preço da moeda brasileira refletisse o interesse efetivo dos investidores, e não o coman-do do governo.

A quebra do real no início de 1999, com o estabelecimento, pelo BC, de sua livre flutuação, deu-se pouco depois de um enorme escândalo político: a divul-gação dos chamados grampos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Nesses grampos, per-cebem-se, de viva voz, os financistas de FHC negociando com os homens do FMI, pelas costas do Congresso Nacional, a elaboração de normas como a que depois iria ser conhecida como Lei de Respon-sabilidade Fiscal. A quebra da moeda e o escândalo foram os elementos centrais do movimento “Fora FHC”.

A ideia central da oposição ao go-verno era aproveitar a conjuntura para criar um grande movimento de massas, pressionar o governo por mudanças na questão central de sua política, de integração ampla do País ao capital financeiro internacional e de defesa dos grandes interesses internos associados a esses capitais, e, de quebra, ganhar as eleições de 2002. O “Fora FHC”, no entanto, foi recebido pela grande mídia conservadora como um movimento para derrubar o presidente pela força, uma tentativa de “golpe de Estado”, como

disse Ricardo Setti, colunista da revista Veja, um dos veículos mais destacados na crítica aos petistas.

Certamente, havia dentro da esquer-da setores que acreditavam ser possível afastar FHC do governo pela ação das massas naquele momento. Uma marcha a Brasília, partindo do Rio de Janeiro, foi organizada com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Mas não foi essa a orientação do “Fora FHC”, movimento mais amplo que culminou com uma concentração de cerca de 100 mil pessoas em Brasília em 26 de agosto de 1999, com apoio do PT e dos outros partidos de esquerda e mesmo de setores mais progressistas do PMDB. A direção do movimento entregou ao presidente da Câmara dos Deputados um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas contra a política liberal do governo.

Na sequência desses fatos, o comando do PT, ao que tudo indica, divisou a pos-sibilidade de chegar ao poder por cima e, no congresso para a escolha de sua nova direção, realizado em Belo Horizonte, em novembro, Dirceu, com o apoio de Lula, apresentando uma plataforma que

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Duda Mendonça, o marqueteiro de Lula: parte dos 56 milhões de reais do “caixa dois” foi destinada ao pagamento de seus serviços

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defendia a retirada do partido do “Fora FHC”, foi eleito presidente, com os votos de sua corrente, a Articulação (43,64%), e de outra ala centrista, o Movimento PT (12,71%), tendo como principal adversário Milton Temer, pela Articulação de Esquer-da (20,83%). O esforço para chegar ao po-der por cima foi completado com a famosa “Carta ao povo brasileiro”, firmada por Lula e divulgada a 22 de junho de 2002. Ela anunciou que, se chegasse ao gover-no, Lula faria, primeiro, uma pausa, uma fase de transição, antes de tentar mudar estruturalmente o País. A carta continha duas mensagens endereças visivelmente aos credores internacionais do País. Em uma, dizia: “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do País”. E, na outra: “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”.

O esforço para completar a transição persiste até agora, após quase comple-tados 11 anos do PT na Presidência da República. A época das mudanças estru-turais ainda não chegou. E o que é pior: o PT não ganhou a confiança dos de cima.

A despeito de o PT ter cumprido tudo que prometeu às forças mais conservadoras, seu governo não

foi poupado por elas. Veja não comanda o coro da grande mídia conservadora contra o PT. O Estado de S. Paulo, o grande diário da elite paulista, com suas bem acabadas páginas de editoriais, com certeza tem esse papel dirigente. Como RB destacou ao final de sua primeira grande reportagem sobre o mensalão, Jefferson, o criador do escândalo, pautou sua primeira denúncia, contra o presiden-te Lula, pelo editorial do Estadão de 8 de junho de 2005. Três dias após, quando o jornalão da família Mesquita mudou de alvo e disse que o nome da crise era “José Dirceu de Oliveira e Silva”, Jeffer-son mudou também: ele discursou no Congresso dizendo que Lula era inocente e pedindo o afastamento do chefe da Casa Civil, pedindo sua saída do governo.

Veja, no entanto, é a voz mais es-tridente na campanha de denúncias do governo petista por grupos políticos conservadores. Um exame do comporta-mento do semanário do grupo Abril entre o início do governo Lula, em janeiro de 2003, e o auge da denúncia do mensa-lão, em setembro de 2005, mostra, de

maneira bem clara, as características dessa campanha. Lula é relativamente preservado, graças às concessões que comandou, mas o PT e a ala considerada mais à esquerda de seu governo são ata-cados ao longo de todo o tempo, numa campanha que culmina com o “escândalo do mensalão”.

Nos primeiros meses do governo Lula, a revista elogiou realizações eco-nômicas, como a elevação da meta do superávit primário para pagar juros, o “aumento esquelético” dado aos servidores públicos e o empenho para realizar uma reforma da Previdência que cortaria “privilégios” e deixaria “patente” o respeito do governo pelo regime de responsabilidade fiscal. Lula, disse Veja, fora “abençoado, pelo FMI, como um socialista moreno”.

Quando, em maio, o então presi-dente apresentou o plano de reforma da Previdência, Veja disse tratar-se da “prova definitiva” de que Lula pretendia “consertar os alicerces financeiros do Brasil sem apelar para o aventureirismo das soluções mágicas”. Em junho, classifi-cou um protesto dos servidores públicos contra o plano de reforma de “a marcha dos privilégios”. E quando, em agosto, a reforma foi aprovada por ampla maioria na Câmara dos Deputados (358 contra 126 votos), Veja disse que o fato marcava o verdadeiro início do governo.

Desde logo, no entanto, a revista foi discriminando os membros do governo tidos como de esquerda, “radicais” com poderes de mando na administração, como Carlos Lessa, presidente do BNDES – que estaria tentando “abrir espaço para a reestatização da Companhia Vale do

Rio Doce” –; Guilherme Estrela, diretor de Exploração e Produção da Petrobras; Clayton Campanhola, presidente da Embrapa; e Samuel Pinheiro Guimarães, diplomata de destaque no Ministério das Relações Exteriores, cujas ideias naciona-listas pareceriam “saídas de um catálogo de antiguidades”.

O PT, em geral, foi tratado como uma besta-fera. O partido “produziu a maior ocupação de cargos públicos da história”, disse a revista em julho de 2004, em artigo que anunciava explicar “por que não se prendem os corruptos”. Em se-guida, em agosto, denunciou “a tentação autoritária” que apontava “as investidas do governo do PT para vigiar e controlar a imprensa, a televisão e a cultura”. No começo de 2005, Veja disse que “o PT deixou o País mais burro”, que o partido tentava “oficializar a cultura, controlar a imprensa, barrar o inglês e asfixiar a universidade”.

Desde o início do governo, Dirceu foi o alvo principal da revista. Em abril de 2003, Veja disse que ele tinha poderes demais: era “o Super Zé”. Em julho, a revista anunciou que esses poderes passariam por uma “lipoaspiração”. Em fevereiro de 2004, começou o ataque principal, a partir da divulgação de um vídeo gravado pelo empresário Car-los Augusto Ramos, conhecido como Carlinhos Cachoeira, que mostrava um petista, Waldomiro Diniz, negociando contribuições para candidatos do PT em troca de favores no governo do estado do Rio de Janeiro.

A história não tinha a ver diretamente com Dirceu. Diniz passou pela Casa Civil, quando realizou a tarefa de coordenação do governo com o Congresso, mas, em janeiro de 2004, o presidente retirou de Dirceu a coordenação política do governo ao criar a Secretaria de Coorde-nação Política e Assuntos Institucionais da Presidência, que passou para Aldo Rebelo (PCdoB–SP) e para a qual Diniz se deslocou. As imagens gravadas por Cachoeira não eram de 2004, quando a revista as divulgou, mas de 2002, quan-do Diniz servia ao governo do Rio. Nada disso importou, no entanto. Logo Dirceu tornou-se a figura principal do escândalo e o Datafolha publicou pesquisa segundo a qual 67% dos entrevistados diziam que ele deveria afastar-se do cargo de minis-tro e 81% opinavam que era preciso abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso. Veja explo-rou o escândalo Diniz com persistência.

Já se disse que a oposição ao PT terceirizou suas

funções para a grande mídia. Veja, a principal

revista políticado País, assumiu

com ardoressas tarefas

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Dirceu virou “o ministro que encolheu”. Diniz, “a crise [que] rouba a cena”. “O governo está cada vez mais afundado na paralisia.” Em matéria cuja ilustração é Lula carregando um manequim, diz que o presidente caiu nas pesquisas de opinião e “ainda tem de carregar o peso morto do ex-homem forte do Planalto”. Em “Intrigas na corte” diz que Dirceu ainda está vivo e disputa o poder no Palácio do Planalto com Luiz Gushiken, ministro de Assuntos Estratégicos e da Comunicação Institucional do governo.

Em abril de 2004, entrou na co-bertura do escândalo Diniz o repórter Policarpo Junior, que Veja considera o máximo – “uma pedra no sapato dos corruptos do mundo oficial”, “peça cru-cial como repórter, editor ou chefe de sucursal nas mais relevantes reportagens investigativas da imprensa brasileira nas duas últimas décadas”. Esse herói vai de repórter a redator-chefe da revista pelos serviços prestados, entre os quais o de seguir os passos de Dirceu por quase uma década. Ele tornou-se ainda mais conhecido nacionalmente no início do ano passado, após a CPI que investigou o escândalo produzido a partir da denúncia das relações entre Cachoeira e Demóste-nes Torres, o ex-senador do DEM de Goiás que acabou cassado pelo Congresso. Na CPI sobre o caso apareceram, então, as relações de Junior com Cachoeira e a incrível participação desse empresário na produção de matérias de denúncias feitas pela revista na campanha pela “faxina” no governo da presidente Dilma, que culminou com a queda de vários ministros em 2011.

Junior conheceu Cachoeira possivel-mente no início de abril de 2004, quando do escândalo iniciado com a divulgação de outro vídeo famoso, produzido pelo empresário, com o qual ele “grampeou” José Roberto Santoro, o então subpro-curador-geral da República, outra peça rara do submundo de escândalos brasi-lienses. Santoro participou da denúncia que demoveu Roseana Sarney de suas pretensões de disputar, pela coligação PSDB–PFL, o cargo de presidente da Repú-blica em 2002 e, depois de perder o cargo de procurador, também trabalhou, como advogado da Brasil Telecom, na prepara-ção das denúncias da famosa Operação Satiagraha, realizada pela Polícia Federal.

Em outubro de 2004, Junior divul-gou trechos transcritos de um vídeo de cinco horas, gravado por Cachoeira, com conversas do empresário com um

deputado, depois cassado, que lhe teria tentado extorquir 4 milhões de reais em troca de proteção contra uma CPI dos jogos eletrônicos. Foi Junior também quem publicou artigo com base no vídeo gravado por um espião de Cachoeira, Jairo Martins, com um funcionário dos Correios, Maurício Marinho, ligado ao PTB, recebendo uma propina de 3 mil reais de um empresário. Desse vídeo saiu a capa de Veja de 25 de maio de 2005, considerada a abertura oficial da denúncia do mensalão. Marinho diz que quem comanda o esquema de achaques nos Correios é Jefferson, presidente na-cional do partido. Na capa de 1º de junho, a revista apresentou o deputado como “o homem-bomba” prestes a explodir. E Jefferson, como RB contou em várias edições, resolveu sair atirando no PT. Pri-meiro, contra Lula. Depois – quando ele e seus apoiadores na denúncia perceberam que derrubar Lula da Presidência exigiria muita bala –, voltou-se contra Dirceu.

Jefferson parou por aí: foi cassado pelo Congresso a 14 de setembro de 2005.

Junior não parou. Ajudou a construir a fama do senador Torres, parceiro de Cachoeira, como um dos mosqueteiros de defesa do bem no Congresso Nacional. Também com Cachoeira, obteve imagens de espionagem dos encontros de Dirceu com políticos num apartamento no hotel Naoum, em Brasília, e pareceu ter chegado a um limite quando um repórter sob seu comando foi barrado por uma arrumadeira do hotel quando tentava invadir os aposen-tos ocupados pelo ex-chefe da Casa Civil. O caso acabou na polícia. Mas sem escândalo, é claro: Veja não o noticiou, não iria atirar em seus próprios pés. E o clube da grande mídia conservadora, da qual ela faz parte, também não, pois tem um código de ética peculiar. De fato, nem sequer o próprio aparato de informações do governo petista, que não é desprezível, interveio com algum peso para contar a história do mensalão de forma menos absurda.

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rod

uçã

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Veja, agosto de 2011: mesmo com o inimigo fora do poder, a perseguição continuou

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1. sETE aNOs DE EsCÂNDalO _______ 12A reportagem — feita ao longo do segundo semestre de

2011 — mostrou os principais personagens e resumiu os do-

cumentos essenciais da acusação e da defesa na Ação Penal

470 (AP 470). A conclusão: armou-se um espetáculo, e pior

será se o Supremo Tribunal Federal (STF) não julgar com

base nos autos. Publicada na edição 55 (fevereiro de 2012)

2. a VEZ Da DEFEsa ________________ 28Começou o julgamento. Como a grande mídia basicamente

endossou todas as acusações contra os chamados “mensa-

leiros”, Retrato do Brasil resumiu os argumentos de seus

advogados, apresentados após as cinco horas da acusação

feita pelo então procurador-geral da República, Roberto

Gurgel. Publicada na edição 62 (setembro de 2012)

3. O HErÓi DO MENsalÃO ___________38O ministro Joaquim Barbosa deveria ter julgado as duas

teses que lhe foram apresentadas — a da defesa, do “caixa

dois”, e a da acusação, do “grande desvio de dinheiro pú-

blico”. Mas ele aderiu à acusação, refez a peça acusatória e

construiu uma “historinha” de corrupção para “vender” ao

público. Publicada na edição 63 (outubro de 2012)

4. UMa HisTÓria EXEMPlar _______ 42Os repórteres de RB ouviram durante três dias Sávio Lobato,

o advogado de Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do

Brasil (BB) tido como responsável pelo principal crime apon-

tado concretamente pela acusação: o desvio de 73,8 milhões

de reais do banco. Surpresa total: não houve qualquer prova

desse desvio. Publicada na edição 63 (outubro de 2012)

5. a VErTiGEM DO sUPrEMO _________52Com a ajuda do advogado Marcelo Leonardo, RB localizou

nos autos da AP 470 os 108 apensos (com cerca de 20 mil

páginas) preparados ao longo de quatro meses por uma

equipe de 20 auditores do BB para verificar o suposto desvio

de dinheiro do banco. A conclusão: “Os ministros do STF

deliraram”. Publicada na edição 64 (novembro de 2012)

6. O assassiNaTO sEM UM MOrTO __56RB descobriu documento da Visanet, empresa que repas-

sou os 73,8 milhões de reais ao BB para campanhas de

publicidade dos cartões Visa, no qual ela declara à Receita

Federal que o dinheiro foi total e devidamente aplicado. O

“morto” não existe. Mas o STF achou o “assassino”. Como

é que pode? Publicada na edição 65 (dezembro de 2012)

7. a VErDaDE O absOlVErÁ? _______62RB ouviu Pizzolato, uma das principais vítimas da tragé-

dia, que foi praticamente destruído ao ter sido acusado

de receber 326.660,67 reais para desviar dinheiro do BB.

A grana seria uma propina que ele teria usado para com-

prar o apartamento no qual morava em Copacabana. Era

invenção; hoje não se fala mais nisso. Publicada na edição

65 (dezembro de 2012).

O MENsalÃO EM 13 HisTÓrias - EDiÇÃO EsPECialsumário

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1177 retratodoBRASIL |

FalE CONOsCO:www.retratodobrasil.com.br

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as mensagens recebidas paraadequá-las ao espaço disponível ou para facilitar a compreensão.

retrato do brasil é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A.

EDiTOra MaNiFEsTO s.a. PResidente Roberto Davis

diRetoR Vice-PResidente Armando Sartori

diRetoR editoRial Raimundo Rodrigues Pereira

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secRetÁRio de RedaÇÃo Thiago Domenici

RedaÇÃo Lia Imanishi • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Téia Magalhães

ediÇÃo de aRte Pedro Ivo Sartori

ReVisÃo Silvio Lourenço [OK Linguística]

ilUstRaÇÃo da caPaEstúdio Saci

RePResentante em bRasÍlia Joaquim Barroncas

administRaÇÃo Mari Pereira • Mariluce Prado

distRibUiÇÃo em bancas Global Press

8. EsCÂNDalO?! ____________________________________68Nos autos da AP 470, RB localizou vários recibos de transferências de dinheiro –

feitas a partir da conta da DNA, agência de publicidade acusada de ter desviado

recursos do BB — para a TV Globo e outras empresas do grupo. A Globo ficou

com o dinheiro do mensalão? A outra hipótese, que o STF não quis ver, é: não

houve o desvio. Publicada na edição 66 (janeiro de 2013)

9. a GraNDE arTE DE JOaQUiM barbOsa _________76O presidente do STF armou as condenações do petista João Paulo Cunha e dos

dirigentes da agência SMP&B por um suposto desvio de dinheiro da Câmara dos

Deputados dizendo que o crime teria sido provado por três órgãos colegiados de

auditoria. São três mentiras. Publicada na edição 68 (março de 2013)

10. a TraMa DOs TrÊs aCUsaDOrEs _____________ 84Os responsáveis pela acusação na AP 470, procuradores Souza e Gurgel, e o

ministro Barbosa agiram ardilosamente para ocultar fatos básicos da história.

Os principais truques da trinca (mais um e seria uma quadrilha!): simular um

inquérito no BB e interpretar facciosamente laudos policiais. Publicada na edição

71 (junho de 2013)

11. a HisTÓria DO DElEGaDOlUÍs FlÁViO ZaMPrONHa __________________________90Ele foi o grande investigador do mensalão. Em meados de 2005, comandou a

força da Polícia Federal que apreendeu os documentos das transferências de 56

milhões de reais do PT para políticos que detonaram a história. Ficou no caso

até o começo de 2011. Por que não foi ouvido? Por que o puniram? Publicada

na edição 73 (agosto de 2013)

12. O GraNDE ErrO DO sUPrEMO __________________96O ministro Barbosa comandou o esforço do STF para negar os embargos contra

a sentença dos réus da AP 470. Aproveitou para chamar de “penas de aluguel”

os que dizem não ter havido desvio de dinheiro público. RB apresentou uma

nova perícia, com provas contundentes de que o desvio não existiu. Publicada

na edição 74 (setembro de 2013)

13. DEPOis DOs EMbarGOs iNFriNGENTEs ________107O STF julgará novamente, no ano que vem, o ex-ministro José Dirceu e outros

pelo crime de formação de quadrilha. Ele, diz a acusação, conduziu as atividades

“de todos os réus”. Por que o STF quer prender imediatamente alguns deles? Se

não há quadrilha, como pode existir o grande crime cometido por ela? Publicada

na edição 75 (outubro de 2013)

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8 | retratodoBRASIL 55

Política

UM CLAMOR POPULAR CONTRA QUEM?No alto, uma manifestação contra a corrupção, tirada de um vídeo da TV Globo com um balanço do mensalão, do final de 2005. À esquerda, outra, no último dia 7 de setembro, também contra a corrupção, com destaque, na faixa da frente dos manifestantes, para um ataque ao PT, que seria um partido corrompido (CORRUpTED). As denúncias de corrupção, em geral, têm um sentido político e são aproveitadas politicamente. Não se pode esquecer, como diz um dos personagens da nossa história a seguir, que esse tipo de fazer política frequentemente dá maus resultados, como a eleição de Jânio Quadros, o homem da faxina, da vassoura em 1960, e a de Collor,o caçador de marajás, em 1989

Após três comissões do Congresso, dezenas de inquéritos da PF e duas denúncias da Procuradoria-Geral da República, o relator do processo no STF diz que o espetáculo final do mensalão pode ser montado ainda neste semestre

com Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira

Sete AnoS de eScândALo

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2012, fevereiro

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A históriA do chamado mensalão pode ser resumida assim:

1) No início de junho de 2005, o então deputado federal Roberto Jefferson disse, em duas entrevistas ao jornal Folha de S.Paulo, que o Partido dos Trabalhadores pagava uma “mesada” a deputados de partidos da base aliada para que votassem com o governo no Congresso e que o então ministro-chefe da Casa Civil do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, José Dirceu, era o comandante desse esquema de compra de votos.

2) Dias depois dessas entrevistas, o Congresso iniciou um processo de inves-tigação das denúncias e, a partir de seus conselhos de ética e decoro parlamentar, Câmara e Senado passaram a julgar os 18 parlamentares acusados de ter recebido o suborno. Dois deles – Dirceu, que renun-ciou à Casa Civil e reassumiu seu mandato na Câmara, e Jefferson – foram cassados e perderam seus direitos políticos por oito anos. Outros renunciaram para evitar a mesma punição. Das três comissões de inquérito instauradas pelo Congresso, a mais importante foi a comissão mista do Senado e da Câmara, que, em abril de 2006, concluiu seus trabalhos e enviou para a Justiça um relatório das investi-gações, pedindo o indiciamento de mais de cem pessoas, entre as quais, além de Dirceu, outro alto dirigente do governo Lula – Luiz Gushiken, então ministro da Secretaria de Comunicação e Gestão Es-tratégica da Presidência da República – e mais 17 deputados.

3) Com base nas investigações do Congresso e nas dezenas de inquéritos da Polícia Federal que as apoiaram, ainda em abril de 2006 o então procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, encaminhou ao Supremo Tribunal Fede-ral uma denúncia contra 40 das pessoas envolvidas e foi aberta, na corte suprema, a investigação judicial do mensalão, o inquérito 2245.

4) Em agosto de 2007, o ministro do STF encarregado do inquérito, Joaquim Barbosa, apresentou seu voto em rela-ção à denúncia de Souza. Basicamente a endossou e seu voto, no essencial, foi confirmado pela plenária da corte. Com isso, teve início a Ação Penal 470 contra os 40 acusados: 28 políticos, entre par-

lamentares, ministros e auxiliares, sendo 11 do PT e 17 de partidos como PP, PL, PTB e PMDB, da base aliada; quatro banqueiros do Rural, um banco de Mi-nas Gerais; e oito pessoas de agências de publicidade, entre as quais Marcos Valério, então um desconhecido, e Duda Mendonça, marqueteiro da campanha de Lula em 2002. Barbosa, a seguir, dividiu o processo pelos domicílios eleitorais dos acusados – 18 estados – e começaram a ser ouvidas as cerca de 650 testemunhas indicadas pela defesa.

5) Em setembro do ano passado, tanto o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, que sucedeu a Souza, quanto os acusados apresentaram suas “alegações finais” ao ministro Barbosa. Este, no dia 19 de dezembro, encaminhou ao presidente do STF, Cezar Peluso, seu “relatório final”. Posteriormente, em entrevista aos jornais, contrapondo-se aos rumores de que alguns dos acusados poderiam ser absolvidos pelo fato de seus crimes terem sido prescritos, Barbosa disse que apresentará seu voto até abril e previu o julgamento da ação penal em plenário ainda para este semestre, sete anos depois do início dessa história.

O processo do mensalão, em termos físicos, é o maior da história do STF: são 49 mil páginas, divididas em 233 volumes principais e 495 livros de documentos anexos, que ocupam quatro grandes estantes no anexo II da sede do STF, em Brasília. Joyce Russi, coordenadora-geral de comunicação do STF, compara a papelada com o material reunido na AP 307, do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello: “O processo do impeachment ocupava apenas algumas prateleiras de uma única estante e só tinha cinco réus [contra os 40 do mensalão]”.

Do ponto de vista do conteúdo polí-tico, pode-se resumir o mensalão em duas grandes conclusões: uma sobre a qual há consenso entre acusadores e acusados e outra sobre a qual há divergências radicais entre as duas partes:

1) O PT distribuiu clandestinamente 56 milhões de reais entre o final de 2002 e o primeiro semestre de 2005. A distri-buição foi feita por meio de um esquema operado pelo então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e por Marcos Valério.

1. As duAs teses sobre o “MensAlão”Foi repetição do velho caixa dois ou “o maior crime político da história da República”? Não há como contara história sem tomar partido nessa polêmica

uM ClAMor PoPulAr ContrA QueM?No alto, uma manifestação contra a corrupção, tirada de um vídeo da TV Globo com um balanço do mensalão, do final de 2005. À esquerda, outra, no último dia 7 de setembro, também contra a corrupção, com destaque, na faixa da frente dos manifestantes, para um ataque ao PT, que seria um partido corrompido (CORRUpTED). As denúncias de corrupção, em geral, têm um sentido político e são aproveitadas politicamente. Não se pode esquecer, como diz um dos personagens da nossa história a seguir, que esse tipo de fazer política frequentemente dá maus resultados, como a eleição de Jânio Quadros, o homem da faxina, da vassoura em 1960, e a de Collor,o caçador de marajás, em 1989

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Pelos depoimentos dos envolvidos, dados à Polícia Federal e ao Congresso, desses 56 milhões de reais, 28,5 milhões foram para o PT, 12,2 milhões, para o PL, 7,8 milhões, para o PP, 4,9 milhões, para o PTB e 2,1 milhões, para o PMDB. Do dinheiro do PT, a maior parte foi para o publicitário Duda Mendonça –15,5 milhões de reais – e o resto, dividido entre deputados e nove diretórios do partido, o nacional e os de oito estados. Dos diretórios dos estados, o do Rio de Janeiro foi o que recebeu mais, 2,7 milhões de reais, e o de Alagoas, o que recebeu menos, 120 mil reais.

2) A segunda conclusão é que havia “uma sofisticada organização criminosa”, cujo núcleo político central foi formado em 2002 e “se estruturou profissional-mente para a prática de crimes, como peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, gestão fraudulenta, além das mais diversas formas de fraude”. Essa organi-zação era dividida em setores de atuação a cargo de três quadrilhas. A principal delas, a política, era dirigida por José Dirceu, e dela participavam os mais altos dirigentes formais do PT em 2003: o presidente, José Genoino, o secretário-geral, Silvio Pereira, e o tesoureiro, Delúbio Soares. A segunda mais importante era dirigida por Marcos Valério e composta por seus sócios nas agências de publicidade DNA e SMP&B. E a terceira era liderada pela então presidente do Banco Rural, Katia Rabello, e incluía três outros dirigentes do banco. O esquema funcionava assim: o núcleo político, com a “autorização dos principais dirigentes da cúpula do PT e do governo Lula”, utilizava verbas do Banco do Brasil repassadas “irregular e graciosa-mente” para empresas de Marcos Valério. Esse dinheiro era “esquentado” por meio de empréstimos “fraudulentos” para ter a aparência de “meros empréstimos bancários” feitos ao PT. Os banqueiros teriam conseguido redução ou ausência de fiscalização do Banco Central para repassarem esse dinheiro ao PT e os que o receberam o fizeram ocultando sua origem e cometendo crime de lavagem de dinheiro.

As palavras entre aspas usadas acima, na segunda conclusão, são do “relatório final” do ministro Joaquim Barbosa apresentado ao STF. Em linhas gerais, elas são as mesmas usadas pelos dois procuradores-gerais da República, tanto na “denúncia” do caso, em 2006, como nas “alegações finais”, no ano passado. Foram usadas amplamente pela grande mídia conservadora, que endossou a conclusão dos acusadores e a repetiu

Jefferson sabe do poder da

mídia. A Globocriou o “caçador

de marajás” etambem ajudoua detoná-lo, diz

incessantemente ao longo desses últimos anos. Neste artigo, Retrato do Brasil adotará uma posição divergente dessa. Dará a palavra, principalmente, aos acusados e mostrará a fragilidade da principal prova apresentada pela acusação para sustentar a tese da “sofisticada organização crimi-nosa” que teria cometido “o maior crime político da história da República”: a de que os milhões distribuídos clandestinamente pelo esquema Delúbio–Valério não se destinaram a financiamento de campanha,

mas à compra de voto dos parlamentares, não vieram de empréstimos dos bancos Rural e BMG, mas são, de fato, dinheiro público, desviado do Banco do Brasil por meio de, basicamente, um fundo de incentivos da Visanet, uma empresa de cobranças eletrônicas responsável pelo cartão Visa, ao qual o BB é associado. Como passos dessa argumentação vamos apresentar, na sequência, os principais personagens da história, começando por Roberto Jefferson.

2. jefferson, o criador da marcaEle diz que seu chefe, antes de morrer, lhe disse: “Roberto, o Delúbio está fazendo um esquema de mesada, um mensalão, para os parlamentares da base”

Roberto Jefferson fará em junho 59 anos, 23 dos quais como deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Era líder do bloco formado pelo PTB e pelo PFL (atual DEM) para apoiar o governo de Fernando Collor de Mello, que perdeu seu mandato por impeachment em 1992. É advogado e professor de direito proces-sual penal. Participou da defesa dos acu-sados no STF junto com Collor quando o relatório da comissão do impeachment

do Congresso foi transformado em ação penal na Justiça.

Jefferson diz hoje, com orgulho, no depoimento intitulado “Nervos de Aço”, dado a Luciano Trigo e publicado em livro (Topbooks, 2006): “Foram 103 processos cuja defesa ajudei a escrever, 103 absolvi-ções, por absoluta falta de provas. E não foi por falta de rigor. Aristides Junqueira [o procurador-geral da República na época] e o Supremo estavam loucos para condená-lo”.

Jefferson está longe de ser ingênuo. Ele diz no livro que a mídia televisiva, em especial a TV Globo, criou a figura de Collor como “caçador de marajás”, “político honesto e competente”. E foi ela mesma que “entregou Collor às feras”, “à empolgação do movimento estudantil”, dos caras-pintadas que saíram às ruas para derrubar o presidente. Jefferson foi o cria-dor da marca mensalão. Na primeira das duas entrevistas que deu à Folha de S.Paulo, a 6 de junho de 2005, ele disse à jornalis-ta Renata Lo Prete: “Pouco antes de o Martinez morrer [José Carlos Martinez, presidente do PTB, morto em acidente aéreo no início de 2003], ele me procurou e disse: ‘Roberto, o Delúbio está fazendo um esquema de mesada, um mensalão, para os parlamentares da base, o PP, o PL, e quer que o PTB também receba. Trinta mil reais para cada deputado. O que você me diz disso?’. Eu digo: ‘Sou contra. Isso é coisa de Câmara de Vereadores de quinta categoria. Vai nos escravizar e vai nos desmoralizar’. O Martinez decidiu não aceitar essa mesada, que, segundo ele, o doutor Delúbio já passava ao PP e ao PL”.

Nessa primeira entrevista Jefferson escondeu que seu partido tinha um acordo com o PT para receber dinheiro clandesti-namente: 4 milhões de reais já tinham sido transferidos para o PTB, sob sua responsa-bilidade. Jefferson, de fato, estava criando a marca mensalão. No livro-depoimento, ele diz que deu a segunda entrevista para a Folha ao perceber que, “ao longo da se-mana seguinte [à da primeira entrevista], o assunto mensalão começou a embicar”. E, então, ampliou seu ataque: “Afirmei que o dinheiro do mensalão vinha de estatais e empresas privadas envolvidas em licitações e chegava a Brasília em malas [...]. Pela

Jefferson sabe do poder da

mídia. A Globo criou o “caçador

de marajás” e também ajudou a

detoná-lo, diz

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primeira vez, citei o nome do publicitário mineiro Marcos Valério como operador do mensalão”. E só então ele diz à jornalista da Folha que tinha “negociado com o PT uma ajuda de campanha de 20 milhões de reais” e já havia recebido “a parcela de 4 milhões de reais”. Ou seja, o truque de Jefferson foi dizer que o mensalão existia... mas para os outros. Para o partido dele, não: “Assumi meus erros com serenidade. Caixa dois todo mundo sempre fez, mas mensalão nunca recebi. Não aluguei minha bancada. O tempo todo enfatizei isso”.

Na defesa de Jefferson na ação penal que corre no STF, seu advogado, Luiz Francisco Barbosa, diz que o dinheiro distribuído pelo PT é de empresas priva-das. Afirma ainda que não há provas que confirmem o uso de dinheiro público no esquema. Existiriam, sim, segundo ele, empréstimos concedidos pelo Banco Rural e pelo BMG ao PT e ao empresário Marcos Valério.

Por isso seu cliente, acusado de corrupção passiva (ter recebido dinheiro para votar com o governo) e de lavagem de dinheiro (ter recebido o dinheiro clan-destinamente para ocultar sua origem), seria inocente. “A lavagem de dinheiro tem 18 modalidades diferentes e ele não está incurso em nenhuma delas”, afirma. O único crime passível de ser atribuído a Jefferson, segundo ele, seria o eleitoral, pelo fato de não ter declarado o dinheiro recebido a partir do acordo com o PT. “Não há ilicitude nisso”, diz Barbosa. “O que tem de ilícito é deixar de comunicar à Justiça Eleitoral. Mas isso é crime elei-toral. A pena é multa e as penas de multa prescrevem em dois anos”, argumenta.

Jefferson foi cassado pelo plenário da Câmara a 14 de setembro de 2005, por 313 votos contra 156. Suas denúncias foram centrais para a instauração de três comissões parlamentares de inquérito (CPIs): a dos Correios, a dos Bingos e a da Compra de Votos. Cada uma tinha um objeto específico. A CPMI dos Correios, primeira a ser instalada, foi a de maior repercussão. Tratou-se de uma comissão mista do Senado e da Câmara voltada para investigar a corrupção na estatal dirigida pelo PTB, onde as denúncias de corrup-ção tiveram origem, a partir de um vídeo divulgado pela revista Veja que mostra um dirigente da empresa recebendo propina de 3 mil reais. A da Compra de Votos foi aberta posteriormente, por esforço da base governista, para atingir o PSDB e o PFL, após a descoberta de o esquema de Marcos Valério ter tido origem em

DUAS ENTREVISTAS MUITO BEM PENSADASO presidente do PTB, Roberto Jefferson, pode ser tudo, menos ingênuo. Suas duas espetaculares entrevistas à jornalista Renata Lo Prete da, Folha de S.Paulo foram muito pensadas, diz ele em seu livro Nervos de Aço, sobre seu papel como detonador do escândalo do mensalão. Na primeira entrevista, do dia 6 de junho de 2005, por exemplo, ele escondeu que tinha recebido do PT 4 milhões de reais, clandestinamente, num esquema típico de caixa dois

práticas dos tucanos mineiros. E a mais confusa de todas, a dos Bingos, que a opo-sição ao governo tentou conduzir para investigar uma suposta participação do PT na morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel (ver RB n° 4, dezembro de 2006), acabou tratando de inúmeros assuntos e deu em nada, sendo apelidada de CPI do Fim do Mundo.

De junho a outubro de 2005, com a quebra de alguns milhares de sigilos ban-cários e telefônicos, as CPIs processaram 305 mil dados bancários e 2,8 milhões de registros telefônicos. Pela ação conjunta da mídia e da oposição ao governo, o mensalão tornou-se um fenômeno de longa duração e grande alcance. Carregan-do em sua biografia diversos escândalos, Antônio Carlos Magalhães, do PFL, havia se aproximado de Lula nas eleições pre-sidenciais de 2002 e a aliança tinha sido selada em um rega-bofe na casa de praia do publicitário baiano Duda Mendonça. Mas a disputa pela Prefeitura de Salvador,

reduto carlista, nas eleições municipais de 2004 colocara novamente ACM e Lula em campos opostos. Uma reportagem de Cristiano Romero e Raymundo Costa, do Valor Econômico, publicada em novembro do ano passado, revelou que foi ACM quem convenceu Duda Mendonça a depor na CPI dos Correios. Na madru-gada do dia 11 de agosto de 2005, Duda acordou ACM, diz a reportagem, para informá-lo de que iria à comissão.

Duda e sua sócia Zilmar Silveira dis-seram então na CPI que Marcos Valério lhes pagara 10,5 milhões de reais pelas campanhas eleitorais do PT, por meio de repasses para uma conta no BankBoston em um paraíso fiscal nas Bahamas. Duda revelou que, só com suas produtoras, os petistas gastaram 57 milhões de reais em campanhas, entre 2002, 2003 e 2004. Desse dinheiro, 26,8 milhões tinham sido pagos por vias legais. Outros 15,5 milhões foram pagos clandestinamente, aí incluídos os 10,5 milhões na conta

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DuaS eNTReVISTaS MuITO BeM PeNSaDaSo presidente do Ptb, Roberto Jefferson, pode ser tudo, menos ingênuo. suas duas espetaculares entrevistas à jornalista Renata lo Prete, da Folha de S.Paulo, foram muito pensadas, diz ele em seu livro Nervos de Aço, sobre seu papel como detonador do escândalo do mensalão. na primeira entrevista, do dia 6 de junho de 2005, por exemplo, ele escondeu que tinha recebido do Pt 4 milhões de reais, clandestinamente, num esquema típico de caixa dois

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das Bahamas e mais 5 milhões pagos pelos esquemas locais de Valério e Delúbio. E o PT ainda lhe devia 26,2 milhões. Foi a partir do depoimento de Duda que a casa do PT ruiu. Deputados do partido foram vistos aos prantos no plenário, enquanto Duda também chorava.

Mas o grande saldo da denúncia de Jefferson não foi ele ter denunciado o PT pelos desvios realmente praticados pelo partido. Foi, sim, a criação da marca men-salão, que passou a significar algo muito mais grave, o desvio de dinheiro público para compra de votos no Congresso por uma quadrilha com mando no governo

federal. O primeiro passo para essa criação foi nomear o chefe da quadrilha. E Jefferson fez isso: “Sai daí, Zé. Sai daí logo antes que você faça réu um homem inocente, o presidente Lula”, disse em depoimento no Conselho de Ética da Câ-mara dos Deputados no dia 14 de junho de 2005, apontando para José Dirceu e procurando inocentar o presidente Lula. Na primeira entrevista à Folha, Jefferson tinha incriminado o presidente Lula ao dizer ter-lhe denunciado o mensalão bem antes. Por que ele mudou o foco do seu ataque para Dirceu? Essa história fica para o último capítulo deste texto.

A acusaçãodesistiu de imputar

a Dirceu vários crimes, diz o

seu advogado, que,por sua vez, refutatodos os restantes

3. josé dirceu, o chefe da quadrilhaPara provar que o então ministro-chefe da Casa Civil tinha o comando supremo do mensalão, o procurador Roberto Gurgel fez até o tempo andar para trás

Dois dias depois da denúncia de Jefferson, Dirceu pediu demissão da Casa Civil e reassumiu na Câmara seu mandato de deputado federal. Teve o mandato cassa-do e os direitos políticos suspensos pelo plenário da Câmara por 293 votos contra 192, na madrugada do dia 1° de dezembro de 2005. Retomou a ação política logo a seguir, com um blog de comentários sobre os acontecimentos políticos correntes. Paralelamente, faz palestras como mili-tante do PT e dá assessoria a empresas e grandes empresários, com o que ganha bem. Mantém uma equipe e escritórios para a renovação diária do blog e de suas atividades de assessor, articulador político e palestrante, que lhe permitem deslocar-se pelo País em jatinhos fretados, sem enfren-tar a hostilidade de parte do público. Uma compilação dos textos do blog, organizada por temas, nos quais de um modo geral defende a política dos dois governos de Lula, resultou no livro Tempos de Planície (Alameda, 2011), lançado no final do ano em noites de autógrafos muito concorri-das em diversas capitais do País.

Nas palestras, Dirceu continua dizen-do que Lula é o seu guia. No último 13 de novembro, por exemplo, um domingo, às dez da manhã, falou para cerca de mil jovens reunidos no Minas Tênis Clube de Brasília, no 3º Congresso da Juventude do PT. A exposição de Dirceu durou 30 minutos. Quando ele se preparava para partir, o secretário nacional da Juventude do PT, Valdemir Pascoal, lhe disse para esperar, porque havia uma surpresa. E sacou uma camiseta branca com o rosto

de Dirceu e os dizeres coloridos: “Con-tra o golpe das elites. Inocente”. “Não aceitamos o golpe, não acreditamos nas mentiras. Acreditamos na sua inocên-cia”, disse Pascoal. Dirceu não vestiu a camiseta, mas a mostrou à plateia, que começou a gritar: “Dirceu, guerreiro do povo brasileiro!”. O ex-chefe da Casa Civil desceu do palco de onde falava e foi para o meio dos jovens, que, com celulares e

câmeras, procuravam ser fotografados ao seu lado. Ele ainda disse que planejava, até as eleições municipais de 2012, ir a mais de 40 cidades para fazer sua defesa política e lançar seu livro.

A denúncia da Procuradoria-Geral da República diz que Dirceu favore-ceu os bancos mineiros BMG e Rural, garantindo-lhes a omissão dos órgãos de

controle do Banco Central na fiscalização dos empréstimos e operações irregulares de transferência de dinheiro feitos por eles ao PT. Afirma também que Henri-que Pizzolato, então diretor de marketing do Banco do Brasil, de onde teriam sido desviadas algumas dezenas de milhões de reais para essas fraudes, teria sido estrategi-camente indicado para o cargo por Dirceu. Segundo o advogado do ex-chefe da Casa Civil, José Luiz Mendes de Oliveira, em entrevista a Retrato do Brasil, essas acusa-ções já foram abandonadas pela própria procuradoria ou rejeitadas pelo STF.

A acusação sustentava ainda, diz ele, ter sido o banco BMG “flagrantemente beneficiado” por ações do que chama “núcleo político-partidário da quadrilha” liderada por Dirceu, as quais lhe teriam garantido “lucros bilionários na operacio-nalização de empréstimos consignados de servidores públicos, pensionistas e apo-sentados do INSS”. Isso teria ocorrido a partir da edição da Medida Provisória nº 130, de 17 de setembro de 2003, dis-pondo “sobre o desconto de prestações em folha de pagamento dos servidores públicos e também autorizando o INSS a regulamentar o desconto de empréstimos bancários a seus segurados”. A acusação dizia que o então presidente do INSS, Carlos Bezerra, havia adotado “diversas providências para permitir a atuação do BMG nesse mercado”. No entanto, afir-ma Oliveira, a acusação não conseguiu nenhuma prova da participação de Dirceu nas providências tomadas por Bezerra, desistiu também dessa acusação e nem sequer a cita em suas alegações finais.

A procuradoria, apoiada no depoi-mento de Roberto Jefferson, mantém a acusação de que Dirceu operava com Marcos Valério: “José Dirceu reunia-se com o principal operador do esquema, Marcos Valério, para tratar dos repas-ses de dinheiro e acordos políticos ou, quando não se encontrava presente, era previamente consultado por José Ge-noino, Delúbio Soares ou Sílvio Pereira sobre as deliberações estabelecidas nesses encontros”, disse Jefferson. Para tentar provar esse vínculo, Jefferson disse que Dirceu teria pedido a ele para indicar um acompanhante do PTB para ir com Marcos Valério a Portugal. O objetivo da viagem seria acompanhar as negociações do grupo Portugal Telecom, com apoio do Banco Espírito Santo, para a aquisição da Telemig, porque do negócio sairia uma doação de 8 milhões de euros, cerca de 24 milhões de reais à época, para o paga-

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PARA ELES, DIRCEU É UM“GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO”O ex-chefe da Casa Civil, no dia 13 de novembro do ano passado, após palestra para cerca de mil delegados do Congresso da Juventude do PT, em Brasília. A seguir, Dirceu

desceu do palco de onde falava e foi para o meio dos jovens, que, com celulares e câmeras, procuravam ser fotografados ao seu lado. Disse então que planejava, até as eleições deste ano, ir a mais de 40 cidades, para fazer sua defesa política e lançar seu livro, Tempos de Planície

mento de dívidas de campanha do PT e do PTB, diz Jefferson.

Valério afirmou à Justiça ter se encontrado outras três vezes com o presidente da Portugal Telecom e que essa quarta viagem a Portugal não teve nenhuma relação com Dirceu. Sua agência de publicidade, a DNA, estaria interessada em manter o contrato pu-blicitário que tinha com a Telemig caso a empresa fosse comprada pela Vivo. A Portugal Telecom era sócia da Telefónica da Espanha, numa associação 50%–50%, na Vivo. Em seu depoimento judicial, o então presidente da Portugal Telecom, Miguel Horta e Costa, confirmou a his-tória de que seus contatos com Marcos Valério estavam relacionados à Telemig e à possibilidade de compra dessa empresa pela sociedade Portugal Telecom–Tele-fónica, controladora da Vivo. No mesmo sentido depôs no processo o ex-ministro das Obras Públicas de Portugal António Mexia. Ele esteve com o então presidente da Portugal Telecom na última reunião deste com Marcos Valério.

A acusação sustenta ainda, diz Oliveira, que o vínculo entre Dirceu e Valério pode ser comprovado pelo fato de o mineiro ter agendado uma reunião do ex-chefe da Casa Civil com Ricardo Espírito Santo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo no Brasil. Para o Ministério Público, “a reunião representava uma continuação do encontro anterior que Miguel Horta

tivera com Marcos Valério em Portugal, a mando de José Dirceu”. A acusação deixou de ver um detalhe, diz Oliveira: a reunião entre Dirceu e Ricardo Espírito Santo ocorreu no dia 11 de janeiro de 2005 e a viagem de Valério a Portugal, no dia 26 de janeiro de 2005. O tempo ainda não anda para trás, parece dizer o advogado: “Uma reunião que ocorreu no dia 11 de janeiro não pode ser a continuação de uma viagem que ocorreu depois, no dia 26.”

A acusação também tenta provar o envolvimento de Dirceu com Valério utilizando uma reunião do ex-chefe da Casa Civil com dirigentes do Banco Rural no hotel Ouro Minas, em Belo Horizonte. A acusação apresenta como prova o depoimento extrajudicial de Renilda, esposa de Marcos Valério. Ela disse à CPI dos Correios que o marido lhe falou da participação de Dirceu na reunião “para resolver sobre o pagamen-to desses financiamentos feitos no Banco Rural”. O mesmo trecho do relatório da CPI apresenta uma fala extrajudicial de Valério em que ele afirma ter ouvido de Delúbio que “a conversa aconteceu”. A defesa de Dirceu desqualifica os depoi-mentos: “Ou seja: a esposa de Marcos Valério, Renilda, disse que ouviu de seu marido, que por sua vez disse que ouviu de Delúbio Soares, que a reunião no ho-tel Ouro Minas teria envolvido José Dir-ceu com discussões sobre empréstimos do Rural ao PT”. Em seus depoimentos,

Valério e Delúbio negam ter tratado com Dirceu dos empréstimos do Rural ao PT.

A acusação ainda apresenta contra Dirceu o fato de uma ex-mulher sua, Maria Angela Saragoza, ter recebido financiamento do advogado Roberto Tolentino, sócio de Marcos Valério, para comprar um apartamento. O negócio existiu, mas Dirceu não tem nada a ver com ele: Oliveira diz não haver qualquer prova ou testemunha de seu cliente estar envolvido nessa história. Maria Angela confirma essa versão.

A defesa de Dirceu conclui: “Não há nos autos uma única testemunha que confirme a alegação de Roberto Jefferson de que a imaginada compra de votos era um escândalo na Câmara ou que eram perceptíveis os rumores de sua existência. Ao contrário, dezenas de testemunhos colhidos na ação penal negam taxativa-mente a afirmação de que a compra de votos existia e era comentada”.

O advogado de Dirceu também diz que ele não controlava e nem sabia das atividades de Delúbio Soares como secre-tário de finanças do PT. Nesse sentido, RB também dá um depoimento: um de seus repórteres pediu a um jornalista amigo de Lula que esclarecesse junto ao então presidente se a indicação de Delúbio para a direção executiva fora dele ou de Dirceu. A resposta de Lula foi clara: ele próprio teria indicado Delúbio para a executiva do PT “para vigiar José Dirceu”.

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O operador – Como e a mando de quem Marcos Valério irrigou os cofres do PSDB e do PT (Record, 2006), de Lucas Figueiredo, é um bom livro para quem quiser entender parte da história do mensalão. Retrato do Brasil conversou longamente com Figueiredo em Belo Horizonte, no final de novembro do ano passado. A história de Valério que emerge da sua pesquisa é a de um menino de classe média de Curvelo, interior de Minas Gerais; de um rapaz que passa no vestibular para o cur-so de engenharia mecânica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em Belo Horizonte, e, obstinado, paga a faculdade por 17 anos, inscreve-se em 84 disciplinas e é aprovado em apenas cinco; e, finalmente, de um bancário que vira banqueiro e dono de agência de publicidade. De manhã, dava expediente no Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge) e, à tarde, fazia bico vendendo brita, cimento e areia para uma empresa de Sete Lagoas. No Bemge, passou de escriturário a gerente, teve um assento no conselho de administração do banco e saiu para ser diretor do Agrimisa, outro banco mineiro. Ele e a mulher, Renilda, tiveram três filhos, o primeiro dos quais morreu aos cinco anos, de câncer, o que parece ter feito com que ela largasse o emprego e ele trabalhasse mais e mais. Valério começou a ganhar dinheiro com a intermediação no mercado financeiro: colocava-se entre os bancos e seus devedores para recuperar créditos considerados perdidos, em troca de uma comissão alta.

A primeira agência de publicidade – a SMP&B, a maior de Minas – entra em sua vida em 1996. Por meio dela Valério conhece Cristiano Paz e Ramon Hollerbach, segundo a denúncia oficial, seus acompanhantes na “quadrilha do mensalão”. A SMP&B acumulava meda-lhas – em 1985, por exemplo, a de ouro do Prêmio Colunistas, por um anúncio de celebração do fim da ditadura – e dí-vidas: apesar de clientes gigantes, como a Usiminas, quando Valério entrou para a agência ela devia na praça, diz Figueiredo, o equivalente a 30 milhões de dólares. Valério disse a Cristiano Paz que poderia tentar abrir uma porta da SMP&B para o mercado financeiro. Paz não acreditou, mas deixou Valério ir em frente. E ele

tinha visão política, diz Figueiredo. Desde a eleição presidencial de Collor, em 1989, as agências de publicidade estavam se transformando em operadoras de caixa dois de campanhas eleitorais. “A coisa funcionava assim”, conta Figueiredo: “Os detentores de cargos públicos importan-tes embutiam uma sobra substancial nos contratos de publicidade dos órgãos que dirigiam. Na época da eleição, as agências usavam essa gordura para pagar despesas das campanhas dos candidatos indicados pelo cliente do poder público. Ou, então, empresas privadas e pessoas físicas que queriam doar dinheiro para políticos sem sair do anonimato faziam falsos contratos com as agências de publicidade. Em vez de o dinheiro alimentar alguma campanha

publicitária, era canalizado para as cam-panhas políticas.

Marcos Valério encontrou a salvação da SMP&B no empresário Clésio Andra-de. Clésio era presidente da Confederação Nacional dos Transportes, entidade que reúne 60 mil empresas e 700 mil autôno-mos do serviço de carga de passageiros. Clésio era endinheirado e queria ingressar na vida pública. Era filiado ao PFL e primeiro suplente do senador Francelino Pereira, um dos dirigentes da antiga Are-na, o partido de sustentação da ditadura. Seu sonho era governar Minas. O que se apresentava para ele era, diz Figueiredo, uma carona no bonde do PSDB, que tinha conquistado o Planalto, com Fernando Henrique Cardoso, a prefeitura de Belo

As empresas deValério pagaram

a Duda Mendonçae mais 75 pessoasdo PSDB mineiro

5,6 milhões dereais, já em 1998

4. o facilitador marcos valérioEle foi banqueiro, publicitário e, acima de tudo, tinha um know-how especial adquirido nas campanhas eleitorais do alto-tucanato mineiro

Horizonte, com Pimenta da Veiga, e o go-verno do Estado, com Eduardo Azeredo.

Clésio levou, para sanear o passivo da SMP&B, frotas de ônibus e uma fazen-da herdada do pai. Ficou com 40% da SMP&B saneada. Paz ficou com 28% e Hollerbach, com 22%. Valério, com 10% e mais o cargo de diretor financeiro. A nova SMP&B foi um sucesso e em pouco tempo Clésio comprou parte da DNA Propaganda, sua principal concorrente em Minas. Figueiredo conta que as re-lações da SMP&B com o PSDB eram “para lá de boas”: logo que Fernando Henrique assumiu a Presidência, reno-vou, sem licitação, o contrato da agência com os Correios; depois, ela ganhou mais duas contas, a do Banco do Brasil e a da Fundacentro – fundação ligada ao Ministério do Trabalho. Na gestão de Eduardo Azeredo no governo de Minas, de 1995 a 1998, a SMP&B se firmou como agência quase oficial do governo.

Levado por Clésio, Valério conheceu Eduardo Azeredo e seu vice, Walfrido Mares Guia. Por intermédio de Cristiano Paz, aproximou-se de Pimenta da Veiga, coordenador político do governo FHC e ministro das Comunicações a partir de 1999. Nesse círculo de relações, conheceu e tornou-se amigo do ex-vice-presidente do Banco Rural, José Augusto Dumont.

No início de 1998, Clésio foi ser candidato a vice na chapa de Azeredo e, como a posição de sócio das agências que atendiam ao governo era incompatível com a de candidato a vice na chapa de reeleição do tucano, deixou a SMP&B e a DNA. Com isso, as cotas de Valério nessas empresas saltaram de 10% para 33% e de zero para 16%, respectivamente. Um mês depois de deixar as agências, Clésio mandou avisar Valério que o tesoureiro da campanha tucana, Cláudio Mourão, iria procurá-lo. E foi aí que Valério começou sua carreira de intermediário na tomada de empréstimos do Rural para campanhas eleitorais. “O fato”, diz Figueiredo, “é que na campanha de reeleição de Azeredo foi Valério quem pagou, por baixo dos panos, 4,5 milhões de reais cobrados por Duda Mendonça. Também foi ele que, por meio da SMP&B, transferiu 1,1 milhão de reais do PSDB para 75 pessoas ligadas à chapa encabeçada pelo partido. E Valério tornou-se um homem rico. Seu patrimô-nio declarado à Receita Federal passou de 230 mil reais em 1997 para 3,9 milhões em 2002 e o movimento das contas bancárias dele e da mulher passou de 3,2 milhões de reais em 2000 para 25,5 milhões em 2002.

As empresas de Valério pagaram a Duda Mendonça e a mais 75 pessoas do PSDB mineiro

5,6 milhões de reais, já em 1998

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Foi outro natural de Curvelo, Virgílio Guimarães (PT-MG), que o apresentou a Delúbio. De Valério e Delúbio as CPIs e a Polícia Federal tiraram a lista dos 18 deputados processados na Ação Penal 470, em curso no STF. Todos, no entan-to, até mesmo Roberto Jefferson, como vimos, dizem ter recebido o dinheiro clandestino para pagamento de despesas de campanhas eleitorais – ou seja, no esquema do famoso caixa dois. Mas a acusação dos procuradores da República e o voto de aceitação da denúncia de Barbosa dizem que a história é outra: trata-se de dinheiro público para compra de votos. O dinheiro não teria saído de empréstimos feitos pelos bancos Rural e BMG ao PT, com a intermediação de Valério. Os empréstimos seriam a aparên-cia, uma “armação”. Os três dirigentes do Banco Rural acusados de fazer parte da quadrilha comandada por Dirceu teriam fornecido recursos para a corrupção dos parlamentares, emprestando dinheiro ao arrepio das normas legais, ignorando a classificação de risco dos tomadores e a falta de garantias e, além disso, ofere-cendo um esquema de dissimulação da verdadeira origem e destino do dinheiro, permitindo o saque de somas de vulto.

Mas os banqueiros negam as acu-sações. Eles dizem que os empréstimos foram lícitos e que as normas do Banco Central no registro dos sacadores foram observadas, tanto que a lista de benefici-ários dos recursos do “valerioduto” foi fornecida pelos bancos. Não havia “limite máximo imposto na legislação e nas nor-mas do Banco Central para a realização de saques em espécie por correntistas” e o próprio Coaf, principal órgão estatal de prevenção à lavagem de dinheiro, jamais questionou tais operações.

Os acusadores também precisam provar que o dinheiro é público, pois dizem que o núcleo central da quadrilha comandava os desvios para o “valeriodu-to” a partir do Palácio do Planalto. Desde as investigações do Congresso, tentam provar que o dinheiro viria do fundo de incentivos que o Banco do Brasil tem por sua participação na empresa Visanet. A CPI convocou peritos para analisar as contas do BB nesse fundo e as saídas de dinheiro para as empresas de Valério. Des-cobriu que as notas fiscais apresentadas ao banco estatal estavam registradas como pagamentos por ações realizadas, mas, na realidade, eram adiantamento de verbas. Os acusadores, forçando a barra, dizem que as notas são fraudulentas, falsas, que

O OPERADOR DO MENSALÃO OPERAVA OUTRA QUADRILHA? No dia 2 de dezembro passado, Marcos Valério foi preso preventivamente em Belo Horizonte numa operação da Polícia Civil da Bahia, em consequência de reportagem de O Estado de S. Paulo, de 2005. Na época o jornal disse que suas empresas, DNA e SMP&B, tinham no oeste da Bahia fazendas com um total de 42 mil hectares. Seis delas foram dadas em garantia ao INSS por dívidas. Ao tentar vendê-las, o INSS descobriu que o tamanho alegado nas escrituras era falso. Ao investigar o caso, a polícia diz que descobriu uma “quadrilha” de falsificação de escrituras. Só que ainda não sabe se Valério fazia parte da quadrilha ou se se beneficiou dela, com conhecimento. E se foi vítima? A polícia parece ter excluído essa hipótese, com a prisão preventiva

o dinheiro foi para as empresas de Valério graciosamente.

As investigações não provaram, no entanto, que o dinheiro não foi gasto em atividades de publicidade e patrocínio do BB e que as operações seriam fraudulentas por esse motivo. Na verdade, elas seriam fraudulentas, ou irregulares, só formalmen-te, já que contrariam os regulamentos do fundo – tanto os do BB como os da Visa-net –, que proíbem adiantamentos. Desde a CPI, porém, já se sabe que, a despeito de proibida formalmente, a prática do adian-tamento existe desde 2001. Além disso, os adiantamentos, em geral, não parecem absurdos. É o que acontece, normalmen-te, com as verbas de patrocínio cultural, por exemplo: elas são adiantadas para os produtores, que posteriormente prestam contas do dinheiro recebido. Na gestão do petista Henrique Pizzolato na diretoria de marketing do BB, ele autorizou quatro antecipações de recursos da Visanet para a DNA, as quais somaram 73,8 milhões de reais. Não se teria certeza dos tomadores finais de cerca de metade desses recursos.

Mas o relatório dos peritos é cuidado-so e não endossa as conclusões taxativas da Procuradoria da República. “A inexis-tência, no âmbito do Banco do Brasil, de formalização de instrumento, ajuste ou

equivalente para disciplinar as destinações dadas aos recursos adiantados às agências de publicidade dificulta a obtenção de con-vicção de que tais recursos tenham sido utilizados exclusivamente na execução de ações de incentivo ao abrigo do fundo. Fo-ram identificadas fragilidades no processo e falhas na condução das ações/eventos.” A afirmação dos peritos é apenas essa.

Talvez por ter consciência da falha da ação penal nesse ponto crítico, o procurador Roberto Gurgel pediu mais uma investigação da Polícia Federal (PF), sobre o tema específico das verbas do chamado valerioduto. Obteve então, em 2011, um relatório de mais de 300 páginas do delegado Luiz Flávio Zampronha. Esse relatório pode ser dividido em duas partes. A primeira delas trata da possível contribuição do Opportunity, do famoso Daniel Dantas, para financiar o mensalão. Nessa parte a PF investigou as verbas de publicidade recebidas, pelas agências de Valério, de Amazônia Celular, Telemig Celular e Brasil Telecom, controladas por Dantas. Contabilizou 164 milhões de re-ais, distribuídos de modo mais ou menos igual entre 1999 e 2002, no governo FHC, e 2003 e 2005, no governo Lula. Destacou algumas operações que considerou sus-peitas, mas não as investigou: apontou-

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as para o Ministério Público investigar. Sobre a possível contribuição de Dantas ao mensalão, no entanto, falaremos mais no capítulo 6 desta história.

A segunda parte do relatório de Zampronha trata do que é considerado o principal canal de desvio de recursos públicos para o mensalão – a parte do BB no fundo de incentivos da Visanet – e acrescenta vários detalhes ao que já se sabia. São apresentados, por exemplo: dois adiantamentos à TV Globo, num total de cerca de 4 milhões de reais; um adiantamento de 1,3 milhão ao jornalista Gilberto Mansur; outro de 650 mil ao Paço da Alfândega, um espaço cultural do Recife, controlado, tudo indica, por um irmão do senador Romero Jucá, do PMDB. Há ainda adiantamentos para a UNESCO e para o ator Paulo Betti, em projetos artísticos da Casa da Gávea, da qual é diretor. E há também adiantamen-tos que podem ser considerados suspeitos, como o de 247 mil reais, da Visanet, em

agosto de 2004, para Rodrigo Fernandes, tesoureiro de campanha do atual ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comér-cio Exterior do governo Dilma Rousseff, Fernando Pimentel, que na época disputa-va a Prefeitura de Belo Horizonte.

No início de abril de 2011, quando o relatório foi divulgado, a revista Época, numa matéria com base no relatório de Zampronha, sugeriu que o processo do mensalão deveria incluir mais sete depu-tados federais, dois senadores e também o ministro Fernando Pimentel. Mas o delegado Zampronha é muito cuidadoso e não endossa a tese da compra de par-lamentares. Ele repete, em seu relatório, variações da seguinte frase: “Não poden-do [não pode] a presente investigação, de forma alguma, apresentar inferências quanto ao esquema de compra de apoio político de parlamentares da base de sus-tentação do governo federal”. Ou seja: ainda nessa investigação final não se tem a prova que os acusadores perseguem.

5. As contAs do professor delúbioEle diz que operou o caixa dois desde os tempos em que o partido era pobre. Agora explica por que, mesmo rico, o PT não comprou votos no Congresso

Delúbio é de Buriti Alegre, interior de Goiás. Em 1972, mudou-se para Goiânia, onde fez o ensino médio e começou a trabalhar como professor de matemática. Entrou para a política numa greve de professores, em 1979. Em 1980, ajudou a fundar o PT em Goiás e conheceu Lula. Foi da coordenação de suas campanhas presidenciais, desde a primeira, de 1989. Desde 2000, foi secretário nacional de finanças e planejamento do PT. Em 2002, comandou a arrecadação de 33 milhões para a campanha vitoriosa de Lula à Presidência. No caixa oficial, diga-se. Delúbio é reconhecido até pelos inimigos como uma pessoa honesta, no sentido de que não arrecadou dinheiro, oficial ou por baixo dos panos, para apro-veitar uma parte. Em São Paulo, mora de aluguel com a mulher, a sindicalista Mônica Valente, num apartamento de dois quartos, sem luxos. Suas duas únicas extravagâncias, que chamaram a atenção nesse período, eram seu gosto por bons vinhos e charutos cubanos.

Em meados de fevereiro de 2003, Valério recebeu Delúbio em BH e juntos eles foram ao BMG para conversar com diretores do banco. Saíram de lá com um primeiro contrato de empréstimo para

o PT, no valor de 2,4 milhões de reais. Quem assinou o contrato, pelo partido, foram ele e o presidente do PT, José Ge-noino. Valério foi o avalista. No dia 20 de fevereiro de 2003, Valério foi a Brasília, para um almoço-audiência com José Dir-

ceu, no papel de acompanhante de Flávio e Ricardo Guimarães, respectivamente controlador e presidente do BMG. A pauta oficial da reunião era um convite ao então ministro-chefe da Casa Civil para

a inauguração, em Luziânia, Goiás, de uma fábrica de alimentos pertencente à família de Flávio e Ricardo, os Pentagna Guimarães. Todos os presentes, em seus depoimentos judiciais no processo do mensalão, juram que no encontro não se falou do empréstimo ao PT. Passa-dos cinco dias da refeição no Planalto, Valério tomou outro empréstimo no BMG, dessa vez em nome da SMP&B, de 12 milhões de reais. Posteriormente, a agência de Valério emprestou dinheiro ao PT. É absolutamente provável que, agora, o banco emprestasse dinheiro para as agências de Valério, sabendo que, com isso, beneficiaria o PT, como, antes, beneficiara o PSDB. Mas a garantia de pagamento da agência ao BMG eram créditos que a DNA tinha para receber da Eletronorte. Eram, portanto, serviços de publicidade já prestados. Não eram do tipo adiantamentos, ou seja: por dinheiro que a agência esperava faturar.

O BMG, como vimos, não é acusado como parte da quadrilha. O Rural, sim. Esse outro banco mineiro tinha inte-resses claros no governo há tempos. O principal era comprar a massa falida do Banco Mercantil de Pernambuco. Com problemas de caixa depois do Plano Real, o banco sofrera uma intervenção do Banco Central em agosto de 1995. Como era praxe na época, o BC dividiu o banco em duas bandas: a podre, que ficou com o BC, e a sadia – as agências, os ativos e a carteira de clientes –, que vendeu, no mercado, para o Rural. Na parte podre com a qual ficou, o BC injetou uma for-tuna e o Rural vislumbrou nela um bom negócio. Quando aderiu ao Proer (Pro-grama de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional), o Mercantil de Pernambuco fora obrigado a comprar títulos públicos indexados ao dólar. Na época, um dólar valia um real. Com o tempo, o real se desvalorizou frente ao dólar, fazendo com que os títulos adquiridos pela mas-sa falida do Mercantil de Pernambuco atingissem uma cotação em reais muito maior, de cerca de 900 milhões. Ao perceber a situação, o Rural começou a comprar ações do banco, chegando a deter 22% da instituição. No início de 2003, o Rural tentava comprar o restante do banco, mas, para isso, precisava que o BC interrompesse a sua liquidação. Pelas contas do mercado, o dinheiro dos títulos indexados ao dólar daria para pagar as dívidas da banda podre do Mercantil de Pernambuco e ainda sobrariam para o Rural cerca de 550 milhões de reais.

Tomou maisdinheiro de

Valério que dos bancos. Ele tinha mais crédito que

o PT, explica Delúbio

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Delúbio era um operador de caixa dois para o PT e para Lula havia tem-pos, como disse para o repórter que fez, para a revista CartaCapital, o artigo “O PT no seu labirinto”, da edição de 14 de setembro de 2005. Só que no início o PT era quase nada em termos de fundos eleitorais, e seu caixa dois tinha outro significado. Estima-se que, para a campanha de Lula em 1989, o PT tenha arrecadado modestos 3 milhões de reais, contabilizando-se o caixa dois correspondente aos gastos com mão de obra paga para a campanha pelos sindi-catos, diz o artigo citado. Para o mesmo pleito, contabilizando-se o caixa dois de PC Farias para Collor, o candidato que derrotou Lula no segundo turno arrecadou cerca de 210 vezes mais, 624 milhões de reais.

Na campanha de 2002, oficialmente, Lula arrecadou mais que Serra, no se-gundo turno, quando ficou evidente sua vitória. A maioria dos financiadores de campanha do grande empresariado, am-plamente contra Lula até então, resolveu pôr mais ovos na sua cesta do que na do tucano. Os dirigentes do Banco Rural agiram assim. E Delúbio, com certeza, se aproveitou disso. Mas se, a partir daí, ele se aproveitou para montar um esquema de compra de votos no Congresso Na-cional, é outra coisa. Ele diz que não, e seus argumentos são sólidos.

São oito da noite do dia 25 de novem-bro de 2011 e um grupo de advogados, militantes e curiosos aguarda a palestra de Delúbio Soares na sede da OAB de Catalão, no sudoeste goiano. Em 2005, no auge do escândalo do mensalão, Delúbio foi o único petista punido com a expulsão pelo Diretório Nacional. Em abril de 2011, foi readmitido entre os quadros do partido, no qual goza de prestígio por ter assumido sozinho a “má gestão” da campanha.

Quando a exposição começa, com 48 pessoas na plateia, o repórter de uma rádio local pergunta a Delúbio se ele não acha que a exposição de sua defesa de-veria se restringir aos tribunais. Delúbio diz que, se ele próprio não se defender, a mídia não o fará: “Vocês já leram algo de positivo sobre minha pessoa no Globo ou na Folha? Já viram alguma reportagem positiva sobre mim no Jornal Nacional? Quando esse processo começou, fui à Rede Globo. No dia 14 de junho de 2005 eles deram uma entrevista comigo de oito minutos. Tentei explicar todos os fatos e foi tudo deturpado. Meus advo-gados me aconselharam a não dar mais

entrevistas, deixando o processo rolar. Fiquei calado por seis anos. Nesse tempo, meu menor depoimento em CPI durou nove horas e meia; o maior, 19 horas. Fui à Polícia Federal 66 vezes. Depois de todas as audiências, fiquei calado”.

“Agora, achei que era o momento de contar o meu lado da história”, continua ele. “Quando a denúncia foi apresentada pelo MPF, eu era enquadrado em três crimes: peculato – que é o desvio de di-nheiro público –, formação de quadrilha e corrupção ativa. Analisando os docu-mentos, o STF recusou por unanimidade a denúncia de peculato. Posso afirmar que, enquanto tesoureiro do PT, não passou por minhas mãos nenhum di-nheiro público. Já fui tesoureiro do meu sindicato, da CUT e depois do PT. Sou uma pessoa que acredita que nenhum homem pode ser mais forte do que seu partido.” Delúbio explica a triangulação de dinheiro entre os bancos, as empre-sas de Valério e o PT: “Todo o dinheiro que passou pelas minhas mãos e serviu para financiar campanhas eleitorais do

PT e dos partidos aliados foi dinheiro de empréstimo de bancos privados, do Banco Rural e do BMG. O PT não tinha muito crédito junto a esses bancos, mas as empresas do Marcos Valério tinham, então tomamos empréstimos utilizando as empresas dele”.

Delúbio também refuta a acusação de compra de votos e formação de quadri-lha: “Para que eu iria comprar deputado do PT para votar a favor do governo? Para que eu iria comprar o João Paulo Cunha, que era líder do governo na Câ-mara? Como eu iria comprar o professor Luizinho? Para que eu iria corromper os aliados do PTB, do PP, do PL, que já iriam votar nas propostas do governo? Muitas vezes, os votos do PP, do PL eram insignificantes para ganhar a votação. Não faz sentido, nem matematicamente falando, comprar votos que não servem para ganhar a votação. E as principais votações, da reforma da Previdência, a tributária, a dos transgênicos, o governo não ganharia sem os votos da oposição. E a oposição não recebeu nenhum

OS EMPRÉSTIMOS DE VALÉRIO PARA O PTO PT não tinha crédito nos bancos. Por esse motivo, tomou pouco dinheiro deles: cerca de 5 milhões de reais, em valores da época, dos dois bancos, Rural e BMG. Mas as empresas de Valério, que tinham mais crédito, como diz Delúbio, tomaram cerca de oito vezes mais, dos mesmos dois bancos, na mesma época. E repassaram esses recursos para o PT. Nos autos do processo no STF está uma carta de Delúbio ao BMG, datada de 1o de julho de 2004, assumindo pessoalmente a responsabilidade pelos empréstimos tomados pelas empresas de Valério no banco, porque eles seriam para o PT

AE

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dinheiro para votar com o governo”, argumenta.

Delúbio diz que, a partir das alianças feitas na eleição presidencial de 2002, os partidos da base aliada e os próprios diretórios do PT procuraram a Secretaria Nacional de Finanças do PT, que ele che-fiava, com problemas para saldar dívidas de campanha: “Isso sobrou para nós resolvermos”. Ele afirma que, do dinheiro distribuído a petistas e aliados, 35% foram entregues em dinheiro vivo e o restante foi por meio de cheques. “Eu chegava para o Marcos Valério e dizia: ‘Esses querem receber cash; esses, cheque’. E ele pagava.” Delúbio conclui: “Esse dinheiro não foi contabilizado na Justiça Eleitoral, mas não é por isso que estou sendo acu-sado. Eu quero ser responsabilizado pelo que eu fiz, não por ter desviado dinheiro público. Ou por ter corrompido políticos e formado quadrilha”.

Delúbio fala de sua vida: “Sou filho de um peão que só foi calçar botina com 21 anos, quando casou com minha mãe, que tinha 13 anos de idade e era empregada doméstica. Meus pais nos deram uma educação muito rígida. Eu e meus três irmãos, com o esforço deles, consegui-mos diploma universitário. Meu pai hoje é proprietário de 50 alqueires em Buriti Alegre e se considera um homem rico”.

Sentado à mesa com Delúbio, o advogado Sebastião Leite, conhecido como Juruna, que é da Comissão de Direitos Humanos da OAB Nacional e também mora na região, toma a palavra. “O julgamento justo é aquele julgado de acordo com as provas dos autos. O que não está nos autos, não está no mundo, é o que nós advogados dizemos. O Mi-nistério Público defende que Delúbio se associou a Dirceu, Silvinho e Genoíno para comprar o voto de parlamentares para apoiar o governo no Congresso. Mas foram ouvidas testemunhas em 40 cidades diferentes e, do total de depoimentos transcritos nos autos, das 394 pessoas ouvidas, 337 pessoas não mencionam o nome de Delúbio. Sabem quantas das pessoas ouvidas conversa-ram com Delúbio sobre compra de votos ou ouviram falar sobre possível compra de votos? Zero. Do total de depoimentos judiciais de deputados federais ou sena-dores, que foram 79 e que estão entre aqueles que o MP diz que teriam sido corrompidos por Delúbio, para votarem a favor do governo, quantos receberam diretamente recursos financeiros do PT? Zero. Quantos souberam ou ouviram falar que houve recebimento de recur-

De 79 deputadosque teriam sidocomprados pelo

PT, “zero”recebeu o tal

mensalão, diz oadvogado

6. COMO O DEMÔNIO ENTRA NO CASOA senadora Ideli Salvatti (PT-SC) achou que o segredo do mensalão estaria na memória dos computadores do grupo liderado por Daniel Dantas

No auge do escândalo, no final de setembro de 2005, o financista Daniel Dantas foi chamado a depor na reunião conjunta das CPIs dos Correios e da Compra de Votos, para explicar denún-cias de O Estado de S. Paulo segundo as quais ele seria o principal financiador do mensalão. Uma reportagem do jor-nal sugeria que depósitos das empresas Telemig Celular, Amazônia Celular e Brasil Telecom nas contas das agências de publicidade de Valério, revelados nas investigações do Congresso, estariam relacionados com os interesses escusos dele, o comandante em última instância dessas três empresas. No dia seguinte, as

telefônicas publicaram anúncios pagos nos jornais para informar que pagaram cerca de 150 milhões de reais às empresas de publicidade de Valério entre 2000 e 2005, mas que estas, de fato, ficaram com uma fração pequena desse dinheiro, pois a parte maior teria ido para veículos de comunicação.

Os números fornecidos pelas tele-fônicas na época são mais ou menos os mesmos do delegado Zampronha, da Polícia Federal, autor da última inves-tigação pedida pela Procuradoria-Geral da República para esclarecer as origens dos recursos do chamado valerioduto, já citada. As telefônicas disseram em

sos? Dezoito. Quantos informaram que os recursos recebidos eram para ajuda de campanha? Dezoito. Quantos infor-maram que os recursos recebidos eram destinados à compra de votos? Zero”, apresenta o advogado. “Não há qualquer ato relativo à compra de votos.”

Ele cita o depoimento em juízo do de-putado federal Odair Cunha, que à época dos fatos participou da CPI dos Correios

e de uma comissão de Sindicância da Câ-mara dos Deputados. Cunha apresentou um estudo que fez com base em uma pesquisa nos registros do Congresso Nacional e que mostra a desvinculação entre os saques de numerário e a postura dos membros dos partidos da base aliada nas votações do Congresso. “Ele identi-ficou que há um comportamento padrão

dos partidos que apoiavam o governo, independentemente da ocorrência dos saques. Na média, sempre 80% de cada partido votava a favor das orientações do governo”, diz Juruna.

Ele pega a defesa impressa de De-lúbio, que fora distribuída aos presentes no começo do encontro, para apresentar mais dados: “Olhem aí na página 34. No período entre 25 de fevereiro de 2003 e 14 de dezembro de 2004, o apoio do PL ao governo, por exemplo, medido pela percentagem de votos, oscilou entre 85% e 95%, não havendo nenhuma relação com os valores repassados. E, em que pese o expressivo repasse entre os dias 7 e 11 de junho de 2004, por exemplo, a percentagem de votos alinhados com o governo registrou níveis inferiores a 10%. Por outro lado, os baixíssimos ou nulos repasses na primeira quinzena de 2003 não impediram que o apoio osci-lasse entre 90% e 100%. Isso desmente a existência do famoso mensalão”, diz ele.

Ele prossegue citando o PTB: “Em que pese o expressivo repasse em 5 de maio de 2004, o apoio do PTB ao governo em votações que ocorreram uma semana depois tiveram índices inferiores a 5%! De forma inversa, entre maio e setembro de 2003, os repasses não existiram e em in-contáveis votações o apoio ao governo foi de 100%”. Ele expõe ainda outros dados que mostram a desvinculação de votos de apoio ao governo com os repasses de dinheiro do PT para o PMDB e o PP, também da base aliada. O debate acaba com saldo positivo para Delúbio.

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O DELEGADO “PLANTOU” AS “CONTRIBUIÇÕES”?No dia 8 de julho de 2008, Daniel Dantas foi preso em seu apartamento, em Ipanema, no Rio. Lá foram apreendidos, além de inúmeros outros documentos, três papéis que poderiam ter relação com o mensalão. Os três tinham o título de “contribuições”. Duas de 36 mil reais, uma “ao partido” e outra, “ao clube”. E a terceira, de 30,4 milhões de reais, também “ao partido”.Como se sabe, Dantas foi preso, solto com habeas corpus no STF e preso em seguida, por nova ordem do juiz Fausto De Sanctis. Como também é sabido, os tais papéis serviram de base para o segundo mandado de prisão de Dantas. E foram retirados dos malotes de documentos apreendidos na casa do empresário pelo delegado Eduardo Pelegrini. Em conversa gravada na PF de São Paulo, Pelegrini disse ter feito o deslacramento para ajudar a corrigir erro do juiz De Sanctis quanto à natureza da prisão a ser pedida de novo para Dantas.Toda essa confusão acabou chegando ao STF, que já tinha considerado aqueles “papeluchos”, como disse um dos ministros, imprestáveis como prova, ao conceder o novo habeas corpus ao financista. A trapalhada serviu também para apoiar uma ação contra De Sanctis no Conselho Nacional da Magistratura na qual ele foi condenado, no ano passado, pela unanimidade dos votos. A repórter de RB conversou com Maria Alice, a esposa de Dantas, no final do ano passado, depois de saber de uma versão original dela sobre os tais papéis. Do jeito como ela conta, eles teriam sido “plantados” por Pelegrini, também o chefe da operação da prisão de Dantas. Maria Alice compara as apreensões feitas em sua casa na Satiagraha com as da Operação Chacal, de 2004. “Na Chacal, o delegado disse logo de início que nós não podíamos ficar em ambientes separados, todo mundo tinha que estar junto na mesma peça – os moradores, os policiais, as testemunhas. Ele ia pegando os materiais, ia anotando e colocando num saco. Todo mundo via o que ele estava fazendo.” Na Satiagraha, não, diz ela. “Ele (Pelegrini) deixou o escrivão na primeira sala, numa mesa redonda que tinha lá. E ia e vinha pela casa. Por fim, trouxe uma lista para o Daniel assinar, reconhecendo os documentos apreendidos. O Daniel leu a lista e me perguntou: ‘Maria Alice, que documentos de contribuição são esses?’ Eu disse que não eram meus. Aí o Daniel disse que não assinava.”Dantas passou para RB a cópia do auto de apreensão, com um “protesto” de um dos seus advogados presente ao ato, no qual se lê que não reconheceu como seus oito itens da apreensão, entre os quais os três “papeluchos”.

2005 o que qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento da área de publicidade e marketing sabe: as agências ficam apenas com uma comissão, uma parte pequena das verbas de publicidade; a parte do Leão vai para os grandes veí-culos de comunicação, pois são eles que veiculam as campanhas (veja na página 20 a tabela com as verbas das telefônicas e o que coube às agências).

Dantas deu quatro depoimentos no Congresso sobre o mesmo assunto na época. A então senadora Ideli Salvatti (PT-SC), atual ministra da Secretaria de Relações Institucionais do governo Dilma Rousseff, foi um dos parlamentares mais ativos na campanha contra ele, nessa época e depois, na chamada Operação Satiagraha, que, como veremos, está liga-da ao mensalão. O PT, no geral, negava a existência do mensalão. A deputada defendia que não havia dinheiro público no esquema, mas Dantas era o financiador das operações de distribuição de dinheiro de Valério e Delúbio. Integrante da CPMI dos Correios, em manobra com outros deputados, negociou a inclusão de um novo parágrafo no texto final do relator Osmar Serraglio, pedindo o indiciamento de Dantas. Mas a proposta não foi apro-vada. Na época, Dantas já era, para usar a imagem criada por Retrato do Brasil, o “demônio” introduzido na questão da privatização das telecomunicações bra-sileiras pelos interessados em confundir mais do que em esclarecer os grandes temas em debate. No caso do debate do mensalão, a inclusão de Dantas na história também mais confundiu do que esclare-ceu, como se verá. Além de Ideli, outras pessoas ligadas ao governo defendiam o indiciamento de Dantas. O chefe da Po-lícia Federal do governo Lula, na época, Paulo Lacerda, também foi ao Congresso reforçar o pedido de incluir Dantas na investigação. Ele dizia que a Operação Chacal, do final de 2004, movida contra Dantas e na qual a PF apreendeu o disco rígido do computador central do Banco Opportunity, do grupo do financista, teria mostrado indícios de financiamento do mensalão. No Congresso, disse ainda ter a PF recebido, de uma pessoa que ele não quis identificar, “um homem do povo”, a informação da intenção de Dantas de destruir o material relativo ao mensalão.

Outro petista que pedia o indicia-mento de Dantas era Luiz Gushiken, ministro-chefe da Secretaria de Comuni-cação e Gestão Estratégica (Secom) do governo Lula. Gushiken é importante nessa história porque a Secom controla

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O DeLeGaDO “PLaNTOu” aS “cONTRIBuIÇÕeS”?No dia 8 de julho de 2008, Daniel Dantas foi preso em seu apartamento, emIpanema, no Rio. Lá foram apreendidos, além de inúmeros outros documentos,três papéis que poderiam ter relação com o mensalão. Os três tinham o título de“contribuições”. Duas de 36 mil reais, uma “ao partido” e outra, “ao clube”. E aterceira, de 30,4 milhões de reais, também “ao partido”.Como se sabe, Dantas foi preso, solto com habeas corpus no STF e preso emseguida, por nova ordem do juiz Fausto De Sanctis. Como também é sabido, ostais papéis serviram de base para o segundo mandado de prisão de Dantas. Eforam retirados dos malotes de documentos apreendidos na casa do empresáriopelo delegado Eduardo Pelegrini. Em conversa gravada na PF de São Paulo,Pelegrini disse ter feito o deslacramento para ajudar a corrigir o erro do juiz DeSanctis quanto à natureza da prisão a ser pedida de novo para Dantas.Toda essa confusão acabou chegando ao STF, que já tinha considerado aqueles“papeluchos”, como disse um dos ministros, imprestáveis como prova, aoconceder o novo habeas corpus ao financista. A trapalhada serviu também paraapoiar uma ação contra De Sanctis no Conselho Nacional da Magistratura, naqual ele foi condenado, no ano passado, pela unanimidade dos votos. A repórterde RB conversou com Maria Alice, a esposa de Dantas, no final do ano passado,depois de saber de uma versão original dela sobre os tais papéis. Do jeitocomo ela conta, eles teriam sido “plantados” por Pelegrini, também o chefe daoperação da prisão de Dantas.Maria Alice compara as apreensões feitas em sua casa na Satiagraha com as daOperação Chacal, de 2004. “Na Chacal, o delegado disse logo de início que nósnão podíamos ficar em ambientes separados, todo mundo tinha que estar juntona mesma peça – os moradores, os policiais, as testemunhas. Ele ia pegandoos materiais, ia anotando e colocando num saco. Todo mundo via o que eleestava fazendo.” Na Satiagraha, não, diz ela. “Ele (Pelegrini) deixou o escrivãona primeira sala, numa mesa redonda que tinha lá. E ia e vinha pela casa. Porfim, trouxe uma lista para o Daniel assinar, reconhecendo os documentosapreendidos. O Daniel leu a lista e me perguntou: ‘Maria Alice, que documentosde contribuição são esses?’ Eu disse que não eram meus. Aí o Daniel disse quenão assinava.”Dantas passou para RB a cópia do auto de apreensão, com um “protesto” de umdos seus advogados presente ao ato, no qual se lê que não reconheceu comoseus oito itens da apreensão, entre os quais os três “papeluchos”.

nessa história porque a Secom controla

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a distribuição das verbas da publicidade estatal, tanto as dos ministérios como as das estatais, dentre as quais se inclui o Banco do Brasil, responsável pelos recursos do fundo de incentivos da Visanet. Gushiken ficou inconformado com o não indiciamento de Dantas. Numa de suas entrevistas a respeito, na qual se defendeu de acusações sofridas na CPI, afirmou: “É muito estranho que o senhor Daniel Dantas, que autorizou a Brasil Telecom a financiar o Marcos Valério, não apareça no relatório”. Dis-se que, no relatório Serraglio, Dantas aparecia quase como um herói, e ele, que defendia os fundos estatais de suas “iniciativas inescrupulosas”, era tachado como tendo cometido crime.

Gushiken teve influência também na deflagração da Operação Satiagraha. A origem dessa ação da PF é o mensalão. O STF, por meio de um habeas corpus concedido pela ministra Ellen Gracie, negou um pedido de quebra do sigilo da memória do computador do Oppor-tunity. Mas, quando o ministro Joaquim Barbosa mandou separar o inquérito do mensalão pelos estados de origem dos acusados, a quebra do sigilo acabou sendo aceita por um tribunal da região de São Paulo, para o qual foi a parte da in-vestigação que incluía o “chefe da quadri-lha”, José Dirceu. Com a quebra do sigilo do computador central do Opportunity, uma grande e escandalosa investigação contra Dantas, também apontada como a maior e mais séria da história do País, co-meçou em 2006. De início foi quebrado o sigilo das ligações de internet de todo o grupo e começaram a ser procuradas, pelos policiais federais, as provas das ligações supostamente existentes entre os dois “escândalos”, o de Dantas e o do mensalão.

Essa primeira investigação deu em nada e, no começo de 2007, o delegado que a comandava, Elzio Silva, pediu seu encerramento. Na época, Gushiken enviou um bilhete ao chefe da PF de-nunciando o que seriam novas articula-ções de Dantas. Por essa ou por outras razões, a investigação recomeçou logo a seguir, sob o comando do delegado Protógenes Queiroz. Começou aí a Satiagraha. Queiroz ampliou as quebras de sigilo, o número de agentes e passou um ano e meio investigando. Também essa investigação deu em nada, como se sabe. O investigador-chefe foi conde-nado em primeira instância por fraude processual e responde a processo – no

STF, pelo fato de ter foro privilegiado, pois foi eleito deputado federal por São Paulo em 2010, em boa parte graças ao escândalo feito.

Um despacho do juízo da 6ª Vara Federal de São Paulo, de 16 de dezem-bro passado, em resposta à consulta do Ministério Público Federal, diz que “todos os feitos correlatos” à Satiagraha estão anulados. Um dos mais grotescos resultados da Satiagraha é a interpretação de um agente para uma das mais de 90 mil gravações de conversas feitas pela operação. Certamente com a intenção de mostrar serviço e, também, com certeza, instruído a prestar atenção ao aparecimento do nome de José Dirceu e da “quadrilha” situada no coração do poder, ele transforma os personagens “ele” e “Giba” de um diálogo, depois identificado como ocorrido entre dois prestadores de serviço para operações

Distribuição dos gastos em publicidade das empresas Telemig e Amazônia

Celular nas agências DNA e SMP&B, em %, do início de 2000 a março de 2005

Telemig Celular

Amazônia Celular

Veículos de comunicação

73% 61%

Produtoras e gráficas

15% 27%

Comissão das agências DNA e SMP&B

12% 12%

Fonte: Documentos da CPMI dos Correios. A Telemig investiu R$ 114,7 milhões; em média, por ano, R$ 2,6 milhões foram comissões pagas às agências. Da Amazônia Celular, foram R$ 33,3 milhões e a comissão média anual paga foi de R$ 0,9 milhão. A Brasil Telecom só investiu entre 2003 e 2005: foram apenas R$ 4,2 milhões pagos à DNA e à SMP&B, 0,96% dos investimentos em marketing da companhia.

imobiliárias de Dantas no sul da Bahia, em José Dirceu e Gilberto Carvalho, o então chefe do gabinete do presidente Lula. Na época, em diversas declarações, tanto o delegado Queiroz quanto o chefe da PF, Paulo Lacerda, declararam que estavam agindo em defesa do próprio presidente da República.

No processo do mensalão, a dispo-sição para incriminar Luiz Gushiken também parece ter-se esgotado. A procuradoria, de início, o considerou corresponsável não só pela aplicação das verbas da parte do BB na Visanet, tida pela acusação como a principal fonte de alimentação do escândalo, como coautor de crime de peculato atribuído a Pizzola-to, o chefe de marketing do banco. Em depoimento, Pizzolato afirmava ter rece-bido, do próprio Gushiken, ordem para autorizar os adiantamentos de recursos

do fundo de incentivos da Visanet para as empresas de publicidade de Valério.

Os inquéritos do Congresso e da PF, na época, mostraram que Pizzolato rece-beu das empresas de Valério uma soma em dinheiro de 326 mil reais. Nos inter-rogatórios, ele disse tratar-se de recursos que repassou ao PT do Rio, sem nenhuma ligação com a compra, feita por ele, logo depois, de um apartamento de 400 mil reais. Mas a acusação viu no recebimen-to do dinheiro o crime de peculato e Gushiken tornou-se corresponsável pelo delito por ter, supostamente, autorizado o benefício. Posteriormente, no entanto, Pizzolato voltou atrás. Negou que tivesse recebido ordem de Gushiken e explicou ter sido informado por Edson Monteiro, diretor do Banco do Brasil, ao qual estava subordinado na época, do fato de os re-cursos da Visanet não serem considerados recursos públicos desde anos anteriores e, portanto, não estarem sujeitos à Secom. Para lembrar, Pizzolato, como diretor do BB, estava subordinado a Monteiro, e, como distribuidor de publicidade e incentivos culturais de um banco estatal, respondia a Gushiken.

Em consequência da mudança de posição de Pizzolato e de várias intervenções da defesa de Gushiken, nas alegações finais do procurador-geral Gurgel em setembro de 2011 e no relatório final do ministro Barbosa em dezembro, Gushiken deixou de ser acusado de peculato e não está mais no rol dos denunciados na ação penal. Por último, quanto à participação de Dantas no mensalão, resta, no novo relatório da PF feito pelo delegado Zampronha, a reconstituição dos fatos relativos ao pedido de Delúbio Soares para que o Opportunity participasse, com 50 mi-lhões de reais, do esforço para pagar as dívidas de campanha do PT. Em um dos seus depoimentos no Congresso, Dan-tas disse que a proposta de Delúbio foi recebida por seu ex-cunhado e ex-sócio Carlos Rodenburg, em julho de 2003, no hotel Blue Tree, em Brasília. Dantas disse que Rodenburg lhe reportou que fora “um encontro muito amistoso e cordial”. Dantas disse ainda, na época, que durante a conversa de Delúbio com Rodenburg o petista teria mencionado poder ajudar a resolver as dificuldades do Opportunity no governo. Dantas disse depois a um repórter que na época fora aos Estados Unidos para conversar com o Citibank a respeito e obteve do banco uma resposta indireta, com o

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SÓ NO ANO QUE VEM?O julgamento do mensalão pode ficar para o ano que vem, a despeito da manifesta intenção do relator, Joaquim Barbosa, de realizá-lo no segundo semestre. As eleições municipais deste ano exigem, no mesmo período, a presença, três noites por semana, no Tribunal Superior Eleitoral, de cinco ministros do STF. E o julgamento do mensalão será longo. A sessão que tinha de decidir apenas entre aceitar ou não a denúncia se estendeu por 36 horas, em cinco dias. Agora, é mais complicado: os 40 réus terão de ser julgados um por um

seguinte sentido: seria autorizada uma contribuição a ser repassada por meio de um aumento no bônus a ser-lhe atri-buído, mas não no montante pedido por Delúbio a Rodenburg.

Como contamos no capítulo 4, no entanto, o delegado Zampronha, que estudou em detalhes os depósitos das empresas telefônicas controladas por Dantas nas agências de publicidade de Marcos Valério, diz ter encontrado ope-rações suspeitas, mas não as investigou: separou-as e remeteu-as ao Ministério Público para que fossem feitas, eventual-mente, outras investigações. Zampronha diz, também, que considera suspeito o fato de a Brasil Telecom ter assinado

contratos com as empresas de Valério, no valor total de 50 milhões de reais, a soma pretendida por Delúbio, no primeiro semestre de 2005. Dessa soma, apenas 3,6 milhões de reais foram gastos. E, assim, não se têm mais elementos para responder qual das três opções seguintes é a certa: 1) se foi porque o escândalo estourou e a operação não pôde conti-nuar; 2) se esse dinheiro foi gasto, como é regra, principalmente com veículos de comunicação; 3) ou se, no todo ou em parte, chegou a algum partido ou parla-mentar, por meio de Valério ou do PT, grana de Dantas. Muito menos, como diz Zampronha diversas vezes, se isso tem qualquer relação com compra de votos.

7. UMA cENA fiNAl dO ESpEtácUlO?Barbosa teve grande publicidade por apoiar a denúncia. E fez seu relatório final sob a pressão da mídia. Seu voto que luzes refletirá?

Quando vai ser julgado o mensalão? No dia 12 de dezembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, escalado para revisar o voto a ser apresentado na plenária do julgamento naquela corte pelo relator do processo, Joaquim Barbosa, disse à Folha de S.Paulo acreditar, “sem dúvida nenhuma”, na prescrição de alguns cri-mes imputados aos acusados, tendo em vista o longo tempo transcorrido entre os delitos e o momento previsto para o julgamento. Àquela altura Lewandowski não tinha, ainda, nem o voto de Barbosa, previsto para março ou abril próximos, nem seu relatório final.

E, de qualquer modo, não parecia ter pressa. Antes de receber o relatório de Barbosa, disse aos jornais: “Terei de fazer um voto paralelo. Quando receber o processo, vou começar do zero. Tenho de ler volume por volume. Não posso condenar um cidadão sem ler as provas”. Lewandowski lançou no ano passado o livro “A influência de Dalmo Dallari nas decisões dos tribunais”, que tem 635 páginas. O repórter Juliano Basile, do Valor Econômico, fez as contas: ler os autos do mensalão equivaleria a uma leitura de 78 livros como o do ministro. Sua oficial de gabinete, Graça Pereira, disse a RB que o ministro só começou

a revisar o relatório final de Barbosa a partir de seu recebimento, em 19 de dezembro. E que Lewandowski, apesar de ter o menor número de processos acumulados para despachar, tinha 2.978 ações na fila, aguardando julgamento. O ministro evidentemente tem autonomia para decidir que processos libera pri-meiro para serem julgados. Mas Graça ressalva: a pauta das sessões, na qual se definem os processos a serem julgados em um determinado dia ou em outro, não é Lewandowski quem faz.

RB conversou também com Marco Aurélio, chefe de gabinete do ministro Barbosa, sobre a questão da prescrição dos crimes dos “mensaleiros”. No enten-dimento da acusação, o principal crime a ser julgado é o de formação de quadrilha. Sua pena mínima seria de dois anos e o crime prescreve em oito. Mas, diz Au-rélio, a despeito de o suposto crime ter sido cometido pela “quadrilha de José Dirceu”, digamos assim, entre o final de 2002 e meados de 2005, a prescrição não ocorrerá necessariamente em junho de 2013 – se o prazo da prescrição for contado a partir da saída de Dirceu da Casa Civil. A prescrição poderá ser o que se chama de “executória”, afirma Auré-lio. Ou seja, não prescreveria o prazo para a realização do julgamento, mas, a partir da publicação do acórdão do STF, eventualmente condenando um ou mais dos réus, recomeça a contagem do prazo de prescrição da pena (a pena, no direito criminal, é a execução da decisão judicial tomada ao final de um processo).

Discussões jurídicas à parte, o fato é que a grande mídia conservadora quer o julgamento logo e também a condena-

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Na disputa pelapresidência da

Câmara se dizia:se Aldo perder,

Nonô tira o impeachmentda gaveta

8. por que dirceu? e por que não lula?A oposição, no Parlamento e na grande mídia, avaliou a possibilidade do impeachment de Lula. No mínimo, quer a cabeça de José Dirceu

Na noite de 10 de junho de 2005, quando a oposição conseguiu instalar a CPMI dos Correios, criada a partir de uma de-núncia específica de corrupção na estatal, mas voltada, claramente, para investigar a história do mensalão, o telefone tocou no amplo gabinete de José Dirceu, então ministro-chefe da Casa Civil do governo Lula. Ele estava com Aldo Rebelo, à época ministro da Coordenação Política do governo, e com o atual governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que tinha sido vice-líder do governo na Câ-mara e na época era ministro da Ciência e Tecnologia.

Aldo e Eduardo haviam se tornado como que conselheiros políticos de Lula.

E, a despeito de Aldo ter absorvido par-te das atribuições que eram de Dirceu, pouco antes do chamado escândalo Wal-domiro Diniz, no início do ano anterior, o então chefe da Casa Civil era ainda ho-mem forte do governo e considerava os dois como políticos de grande habilidade e experiência e muito úteis ao governo. Além disso, ele gostava de Aldo e, mais ainda, de Eduardo. Naquela noite, Dir-ceu, Aldo e Eduardo faziam planos para o futuro, pois já se discutiam as eleições

de 2006 e os partidos dos três – PT, PSB e PCdoB – podiam ser vistos como o núcleo da esquerda e a força principal do governo Lula.

Os três avaliavam mal a situação. Achavam que a CPMI não seria instalada. A notícia da instalação os deixou sem ação por alguns segundos. Dirceu per-cebeu que era preciso relaxar um pouco e pensar. Pegou uma garrafa de uísque de uma pequena geladeira que tinha no gabinete, serviu uma dose para cada um e disse: “Vamos viver tempos difíceis”.

O governo Lula quase caiu com o mensalão. O ano de 2005 já tinha sido difícil para o PT. Em março, o partido perdera a presidência da Câmara para Severino Cavalcanti, de Pernambuco, do Partido Progressista, famoso por abrigar em suas fileiras (e por bom tempo na sua presidência) o polêmico deputado federal e ex-governador paulista Paulo Maluf. Severino ganhou porque o PT se dividiu: apresentou um candidato oficial, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), e um dis-sidente, Virgílio Guimarães (PT-MG). No primeiro turno Greenhalgh ganhou com 207 votos, contra 124 de Severino e 117 de Virgílio. No segundo, ganhou Severino: 300 votos, contra 195 de Greenhalgh.

Severino renunciou à presidência no dia 21 de setembro na esteira de uma campanha de denúncias de que teria re-cebido comissão por um contrato de um empreiteiro do restaurante da Câmara. Com a campanha do mensalão contra o PT, o partido ficou sem condições de apresentar um substituto para o lugar de Severino. Cerca de um mês antes, em agosto, Duda Mendonça havia dado seu dramático depoimento à CPMI dos Correios, dizendo ter recebido 10,5 mi-lhões de reais do PT, não declarados à Justiça Eleitoral, num paraíso fiscal nas Bahamas.

Com as CPIs, Dirceu, Aldo e Eduar-do voltaram à Câmara para a defesa do governo. Com o aval de Lula e a avalia-

ção dos réus. Por esse motivo, as decla-rações de Lewandowski tiveram grande repercussão. No dia 14 de dezembro, o presidente do STF, Cezar Peluso, enviou ofício a Barbosa pedindo a disponibili-zação da íntegra dos autos a todos os ministros, para evitar a prescrição. E tor-nou público o documento. Barbosa tem problemas sérios de coluna. Estava em tratamento médico nos EUA e voltou ao Brasil no fim de semana seguinte ao pe-dido de Peluso. Já na segunda feira, 19 de dezembro, apresentou seu relatório final, de 122 páginas, e, surpreendentemente, outro documento, de cinco páginas: uma carta endereçada ao presidente Peluso e também tornada pública, informan-do estarem todos os documentos do mensalão “integralmente digitalizados e disponíveis eletronicamente” há mais de quatro anos. Na carta, além disso, Barbosa classifica o ofício recebido de Peluso de “lamentável equívoco”, visto a digitalização ter sido aprovada, por pro-posta sua, em plenária do Supremo em maio de 2006, quando o processo ainda tramitava como inquérito, exatamente para “facilitar o acesso a ministros e advogados”.

Como se percebe, Peluso e Barbosa bateram cabeça em virtude da pressão da mídia. Não é segredo que Barbosa se animou com a repercussão de seu primeiro voto no caso do mensalão. Em 2007, quando encaminhou ao ple-nário, praticamente sem modificações, a denúncia do então procurador-geral Souza contra os 40 réus, a revista Veja o chamou de maior ministro da história do Supremo e ele foi recebido com aplausos por variadas plateias. A apa-rente pressa de Barbosa em responder a Peluso pode tê-lo levado a ignorar, por exemplo, o relatório da PF preparado pelo delegado Luiz Flávio Zampronha, tido como um refinamento da investi-gação sobre as origens do valerioduto, pois não há qualquer menção a esse do-cumento nas suas considerações finais. Não há, também, menção às alegações finais de Luiz Gushiken tentando escla-recer os mecanismos de aprovação do uso dos recursos do Fundo de Incen-tivos do Visanet, tidos pela acusação como a principal fonte de alimentação do mensalão.

Os repórteres de RB avaliam que es-tão ocorrendo dois problemas políticos. Um: a investigação, para tentar provar a grande pretensão da acusação, ou seja, a de caracterizar “o maior crime político

da história do País”, demorou muito, mas foi muito malfeita e está inconclusa. Dois: há uma pressão política para que o plenário do STF, como já foi feito pelos dois procuradores-gerais da República

e pelo próprio Barbosa, simplesmente endosse o ponto de vista desse pretenso crime de ordem superior, sustentado pela grande mídia conservadora desde o início dessa história.

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ção de Eduardo de que o PMDB não o apoiaria, Aldo foi escolhido para disputar a presidência da Câmara. Ganhou com grande dificuldade. O primeiro turno terminou empatado com 182 votos para ele e 182 para José Thomaz Nonô, então deputado do PFL de Alagoas. Nonô era muito bem-visto na Câmara. Teve o apoio integral de seu partido e dos ou-tros partidos oposicionistas, o PSDB e o PPS. E a chamada base aliada se dividiu entre os votos de Aldo e de outros três candidatos: Ciro Nogueira (PP-PI), com 76 votos, Luiz Antônio Fleury (PMDB-SP), com 41, e Alceu Collares (PDT-RS), com 18 votos. No segundo turno, Aldo ganhou por escassa margem: 258 contra 243 votos. Foi um alívio. Segundo a ava-liação da trinca Dirceu, Aldo e Eduardo, se Nonô ganhasse, isso significaria que a ala direita da base governista tinha mu-dado de lado e estava aberto o caminho para o impeachment de Lula.

Segundo um artigo especial do jornal Valor Econômico sobre o mensalão, escrito pelos repórteres Raymundo Costa e Cristiano Romero, o impeachment de Lula era uma ameaça concreta. Do próprio núcleo mais próximo do presidente teria

saído uma proposta para, como diríamos, um recuo ofensivo de Lula: renunciar publicamente à reeleição no ano seguinte, como manobra defensiva para diminuir o ímpeto da oposição em levar adiante um processo de impeachment. Do lado da opo-sição, políticos como Fernando Henrique Cardoso achavam que não tinham força para derrubar Lula. “O impeachment é um ato político, o jurídico é outra coisa. Você vai para o tribunal. O ato político você tem que ter força para ganhar, não é ter a razão”, teria dito FHC a Aldo, segundo Costa e Romero.

Tudo indica que a oposição viu que não tinha forças para derrubar Lula. O primeiro editorial de O Estado de S. Paulo, o mais tradicional e consequente diário das forças conservadoras do País, no dia 8 de junho de 2005, logo após a primeira entrevista de Roberto Jefferson denunciando o mensalão, com o título de “O grande culpado”, apontou Lula, que estaria “farto de ouvir falar da compra de políticos”, como o responsável pelo escândalo. Três dias depois, publicou outro editorial, evidentemente mudando de ideia. O título era “O novo nome da crise” e esse nome aparecia por exten-

so: “José Dirceu de Oliveira e Silva”. Jefferson mudou de opinião também. No seu primeiro discurso tinha dito que Lula sabia do mensalão. Logo depois do editorial do Estadão saiu-se com a con-clamação para Dirceu deixar o palácio para não prejudicar um “inocente”, Lula. A construção da tese do maior crime da história do País, sob o comando de José Dirceu, começou aí. A oposição, tanto a do Parlamento quando a da grande mídia conservadora, agora tenta levar o julgamento no STF para o resultado de máximo desgaste possível do governo, que é o de sacramentar na Justiça a tese de o PT ter cometido o maior crime político da história do País. Nada indica, no entanto, se ficará completamente sa-tisfeita obtendo o resultado pretendido agora no STF. As eleições de 2014 logo virão e Lula pode ser candidato, depen-dendo do andar dos acontecimentos. O STF, no caso Collor, julgou a ação penal decorrente da investigação do Congresso com base nas provas dos autos. Se fizer um julgamento político com base numa suposta indignação da opinião pública contra o alvo atual da grande mídia, será um mau sinal.

O MENSALÃO FARÁ PARTE DA FAXINA? A mídia conservadora, como vimos em nossa história, quer a condenação dos réus do mensalão para logo. Destes, o mais visado é José Dirceu. O presidente Lula disse que ia sair em defesa dos acusados há tempos e até agora não o fez. A presidente Dilma Rousseff o que fará? Em setembro do ano passado, na substituição do ministro do Turismo, Pedro Novais, do PMDB, vitimado pela chamada operação

faxina, ela nomeou para o posto Gastão Vieira, do mesmo partido. Vieira é um dos que, em 2005, no auge do mensalão, se disseram dispostos a eleger um presidente da Câmara capaz de apresentar o pedido de impeachment do presidente Lula. Não se pode esquecer que foi a presidente que indicou o grande inquisidor Roberto Gurgel. Provavelmente, ela nada fará para conter o clima de pressão que a mídia conservadora faz sobre o STF

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nos sete anos do escândalo do mensalão, praticamente só foram ouvidosataques aos réus. agora, o País ouviu os seus advogados

por Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira

a VEZ Da DEFEsa2012, setembro

Na sexta-feira 3 de agosto, na abertura do julgamento da Ação Penal 470 (AP470), o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, gastou quase cinco horas para fazer a acusa-ção formal, diante dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), contra os réus do chamado escândalo do mensalão. Gurgel repetiu, com al-guma retórica, o que vem sendo dito amplamente desde que o escândalo foi denunciado em 2005: eles teriam co-metido o “mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil [...] um sistema de enorme movimentação financeira à margem da legalidade, com o objetivo espúrio de comprar os votos dos parlamentares”. O procurador ter-minou citando versos de uma canção de Chico Buarque feita ao final da ditadura militar, que fala do Brasil, “a pátria mãe”, sendo “subtraída em tenebrosas transações”. E clamou pela condenação dos réus que, a seu ver, deveriam ser presos logo após a sentença. “A atuação do Supremo servirá de exemplo para toda a sociedade, a fim de que os atos de corrupção sejam tratados com o rigor necessário”, concluiu.

Na terça-feira seguinte, 7 de agosto, na fase de apresentação dos argumentos de defesa pelos advogados dos acu-sados, falou Leonardo Yarochewsky, defensor de Simone de Vasconcellos, acusada de fazer parte da estrutura de comando do grande crime. A história de Simone ajuda a entender as dificuldades da promotoria. Segundo a acusação, Simone era a pessoa encarregada de orientar os parlamentares sobre como e onde receber o dinheiro do mensa-lão. Foi também quem encaminhou os pedidos de empréstimos, das agências do publicitário Marcos Valério ao Ban-co Rural, repassados, depois, ao PT e parlamentares. Também fez saques e

entregou quantias em dinheiro vivo a eles. Num desses repasses, usou um carro-forte.

Para defender sua cliente, Yaro-chewsky citou uma história do famoso escritor alemão Johann Goethe, na qual um cocheiro é acordado de madrugada pelo patrão, que lhe ordena levá-lo até uma casa afastada. Faz isso, a pedido do patrão, espera alguns minutos e, depois, o leva de volta para casa. No dia seguinte, lê no jornal que uma pessoa havia sido assassinada naquela noite, na casa à qual levara o patrão. “O cocheiro deveria ser culpado por ter conduzido o patrão ao local do crime?”, perguntou Yarochewsky.

Simone é a pessoa menos graduada e menos famosa entre os 12 acusados de formar a estrutura de comando do suposto grande crime. Mas era bastante conhecida na agência do Rural onde fez os saques. Yarochewsky explicou, no tri-bunal: “As pessoas a conheciam porque ela era, e é, uma mulher bonita, vistosa, e chegava numa agência pequena”. Não era publicitária: era diretora administra-tiva da SMP&B, uma das agências de Valério. “Em momento algum negou que, a mando de Valério, entregou várias quantias em dinheiro para vários parla-mentares. Mas Simone não sabia quem eram esses parlamentares”. Ela pegou um carro-forte? “Sim, Simone fez isso”, disse o advogado usando a informação dada pelo procurador Gurgel. “É que ela tinha verdadeiro pavor de sair com o dinheiro, porque o dinheiro não era dela. Como sair da agência com aquele monte de dinheiro? Em uma caixa? Tinha que ser em carro-forte mesmo. E era ordem do patrão. Uma vez ela perguntou: ‘Por que não mandar em DOC?’”, disse Yarochewsky, referindo-se ao envio eletrônico de dinheiro. “Porque o Marcos Valério respondeu que tinha que ser daquele jeito”.

Yarochewsky mostrou que nos au-tos não existe mais nada contra Simone além do fato de, a mando de seu chefe, a quem ela tinha acesso apenas quando era chamada, ter distribuído dinheiro a quem, em geral, não conhecia. “Não se encontrou absolutamente nada em rela-ção à Simone, ela não ganhou nada. Seu padrão de vida continuou o mesmo”, disse o advogado.

Tudo indica que Simone entrou nessa história para uma montagem da tese do mensalão como o grande crime político do Brasil. Essa tese foi construída para desmontar outra, a de que o esquema Marcos Valério-Delúbio Soares, que distribuiu dinheiro a muitos parlamentares, era o do conhecido caixa dois, usado por praticamente todos os partidos e ao qual o PT aderiu em larga escala ao chegar ao poder.

Para a construção de outra tese, a do mensalão como “o” grande crime, a Procuradoria Geral da República (PGR) imaginou que os empréstimos do Banco Rural às agências de Valério eram falsos. E a falsidade visava encobrir o crime maior, o de desvio de dinheiro público para garantir a compra do Congresso. Esse crime teria sido articulado por três quadrilhas, uma política, outra financei-ra e outra publicitária. Como, por lei, uma quadrilha é uma organização que se reúne para a prática de crimes com um mínimo de quatro pessoas, a estrutura de comando do mensalão precisava de 12 pessoas. Tudo indica que a procura-doria enquadrou Simone assim:

1. a quadrilha publicitária era fun-damental.

2. juntando Valério e seus dois só-cios, Cristiano Paz e Ramon Hollerbach, faltava um.

3. Simone levou dinheiro vivo aos parlamentares.

4. Bingo! O número 12 na estrutura de comando do mensalão é ela!

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O PrOCUraDOr NÃO CONsEGUiUMONTar a QUaDrilHa POlÍTiCae, entre centenas de depoimentos dos autos, só achou o de Jefferson para apontar dirceu como chefão do esquema

Yarochewsky, citando Goethe: enquadrar Simone entre os doze organizadores do mensalão mostra as dificuldades da acusação em compor as três “quadrilhas”

Pode-se dizer que os sete anos de escân-dalo do mensalão foram disparados com as duas entrevistas que o então presidente do PTB, deputado Roberto Jefferson, deu à Folha de S.Paulo no início de junho de 2005 denunciando um esquema de “me-sada” que estaria sendo distribuído aos deputados no Congresso Nacional pelo tesoureiro do PT, Delúbio Soares, por meio de Valério. Pode-se dizer também que a prova mais acachapante de que, de fato, por trás da retórica de Jefferson havia algo espetacular, foi obtida menos de um mês depois, em 13 de julho, quando uma força da Polícia Federal (PF) comandada pelo delegado Luiz Flávio Zampronha invadiu o arquivo central do Banco Rural em Belo Horizonte e se apossou da do-cumentação na qual estavam as ordens dadas pelas agências de Valério para as entregas de dinheiro a quase todos os parlamentares e seus assessores agora denunciados na AP470.

Em investigações posteriores, em pouco tempo se chegou a um balanço detalhado dessas contas: o PT tinha distri-buído clandestinamente, pelo esquema, 56 milhões de reais entre o final de 2002 e o primeiro semestre de 2005. Desse dinheiro 28,5 milhões de reais foram para pessoas ligadas ao próprio PT – entre as quais o publicitário Duda Mendonça, marqueteiro da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, candidato à Presidência da República em 2002, com 15,5 milhões de reais, e mais nove diretórios do partido; 12,2 milhões para o PL; 7,8 milhões para o PP; 4,9 mi-lhões para o PTB; e 2,1 milhões de reais para o PMDB.

Nos depoimentos dados ao Congresso Nacional, que os investigou através de três comissões parlamentares de inquérito e nos inúmeros inquéritos da PF, com exceção do denunciante Jefferson, todos os deputados e assessores dos partidos envolvidos com o esquema Valério-Soares disseram tratar-se

de dinheiro do PT para suas campanhas eleitorais.

Pela legislação vigente – a Lei Com-plementar 64, de 1990, que reformulou a legislação eleitoral da época da ditadura para adaptá-la aos termos da Constituição da redemocratização, de 1988, e pela Lei das Eleições de 1997, na parte que trata da Arrecadação e da Aplicação de Recursos nas Campanhas Eleitorais – seria possível punir os delitos confessados com penas severas, entre as quais a cassação de man-datos e mesmo a prisão.

A oposição ao governo Lula, setores descontentes de sua própria coligação e a unanimidade da grande mídia conser-vadora, no entanto, desde o início não quiseram enquadrar os crimes cometidos na legislação eleitoral. Até agora, repetem algo como o que foi dito por Gurgel na abertura do julgamento: que se tratou de um esquema de corrupção especial, nunca visto na história deste País. No fim de semana que antecedeu a abertura do jul-gamento do mensalão pelo STF, todos os maiores diários e semanários políticos bra-sileiros publicaram balanços enquadrando o mensalão nessa categoria excepcional.

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A lei permitiapunição dura

para o caixa dois confessado. A

oposição não quis.

Queria mais

Oliveira Lima: Gurgel não provou a compra de votos porque não há essa prova nos autos

Duas matérias merecem destaque. A da Folha de S.Paulo, de 29 de julho, intitulada “A invenção do caixa dois”, diz que, em 12 de julho de 2005, os principais envolvidos no escândalo se encontraram em uma “reunião secreta” em São Paulo para definir uma estratégia comum de defesa, criando a tese do caixa dois. Segundo o artigo, estavam na reunião os advogados Arnal-do Malheiros Filho, defensor de Soares, Marcelo Leonardo, defensor de Valério, os clientes de ambos, além de Sílvio Pereira, então secretário nacional do PT, e de José Genoino, presidente do partido.

No dia seguinte, Malheiros teria pro-curado o então ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, que teria ouvido a tese do caixa dois e falado da necessidade de todos afinarem o discurso. Aí o próprio presidente Lula teria entrado na história. Nessa mesma quarta, Bastos chamou o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e ambos foram até o presidente. “Lula con-cordou com a versão adotada”, prossegue a história da Folha. O ministro da Justiça teria voltado a Malheiros e dado o sinal verde para a sua difusão.

Outra história muito parecida com a da Folha é contada pela revista Época. O semanário do grupo jornalístico da TV Globo diz que, na noite de 13 de julho, Soares jantou com Valério em Belo Hori-zonte para dar início à montagem da versão falsa da história. “Os fatos viriam a público e eram inegáveis. Era preciso, portanto,

enxergá-los sob outra luz, a luz do caixa dois – e não da compra de apoio político. Na mesma noite, o advogado Leonardo pediu uma audiência de seu cliente ao então procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza”. Nos dias seguintes,14 e 15 de julho de 2005, Valério e, depois,

Soares teriam estado com o procurador-geral e passado a ele a versão unificada de que “tudo não passava de caixa dois”, diz o artigo de Época.

O problema dessas duas histórias, no contexto do escândalo do mensalão, é o mesmo de Gurgel diante do STF: elas não ajudam a provar a ambiciosa tese de que se tratou do maior crime de corrupção da

história do Brasil. Em síntese, a tese diz:1. houve compra do Congresso pelo

governo do PT, feito sob a batuta de José Dirceu, o chefe da Casa Civil da Presidência da República, que comandaria uma quadrilha política – formada por ele, Soares, Genoino e Pereira.

2. que essa quadrilha foi auxiliada por uma segunda quadrilha, de altos dirigentes do Banco Rural, com grandes interesses financeiros encaminhados favoravelmente por Dirceu no governo e que, por isso, de-ram empréstimos falsos, depois repassados ao PT por Valério.

3. que Valério, por sua vez, comandaria uma terceira quadrilha, de publicitários in-teressados em verbas públicas onde estaria enquadrada, por exemplo, a Simone da abertura de nossa história.

Nas duas histórias publicadas na im-prensa, por exemplo, não aparece Dirceu, que, na versão do procurador-geral, é o poderoso chefão. O que seria Dirceu, então? Um laranja de um esquema de fato comandado por Lula? O procurador, formalmente, pelo menos, não concorda com isso. Lula não aparece na versão oficial da história, que apresentou diante do STF.

No artigo de Época, os detalhes foram aparentemente fornecidos pelo delegado Zampronha, da PF, que comandou as ope-rações de captura dos documentos básicos do esquema Valério-Soares e aparece em foto de página inteira ilustrando a narrativa. O interessante dela é que Zampronha é o mesmo delegado que chefiou novas inves-tigações entregues no começo de 2011 a Gurgel para tentar esclarecer a origem dos recursos do mensalão e reforçar a tese de que eles vinham de empréstimos falsos do Banco Rural.

Além de aparecer em Época, Zam-pronha apareceu também em O Estado de S. Paulo e na Folha de S.Paulo dizendo que o mensalão seria ainda maior do que o esquema denunciado por Gurgel. “Seria empregado ao longo dos anos, não só para transferências a parlamentares, mas para custeio da máquina partidária e de cam-panhas eleitorais e para benefício pessoal dos integrantes”.

Mas, para azar de Gurgel, a despeito de ser ainda mais ambicioso que o procurador, Zampronha desancou a acusação feita por ele. Disse que a denúncia de Gurgel inclui peixes pequenos que não têm qualquer culpa; que os empréstimos de Valério no Banco Rural são verdadeiros; que não há elementos para enquadrar os dirigentes do banco presentemente acusados; que a acusação de corrupção ativa contra Dirceu

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Malheiros: o que há nos autos são indícios fortes de custeio de campanhas eleitorais

é forçada e a de formação de quadrilha não é para valer, foi feita “para a galera”.

O enquadramento correto de Dirceu, Soares e Genoino, na denúncia de Gurgel, deveria ter sido por lavagem de dinheiro, disse Zampronha. “A lavanderia foi pensa-da por eles. O PT se viu na necessidade de criar um sistema financeiro. Era para caixa dois e pagamentos [de parlamentares]”. Com a “ajuda” de um auxiliar desse tipo, Gurgel não precisaria de inimigos...

O primeiro advogado a se opor a Gurgel no STF foi José Luís de Oliveira Lima, defensor de Dirceu. Ele começou elogiando dois ministros, Celso de Mello, o que está há mais tempo no STF, e Marco Aurélio Mello, ambos por pronunciamen-tos em defesa de julgar as ações como manda a lei, com base nos autos. E gastou pouco menos da uma hora, o tempo de que dispunha, para dizer que não há provas nos autos contra seu cliente. Disse que eles contêm mais de 600 depoimentos, mas “nenhum deles incrimina José Dirceu [...] O Ministério Público não comprovou sua tese, não por incompetência, mas sim porque não é verdade que houve compra de votos. Não existe prova dessa acusação nos autos”.

Todos os advogados dos 38 réus repe-tiram esse argumento básico: a necessidade de o STF julgar fundamentalmente o mensalão com “a prova colhida durante o contraditório”, ou seja, as provas e teste-munhas apresentadas em juízo, na presença das partes em confronto, acompanhadas de seus advogados. A doutrina é clara, disseram: as provas colhidas em CPIs e na fase do inquérito policial não bastam para fundamentar o julgamento. O artigo 155 do Código de Processo Penal diz que os juízes devem decidir após examinar a “pro-va produzida em contraditório judicial” e não podem fundamentar suas decisões “exclusivamente em informações colhidas na fase policial da investigação”.

Esse fato, o de que sua acusação apresentou provas escassas, preocupa o procurador Gurgel. Tanto que, 12 dias de-pois de sua intervenção inicial no STF, ele apresentou aos ministros um memorial no qual, entre outras coisas, diz que existe, sim, um testemunho nos autos contra Dirceu, o de Jefferson. O ex-presidente do PTB, de fato, repetiu na fase judicial a acusação contra o ex-ministro da Casa Civil. Mas não é testemunha; é réu no processo. Como tal, a lei admite que ele pode não ser punido se mentir em sua própria defesa.

A tese do grande crime, defendida por Gurgel, é também grande, mas artificial,

disse o ex-ministro e advogado criminalista Bastos, o mais famoso entre os defensores dos réus. “São cinquenta mil páginas, 38 acusados de coisas díspares, que não estão ligadas entre si [...] É o artificialismo de jun-tar tudo numa coisa só [...] É um guisado [...] uma prova de insegurança da acusação, agrupar condutas de outra forma, para ver se melhora [...] de transformar isso no grande escândalo”, ele disse.

O grande crime de comprar o apoio do Congresso para garantir o poder do PT teria sido perseguido sob o comando da quadrilha política. Gurgel não parece ter colocado nos autos prova de que Dir-ceu seria o chefe dela. Mas, pelo menos, provou que o Congresso foi comprado? Também não, parece. Para configurar esse crime, de “corrupção ativa”, a lei exige que a acusação prove que os réus ofereceram alguma vantagem indevida a, pelo menos, um funcionário público, para que este praticasse um “ato de ofício” decorrente do cargo que ocupa.

Os advogados da defesa argumenta-ram que voto não é ato de ofício e, mesmo que o fosse, o Ministério Público precisaria provar o voto favorável ao governo, por pessoa denunciada e por votação, e associá-lo ao dinheiro recebido.

Malheiros, defensor de Soares, ex-te-soureiro do PT, acusado de corrupção ativa e formação de quadrilha, foi um dos advo-gados mais bem-sucedidos no desmonte dessa acusação. A promotoria diz que o PT quis, comprando “com dinheiro”, fazer “uma ditadura”. Mas, argumentou Malheiros, de fato o que o PT teria feito foram alianças políticas, que “tinham por

objeto a maioria parlamentar e essa maioria se negocia com cargos e não com dinhei-ro”. Ele citou o depoimento nos autos do então vice-presidente da República, José de Alencar, sobre o acordo de seu partido, o PL, com o PT, para a eleição presidencial de 2002, feito em junho daquele ano.

O dinheiro repassado pelo esquema Valério-Soares ao PL seria decorrente daquele acordo por meio do qual ficou acertado que Alencar seria o vice de Lula; PT e PL fariam arrecadação de fundos para a campanha em conjunto; e o PT garantiria um mínimo de 10 milhões de reais aos liberais. Os repasses do esquema Valério-Soares aos deputados e assessores do PL confirmam esses acordos, disse Malheiros.

Ele afirmou também que a denún-cia pretende punir um “ato de ofício presumido”, pois não há prova de cor-rupção através do voto. “Na instrução processual, diversos depoimentos dão indícios fortes de que o dinheiro destinava-se a custeio de campanha”. Ao contrário, diz ele, “não há ato de ofício, não se diz de cada receptor desse dinheiro que voto ele teve”. A denúncia fixa-se em duas votações – as das reformas tributária e previdenci-ária – afirmando que houve relação entre os saques e as votações, ele explica. “Mas, quando se faz um levantamento minucioso dessas votações, o que nós fizemos nas alegações finais, mostramos que, nessas reformas, não faria sentido comprar votos de parlamentares”.

Malheiros disse que, na reforma previdenciária, o depoimento judicial do senador Tião Viana, líder do governo na época, esclarece que os deputados do

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Genoino teve,em 2007, nove

denúncias por crime de

peculato.O STF recusou

todas elas

Pacheco: “este homem está sendo acusado por parcos indícios que foram totalmente dizimados ao longo do processo penal”

PT sofriam uma pressão muito forte, so-bretudo os que tinham base sindical, para votar contra a reforma. Então, foi buscar os votos na oposição.

Malheiros apresentou um gráfico da CPI dos Correios mostrando as votações nas quais o PT não conseguia apoio para seus projetos na base aliada e buscava apoio na oposição. “Fizemos uma análise dos partidos da base aliada. Quanto mais dinheiro entra, menos o partido apoia. Isso é igual para o PL, para o PTB, o PP e o PMDB”. Concluiu Malheiros: isso mostra que a compra de votos não era nem útil nem inteligente. Malheiros disse que dos 394 de-poimentos judiciais de políticos transcritos nos autos, em 337 deles os depoentes não mencionam o nome de Soares. Trinta e nove o conhecem da vida partidária. Todos nega-ram ter conversado com ele sobre compra de votos ou mesmo terem ouvido falar de compra de votos no Congresso. Desses 394 depoentes, 79 eram parlamentares. Nenhum disse ter ouvido falar de compra de voto. Dezoito ouviram falar de recursos distribuídos pelo PT. E os 18 disseram que os recursos eram para a campanha eleitoral.

Luis Fernando Pacheco, advogado de Genoino, que também é acusado de corrupção ativa e formação de quadrilha, foi no mesmo sentido. Ele citou o placar da votação da reforma da Previdência: “Foram 357 votos a favor no primeiro turno e 358 no segundo. Bastavam 308 votos para passar. Na reforma tributária

também houve uma larga margem de votos na proposta do governo. É óbvio que a oposição votou com o governo. Para que comprar votos de dez parlamentares da base aliada?”.

Ele disse que seu cliente só assumiu o PT em 2003 e que, à época da campanha presidencial de Lula, em 2002, era candi-dato a governador de São Paulo, pleito que

perdeu para Geraldo Alckmin, do PSDB, no segundo turno. Mas conseguiu perto de 42% dos votos. Por isso, teria ficado afas-tado efetivamente da diretoria nacional do PT e também fora das discussões com os partidos aliados. Pacheco cita depoimento de Emerson Palmieri, tesoureiro do PTB

à época dos fatos, dizendo nunca ter visto a participação de Genoino na discussão das questões financeiras com os partidos da base aliada.

Pacheco diz que “quando Genoino assumiu, em 2003, o partido estava falido [...] A diretoria nacional optou por fazer empréstimos nas instituições financeiras e delegou a Delúbio resolver esse problema. Esses contratos, que começaram a ser negociados no início de 2003 e foram assinados em março, são legítimos”. Tam-bém não existiriam provas de peculato, de uso de dinheiro público nesse esquema. Genoino foi acusado pela procuradoria de nove peculatos em agosto de 2007 na apresentação inicial da denúncia. Mas “essa Corte recusou por unanimidade essa acusação”, disse Pacheco, um ho-mem corpulento, que parece respirar com alguma dificuldade e, de tempos em tempos, enxugava o rosto com um lenço azul. Pacheco concluiu sua exposição na Suprema Corte dizendo: “Esse homem [Genoino] está sendo acusado por parcos indícios que foram totalmente dizimados ao longo do processo penal. O mensalão nunca existiu”.

Sem Genoino, sem Soares, sem Dir-ceu – sem Pereira, já fora do julgamento depois de acordo com a procuradoria, que o considerou dispensado após algumas tantas horas de serviços sociais prestados – a poderosa quadrilha política imaginada por Gurgel praticamente sumiu.

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Para provar a tese do grande crime e das três quadrilhas, a procuradoria desistiu dos muitos crimes eleitorais já provados e confessados, como já vimos, e achou que poderia provar outros tipos de delito. O crime de peculato – desvio de dinheiro público para benefício próprio – é um dos que mais sensibilizam a opinião pública. A acusação tentou emplacar várias denúncias desse tipo – nove contra Genoino, como visto, uma contra Dirceu. Mas o STF derrubou essas e a maioria das outras, em 2007.

Restaram, no entanto, duas acusações importantes de peculato: de desvio de dinheiro da Câmara dos Deputados, com 50 mil reais em dinheiro para benefício do presidente da Casa na época, o petista João Paulo Cunha, hoje candidato a pre-feito de Osasco (SP), e de 326 mil reais do Banco do Brasil (BB), para o também petista Henrique Pizzolato, então diretor do banco, ambas favorecendo o desvio de milhões de reais, da Câmara e do BB, para as empresas de Valério.

O caso do BB é de longe o mais im-portante, não só pelo volume de dinheiro envolvido, cerca de 75 milhões de reais, mais que suficientes para cobrir o buraco deixado pelos 56 milhões de reais distri-buídos pelo PT, os quais a procuradoria não aceita terem vindo de empréstimos de Valério no Rural, que segundo ela seriam falsos.

O dinheiro é parte do Fundo de Incentivos Visanet, da Companhia Bra-sileira de Meios de Pagamento (CBMP), empresa de cobrança eletrônica respon-sável pelos cartões Visa. A CBMP foi criada em 2001 por 26 bancos, entre os quais o BB, que, na época dos fatos inves-tigados, entre 2003 e 2004, tinha 31,99% de participação no consórcio. Desde as investigações no Congresso, os acusa-dores tentam provar que o dinheiro do mensalão viria da parte do BB no fundo Visanet. A CPI dos Correios convocou peritos para analisar as contas do BB nesse fundo e as saídas de dinheiro para as empresas de Valério. Descobriu que notas fiscais apresentadas ao banco estatal estavam registradas como pagamento de ações realizadas, mas, na realidade, eram adiantamento de verbas, procedimento não autorizado pelas normas do BB e da Visanet. Já na CPI, porém, se descobriu

que os adiantamentos eram comuns no BB desde 2001, quando foi criado o fun-do. Além disso, o adiantamento de verbas de patrocínio cultural também é regra nos acordos entre produtores culturais e patrocinadores.

Na acusação de Gurgel, a parte cor-respondente ao BB no fundo Visanet é dada como dinheiro público. Na gestão de Pizzolato no BB, que teve início em 2003, ele autorizou, diz Gurgel, transfe-rências do fundo Visanet para a DNA, uma das empresas de Valério, no valor total de 74,6 milhões de reais. Mas a PGR não tem certeza dos tomadores finais de cerca de metade desses recursos. E o rela-

tório dos peritos contratados para analisar as transações entre o Visanet, o BB e as agências de Valério é cuidadoso. Ele não endossa as conclusões da Procuradoria.

Os peritos dizem apenas: “A inexis-tência, no âmbito do Banco do Brasil, de formalização de instrumento, ajuste ou equivalente para disciplinar as destinações dadas aos recursos adiantados às agências de publicidade dificulta a obtenção de convicção de que tais recursos tenham sido utilizados exclusivamente na execu-ção de ações de incentivo ao abrigo do fundo. Foram identificadas fragilidades no processo e falhas na condução das ações/eventos”. Talvez pela consciência da falha da ação penal nesse ponto crítico, Gurgel pediu mais uma investigação da PF sobre o assunto. Em 2011, obteve de Zampronha um relatório de mais de 300 páginas. O material não era conclusivo.

GUrGEl NÃO CONsEGUiU PrOVar QUE a GraNa DO MENsalÃO NÃO ViNHa DO rUral, QUE Era PúbliCae, para as múltiplas acusações que fez de “lavagem de dinheiro”, ignorou a exigência legal de prova de sujeira anterior

Diz: “Não [pode] a presente investigação, de forma alguma, apresentar inferências quanto ao esquema de compra de apoio político de parlamentares da base de sustentação do governo federal”. Gurgel não incorporou esse relatório aos autos.

Hoje Pizzolato responde sozinho, no PT, pela acusação de peculato. A prova do crime seria o fato de ele ter recebido do chamado valerioduto, num pacote de dinheiro, os 326 mil reais. Esse fato não teria nenhuma relação com a compra, feita por ele, algum tempo depois, de um apartamento no valor de 400 mil reais, diz Pizzolato. Não se pode negar a Pizzolato, pelo menos, o benefício da dúvida, quando se observa a distribuição de recursos do valerioduto para os diretó-rios regionais do PT, se vê que o do Rio de Janeiro foi o maior beneficiado. Nos interrogatórios, Pizzolato alegou que, a pedido de Valério, repassou os recursos a alguém que se apresentou em seu apartamento como sendo do PT do Rio.

Na apresentação da defesa de Pi-zzolato, por Marthius Lobato, o relator Joaquim Barbosa quis saber do advogado como o BB destinava recursos ao fundo Visanet e qual o papel de Pizzolato em sua liberação.

Segundo o advogado, os repasses do fundo eram autorizados por decisões colegiadas da diretoria de marketing do BB. E os recursos liberados para a agência DNA não eram públicos. “Cada banco tem sua bandeira Visa. Então, quando Vossa Excelência usa seu cartão Visa, faz uma compra, um percentual dessa compra é destinado a esse fundo, vai compor esse fundo para propaganda. Por isso, é eminentemente privado. Porque é formado por dinheiro privado. Ele não tem aportes financeiros de nenhum dos acionistas”, disse Lobato a Barbosa.

Pode ser que Lobato tenha razão. A Petrobras Distribuidora, por exemplo, tira uma parte das receitas obtidas da ven-da de combustíveis para fazer propagan-da de seus produtos. Não se pode dizer que essa parte do dinheiro da venda de gasolina que a Petrobras recebe é dinheiro público. Público, no caso, é a parte do governo, acionista majoritário da BR, nos lucros da operação. Não há, como disse Lobato a Barbosa, aporte do governo a esse fundo gasto em publicidade.

Os recursos operados pelo Visanet entre 2003 e 2005 foram da ordem de 309 milhões de reais. Desse total, 91,7 milhões foram para o BB, que liberou sua utilização para publicidade. A DNA,

O relatório deZampronha não provavao que Gurgelqueria. Ficou,

então, forados autos

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Leonardo: o dinheiro foi direto da Visanet para a conta da DNA, não fez escala no BB

a agência do BB para publicidade do fundo, recebeu os 74,6 milhões de reais já citados, 29,7 milhões em 2003; 44,097 milhões em 2004; e 844 mil em 2005. A procuradoria diz que parte desse dinheiro teria sido utilizada corretamente para pagar veiculação de publicidade do BB, outra parte teria sido desviada em opera-ções financeiras supostamente irregulares.

Um laudo da PF rastreou o dinheiro e atestou que foram feitos saques de 4,6 milhões de reais, através de várias operações do valerioduto, em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, tendo como fonte dinheiro que a DNA recebeu do Visanet. De modo geral, da publicidade que produz, uma agência fica com cerca de 20% para cobrir seus gastos e conse-guir algum lucro. Pode-se estimar, então, que, dos cerca de 75 milhões de reais de publicidade da bandeira Visa pelo BB, em regra, 80%, ou 60 milhões, seriam gastos com os veículos da publicidade, como a Rede Globo de Televisão, as revistas, os jornais, os patrocínios culturais e espor-tivos para seus produtores. O restante, quinze milhões, seria a receita da DNA para despesas e lucros. Também não é absurdo, portanto, supor que Valério, por meio da DNA, tenha emprestado 30% desse valor ao PT via Soares, pensando, é claro, em mais publicidade e mais lucros logo adiante.

Assim como o advogado de Pizzo-lato, o defensor de Valério, Marcelo Leonardo, disse no STF que o BB não fez nenhum aporte financeiro no Visa-net. Leonardo afirmou que os recursos

foram passados diretamente do Visanet para a agência DNA, sem passar pelo BB. “A perícia demonstrou inclusive, que os recursos do fundo Visanet jamais passaram por contas do Banco do Brasil, eles foram diretamente enviados para a DNA Propaganda, para pagamento de atividades de publicidade e propaganda dos cartões Visa”, disse Leonardo.

O advogado explicou também a denúncia de que o BB teria repassado

indevidamente à DNA 2,9 milhões de reais por conta de “bônus de volume”, um prêmio que as agências obtêm pela quantidade de publicidade veiculada. “O pagamento pelos veículos de mídia para as agências de publicidade de bônus de volume é regulamentado por lei federal”, disse Leonardo, que citou 18 depoimen-

Leonardo: “A perícia demonstrou

que o dinheiro do Visanet jamais

passou pelas contas do Banco

do Brasil”

tos, entre os quais um de um diretor da Rede Globo, que disse não terem sido esses bônus pagos à DNA com recursos do BB, mas dos fornecedores e veículos de mídia.

Além disso, segundo o advogado, a lei 12.232, de abril de 2010, que tem efeito retroativo expresso, explicitou o que as normas já consagravam: os bônus de volume referentes a planos de incen-tivo, como os do Visanet, não estariam inseridos na obrigação de repasse ao cliente. O advogado diz que o Tribunal de Contas da União (TCU), em quatro acórdãos de 2010, fixou que as agências de propaganda não estão obrigadas a fazer esse repasse.

Deve-se relembrar que a procura-doria busca provar que o dinheiro do valerioduto é público porque não aceita que os empréstimos do Banco Rural a Valério e daí para o PT sejam verdadeiros. Eles são verdadeiros: é o que disseram os advogados de defesa dos quatro dirigen-tes do Banco Rural, acusados de terem formado a quadrilha financeira para fraudá-los. E suas defesas são, para dizer o mínimo, interessantes.

Bastos defende um deles, José Ro-berto Salgado. Diz que a acusação contra esse dirigente do Rural “é aberrante, absolutamente afastada da realidade dos fatos [...] delira [...] abole a lei da relativi-dade, porque não leva em consideração nem o espaço, nem o tempo”. Ele disse que Salgado é acusado de ter idealizado e disponibilizado o fluxo de recursos para Valério-Soares, no começo de 2003. Mas ele, na época, estava na direção in-ternacional e de câmbio do banco. “Não tinha nada a ver com isso. Só passou a ter depois de abril de 2004, com a morte do diretor José Augusto Dumont”.

Então, agora, disse Bastos, querem responsabilizá-lo pela renovação dos em-préstimos. Mas qual é o papel do banco quando o devedor não consegue pagar o empréstimo? É renovar o empréstimo e cobrar juros, tentando, sempre, receber, disse o ex-ministro. Tanto isso é o certo, disse ele, “que um dos empréstimos de 3 milhões [de reais], que foi para o PT, já foi pago integralmente, com todos os juros e todos os acréscimos. Chegou a 10 milhões [de reais]”.

Outro detalhe das trapalhadas da acusação: ela trabalha com a informação de que o Banco Rural ocultou da Justiça informações sobre as suas transações financeiras com as agências de publici-dade de Valério, a DNA e a SMP&B. O

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contrário é a verdade: perícia chefiada pelo já citado Zampronha, na época em que ele era chefe da divisão de Combate à Lavagem de Dinheiro da PF em Brasília, credita ao Banco Rural um levantamento completo de toda a movimentação das duas empresas.

Na ânsia de acusar, a promotoria deixou de ver que sua conclusão era decorrente de ter utilizado uma de duas requisições dos documentos, a que não os encontrou. E de ter se apressado, sem ver que havia outra, feita antes, que os encontrou e levou para a Justiça. Ao ver que o próprio ministro Barbosa, na acusação que fez contra o Rural no dia 16 de agosto, ainda usava a informação errada da promotoria, um dos advogados do banco, Maurício Campos, pediu audi-ência a ele para lhe mostrar o relatório de Zampronha.

Na AP470 Campos é advogado do vice-presidente do Banco Rural, Vinícius Samarane. Disse que seu cliente é ban-cário de carreira e alcançou o posto de Diretor Estutario de Controle Interno no Rural somente em abril de 2004. Ele não participou da negociação ou autorização dos empréstimos, que foram contratados entre maio e setembro de 2003. E explica que um inquérito havia sido aberto na 4.ª Vara, em Belo Horizonte, para investigar as agências SMP&B e DNA a partir de

2000. A justiça emitiu ofício solicitando documentos ao Rural. Segundo ele todos os documentos foram encaminhados à justiça antes do prazo fixado. Eram registros de todos os lançamentos acima de 100 mil reais, de operações interca-sas, com informações dos depositantes

e pessoas que sacaram os recursos, e-mails, faxs, cópias de documentos como carteira de identidade, etc. Assim como Bastos, Campos disse no STF que os chamados “empréstimos fraudulentos” eram legítimos e foram pagos. Esses empréstimos foram de 19 milhões de

reais para a SMP&B, 10 milhões de reais para a Grafitte, outra agência de Valério, e 3 milhões de reais para o PT. “Foram 3 operações entre milhares de uma ins-tituição viva, que tem 120 agências no Brasil e no exterior e que, na época era o segundo maior banco médio do País”, diz o advogado. Segundo ele, as rotinas bancárias do Rural eram as mesmas de todas as instituições financeiras à época. O Banco Central (BC) exigia o controle de transação em espécie, com identifica-ção do titular e o valor a ser preenchido pelo cliente, e não pelo banco. Transações acima de 100 mil reais eram comunicadas ao PCAF 500, o controle do BC. O cerne da acusação é que o Rural informava ao PCAF 500 o titular da conta – SMP&B e Grafitte, por exemplo – e não a pessoa física que fazia o saque. Segundo Campos, à época, a Carta Circular 3098 do BC vigente não solicitava que se indicasse a pessoa física. Foi só em 1º de dezembro de 2004 que, para sanear essa dúvida e considerando que todas as instituições financeiras tinham a mesma prática, a Carta Circular 3151 passou a solicitar o CPF e o CNPJ do titular, do sacador e da pessoa física envolvida na transação. “As rotinas que Vinícius Samarane assumiu em 2004 eram as vigentes e não havia motivo para proceder diferentemente”, disse o advogado.

Thomaz Bastos:a acusação

contra Salgado“é aberrante”,

“delira”, “abolea lei da

relatividade”

Bastos: o ex-ministro da Justiça disse que Salgado não tem relação com o esquema Valério-Soares, basta conferir as datas

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O ministro:“Se no

mensalinho se dividiu oprocesso,

por que nãono mensalão?”

Para Vladimir Safatle, comentarista da Folha de S.Paulo, há várias maneiras de esconder um elefante. “Uma delas, é apresentar suas partes em separado. Em um dia aparece a pata. Passa um tempo e vem a cauda. No fim, não se mostra o elefante, mas uma sequência de partes desconectadas. Desde o início, o mensa-lão foi apresentado pela grande maioria dos veículos da imprensa nacional dessa maneira”, disse ele. “Vários se deleitaram em mostrá-lo como um caso de corrupção que deixaria evidente a maneira com que o PT, paladino da ética, havia assegurado maioria parlamentar com base na compra de votos e da corrupção. No entanto, o mensalão era muito mais do que isso”, disse Safatle.

Segundo o articulista, o caso mostrou que a democracia brasileira só funciona com grande parte de seus processos ocultados nas sombras: “O jogo de fi-nanciamento ilícito de campanha e de uso de benesses do Estado deixava evidente como nossa democracia caminhava para ser uma plutocracia, independente dos partidos no poder”.

Safatle citou uma entrevista antiga com o então presidente do maior partido da oposição, o senador tucano Eduardo Azeredo, considerado pela própria Pro-curadoria como um dos idealizadores do esquema do mensalão. Azeredo afirmou na entrevista que o esquema não foi usado apenas para sua campanha estadual, mas para arrecadar fundos para a campanha presidencial do PSDB.

Safatle diz que essa situação deveria servir para nos mobilizar para exigir mu-danças estruturais na política brasileira – cita o financiamento público de campanha, reformas que permitam ao partido ven-cedor constituir mais facilmente maiorias no Congresso e a proibição de contratos do Estado com agências de publicidade.

Mas isso não acontece, diz ele. “O STF teria feito um serviço ao Brasil se colocasse os acusados do PT e do PSDB na mesma barra no tribunal. Que fossem todos juntos! Dessa forma, o povo brasi-leiro poderia ver o elefante inteiro. Com o elefante, o verdadeiro problema apareceria e a indignação com a corrupção, enfim, teria alguma utilidade concreta”.

O argumento de Safatle, se resumido a um protesto contra o fato de o STF estar

usando dois pesos e duas medidas, uma para julgar o chamado mensalão mineiro e outra para o mensalão petista, seria com-pletamente procedente. Logo após a leitu-ra do nome dos réus pelo ministro Ayres Britto, presidente do STF, no primeiro dia do julgamento do mensalão, o ex-ministro Bastos, defensor de um dirigente do Banco Rural, pediu a palavra para questionar a competência da Suprema Corte em julgar réus que não têm foro privilegiado. Esses réus, segundo Bastos, deveriam ser julga-dos em tribunais de primeira instância, para que, caso condenados, possam re-correr à Suprema Corte, devido à garantia constitucional ao chamado duplo grau de jurisdição, julgamento por dois tribunais distintos, a que todo cidadão tem direito.

Outros advogados de réus na AP470 argumentaram da mesma forma. Britto co-locou a questão de ordem para votação. O ministro Barbosa disse que o processo está em suas mãos desde agosto de 2005 e que foram cinco anos de instrução processual. Disse que “durante uma tarde inteira” os ministros debateram o desmembramento do processo, pedido então pelo defensor de Valério. “Naquela ocasião, a corte já havia decidido pelo indeferimento dessa questão”, disse Barbosa.

O ministro Ricardo Lewandowski, revisor da ação, por sua vez, tomou posi-ção pelo desmembramento. Disse que o artigo 109 do Código Penal estabelece a questão da competência do STF. Compete à corte o julgamento dos presidentes e vice-presidentes da República, ministros

é UM CriME EXCEPCiONal E DEVE TErUM JUlGaMENTO DE EXCEÇÃO?muitos querem que o stF extrapole sua competência e resolva um problema estrutural da política brasileira

de Estado, procuradores-gerais da Repú-blica, comandantes das Forças Armadas, presidentes dos Tribunais Regionais, mem-bros do Congresso Nacional e membros permanentes das embaixadas.

A procuradoria alegou a “competência por conexão ou continência”, que, segun-do Lewandowski, só poderia ser acatada nos casos arrolados pela Constituição. E citou então mais de vinte casos nos quais o STF decidiu pelo desmembramento, alegando número excessivo de réus e ce-leridade do julgamento, sobretudo quando há risco de prescrição. “É objeto da maior perplexidade que em casos em tudo seme-lhantes ao da presente ação – por exemplo, no mensalão tucano – o ministro Barbosa deferiu pedido de desmembramento com base no argumento de que apenas um réu tinha foro privilegiado”, disse.

O ministro Marco Aurélio Mello tam-bém pediu a palavra. “Se no mensalinho foi feito o desmembramento, por que não no mensalão? O afastamento do juiz natural só se mostra possível quando a Constituição assim o determina. Isso se faz necessário para garantir a democracia. Todo cidadão tem direito a recorrer da sentença dada num juízo de instância inferior. É o princípio da ampla defesa, previsto em todas as leis brasileiras”. Ele citou uma parte do artigo 8º do Pacto de San José da Costa Rica, ao qual o Brasil aderiu, que prevê o direito ao duplo grau de jurisdição. E o artigo 5º, da Constituição brasileira, que garante a possibilidade de revisão da sentença.

Celso de Mello, que falou depois de Marco Aurélio, mostrou uma espécie de meia solução para a divergência. Disse que os réus ainda terão a possibilidade de recorrer da decisão do STF, caso a decisão não seja unânime. “Em havendo um julgamento não unânime, serão admis-síveis embargos infringentes do julgado, inclusive, havendo impugnação, os autos serão encaminhados a um outro relator, excluídos da distribuição o relator e o re-visor. Portanto, há no STF a possibilidade do julgado ser reanalisado”, explicou. E a posição pelo não desmembramento pre-valeceu amplamente: por 9 votos contra 2.

Em 20 de agosto o STF recebeu uma petição assinada por Bastos, Malheiros, Oliveira Lima, José Carlos Dias e mais dezesseis advogados dos réus do men-salão, na qual eles manifestam a opinião de que há o perigo de a AP470 terminar com “um julgamento de exceção”. A argu-mentação baseou-se no fato de Barbosa, o relator, ter iniciado a proclamação de sua

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decisão em relação ao caso por uma parte da denúncia, a de número 3.1, que trata da contratação por Cunha, ex-presidente da Câmara, de agência de publicidade de Valério. Nessa parte do caso o petista é acusado de corrupção passiva e peculato. Barbosa, o primeiro a votar, o condenou, mas não proferiu a sentença. E anunciou que este seria o seu procedimento em todos os outros itens. Para os assinantes da petição essa decisão era mais uma excepcionalidade no caso do mensalão, “mais um fato excepcional e inaudito em nossa história judiciária, em que juízes votam pela condenação, sem dizer a que e a quanto”. Segundo eles, “nenhum magistrado brasileiro diz ‘condeno’ sem dizer a que e a quanto”. Os manifestantes disseram também que Barbosa “toma por princípio a versão acusatória e afronta o postulado do devido processo legal, bem como dispositivos do Regimento Interno desta Egrégia Corte”.

Como se vê, no debate do mensalão há os que, como Safatle, opinam que o pro-blema é a falta de amplitude do julgamento pelo STF, que deveria ser aproveitado para resolver problemas crônicos da política brasileira, muito corrompida há tempos.

E há os que argumentam em sentido contrário, como os advogados da defesa, que consideram as excepcionalidades en-volvendo o mensalão já serem excessivas e ameaçarem transformar a suprema corte brasileira, no julgamento deste caso, num tribunal de exceção. Na medida em que a decisão do STF foi aceitar a condução proposta por Barbosa para o encaminha-mento da forma de votar o mensalão, é possível, mesmo, que o direito dos réus a um julgamento justo seja prejudicado, de várias formas. Os chamados “mensaleiros petistas” não serão julgados com os mes-mos direitos dos “mensaleiros tucanos”.

O caráter unitário do julgamento, o que mais ajudaria a esclarecer as questões em debate, desaparecerá, também em pre-juízo dos réus. Barbosa deveria, primeiro, pronunciar-se sobre a existência do gran-de crime proclamado pela PGR, depois que decidiu não processar e não tentar condenar, com base na legislação eleitoral vigente, os réus confessos de crime no financiamento eleitoral de campanhas. E partiu em busca do grande crime. É esse crime excepcional, inventado pela grande mídia conservadora e consagrado pela procuradoria, mas ainda não provado

depois de sete anos de investigações e es-cândalo, que exigiu da acusação uma série excepcional de artificialismos apresentada ao STF: a invenção de três quadrilhas, com 12 pessoas enfiadas nelas à força; a criação da improvável figura do todo-poderoso chefão da quadrilha principal, a política, intimamente articulada com outras duas, a dos banqueiros e a dos publicitários, num trabalho de anos; e o contorcionismo de considerar empréstimos aparentemente bem comprovados como inexistentes e práticas publicitárias discutíveis, mas con-sagradas, como tramas malignas.

A PGR deveria ter denunciado o crime confesso do dinheiro sujo do caixa dois. E o relator agiu, tudo indica, como o pior dos cegos: essa a razão pela qual não quer ver que a procuradoria desrespeitou a lei quando, por exemplo, enquadrou quase todos os réus no crime de lavagem de dinheiro sem provar o crime antecedente que transformou o dinheiro limpo em sujo. Barbosa não quis ver que o crime antecedente que a procuradoria prometeu entregar, o “maior crime de corrupção da história do Brasil”, era simplesmente pro-paganda enganosa que, de alguma forma, também deveria ser punida.

Lewandowski (atrás de Barbosa): no mensalão tucano, o relator apoiou o desmembramento; agora, estranhamente, indeferiu o pedido

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Não há a menor dúvida de que o PT, que se dizia o grande partido da ética na política, paga hoje o preço de, ao chegar à Presidência da República, em 2003, ter mergulhado fundo no pântano dos financiamentos clandestinos das cam-panhas eleitorais. A avaliação de que o chamado mensalão é “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção da história do Brasil” é outra coisa. Está nas alegações finais apresentadas ao Supremo

Tribunal Federal (STF) pelo procurador--geral da República, Roberto Gurgel. Do mesmo gênero foi a avaliação de Antonio Fernando de Souza, que o antecedeu no cargo e encaminhou, em 2006, a denúncia que resultou na Ação Penal 470 (AP 470), agora em julgamento na suprema corte de Justiça do País.

Pode-se dizer também que essa avalia-ção que supervaloriza os erros cometidos pelo PT é da oposição ao governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e já está formulada nas conclusões da

principal das comissões parlamentares de inquérito que investigaram o caso

a partir de julho de 2005, após a denúncia espetacular de Roberto Jefferson. Mas, com certeza, a pes-soa que transformou esse conteú-do numa peça com aparência de justiça para ser vendida à opinião pública foi o ministro Joaquim Barbosa, que cuida do mensalão desde que o caso chegou ao STF,

em 2006, com o pedido feito pelo procurador-geral Souza para

que fosse aberto um inquérito na corte, visto que diversas pessoas acusadas tinham o chamado foro privilegiado.

como o ministro barbosa armou para o público sua “historinha” e, com ela, rebaixou o nível do debate que deveria ter sido feito sobre o grande escândalo político

por Raimundo Rodrigues Pereira ilustração amarildo

2012, outubro

O HErÓi DOMENsalÃO

Para lembrar:Na Justiça brasileira, pessoas com foro

privilegiado – deputados como João Paulo Cunha, José Dirceu, Roberto Jefferson e outros, denunciados por Souza na época – só podem ser processadas e julgadas pelo STF, ao contrário das pessoas comuns, jul-gadas na chamada primeira instância, com direito a recorrer a uma alçada superior.

Uma etapa inicial do processo judicial é o inquérito, cujas investigações são feitas pela polícia. Ele é dirigido por um promotor, um advogado do Ministério Público. Decisões suas que afetem os di-reitos constitucionais dos acusados, como, por exemplo, uma busca em sua residência, devem ser aprovadas por um juiz a quem o inquérito precisa ser comunicado. No caso de nossa história, em função do foro privilegiado, o inquérito, de número 2.245, foi comunicado ao STF, o promotor foi o procurador-geral da República, e o juiz, o ministro Barbosa.

Após o inquérito policial, o procura-dor verifica se há indícios suficientes para mover uma ação penal destinada a julgar os acusados. Em caso positivo, encaminha denúncia ao juiz e este a examina para dizer se a aceita ou não. No caso, Barbosa examinou a denúncia de Souza e a aceitou. A seguir, encaminhou seu voto ao plenário do STF, que o aprovou e abriu a AP 470.

Na ação penal, presidida por um juiz, são preparados os chamados autos do processo, com depoimentos, perícias, documentos, apresentados a ele sob as regras do contraditório, ou seja, as duas partes, acusação e defesa, devem ter amplo acesso às provas produzidas, com o direito de contraditá-las.

Finalmente, concluída a fase de forma-lização dos autos, a ação vai a julgamento; no caso, o da AP 470 começou no início de agosto passado.

Barbosa surgiu como um herói para a grande mídia conservadora do Brasil quando concordou com a denúncia enca-minhada por Souza e, no plenário do STF, em fins de agosto de 2007, apresentou um voto de 430 páginas, lidas ao longo de 36 horas em cinco dias, defendendo a justeza de aceitar a denúncia. Seu voto pela abertura da AP 470 foi amplamente aceito.

Até então Barbosa era relativamente estigmatizado. Fora escolhido para ser ministro do STF pelo presidente Lula, logo no começo de seu primeiro mandato, por ser negro, numa espécie de exercício da política de cotas raciais. Isso, de certo modo, foi mal recebido por expoentes da

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mídia mais conservadora que são contra esse critério para preenchimento de parte das vagas públicas em várias instâncias; no caso, o STF.

O seu encaminhamento vitorioso da denúncia contra o mensalão petista, o cha-memos assim, mudou radicalmente essa imagem e lhe valeu elogios estridentes. “O Brasil jamais teve um deplorável escândalo como o mensalão. Como compensação, também jamais teve um ministro como Joaquim Barbosa”, disse Veja em sua edi-ção do início de setembro de 2007, num artigo de capa no qual enumerava suas qualidades de menino pobre que estudou muito e venceu na vida e sua sofisticação, desde falar várias línguas, vestir-se em lo-jas chiques pelo mundo e conhecer com detalhes a vida em Paris, Nova York, Los Angeles e San Francisco.

Mas, essencialmente, Veja elogiava o fato de Barbosa ter se con-vencido da tese apresentada na

denúncia de Souza em 2006, e encampada pela revista desde meados de 2005, de que “uma quadrilha liderada pelo ex-ministro José Dirceu movimentara dezenas de mi-lhões de reais para corromper parlamen-tares em troca de apoio político”. Veja destacava, essencialmente, a sagacidade de Barbosa em transformar a denúncia do procurador-geral numa peça para o convencimento do público. Diz a revis-ta: “Sua obsessão era a forma do voto, a estrutura, a ordem dos capítulos [...] Joaquim Barbosa fez um voto inteligente. Subverteu a ordem da denúncia preparada pelo procurador-geral da República”.

Souza apresentou uma denúncia di-vidida em sete capítulos. No quinto, por exemplo, falava de 50 mil reais recebidos pelo deputado João Paulo Cunha, na época presidente da Câmara dos Deputados, e 326 mil reais recebidos por Henrique Pizzolato, então diretor de Comunicação e Marketing do Banco do Brasil (BB). Eles tinham apresentado essas quantias como sendo dinheiro do caixa dois confessado por Delúbio Soares, tesoureiro do PT, e Marcos Valério, dono de agências de pu-blicidade com serviços prestados ao BB e à Câmara. O procurador-geral dizia que, nos dois casos, o dinheiro era, de fato, suborno.

No terceiro capítulo, Souza apresentava dois tipos de operações da agência DNA com o BB como sendo a fonte de desvio de 2,9 milhões de reais e 73,8 milhões de reais de dinheiro público para as empresas de Valério. Barbosa mudou a ordem da apre-sentação dos supostos crimes: começou sua

“historinha”, como disse na ocasião ao diá-rio O Estado de S. Paulo, pelo capítulo 5, no qual Souza tentava provar a corrupção de Cunha e Pizzolato. Depois foi para o 3, no qual Souza procurava mostrar que o dinhei-ro do esquema Soares–Valério viria, de fato, de desvio de dinheiro público. Deixou por último o capítulo no qual Dirceu é acusado de formar uma quadrilha, articulada com outras duas – uma de publicitários e outra de banqueiros –, para corromper o Con-gresso. Com essa forma, o escândalo ficou mais compreensível, “o capítulo anterior jogava luz sobre o capítulo subsequente”, como disse, na época, Barbosa ao Estadão.

Barbosa reorganizou a denúncia do procurador-geral, mas com um voto unitário. No julgamento, quando, como relator, foi o primeiro a votar, já quase no final de agosto, após os pronunciamentos da acusação, pelo procurador-geral Gurgel, e das defesas, pelos advogados dos 38 réus, ele acabou impondo – com a ajuda do pre-sidente da corte, Ayres Britto – a votação fatiada, para espanto dos ministros Ricardo Lewandowski, revisor da AP 470, e Marco Aurélio de Mello e protestos da maioria dos advogados dos réus.

O fatiamento parece ter sido o grande truque de Barbosa. É uma espécie de técnica como a de comer o pirão a partir das beiradas, onde está mais frio. No caso, começar a julgar a complexíssima tese do mensalão a partir de um ponto que é quase um senso comum: o de que os políticos são corruptos e é grande o desvio de dinheiro público para proveito deles próprios. Certos setores da classe média e da burguesia brasi-leira devem fazer isso até com uma espécie de consciência culpada: deve-se notar que, no mensalão, a acusação tenta provar um desvio de dinheiro público de perto de 100 milhões de reais. Já a Receita Federal está cobrando de centenas de milhares de pes-soas físicas e jurídicas 86 bilhões de reais em “débitos vencidos”. Desse total, 42 bilhões são atribuídos a 317 grandes contribuintes (15 pessoas físicas e 302 jurídicas) – ou seja, um montante que equivale a mais de 420 vezes o dinheiro envolvido no mensalão.

Cunha e Pizzolato foram as vítimas iniciais. Mas a história do ex-diretor do BB é, sem dúvida, a principal. Após a acusa-ção de Barbosa, Pizzolato foi condenado quase unanimemente pelos outros dez ministros por quatro crimes: corrupção passiva, porque teria recebido 326 mil reais para favorecer Valério; lavagem de dinheiro, por ter recebido dinheiro em espécie e ocultado essa movimentação; um “pequeno peculato”, por ter desviado 2,9

milhões de reais por meio dos chamados bônus de volume, isto é, recursos dados pelos veículos de promoção e mídia em função do volume de serviços cobrados do BB, que seriam devidos ao banco, mas foram dados para uma empresa de Valério com a anuência de Pizzolato; e um “grande peculato”, pelo desvio de 73,8 milhões de reais, que também seriam do BB e foram dados para a mesma empresa de Valério, a partir de um fundo de incentivos ao uso de cartões da bandeira Visa.

O que Barbosa fez ao começar pelas “historinhas” de corrupção é o oposto do que se recomenda num debate intelectual sério. Como disse o pensador italiano An-tonio Gramsci, nesse tipo de discussão, na luta de ideias, ao contrário do que se faz na guerra, quando se come o pirão pelas beiradas, procurando destruir o inimigo atacando-o por seus pontos mais fracos, deve-se começar pelo ponto forte, o essencial da argumentação adversária. O propósito na luta de ideias não é destruir o adversário, como se faz com o inimigo na guerra, mas derrotar suas ideias errôneas e, dessa forma, contribuir para elevar o nível popular de consciência e informação.

Barbosa não é nenhum Gramsci. Fez o contrário, procurou contar uma “historinha”. Estavam em debate

duas posições. De um lado, a dos maiores criminalistas do País, que defendem os acusados com a tese do caixa dois. Essa tese foi desenvolvida por Soares e Valério, já em 2005. Eles apresentaram provas e testemu-nhos de terem repassado clandestinamente 55 milhões de reais para pagar dívidas de campanha do PT e partidos associados a ele nas eleições. Disseram que o dinheiro vinha de empréstimos tomados – pelo PT, mas, principalmente, pelas empresas de Valério – nos bancos mineiros Rural e Mercantil de Minas Gerais. De outro lado estava a tese da maioria da CPMI dos Correios, a tese do mensalão. Ela dizia que os 55 milhões de reais admitidos pelos acusados como caixa dois não existiam. Seriam dinheiro público os 76,7 (73,8 + 2,9) milhões de reais da soma do grande e do pequeno peculatos de Pizzolato, desviados do BB para Valério. As quantias teriam sido fraudulentamente camufladas como empréstimos pelo publicitário com ajuda dos banqueiros do Rural. Os 326 mil reais que chegaram a Pizzolato seriam o suborno para ele fazer o desvio. Os ban-queiros do Rural teriam feito a simulação porque estariam interessados num prêmio que Dirceu, chefe da quadrilha política,

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poderia obter do Banco Central para eles: a “bilionária” liquidação do Banco Mercantil de Pernambuco, como diz Gurgel em sua peça acusatória. E Dirceu e sua quadrilha política queriam o dinheiro para comprar o apoio de partidos no Congresso para o governo Lula.

Como juiz, a nosso ver, para encarar o debate de frente, Barbosa deveria ter começado por dar seu veredicto sobre a acusação, isto é, dizer se a tese do mensalão fora ou não provada. Deveria fazer isso examinando a argumentação da defesa, a tese do caixa dois, e fazer isso com todo o empenho, para eliminar qualquer dúvida razoável em favor dos acusados, em res-peito ao princípio in dubio pro reo.

Note-se bem: ninguém pode dizer que os réus são inocentes se o propósito for corrigir os males do

processo eleitoral brasileiro, totalmente cor-rompido pelo dinheiro. Muitos dos acusa-dos são participantes confessos, em maior ou menor grau, de um crime eleitoral: o uso de dinheiro clandestino para financiamento de candidatos e partidos. Ao escrever sobre esse tema, poucos meses depois do ocor-rido (ver no livro As duas teses do mensalão, Editora Manifesto, 2012, o capítulo “O PT no seu labirinto”, escrito em setembro de 2005), já dizíamos, por exemplo, o que está sendo observado agora por alguns analistas: os 4,1 milhões de reais repassados por meio do chamado valerioduto para o PP não podiam ser vistos como verba para paga-mento de despesas de campanhas passadas. A adesão do PP à base do governo Lula foi tardia. Em 2002 esse partido, assim como o PMDB, se coligou com o PSDB no apoio à candidatura de José Serra à Presidência. É outro, no entanto, o caso de PT, PTB, PL e de seus políticos que receberam dinheiro do esquema. Dos 55 milhões distribuídos através do esquema Soares-Valério, a maio-ria foi para o próprio PT: 23,6 milhões de reais – sendo o equivalente a 10 milhões de reais depositado numa conta no exte-rior para Duda Mendonça, que, como se sabe, foi o marqueteiro da campanha de Lula à Presidência e de vários candidatos

do PT a governador nas eleições de 2002. A segunda maior parte – 11,2 milhões de reais – foi para o PL, que estava coligado com o PT desde a formação da chapa presidencial, com Lula encabeçando-a e com o empresário mineiro José Alencar como vice. Mais 4 milhões foram para o PTB, de Roberto Jefferson. No primeiro turno da eleição presidencial de 2002, o PTB formou a chamada aliança trabalhista, com o PDT e o PSB, para apoiar Anthony Garotinho, o candidato à Presidência dessa última agremiação. No segundo, o partido de Jefferson apoiou a candidatura de Lula. Por que o valerioduto não repassou verbas para o PSB pagar suas campanhas de 2002? Por que não deu dinheiro para o PCdoB, outro de seus aliados históricos? Por que PTB, PP e PL são partidos, como se diz, mais fisiológicos, corrompíveis, digamos? É claro que pode ter havido compra de partidos, que candidatos possam ter usado o esquema clandestino Valério-Soares para melhorar suas contas pessoais e que, portanto, a tese do caixa dois não dá conta de todos os detalhes e não ajuda, de forma alguma, diga-se mais, a limpar as estrebarias formadas pelo dinheiro e pelos poderosos que o oferecem para orientar, em função de seus interesses, o processo democrático. Quem, dentre os defensores da tese do caixa dois, pode ter certeza de que os ban-queiros do Rural e do BMG não queriam favores do governo? É claro que queriam.

Mas o problema em discussão não é esse. A tese do caixa dois é a da defesa. Ela não tem, a serem seguidos os princí-pios do direito penal, o ônus da prova. É a acusação que está sendo julgada na AP 470. É a tese do mensalão, encaminhada pelo procurador-geral Gurgel na sua sustentação oral feita em 2 de agosto, na abertura do julgamento da AP 470. E é a forma como o relator Barbosa está levando os seus colegas do STF a julgá-la.

É nossa opinião que, ao não dar um voto unitário inicial à altura das dimensões que o julgamento adquiriu, Barbosa visou, de modo doloso – para usar um termo jurídico –, abrir caminho para a vitória da tese do mensalão. Empenhou-se na defesa

dessa tese, buscando em seu apoio todos os indícios e suposições da fase do inqué-rito e praticamente ignorando as provas e testemunhos produzidos para os autos pela defesa, os quais, pela lei brasileira, deveriam ser os determinantes para a condenação dos acusados. Como disse o experiente so-ciólogo Wanderley Guilherme dos Santos, em entrevista publicada pelo jornal Valor Econômico em 21 de setembro: “Temo que uma condenação dos principais líderes do PT, e do PT como partido, acabe tendo por fundamento não evidências apropriadas, mas o discurso paralelo que vem sendo construído”. O jornal então lhe perguntou se ele achava que os ministros estavam “dizendo, nas entrelinhas do julgamento”, que “o tribunal condenará alguns réus sem fundamentar essas condenações em provas concretas”. Ele respondeu: “É uma espécie de vale-tudo. Esse é meu temor. O que os ministros expuseram até agora é a intimi-dade do caixa dois de campanhas eleitorais e o que esse caixa dois provoca. A questão fundamental é: por que existe o caixa dois? Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum – que pode variar em magnitude, mas que está acontecendo agora, não te-nho a menor dúvida. Como se o que eles estão julgando fosse alguma coisa inédita e peculiar, algum projeto maligno”.

Barbosa adotou o método da “his-torinha” para ganhar o público a partir dos preconceitos existentes

contra a política. E também porque, obser-vada na sua estrutura, a tese do mensalão é muito complexa e frágil. Ela precisa de uma superorganização criminosa. Precisa de três quadrilhas – associação criminosa que envolve, em cada uma, pelo menos quatro pessoas – unidas num mesmo propósito e com divisão de tarefas. As três quadrilhas devem ter uma hierarquia, porque, segundo essa tese, Dirceu, da quadrilha política, é o poderoso chefão e seria o articulador e comandante do grande esquema.

As deformações decorrentes do enca-minhamento dado à AP 470 por Barbosa podem ser vistas com mais precisão em

Para Barbosa, Valério tirou R$ 76,7 milhões do BB na “mão grande”. Ele ignorou as notas em poder da CBMP que comprovam os serviços do publicitário

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alguns absurdos cometidos no tratamento de questões financeiras essenciais. A qua-drilha dos banqueiros teria grande interesse em falsificar os empréstimos da dupla Valério-Soares, de olho, por exemplo, na liquidação “bilionária” do Banco Mercan-til de Pernambuco. Ocorre, no entanto, como disse repetidas vezes o advogado de um dos banqueiros, o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, que essa liquidação foi “milionária”, ou seja, mil vezes menor. Barbosa mostrou, como prova da falsidade dos empréstimos para o valerioduto, o fato de um sócio de Valério ter recebido em sua conta um depósito de adiantamento de dinheiro do Fundo de Incentivo Visanet e imediatamente ter aplicado o montante no Banco Rural, como se isso fosse uma manobra diversionista. Como se não fosse uma obrigação de toda pessoa sensata, no sistema em que vivemos, aplicar a juros uma bolada que recebe. Como se todos os convênios que o governo federal faz com estados e municípios, por exemplo, não fossem de adiantamento de boa parte de dinheiro e de prestação de contas a posteriori. E nos quais todos os secretários de Fazenda com bom senso mandam aplicar o dinheiro imediatamente.

Mas o dolo principal de Barbosa é quanto aos dois peculatos de Pizzolato. Eles são a viga mestra da tese do mensalão. Esses 76,7 milhões de reais dos supostos dois desvios de dinheiro do BB substituem os 55 milhões de reais que, na tese do men-salão, não existem e teriam sido inventados pelos banqueiros, por Valério e por Soares para sustentar a tese do caixa dois. Em seu voto, ao omitir dezenas de provas e teste-munhos da defesa, Barbosa praticamente diz que Pizzolato, sozinho, comandou a

retirada do dinheiro do BB, como se o banco fosse uma padaria de cujo caixa um dirigente pudesse retirar dinheiro com a mão. As provas da defesa, que Barbosa não apresentou, mostram que essa acusação é absurda. Ele sabia e deveria ter dito que o Fundo de Incentivo Visanet, para o uso dos cartões de bandeira Visa, a partir do qual a empresa DNA, de Valério, recebeu aquele dinheiro, era da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP), dominada, no essencial, por uma empresa multina-cional, a Visa International Services Asso-ciation, estabelecida em San Francisco, na Califórnia. Sua ampla rede global possibilita a utilização de cartões de sua bandeira, Visa, por meio de 21 mil instituições financeiras em mais de 200 países. Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso a Visa criou no Brasil a CBMP. O estatuto da CBMP, assinado por todos os seus sócios – Visa (10%), Bradesco (39%), BB (32%) e mais de 20 outros bancos –, estabelece cla-ramente que o dinheiro retirado pela CBMP de cada pagamento feito por meio dos cartões Visa, para promoção dos próprios cartões e através de cada um de seus sócios, lhe pertence. Barbosa sabe disso porque foi ele quem, até o final de 2006, um ano depois de o Fundo de Incentivo Visanet ter sido fechado em função do escândalo do mensalão, tentou fazer valer, sem sucesso, uma decisão do então presidente do STF, Nelson Jobim, que mandava a companhia permitir um exame de sua contabilidade. Era a CBMP, repita-se, comandada pela Visa – não pelo BB e muito menos por Pizzolato –, que ficava com os recibos dos pagamentos feitos pela DNA por conta de serviços de promoção dos cartões emitidos pelo BB com a bandeira Visa. Pelo que Bar-

bosa mostrou ao País pela televisão, o BB não tinha qualquer controle das contas da DNA, que basicamente não teria feito ser-viço algum, apenas carregado a grana para os esquemas fantásticos de Soares-Valério com a quadrilha de banqueiros mineiros. Mas isso é totalmente falso. Nos autos do processo está a avaliação de uma equipe de 20 auditores do BB, feita ao longo de quatro meses, com base nos recibos da CBMP, que provam o que Valério diz até hoje, aparente-mente com razão: que sua empresa realizou todos os serviços de promoção pelos quais recebeu os adiantamentos.

Barbosa sabe também que a Comis-são Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, que criou a

tese do mensalão, mandou indiciar, pelos desvios que imaginou terem sido feitos no Fundo de Incentivo Visanet durante quatro anos de seu uso pelo BB, cinco pessoas, sendo três do governo FHC e duas da administração petista: Luiz Gushiken e Pizzolato. Por que sobrou apenas Pizzolato? O advogado dele, Sávio Lobato, diz que isso ocorreu apenas porque seu cliente era do PT. Pode-se dizer mais: só Pizzolato sobrou porque: 1) ele seria a porta de en-trada para a “historinha” de Barbosa; 2) se Gushiken, ministro de Comunicação Social do governo Lula e superior hierárquico de Pizzolato, fosse incluído, isso atrapalharia. Embora responsável, em última instância, pela publicidade alocada pelo governo Lula, se entrasse na história, Gushiken destruiria a parte da tese que ainda hoje une a massa dos conservadores: a de que o ex-comunista, ex-guerrilheiro e ex-comandante da equipe que elegeu Lula, José Dirceu, é o chefão mais poderoso das três quadrilhas inventadas.

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Henrique Pizzolato foi condenado no stF, de forma quase unânime, por quatro crimes. Pode ter sido uma decisão errada, em todos os casos

por Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira

UMa HisTÓria EXEMPlar

2012, outubro

heNrique Pizzolato foi diretor de Comunicação e Marketing do Banco do Brasil (BB) do início do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva até pouco depois do estouro do mensalão, em agosto de 2005, quando foi afastado como um dos denunciados no escândalo. Em agosto passado, sete anos depois, foi condenado no Supremo Tribunal Federal (STF) por quatro crimes: corrupção passiva, dois peculatos e lavagem de dinheiro. Foram 44 votos; cada um dos 11 ministros votou em cada uma das acusações. Só um voto não foi por sua condenação, o de Marco Aurélio de Mello, que o absolveu do crime de lavagem de dinheiro.

Na história que publicamos a seguir tentaremos provar que todas as quatro condenações são injustas, mesmo a por corrupção, em cuja defesa ele apresentou uma versão, de fato, pouco convincente para 326 mil reais que recebeu do valerioduto, esquema montado pelo então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e pelo publicitário mineiro Marcos Valério. Nosso argumento nesse caso: ao réu cabe o benefício da dúvida; a acusação, à qual cabe o ônus da prova, não provou que Pizzolato não repassou o dinheiro para o PT do Rio de Janeiro, como ele alega. Diremos mais: a condenação pelos dois peculatos, essencial para “provar” a teoria do mensalão, simplesmente não se sustenta nos fatos.

Henrique Pizzolato tem 60 anos. For-mou-se em arquitetura, com especiali-zação em urbanismo. Estudou também comunicação social durante três anos. Em 1974, ainda universitário, passou em concurso para escriturário do Banco do Brasil (BB), onde, ao longo de 32 anos de carreira, ocupou diversos cargos, até chegar ao topo, em fevereiro de 2003, como diretor de Marketing e Comuni-cação, nomeado pelo recém-empossado presidente do banco, Cássio Casseb. Já conhecia Casseb do conselho da Brasil Telecom, no qual este representava a Telecom Itália e ele, a Previ, o fundo de pensão dos funcionários do BB. Influiu em sua nomeação também, é claro, sua militância no PT, no qual ingressou logo na fundação, ainda estudante universi-

tário. Depois, foi eleito presidente do Sindicato dos Bancários do Rio Grande do Sul e do Paraná, para onde se mudou antes de ir para o Rio de Janeiro, em Copacabana, onde mora até hoje. Foi no movimento sindical que Pizzolato conheceu, por volta de 1985, Luiz Gushiken, então presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo e depois deputado federal pelo PT. Durante cinco meses, ele, Gushiken e Eduardo Jorge, também deputado federal pelo PT, dividiram um apartamento em Bra-sília. Pizzolato os convidou a trocar os quartos de hotel pagos pela Câmara dos Deputados pelo apartamento funcional da Associação Nacional dos Funcioná-rios do BB, da qual era dirigente. Em 2002 seu mandato na Previ terminou

UM HOMEM CONDENaDOtrinta e dois anos de carreira até o topo do banco do brasil. e, de repente, Pizzolato se transformou num pária

e veio a campanha de Lula, da qual Gushiken foi, junto com José Dirceu, um dos dirigentes. Pizzolato começou então a trabalhar ativamente para eleger Lula. Como a Previ tem investimentos junto a grandes empresas em diversos setores – hoteleiro, ferroviário, portuá-rio, bancário, mineração, infraestrutura, turismo, lazer e imobiliário –, o partido lhe deu a função de apresentar o plano de governo petista em reuniões com os líderes patronais dos sindicatos, asso-ciações e entidades desses setores, a fim de obter apoio. Lula eleito, Gushiken foi ser ministro da Secretaria de Comu-nicação Social e Assuntos Estratégicos da Presidência da República e superior hierárquico de Pizzolato em relação aos assuntos relativos à publicidade do BB.

Tudo parecia ir muito bem até 3 de agosto de 2005, quando a vida de Pizzolato virou de cabeça para baixo. Em manchetes de jornais, foi acusado de receber R$ 326.660,27 encaminhados a ele pelo empresário Marcos Valério, da agência de publicidade DNA. Valério já era tido como o operador do mensalão, o grande escândalo do início do governo Lula, e a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, a mais importante de três formadas para investigar o caso, pegava fogo. O di-nheiro fora sacado por um contínuo da Previ, Luiz Eduardo Ferreira da Silva, em uma agência do Banco Rural, no centro do Rio de Janeiro. Levado a de-por na Polícia Federal (PF), o contínuo afirmou que Pizzolato lhe telefonou e pediu que fosse buscar “documentos”

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Pizzolato: a acusação de corrupçãoé a que mais dói. “Fui humilhado,execrado em praça pública. Tudocom insinuações, hipóteses.Não apresentaram uma prova”

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no Banco Rural. Lá chegando, disse no depoimento, foi levado a uma sala interna do banco, onde lhe entregaram dois embrulhos em papel pardo, os quais disse ter levado pessoalmente a Pizzolato, em seu apartamento em Copacabana. Foi a notícia mais quente dos jornais do dia seguinte. As matérias destacavam que, pouco tempo depois do recebimento do dinheiro, Pizzolato comprara um apartamento de 400 mil reais, visto como prova suficiente de sua culpabilidade. Quinze dias depois, Pizzolato depôs na CPMI dos Correios. Seu advogado pediu habeas corpus ao STF para lhe garantir o direito de ficar calado, o que foi negado. Pizzolato disse no depoimento que suas ações no BB tinham sido aprovadas por Gushiken, o que causou sensação ainda maior por-que, àquela altura, a questão do dinheiro que teria recebido de Valério já estava associada a outra denúncia, maior: a de ter desviado 73,8 milhões de reais do BB ilegalmente para as empresas do publi-citário. Pizzolato então estaria dizendo

ter feito isso a mando de Gushiken, um dos maiores dirigentes do governo Lula.

O mensalão não mais iria sair do noticiário dos jornais nos próximos sete anos. Pizzolato disse, em depoimento judicial, depois, que a sua inquirição pelos deputados e senadores na CPMI foi uma tortura, que se sentiu “humilha-do”, “achincalhado”. Hoje vive recluso no apartamento em Copacabana. Não fala com a imprensa. Para Retrato do Brasil, sua única concessão foi enviar pela internet, a 7 de setembro, através de seu advogado, Marthius Sávio Lobato, em Brasília, uma declaração da Receita Federal com a qual buscava provar que, após uma devassa em suas contas, nada fora apurado contra ele. Mas RB teve cerca de oito horas de conversas com Lobato, que estudou na Universidade de Brasília, onde foi aluno de Gilmar Mendes, um dos ministros do STF hoje no julgamento do caso.

Lobato diz que considera seu cliente um injustiçado. Conta que, na primeira vez em que Pizzolato falou para os autos

da Ação Penal 470 (AP 470) – ou seja, em depoimento judicial, tendo ele, como advogado, ao lado, em 14 de fevereiro de 2008 – o juiz da 7ª Vara Federal Criminal, Marcelo Granado, abriu a audiência para toda a imprensa, fato que, diz ele, “não ocorreu em nenhum outro depoimento dos litisconsortes passivos, para utilizar a própria expressão do STF”. Lobato diz que ainda tentou anular o depoimento, mas o ministro Joaquim Barbosa negou o pedido sob o fundamento de que o processo não está sob sigilo.

Depois de aberta a AP 470, Barbosa expediu as chamadas “cartas de ordem” para que os réus fossem ouvidos pela Justiça em seus estados de origem. Em 2008, quando terminou seu depoimen-to no Rio, o juiz Granado concedeu a Pizzolato o direito de, “como pessoa humana”, dizer mais algumas palavras em sua defesa, se quisesse. Pizzolato disse: “Eu queria dizer da minha revolta, da minha insatisfação da forma como eu fui envolvido nesses fatos, porque eu tive a minha carreira profissional

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Valério: Delúbiomandou

R$ 2.676.660,67 para o PT-RJ.R$ 326.660,67via Pizzolato

destruída, tive a minha família exposta, fui humilhado, fui execrado em praça pública, fui julgado, fui satanizado em público [...] tudo a partir de insinuações, não foi apresentado um documento; tudo a partir de hipóteses”.

Lobato disse a RB que Pizzolato tinha saído dessa fossa e se animara com a preparação das alegações finais de sua defesa, entregues ao STF em 30 de agosto do ano passado. Mas a sentença dos ministros do STF o teria arrasado. O crime de corrupção passiva é, talvez, o que mais lhe doa. A acusação é a de que ele embolsou os 326 mil reais repassados por Valério, justamente para facilitar os desvios dos dois crimes de peculato, um de 2,9 milhões de reais e outro de 73,8 milhões de reais. E, para encobrir a corrupção cometeu outro crime, o de “lavagem de dinheiro”, ocultando origem, movimentação e destino dos recursos recebidos de Valério a 15 de janeiro de 2004.

No seu depoimento, Pizzolato disse que naquele dia recebeu uma ligação em seu celular de uma mulher que dizia ser a secretária de Valério, pedindo que fizesse o favor de ir buscar “documentos para o PT” em um “escritório” no cen-tro da cidade. Pelo fato de estar muito ocupado, diz Pizzolato, acertou com a secretária mandar outra pessoa em seu lugar, no dia seguinte, com o compro-misso de entregar os documentos ao representante do PT que iria procurá-lo no mesmo dia. Pizzolato diz que rece-beu uns envelopes do contínuo Silva e os repassou, como combinado, a uma

pessoa do PT que o procurou. Diz que não abriu os envelopes, não quis saber o nome do emissário do partido e nunca mais viu a cara dele.

Lobato nega todos os crimes dos quais Pizzolato é acusado. Diz que Barbosa não analisou as provas apre-sentadas por ele nos autos. No caso da corrupção, diz, Barbosa e os juízes prin-cipalmente especularam sobre a versão

que Pizzolato deu para a encomenda recebida de Valério. A acusação, diz Lobato, primeiro trabalhou muito para provar que Pizzolato teria comprado um apartamento de 400 mil reais, no mês seguinte ao recebimento de dinheiro de Valério, mas fracassou. Pizzolato provou que comprou o apartamento com suas economias, com um cheque do BB e mais 100 mil reais em espécie, resultado

da venda de dólares que comprara – ele mostrou o comprovante de aquisição.

Em depoimento judicial, Valério disse que o diretório do PT do estado do Rio de Janeiro, de acordo com o então tesoureiro do PT, Soares, tinha débitos de campanha de 2002, estava se preparando para as eleições munici-pais de 2004 e foi o que mais recebeu recursos do esquema comandado por Soares. O tesoureiro do PT, então, so-licitou a ele que remetesse um total de R$ 2.676.660,67 ao PT fluminense. As pessoas indicadas para o recebimento foram Manuel Severino, Carlos Ma-nuel e Pizzolato, disse Valério. Os R$ 326.660,67 repassados via Pizzolato seriam parte desse total. Valério disse também que Pizzolato trabalhou na campanha eleitoral de 2002 com Soares, no Rio de Janeiro.

Lobato diz, com razão, que o ônus da prova é da acusação: “Cadê a prova de que Pizzolato pegou esse dinheiro para ele?”. Ao depor na CPMI em 2005, Pizzolato abriu para a Justiça, imediatamente, todos os seus sigilos bancário, fiscal e telefônico. Mostrou que tinha recursos mais que suficientes para comprar o apartamento que a acusação sugeria ter saído de suborno recebido. Em 2005, por exemplo, rece-bia 4 mil reais da Previ, 19 mil reais do BB, 18 mil reais a título de participação no conselho da Embraer e mais 4 mil reais devido à atuação no conselho da Associação Nacional dos Funcionários do BB. Lobato mostra a RB o imposto de renda de Pizzolato que está nos autos. Em 2003, seu patrimônio era de R$ 1.304.725,45. Em 2004, de R$ 1.768.090,23, já incluído o apartamento comprado em fevereiro daquele ano. Seu rendimento bruto anual em 2004 foi de R$ 717.611,46 – aproximadamente 60 mil reais por mês. “A Receita Federal e a Polícia Federal não conseguiram encontrar nenhuma irregularidade nas contas de Pizzolato”, diz Lobato.

Pizzolato tem razão? Ele pode ter omitido fatos e o nome de pessoas em sua versão da história, o que a tornou pouco crível. Mas, aceitando-se a tese do caixa dois, sua versão pode ser verdadei-ra. E ele merece, pelo menos, o beneficio da dúvida, nesse caso. Mais ainda porque os dois crimes de peculato de que é acu-sado, e pelos quais ele teria recebido o suborno, podem ter sido simplesmente inventados para sustentar a tese do men-salão, como relatamos a seguir.

O relator da CPMI dos Correios, Osmar Serraglio, nas alturas: a oposição comemora

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ONDE EsTaVaM Os DOCUMENTOs?barbosa disse que o bb não tinha recibos do dinheiro gasto por Valério. mas sabia que estavam com a cbmP, controlada pela Visa

Visanet é o nome fantasia da Compa-nhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP), fundada no Brasil em 1995 e que passou a operar mais amplamente a partir de 2001. O capital controlador da CBMP é da Visa International Ser-vice (Visa), que tem 10%; do Bradesco, com 39%; e do BB, 32%. O restante está dividido entre cerca de 20 outros sócios – bancos como Itaú, Santander e BankBoston. Pode-se dizer, porém, que o controle da CBMP sempre foi da Visa, empresa americana do mundo financeiro globalizado criado nas últi-mas décadas. Ela é a possuidora dos direitos dos cartões de crédito e débito da bandeira com seu nome, emitidos em cerca de 200 países.

A partir de 2001 a CBMP começou a operar no Brasil o Fundo de Incentivo Visanet (FIV), “com o objetivo único”, como diz um de seus documentos, “de realizar ações de marketing destinadas a incentivar o uso dos cartões Visa pelos consumidores”. O FIV era formado por uma porcentagem dos negócios com os cartões e a CBMP destinava os recursos assim obtidos a ações de promoção e marketing dos mesmos, a serem comandadas pelos sócios. O dinheiro movimentado pelos cartões da bandeira Visa é monumental: no mundo, passa de 5 trilhões de dólares por ano. No Brasil, é mais de 1 bilhão de reais anualmente, somando-se ape-nas os negócios feitos com os cartões Visa do BB.

A CBMP arrecadou para o FIV cerca de meio bilhão de reais entre 2001 e fins de 2005, quando o fundo foi en-cerrado; na verdade, mudou de nome, devido à má repercussão das histórias divulgadas a respeito dele no mensalão. O BB foi o líder dos negócios com cartões de bandeira Visa nesse período. Sua parte no FIV foi grande e crescente: aproximadamente 150 milhões de reais entre os anos de 2001 e 2004: 60 mi-lhões de reais nos anos 2001–2002 – no governo Fernando Henrique Cardoso, portanto – e 90 milhões de reais nos anos 2003–2004, já no governo Lula, quando Pizzolato era diretor de Comu-nicação e Marketing do BB.

Desde a criação da CBMP, o FIV tinha um regulamento que cada sócio deveria observar para usar os recursos.

participação no FIV, em 2001, o BB decidiu, por questões fiscais, que os recursos do FIV não passariam por seu orçamento. E nunca fez um contrato específico com a CBMP nem com a agência DNA para o uso dos recursos do FIV. Essa situação persistiu até meados de 2004.

A DNA trabalhava com publicidade e promoção para o BB desde 1995. Entre 2001 e 2002 dividia os trabalhos de promoção com uso do dinheiro do FIV com outras agências contratadas para servir o banco. No final de 2002, ainda no governo FHC – destaque-se, para melhor entendimento de nossa história –, o BB decidiu dividir os tra-balhos das suas agências entre as áreas de negócios chamadas de “governo”, “atacado” e “varejo” e escalou a DNA para o varejo, em que se encontravam os serviços para promoção de seus cartões com bandeira Visa.

O ministro Barbosa conhece bem toda essa história. Sabe, por exemplo, que os originais dos recibos dos servi-ços da DNA prestados ao BB eram da CBMP e que a companhia resistiu judi-cialmente por longo tempo a entregar tais recibos, mesmo com o escândalo do mensalão, depois de ter sido de-terminado, a 11 de janeiro de 2006, pelo então presidente do STF, Nelson Jobim, o acesso de peritos do Instituto Nacional de Criminalística “a todos os documentos da empresa no período de 2001 até janeiro de 2006”. Em junho de 2006, quando Barbosa já era, no STF, o ministro encarregado de supervisionar o andamento do inquérito 2.245, rela-tivo ao mensalão, ele recebeu uma

Ele previa a cobertura para atividades de promoção de todo tipo. No seu item III.4, definia as “ferramentas mercadológicas”, a serem usadas. Eram especificadas algumas dezenas dessas ferramentas, como: “publicidade em mídias de massa”, “TV, rádio, revistas, jornais, outdoors, mobiliário urbano, front e back lights, painéis, etc.”; “merchandising, trabalhos de planejamento, criação, layout, editoração, produção, veiculação e comissão de agência de publicidade”; “programas de fidelização ou promoção para portador no ponto de venda, nas agências bancárias, via internet, correio, telefone ou locais de grande fluxo de portadores para estimular venda do plástico; de planejamento e criação, produção de material gráfico, de divulgação e de apoio, contratação de promotores, compra de benefícios, brindes, prêmios, taxas governamentais de aprovação e alvarás”. E por aí afora.

O FIV era administrado por um comitê gestor, formado por um presi-dente, um diretor de Finanças e Admi-nistração e outro de Marketing, todos da Visanet, a quem cabia verificar se os recursos estavam sendo emprega-dos “de acordo com as diretrizes, a estratégia do negócio e as condições do Regulamento”. Os recibos dos gastos da agência de publicidade DNA, de Va-lério, tão citados no mensalão, ficavam com a CBMP, que fazia pagamentos diretamente à agência. Ao definir sua

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Já em 2005 Valério afirmava ter feito os trabalhos pagos pelo Fundo de Incentivos Visanet: na foto, advogados dele entregam o que seriam suas provas à CPMI dos Correios (o relator, Serraglio, à esquerda; ao centro, o presidente, Amir Lando)

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petição do então procurador-geral, Antonio Fernando de Souza, relatando as dificuldades impostas pela CBMP ao acesso dos peritos a sua documentação.

Souza requisitou “busca e apreen-são” na sede da empresa, além da “que-bra do sigilo do fluxo de comunicações e de dados em sistemas de informática e telemática” da CBMP. Barbosa apro-vou os pedidos do procurador-geral e a busca foi feita, mas a empresa apelou ao STF para reconsideração da decisão. A CBMP já havia encerrado as ativida-des do FIV em fins de novembro de 2005, mas uma intensa disputa judicial então já estava em curso. O BB tinha suspendido o contrato com a DNA em função do escândalo do mensalão. Tinha também alterado o modo de relacionar-se com a empresa de Valério já em meados de 2004, para melhorar o controle dos gastos.

Valério ingressou com ações na Justiça para cobrar do BB por serviços feitos e que não teriam sido pagos. Em junho de 2009, já com a AP 470 com dois anos de andamento, Barbosa en-viou ao BB um questionário relativo ao possível descumprimento de contrato com a agência de publicidade “no que diz respeito ao bônus de volume (BV) referente ao período de fevereiro de 2003 a julho de 2005”. A escolha das datas, que coincidem com a entrada e a saída de Pizzolato da Dimac, a diretoria de Marketing e Comunicação do BB, é óbvia: Barbosa já tinha Pizzolato como um alvo. Por que ele fez isso, visto que a auditoria a que teve acesso mostrava claramente: que o FIV tinha sido ope-rado por Pizzolato exatamente como nos anos 2001–2002; que os recursos eram sempre adiantados à DNA e às outras agências, em cerca de 80% do total a ser gasto, antes de as despesas serem feitas; e que fora na época em que Pizzolato era diretor do BB, em meados de 2004, que tinham sido feitas mudanças – aliás, bem-sucedidas – na gestão do FIV, para evitar possíveis abusos? Mais ainda: por que ele aceitou a denúncia e encaminhou a condenação somente de Pizzolato se a CPMI dos Correios tinha pedido o indiciamento de mais quatro pessoas, entre as quais três dirigentes de setores ligados à publicidade e promoção do banco que assinaram com ele as autorizações para os adiantamentos feitos à DNA, de Valério? As respostas serão dadas nas páginas seguintes.

Receitas do FIV utilizadas pelo Banco do Brasil

Adiantamentos às agências de

publicidade

Gastos com notas fiscais em poder

da CBMP

Gastos sem notas fiscais

R$ milhões R$ milhões % R$ milhões % %

2001 28,83 26,4 91,57 28,76 99,76 0,24

2002 32,03 21,9 68,37 31,99 99,88 0,12

2003 38,43 29,7 77,28 38,28 99,61 0,39

2004 52,01 34,1 65,56 51,45 98,92 1,08

BaRBOSa NãO VIuos números da auditoria mostram o que o relatorprovavelmente não quis ver

A tabela acima foi construída a partir da auditoria feita por 20 técnicos do BB por quatro meses, logo após a denúncia do mensalão. Ela mostra que o Fundo de Incenti-vo Visanet (FIV) foi operado pelo BB, entre 2001 e 2004, da mesma forma, tanto nos anos do governo FHC (2001–2002) como nos anos do governo Lula (2003–2004).Diz o relatório da auditoria que as regras para uso do fundo pelo BB tiveram duas fases: uma, de sua criação, em 2001 , até meados de 2004, quando o banco, em função de não ter adotado “definições formais acerca dos direcionamentos estratégicos”, como tipo de “eventos ou ações que poderiam ser patrocinados”, adotou “como referencial básico, o Regulamento de Constituição e Uso do Fun-do” da CBMP, que é sua “legítima proprietária”; e outra, do segundo semestre de 2004 até dezembro de 2005, quando o banco criou uma norma própria para o controle dos recursos do fundo.Os auditores fizeram simulações por amostragem para verificar a porcentagem das ações de incentivo para as quais existiam comprovantes, no banco, de que elas tinham sido de fato realizadas. Procuraram os documentos existentes no próprio banco – notas fiscais, faturas, recibos emitidos pelas agências para pagar os ser-viços e despesas de fornecedores para produzir as ações. Referente ao período 2001–2002, não foram localizados esses documentos. Já com relação aos anos 2003 e 2004, entre as 93 ações encaminhadas à Visanet, nas 33 ações selecionadas como amostra para a análise, para três delas não havia qualquer documento e para 20 havia parte dos documentos. Ou seja: somando-se as ações com falta absoluta de documentos às com falta parcial, estas chegavam a 45% do total de recursos despendidos. Os auditores procuraram então os mesmos documentos na CBMP, que, por estatuto, era a dona dos recursos e a controladora de sua aplicação. A falta de documentação comprobatória foi, então, muito pequena em proporção aos valores dos gastos autorizados, como se vê ma última coluna da tabela.Para condenar Pizzolato, o relator Barbosa não destacou esses dados. Não os viu ou não os quis ver?

ST

F

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Pelas datas dospedidos se vê,

claramente.O relator e o

procurador-geral queriam

pegar Pizzolato

O PEQUENO Pilar DO MENsalÃOÉ a acusação que trata dos bônus de volume. e tem lei do congresso, contra a qual se insurge o presidente do stF

Os dois peculatos – desvios de 2,9 milhões de reais e 73,8 milhões de reais do BB – que Pizzolato teria cometido a favor da agência DNA, de Valério, formam os pilares de sustentação do mensalão. Se a acusação não consegue provar esses dois desvios, a tese do mensalão desmorona (ver “O herói do mensalão”, nesta edição). O pequeno peculato trata do bônus de volume (BV). O que significa o BV? A acusação é de que a DNA de Valério embolsava inde-vidamente bonificações que seriam do BB, dadas a ela, pelas empresas com as quais contratava serviços para promo-ção dos cartões Visa do BB, em função do volume dessas contratações. No interrogatório judicial de Pizzolato, em 2008, o juiz Granado leu um trecho da denúncia do então procurador-geral que afirmava que as bonificações de volume pagas pelos fornecedores de serviços para a DNA – jornais, TVs, empresas de promoção contratadas pelo publicitário para os trabalhos de estímulo ao uso dos cartões Visa do BB – deveriam ter sido repassadas ao BB pela agência de Valério e não o foram. O próprio Gra-nado informou que esse procedimento era antigo: cinco agências, entre 2000 e 2005, embolsaram esses BVs e não apenas a DNA.

Pizzolato fez, então, primeiro, um esclarecimento. Mostrou que existem dois tipos de bonificação. Uma é o BV, fruto da relação entre a agência de pu-blicidade e o fornecedor de mídia – TVs, rádios, jornais, revistas, etc. “O nome já diz, é uma bonificação em função do volume”, disse Pizzolato. Não se restrin-ge ao volume de publicidade veiculado pela agência por um cliente, como o BB. Todas as agências que prestavam serviços para o banco tinham vários clientes e o BV era dado pelas empresas de mídia às agências pelo volume total de anúncios veiculados. “Isso, doutor, é praticado em todo o mercado, público e privado”, disse Pizzolato a Grana-do. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU) confirma isso em uma auditoria a que Granado tinha se refe-rido, acrescentou Pizzolato: “[O TCU] diz que o BV foi praticado no Banco do Brasil de 2000 a 2005, por todas as cinco agências que prestaram serviços ao banco nessa época”. Pizzolato ex-

plicou depois que o BV se distingue de bonificação de espaço, que vem da relação entre o BB e os fornecedores de mídia. “Os fornecedores – jornais, rádios, televisões – costumam oferecer uma bonificação de espaço, de mídia, para que o período de compra seja mais longo. Por exemplo, eu comprei 60 dias de espaço no Valor Econômico. O Valor Econômico me faz uma proposta: se você comprar noventa dias ou seis meses eu te ofereço, como bonificação de mídia, o caderno especial de domingo, porque vou lançar um caderno especial, um encarte. Pode dizer também: eu te dou mais 5% de desconto”. Nesse caso, o banco participa da negociação. E todo

esse tipo de bonificação foi revertido para o BB, disse Pizzolato ao juiz. Nesse caso, não há transação financeira, disse Pizzolato a Granado.

O próprio procurador-geral Souza, na denúncia apresentada ao STF em 2006, citou uma apuração do TCU na qual constava que a DNA teria recebido esses BVs indevidamente desde 2000, num valor de 4,3 milhões de reais. Mas, como Souza já tinha como foco Pizzo-lato, ele destacou que, desse dinheiro, “2,9 milhões se referiam ao período de 31/03/2003 a 14/06/2005, da gestão de Pizzolato na Diretoria de Marketing do Banco do Brasil”. Como já se disse, Barbosa também visava pegar Pizzolato, quando, em 2009, com a AP 470 já em pleno curso, enviou interrogatório à direção do BB da época pedindo infor-mações sobre eventual descumprimento

de contrato por BVs, exatamente no período em que Pizzolato estava no banco. O banco, no entanto, respondeu de modo mais amplo. Disse que existiam no TCU cinco processos sobre BVs que tratavam do BB, envolvendo justamente as cinco grandes agências que prestavam serviços para o banco entre 2000 e 2005: Grottera, Lowe, DNA, D+Brasil e Ogilvy.

O BB mostrou a Barbosa que apresentou recursos contra decisão do TCU que mandava o banco pedir auditoria nas cinco agências, para poder juntar, aos autos do processo naquele tribunal, todas as notas fiscais relativas a serviços de BVs emitidas por essas cinco agências. O BB mostrou que isso não foi aceito por nenhuma delas. Todas informaram que “as notas fiscais relativas a BVs, por dizerem respeito a negociações privadas entre elas e seus fornecedores, nada tinham a ver com seus contratos firmados com o Banco do Brasil” e não estavam contempladas entre os documentos que poderiam ser fiscalizados pelo banco.

As defesas de Pizzolato e Valério mostraram nos autos, com testemunhos importantes – de vários destacados profissionais do meio de comunicação e marketing –, que o Ministério Público tinha feito uma interpretação equivoca-da do BV. Todos afirmaram que o BV não pertence à empresa contratante (no caso, o BB), e sim à agência de publi-cidade. Uma dessas testemunhas foi o diretor-geral da Rede Globo, Octávio Florisbal, que criou o BV no mercado de propaganda e marketing brasileiro. Ele disse que “praticamente todos os veículos impedem que a agência repasse esses volumes ou esses valores para os anunciantes”: “No caso específico da empresa em que eu trabalho, toda vez que nós temos conhecimento de que uma determinada agência está repas-sando a bonificação de volume para um determinado anunciante, nós sus-pendemos esse plano, porque esse não é o objetivo”. Florisbal citou normas do mercado de publicidade, decisões e acordo recente “entre anunciantes, agências e veículos” para comprovar que o BV é “direito da agência e não deve ser repassado aos anunciantes, sejam da iniciativa privada, sejam anunciantes de estatais”.

Barbosa, o relator do julgamento do mensalão, citou diversas vezes, para condenar Pizzolato, os termos do

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contrato entre o BB e a DNA. Leu um dos seus itens, que diz que a agência deveria “envidar esforços para obter as melhores condições nas negociações junto a terceiros e transferir, integral-mente, ao banco, os descontos especiais (além dos normais previstos em tabelas), bonificações, reaplicações, prazos espe-ciais de pagamento e outras vantagens”. As bonificações citadas no contrato, diz Lobato, são as tais “bonificações de mídia” oferecidas pelos fornecedores para estimular vendas por períodos mais longos.

No TCU, ao analisar o caso DNA–BB, a ministra Ana Arraes considerou regular o fato de a agência ficar com o BV. Tomou como base a Lei 12.232, sancionada em 2010, que autoriza isso explicitamente, em dois artigos, um deles referindo-se a contratos encerra-dos antes de a lei entrar em vigor. Ela tomou por base a votação de processos idênticos, firmados pelo BB com outras empresas, relatados pelo ministro do TCU Marcos Vinicios Vilaça. Ao funda-mentar essa decisão o ministro afirmou: “Além de inútil na prática, a quantifica-ção de BV é algo impossível de contro-lar, porque o prêmio depende, primeiro, da política de incentivos do ofertante e, segundo, dos investimentos feitos à ordem de outros contratos que a agência possui. Tenho assistido, perplexo, ao Tribunal orientar as entidades públicas a efetuarem auditorias em agências de publicidade para apuração do bônus de

Quanto ao grande peculato, o desvio de 73,8 milhões de reais do BB para Valério, que teria sido feito sob o comando de Pi-zzolato, tanto o relator Joaquim Barbosa como o revisor Ricardo Lewandowski apresentaram em seus votos para os nove colegas do STF um cenário abso-lutamente incrível. Entre 2003 e 2004, no cargo de diretor do BB, Pizzolato teria comandado, sozinho, o desvio daqueles milhões de reais do banco para a agência de publicidade DNA, principalmente

na forma de adiantamentos, sem que se tenha comprovado a realização de qual-quer propaganda ou promoção. Também isoladamente ele teria prorrogado um contrato de publicidade com a DNA, no período de abril a setembro de 2003. E, além disso, sem qualquer processo licitatório, Pizzolato teria dado a conta de publicidade do Banco Popular, lan-çado na época pelo BB, para a mesma agência do operador do mensalão, como se fosse o dono de uma espécie de “casa

O DEsViO Na “Casa Da MÃE JOaNa”a se acreditar nas descrições do relator e do revisor da aP 470, Pizzolato teria tirado 73,8 milhões de reais do bb na “mão grande”

volume. Não vejo cabimento nisso”.O fato é que a Lei 12.232/2010,

que dispõe sobre as normas gerais para licitação e contratação de serviços de publicidade pela União, foi editada para regulamentar o que já existia nas relações de fato entre agências e anun-ciantes públicos e privados. O projeto que deu origem à lei é do então depu-tado e hoje ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. É de 2008 e legaliza a retenção, pelas agências, dos BVs nos contratos com as empresas estatais. O projeto aprovado foi o emendado pelos parlamentares Milton Monti (PR–SP) e Claudio Vignati (PT–SC). Vignati diz que a emenda foi pedida pelo setor de publicidade, porque as agências sempre retiveram na prática os BVs. Para sanar

a polêmica que havia, o que era “uso e costume” foi colocado na lei. O minis-tro Ayres Britto, presidente do STF, ao condenar Pizzolato e Valério, saiu-se com uma proposta disparatada: atacou a lei feita pelo Congresso: “Essa lei foi preparada intencionalmente, maquina-damente, para coonestar com os autos desta Ação Penal 470”. Para Britto, a lei “é um atentado descarado ao artigo 5º, inciso 36, da Constituição, que fala do princípio de segurança jurídica, dispo-sitivo que é verdadeira cláusula pétrea”.

O presidente da suprema corte, ago-ra, além de dar sentença, parece querer mandar o Congresso fazer nova lei. E revisar dezenas e dezenas de contratos feitos pelas estatais, que respeitaram os BVs nas últimas décadas.

Ana Arraes, no centro da foto, o ministro Vilaça, à esquerda, e Ayres Britto, à direita: pelo TCU, ela reafirmou as regras e ele considerou que era absurdo ser diferente. Já o presidente do STF se rebelou contra a lei

AB

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ST

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Barbosa e Lewandowski ignoraram também a auditoria do BB, já citada, feita por 20 técnicos ao longo de quatro meses. Ela, como vimos, mostra que os recursos usados pelo banco para publicidade dos cartões de bandeira Visa foram geridos por Pizzolato basicamente como o ha-viam sido nos anos 2001–2003. Entre 2001 e 2004, dos cerca de 150 milhões de reais pagos pela CBMP para ações de incentivo ao uso dos cartões de bandeira Visa do BB, tanto no período 2001–2002, quando foram usados 60 milhões de reais, como nos anos 2003 e 2004, quando se usaram 90 milhões de reais, sempre cerca de 80% dos recursos foram antecipados pela CBMP, a pedido do BB, para as agências de publicidade contratadas pelo banco.

As antecipações, mostrou o trabalho dos auditores, tanto as de 2001–2002 como as de 2003–2004, foram repassadas às agências de publicidade contra a apre-sentação de documentos fiscais no valor global das ações. No caso das do período 2001–2002, no documento do BB que pedia as antecipações constava o valor de cada ação. No caso das de 2003–2004, o valor de cada ação era apresentado em 93 ações de incentivos distintas, cada uma de-las “descritas em nota técnica específica”, em documento da Dimac.

O relator também não mencionou o fato de na gestão de Pizzolato terem sido introduzidas melhorias no controle dos gastos nem citou um fato que obviamente deveria ser de seu amplo conhecimento, por constar de um documento encami-nhado a ele pelo defensor de Valério, Mar-celo Leonardo. O documento mostra que, em 17 de janeiro de 2006, o então gerente executivo de atendimento e controle do BB, Rogério Souza de Oliveira, informou à DNA que havia um saldo negativo de pouco mais de 2 milhões de reais de des-pesas realizadas até 14 de dezembro de 2004, sobre o qual era necessário que a agência prestasse contas. No documento, Leonardo contra-argumentou dizendo que os gastos efetuados em ações de incentivo de interesse do BB–Visanet em 2005 foram de 12,9 milhões de reais e que, portanto, existe uma diferença, não da DNA para o BB, mas do BB para a DNA.

Leonardo disse ainda que a maior parte dos recursos repassados pela Vi-sanet, em torno de 66%, foi empregada no pagamento de veiculação junto às maiores empresas de mídia do País. Ele apresentou uma relação de pagamentos feitos pela agência, com o número das

Barbosa inventou quedepoimentos

de amigosnão valem. Deonde ele tirou

essa regra?

da mãe Joana” gigante e pudesse decidir tudo sozinho.

No caso das quatro notas técnicas de liberação de recursos para a DNA apresentadas por Barbosa para incrimi-nar Pizzolato, o comitê de marketing da Visanet examinou todas as suas ações e as aprovou. Essas notas técnicas são planos de trabalho elaborados pelos gerentes exe-cutivos das áreas de varejo e publicidade do banco que recebem o “de acordo” dos diretores dessas áreas. No caso das notas apontadas como ilegais, em todas elas Pizzolato apenas deu o seu “de acordo” em conjunto com os demais diretores. Além disso, apesar de Barbosa descon-siderar o fato, todas tinham, no mínimo, a assinatura dos dois gerentes executivos dos comitês de marketing do BB – Cláudio de Castro Vasconcelos e Douglas Macedo – e dos dois diretores das áreas de varejo e marketing – respectivamente, Fernando Barbosa de Oliveira e Pizzolato.

Como o dinheiro do fundo Visanet é considerado privado, conforme as inter-pretações tanto do BB como da Visanet, em seu voto para incriminar Pizzolato, Barbosa disse que não importava se os recursos eram públicos ou privados, mas, sim, que Pizzolato tinha a posse deles e os desviou em benefício da DNA e em prejuízo dos cofres públicos. E deu o exemplo do peculato do carcereiro, que trabalha em uma cadeia pública, mas rouba os pertences dos presos, que são privados.

“Mas e se o dinheiro estivesse na con-ta corrente do preso?”, diz o advogado Lobato. “O carcereiro conseguiria tocar no dinheiro? Não, o dinheiro só sairia de lá se o próprio preso, ou seu representante legal, o retirasse. É o que acontece no caso do Pizzolato. O dinheiro não estava no BB e só quem podia tirá-lo do fundo Visanet eram os representantes legais do BB junto ao fundo. Pizzolato não tinha essa representação; logo, não tinha a posse do dinheiro”, disse Lobato.

Barbosa insistiu em dizer que Pizzo-lato autorizava sozinho os adiantamentos de recursos para a DNA, desconsideran-do todos os depoimentos em juízo de dirigentes do BB que trabalhavam com ele e que testemunharam em sua defesa. Vas-concelos, funcionário do BB por 25 anos, que trabalhou na Dimac, reconheceu sua assinatura em algumas notas e esclareceu: “No Banco do Brasil não existem deci-sões individualizadas. Todas as decisões são por comitê. Então, a primeira decisão é da divisão, depois vai para a gerência

executiva, para a diretoria e, dependendo do valor, pode subir ao Conselho Diretor do banco. Rapidamente, pelo que eu vi, essa nota foi submetida ao Conselho Di-retor do Banco do Brasil, pelo valor do dispêndio. Ela foi primeiro aprovada no comitê da Diretoria de Marketing, depois no Comitê de Comunicação, de que fazem parte outros diretores da empresa, e, por fim, no Conselho Diretor do banco. Na diretoria de Marketing, quatro pessoas; no Comitê de Comunicação, se não me engano, são nove diretores; no Conselho Diretor do banco tenho a impressão de que são o presidente e mais sete vice--presidentes”.

“Em algum caso era possível a Henrique Pizzolato assinar e autorizar sozinho qualquer verba de publicidade e propaganda, seja verba do Banco do Brasil, seja da Visanet?”, quis saber Lo-bato. Vasconcelos respondeu: “Como

eu disse anteriormente, as decisões são todas colegiadas. Nem o presidente do banco toma decisões isoladas”. Esse re-gime colegiado foi instituído no BB em 1995, quando o banco foi reestruturado, durante o governo FHC.

Vasconcelos confirmou ainda “o sucesso das campanhas publicitárias desenvolvidas pela DNA, que coloca-ram o Banco do Brasil na liderança do faturamento de cartões de crédito entre os bancos associados à Visanet”. Um indício de que a publicidade foi realizada e, como disse Vasconcelos, com sucesso, está no aumento do volume de negó-cios dos cartões emitidos pelo BB com bandeira Visa. Esse volume cresceu em média 35% no período de 2001 a 2004, enquanto o mercado teve aumento de 29% no mesmo período.

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Não ter contrato da DNA

com a Visanet também foi

decisão de 2001. Não foi ideiade Pizzolato

SOBROu aPeNaS PIzzOLaTOcinco foram indiciados pela cPmi. Gushiken saiu, porque já havia um chefe da quadrilha política. e saíram os três do governo FHc. Porque atrapalhavam a tese do mensalão petista

FErNaNDO barbOsa OliVEira

Diretor de Varejo do BB

ClÁUDiO VasCONCElOs

Gerente executivo no BB

DOUGlas MaCEDOGerente executivo no BB

iNDiCiaDO PEla

CPMi DOs COrrEiOs

DENUNCiaDO PElaPGr

CONDENaDO POr

barbOsa

HENriQUEPiZZOlaTO

Diretor de Comunicaçãoe Marketing do BB

lUiZ GUsHiKENMinistro da Secretaria

de Comunicação Social eAssuntos Estratégicos

do governo Lula

notas fiscais emitidas para fornecedores, os valores e as comissões devidas à DNA, em que os maiores valores são pagos às emissoras de TV Globo, Record, SBT e Bandeirantes, além de várias agências de publicidade subcontratadas, como a D+, a Meta 29, a Ogilvy e a Markplan, além de casas de show, da BBTur – Viagens e Turismo e outras empresas.

A denúncia diz ainda que, embora o BB tenha contratado três agências para cuidar da publicidade, apenas a DNA foi beneficiada com antecipações de recursos.

Isso é falso, diz Lobato. Em 2001–2002 foram feitas antecipações para todas as empresas de publicidade do BB que prestavam serviços de promoção dos cartões Visa. No segundo semestre de 2002, ainda sob o governo FHC, a direção do banco reestruturou os negócios de publicidade em três pilares: para o varejo, responsável pelos negócios da pessoa física; para o atacado, com os negócios de pessoas jurídicas; e para o governo, que trata de negócios com prefeituras, câmaras municipais, assembleias estaduais, estados e órgãos públicos. Decidiu-se que cada uma das três grandes agências publicitá-rias que à época prestavam serviços para o BB ficaria com um desses pilares: a Lowe, com a área de governo; a Grottera, com o atacado; e a DNA, que já prestava serviços ao banco havia quase dez anos, ficaria com o varejo, no qual estava o trabalho de promoção dos cartões de bandeira Visa.

O ministro Barbosa considerou grave, finalmente, o fato de não existir contrato entre a Visanet e a DNA. O Instituto Nacional de Criminalística pediu à Visa-net esse contrato, em 2006. A empresa respondeu que ele não existia, porque os recursos para as ações planejadas pelo

BB para promover os cartões Visa eram pagos por ela diretamente aos respectivos fornecedores contratados, cotados e ne-gociados pelo próprio BB. Se a Visanet não tinha contrato formal com a DNA, embora se beneficiasse com a publicidade de venda desses cartões pelo BB, tampou-co o BB tinha contrato com a Visanet. Um parecer do departamento jurídico do banco, de agosto de 2004, que se encontra nos autos da AP 470, explica que o fundo de incentivos da Visanet não foi criado,

em 2001 , por um convênio entre o BB e a Visanet, mas, sim, feito por “uma decla-ração unilateral de vontade” da empresa de cartões, que se dispôs a pagar as ações de incentivo ao uso dos cartões, desde que elas atendessem às condições previstas em seu regulamento. O parecer diz ainda que a forma escolhida pelo BB, de não fazer passar os recursos pelo orçamento do banco, era a melhor do ponto de vista tributário e não criava problemas com

a Receita Federal. Em suma, não havia contrato entre DNA e BB para serviços de promoção dos cartões Visa porque isso implicaria desvantagens fiscais para o BB. E isso não foi uma ideia de Pizzolato, mas do departamento jurídico do BB.

Por último, o relator Barbosa não considerou relevante que só Pizzolato, dos quatros signatários das notas técnicas que formalizariam o suposto desvio de 73,8 milhões de reais do BB para Valério, foi denunciado pelos dois procuradores--gerais, Souza e Gurgel. Como o desvio não foi provado, pela argumentação que acaba de ser exposta, isso não seria um problema maior. O problema é que a ar-gumentação exposta neste artigo consta dos autos, mas não foi usada por Barbo-sa. Talvez porque ele, na maior parte do tempo, estivesse tomado por uma “fúria acusatória”, como disseram os jornalistas Marcelo Coelho e Janio de Freitas, em artigos publicados pelo diário Folha de S.Paulo, e Tereza Cruvinel, do Correio Braziliense. Ou talvez porque, como disse o sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos, “o ministro Joaquim Barbosa, em uma de suas inovações, declarou, fora dos autos, que iria desconsiderar vários depoimentos dados em relação ao PT e a alguns dos acusados porque haviam sido emitidos por amigos, colegas de Parlamento, mas considerou outros depoimentos. A lei não diz isso, não há fundamento disso em lei. Um ministro diz que vai desconsiderar depoimentos porque são de pessoas conhecidas como amigas dos réus, mas pinça outros, e ninguém na Corte considera isso uma aberração? Parece-me que o julgamento terminará por ser um julgamento de exceção”.

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os ministros do stF deliraram: não houve o desvio de 73,8 milhões de reais do banco do brasil, viga mestra da tese do mensalão. acompanhe a nossa demonstração

por Raimundo Rodrigues Pereira

a tese do mensalão como um dos maiores crimes de corrupção da his-tória do País foi consagrada no STF. Veja-se o que disse, por exemplo, o presidente do tribunal, ministro Ayres Britto, ao condenar José Dirceu como o chefe da “quadrilha dos mensa-leiros”: o mensalão foi “um projeto de poder”, “que vai muito além de um quadriênio quadruplicado”. Foi “continuísmo governamental”; “golpe, portanto”. Em outro voto, que postou no site do tribunal dias antes, Britto disse que o mensalão envolveu “crimes em quantidades enlouquecidas”, “vo-lumosas somas de recursos financeiros e interesses conversíveis em pecúnia”, pessoas jurídicas tais como “a União Federal pela sua Câmara dos Deputa-dos, Banco do Brasil–Visanet, Banco Central da República”.

Britto, data venia, é um poeta. Na sua caracterização do mensalão como um crime gigante, um golpe na Repú-blica, o que ele chama de Banco do Brasil–Visanet, por exemplo? É uma nova entidade financeira? Banco do Brasil (BB) a gente sabe o que é: é aquele banco estatal que os liberais queriam transformar em Banco Brasil, assim como quiseram transformar a Petrobras em Petrobrax, porque acha-vam ser necessário, pelo menos por palavras, nos integrarmos ao mundo financeiro globalizado.

De fato, Visanet é o nome fantasia da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP), responsável, no Brasil, pelos cartões emitidos com a chamada bandeira Visa (hoje o nome fantasia mudou, é Cielo). Banco do Brasil–Visanet não existia, nem existe; é uma entidade criada pelo ministro Britto. E por que, como disse no voto citado, ele a colocou junto com os mais altos poderes do País – a União, a Câmara dos Deputados e o Banco Central da República? Com certeza porque, como a maioria do STF, num surto anticorrupção tão ruim quanto os piores presenciados na história política do País, viu, num suposto escândalo Banco do Brasil–Visanet, uma espécie de revelação divina. Ele seria a chave para transformar num delito de propor-ções inéditas o esquema de distribuição, a políticos associados e colaboradores do PT, de cerca de 50 milhões de reais tomados de empréstimo, de dois bancos mineiros, pelo partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No dia 13 de julho de 2005, menos de um mês depois de o escândalo do mensalão ter surgido, com as denúncias do então deputado Roberto Jefferson, a Polícia Federal descobriu, no arquivo central do Banco Rural, em Belo Hori-zonte, todos os recibos da dinheirama distribuída. Delúbio Soares, tesoureiro do PT, e Marcos Valério, um empresá-

rio de publicidade mineiro, principais operadores da distribuição, contaram sua história logo depois. E não só eles como mais algumas dezenas de pesso-as, também envolvidas no escândalo de alguma forma, foram chamados a de-por em dezenas de inquéritos policiais e nas três comissões parlamentares de inquérito que o Congresso organizou para deslindar a trama.

Todos disseram que se tratava do famoso caixa dois, dinheiro para o pagamento de campa-

nhas eleitorais, passadas e futuras. Como dizemos, desde 2005, tratava-se de uma tese razoável. Por que razoá-vel, apenas? Porque as teses, mesmo as melhores, nunca conseguem juntar todos os fatos e sempre deixam alguns de lado. A do caixa dois é razoável. O próprio STF absolveu o publicitário Duda Mendonça, sua sócia Zilmar Fer-nandes e vários petistas, que receberam a maior parte do dinheiro do chamado valerioduto, porque, a despeito de pro-clamar que esse escândalo é o maior de todos, a corte reconheceu tratar-se, no caso das pessoas citadas, de dinheiro para campanhas eleitorais. E a tese do caixa dois é apenas razoável, como dissemos também, porque fatos ficam de fora.

É sabido, por exemplo, que, dos 4 milhões de reais recebidos pelo denun-

2012, novembro

a VErTiGEMDO sUPrEMO

www.retratodobrasil.com.br | r$ 9,50 | no 64 | noVembro de 2012

retrato dobrasil

liVrO CONQUISTA SOCIAL DA TERRA, de edward o. wilson, Pioneiro da sociobioloGia

ENErGia A PRESIDENTE TEM SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA QUE AJUDOU A CRIAR COMO MINISTRA?

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ciante Roberto Jefferson – que jura ser o dinheiro dele caixa dois e o dos ou-tros, mensalão –, uma parte (modesta, é verdade) foi para uma jovem amiga de um velho dirigente político ligado ao próprio Jefferson e falecido pouco antes. Qualquer criança relativamente esperta suporia também que os ban-queiros não emprestaram dinheiro ao PT porque são altruístas e teria de se perguntar por que o partido repassou dinheiro a PTB, PL e PP, aliados novos, e não a PSB e PCdoB, aliados mais fiéis e antigos. Um arguto repórter da Folha de S.Paulo, num debate recente sobre o escândalo, com a participação de Retrato do Brasil, disse que dinheiro de caixa dois é assim mesmo e que viu deputado acusado de ter recebido o dinheiro do valerioduto vestido de modo mais sofisticado depois desses deploráveis acontecimentos.

O problema não é com a tese do caixa dois, no entanto. Essa é a tese dos réus. No direito penal brasileiro, o réu pode até ficar completamente mudo, não precisa provar nada. É ao Ministério Público, encarregado da tese do mensalão, que cabe o ônus da prova. E essa tese é um horror. No fundo, é uma história para criminalizar o Partido dos Trabalhadores, para bem além dos crimes eleitorais que ele de fato cometeu no episódio. O escândalo Banco do Brasil–Visanet, que é o pilar de sustentação da tese, não tem o me-nor apoio nos fatos.

Essencialmente, a tese do men-salão é a de que o petista Hen-rique Pizzolato teria desviado

de um “Fundo de Incentivo Visanet” 73,8 milhões de reais que pertenceriam ao BB. Seria esse o verdadeiro dinheiro do esquema armado por Delúbio e Va-lério sob a direção de José Dirceu. Os empréstimos dos bancos mineiros não existiriam. Seriam falsos. Teriam sido inventados pelos banqueiros, também articulados com Valério e José Dirceu, para acobertar o desvio do dinheiro público.

Essa história já existia desde a Co-missão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios. Foi encampada pelos dois procuradores-gerais da República que fizeram os trabalhos da acusação, Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, e transformada num sucesso de público graças aos talen-

tos do ministro Joaquim Barbosa na armação de uma historinha ao gosto de setores de uma opinião pública sedenta de punir políticos, que em geral considera corruptos, e ao surto anticorrupção espalhado por nossa grande mídia, que infectou e levou ao delírio a maioria do STF.

Por que a tese do mensalão é falsa? Porque o desvio dos 73,8 milhões de reais não existe. A acusação disse e o STF acreditou que uma empresa de publicidade de Valério, a DNA, rece-beu esse dinheiro do BB para realizar trabalhos de promoção da venda de cartões de bandeira Visa do banco, ao longo dos anos 2003 e 2004. E haveria provas cabais de que esses trabalhos não foram realizados.

A acusação diz isso, há mais de seis anos, porque precisa que esse desvio exista, pois seria ele a prova de que os 50 milhões de reais do caixa dois confessado por Delúbio e Valério são inexistentes e os empréstimos dos bancos mineiros ao esquema Valério–Delúbio, falsos e decorrentes de uma articulação política inconfessável de Dirceu com os banqueiros. Ocorre, no entanto, que a verdade é o oposto do que a acusação diz e o STF a engoliu.

Os autos da Ação Penal 470 (AP 470) contêm um mar de evidências de que a DNA de Valério realizou os trabalhos pelos quais recebeu os 73,8 milhões de reais.

No site de RB é apresentado, a todos os interessados em formar uma opinião mais es-

clarecida sobre o julgamento que está sendo concluído no STF, um endereço em que pode ser localizada a mais completa auditoria sobre o suposto escândalo BB–Visanet. Nesse local o leitor vai encontrar os 108 apensos da AP 470 com os trabalhos dessa audito-ria. São documentos em formato PDF equivalentes a mais de 20 mil páginas e foram coletados por uma equipe de 20 auditores do BB num trabalho de quatro meses, de 25 de julho a 7 de dezembro de 2005, depois estendido com interrogatórios de pessoas en-volvidas e documentos coletados ao longo de 2006.

A auditoria foi buscar provas de que o escândalo existia, mas, ao analisar o caso, não o fez da forma interesseira e escandalosa da Procuradoria-Geral da República e do relator da AP 470, Joaquim Barbosa, empenhados em

Trechos de duas páginas do resumo da auditoria feita no BB. A quarta coluna (A-B) mostra a diferença entre o valor dos serviços demandados pelo banco e o valor dos serviços que tinham notas na CBMP. Se vê que a diferença, tanto nos anos 2001-2002 quanto nos anos 2003-2004, sob o comando de Pizzolato, é sempre menor que 1%.

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criminalizar a ação do PT. Fez, isso sim, um levantamento amplo do que foram as ações do Fundo de Incentivos Visa-net (FIV) desde sua criação, em 2001.

Um resumo da auditoria, de 32 páginas, está nas primeiras páginas do terceiro apenso

(vol. 320). Resumindo-a mais ainda se pode dizer que:

• As regras para uso do fundo pelo BB têm duas fases: uma, de sua criação, em 2001, até meados de 2004, quando o banco adotou como referencial bá-sico para uso dos recursos o Regula-mento de Constituição e Uso do FIV da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP); e outra, do segun-do semestre de 2004 até dezembro de 2005, quando o BB criou uma norma própria para o controle do fundo.

• Entre 2001 e 2004, a CBMP pa-gou, por ações do FIV programadas pelo BB, aproximadamente 150 mi-lhões de reais – 60 milhões nos anos 2001–2002, no governo Fernando Henrique Cardoso, portanto; e 90 mi-lhões nos anos 2003–2004, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. E, nos dois períodos, sempre 80% dos re-cursos foram antecipados pela CBMP, a pedido do BB, para as agências de publicidade contratadas pelo banco.

• O BB decidiu, em 2001, por moti-vos fiscais, que os recursos do FIV não deveriam passar pelo banco. A CBMP pagaria diretamente os serviços por meio de agências contratadas pelo BB. A DNA e a Lowe Lintas foram essas agências, no período 2001–2002. No final de 2002 o BB decidiu especia-lizar suas agências e só a DNA ficou encarregada das promoções do FIV. Os originais dos documentos compro-batórios das ações ficaram na CBMP, não no BB, em todos os dois períodos.

• O fato de o BB encomendar as ações, mas não ser o controlador oficial delas fez com que, nos dois períodos, 2001–2002 e 2003–2004, fossem iden-tificadas, diz a auditoria, “fragilidades

no processo e falhas na condução de ações e eventos”, que motivaram mu-danças nos controles de uso do fundo. Essas mudanças foram implementadas no segundo semestre de 2004, a partir de 1º de setembro.

• O relatório destaca algumas des-sas “fragilidades” e “falhas”. Aqui des-tacaremos a do controle dos serviços, para saber se as ações de promoção tinham sido feitas de fato. Os auditores procuraram saber se existiam os com-provantes de que as ações de incentivo autorizadas pelo BB no período tinham sido de fato realizadas.

• Procuraram os documentos existentes no próprio banco – notas fiscais, faturas, recibos emitidos pelas agências para pagar os serviços e des-pesas de fornecedores para produzir as ações. Descobriram que, para os dois períodos, 2001–2002 e 2003–2004, igualmente, somando-se as ações com falta absoluta de documentos às com falta parcial, tinha-se quase metade dos recursos despendidos.

• Os auditores procuraram, então, os mesmos documentos na CBMP, que é, por estatuto, a dona dos recursos e a controladora de sua aplicação e dos documentos originais de comprovação da realização dos serviços. A falta de documentação comprobatória foi, en-tão, muito pequena – em proporção aos valores dos gastos autorizados, de 0,2% em 2001, de 0,1% em 2002, de 0,4% em 2003 e de 1% em 2004.

• Dizem ainda os auditores: com as novas normas, em função das mudan-ças feitas nas formas de se controlar o uso do dinheiro do FIV pelo BB, entre janeiro e agosto de 2005 foram executadas sete ações de incentivo, no valor de 10,9 milhões de reais e se pode constatar que, embora ainda precisassem de aprimoramento, as no-vas regras fixadas pelo banco estavam sendo cumpridas e os “mecanismos de controle” tinham sido aprimorados.

Ou seja: o uso dos recursos do FIV pelo BB foi feito, sob a gestão do petista

Henrique Pizzolato, exatamente como tinha sido feito no governo FHC, nos dois anos anteriores à chegada de Pizzo-lato à direção de marketing do banco. E mais: foi sob a gestão dele, em meados de 2004, que as regras para uso e con-trole dos recursos foram aprimoradas.

Mais reveladora ainda é a análise dos apensos em busca das evidências de que os traba-

lhos de promoção dos cartões Visa vendidos pelo BB foram feitos. Essas evidências são torrenciais. Uma amostra dessas promoções, que devem ser do conhecimento de milhares e milhares de brasileiros, está mais abaixo.

Em toda a documentação da audi-toria existem questionamentos e são apresentados problemas, mas referentes a detalhes. Não foi disso que tratou o julgamento da AP 470, no entanto. A acusação que se fez e que se pretende impor através do surto do STF é outra coisa. Quer-se apresentar os 73,8 mi-lhões de reais gastos através da DNA de Valério como uma farsa montada pelo PT com o objetivo de ficar no poder, como disse o ministro Britto, “muito além de um quadriênio quadruplicado”. Essa conclusão é um delírio. As cam-panhas de promoção não só existiram, como deram resultados espetaculares para o BB, tendo em vista os objetivos pretendidos. O banco tornou-se o líder nos gastos com cartões Visa no Brasil.

Em 2003, o banco emitiu 5,3 milhões desses cartões, teve um crescimento de cerca de 35% na sua movimentação de di-nheiro através deles e tornou-se o número um nesse quesito entre os associados da CBMP. No final daquele ano, 18 de de-zembro, às 14h30, em São Paulo, no Itaim Bibi, à rua Brigadeiro Faria Lima, 3.729, segundo andar, sala Platinum, de acordo com ata do encontro, os representantes dos sócios no Conselho de Administração da CBMP se reuniram e aprovaram o plano para o ano seguinte. Faturamento esperado para 2004 nas transações com os cartões Visa: 156 bilhões de reais.

Resumindo a auditoria, feita para “pegar Pizzolato”: o sistema BB-CBMP tinha falhas, desde 2001; e foi Pizzolato que implantou reformas para melhorá-lo

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O STF achOu que NaDa DISSO eXISTIuAções de promoção de uso dos cartões Visa pelo Banco do Brasil que, a despeito de os ministros do Supremo acharem o contrário, existiram e envolveram milhares de pessoas

Dinheiro do FIV, ou seja, recursos para as promoções dos cartões pelos vários bancos associados: 0,10%, um milésimo desse total: 156 milhões. Parte a ser usada pelo BB, que era, dos 25 sócios da CBMP, o mais empenhado nas promoções: 35 milhões de reais.

Pode-se criticar esse esquema Visa-net–BB. O governo está querendo que

as taxas cobradas dos estabelecimentos comerciais pelo uso dos cartões sejam reduzidas. Na conta feita no parágra-fo anterior, dos 156 bilhões de reais previstos para serem movimentados pelos cartões em 2004, o dinheiro que iria para o esquema CBMP seria de 4% a 6% desse total, ficaria entre 6 e 10 bilhões de reais – isto é, a verba pro-

gramada para o fundo de incentivos na promoção dos cartões foi pelo menos 40 vezes menor. A Procuradoria-Geral da República e o ministro Barbosa certamente sabem de tudo isso. Se não o sabem é porque não o quiseram saber: da documentação tiraram apenas detalhes, para criar o escândalo no qual estavam interessados.

Adriana, garota-propaganda docartão Ourocard

Alguns exemplos de ações do Fundo de Incentivos do Banco do Brasil, programadas pelo banco, pagas pela Companhia Brasileira de Meios de Pagamento e realizadas com os tra-balhos de publicidade da empresa DNA, de Marcos Valério:• O patrocínio às campeãs de vôlei de praia Adriana Behar e Shelda, nos anos 2003 e 2004, com 600 mil reais por ano em parcelas mensais e o direito de o BB usar a marca Ourocard Visa em bonés, camisetas, biquínis, uniformes, bandanas, casacos, agasalho de viagens – frente e mangas –, toalhas, mochilas, em anúncios e outras formas: “opor-tunidade para associar a marca Ourocard aos atributos de competitividade, jovialidade, dinamismo e modernidade”.• As campanhas anuais de premiação do Clube Ouro, de cer-ca de 5 milhões de reais por ano, com sorteios de prêmios cujo valor somado chegava a 2 milhões de reais – 50 carros novos (de 25 mil reais cada), 50 pacotes de viagens para a Costa do Sauipe, no hotel SuperClubs Breezes, com direito a acompanhante (5,6 mil reais por casal; 280 mil reais no total), 350 passagens aéreas de ida e volta para qualquer canto do País, num esquema BB–TAM com direito a acom-panhante (1.320 reais por casal, 462 mil reais no total). Essa premiação, “para dar maior visibilidade à estratégia do BB de fidelizar os portadores de cartões de crédito Ourocard e incrementar sua utilização”, foi realizada em eventos públicos nas cidades com maior número de clientes do BB no Clube Ouro, que acumulavam pontos para sorteio dos prêmios graças à soma de gastos pagos com os cartões Visa do BB. Os eventos tinham 800 convidados. Eram divulgados amplamente pelos grandes meios de comunicação, os quais, aliás, sempre ficaram com a maior parte das verbas dessas promoções. Na documentação existe uma análise detalhada dos custos delas, como a contratação de atrações especiais para os eventos (445 mil reais), a locação de espaço para realizá-los (85 mil reais), os serviços de buffet (230 mil re-ais). Nos documentos das promoções do Clube Ouro existe até um parecer do Ministério da Fazenda sobre a legalidade da distribuição de prêmios.• O Brasília Music Festival, de 2 a 4 de maio de 2003, para o qual o BB adquiriu uma cota de patrocínio máster, de 1,5 milhão de reais (pagos em quatro parcelas entre janeiro e abril de 2003), e no qual foram realizados 12 shows – de artistas como o grupo cubano Buena Vista Social Club, o

roqueiro Bon Jovi, as brasileiras Marisa Monte e Rita Lee – tudo sempre com muita publicidade na imprensa e nas ruas (dez inserções de um quarto de página no diário Correio Braziliense, três em Veja, 90 mil panfletos distribuídos). E, como sempre, a promoção era associada a contrapartidas para o banco que facilitassem a venda dos cartões – no caso, camarote VIP para cem pessoas, mil ingressos, por show, para distribuição para clientes do BB, propaganda do banco em tudo, venda dos ingressos pelas agências do banco com cobrança de 3 reais de comissão por ingresso, banners, outdoors, panfletos com o logo e propaganda do Visa Ourocard e assim por diante.• 4 milhões de reais em 2004 para campanhas de mídia do cartão Visa Ourocard nos aeroportos e nas ruas e mobiliário urbano – edifícios, outdoors, shoppings e pontos de grande visibilidade. Um detalhamento da DNA para esses gastos: para metrô, 36,3 mil reais; ônibus, 589 mil reais; outdoors, 379 mil reais; em shoppings, 1,1 milhão de reais; em abrigos de ônibus e mobiliário urbano, 1 milhão de reais; em mídia aeroportuária, 727 mil reais, por exemplo.• Patrocínio de 2,5 milhões de reais à casa de espetáculos Tom Brasil, em São Paulo; a promoção de mostras de cine-ma É Tudo Verdade e Encontro com o Cinema Brasileiro; exposições de obras de arte como as feitas com seleções do acervo do Museu Nacional de Belas Artes em mais de 20 cidades entre 2004 e 2005, todas com custo na casa de algumas poucas centenas de milhares de reais.E tem mais. Para quem quiser ver, é claro – os ministros do STF não quiseram, ao que tudo indica.

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Henrique Pizzolato foi condenado no stF por um crime – ter desviado 73,8 milhões de reais do banco do brasil. mas o desvio não existe. Veja a prova disso na lista publicada a seguir

por Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira

Na idade Média, condenava-se uma bruxa sem precisar provar a exis-tência material do crime. Sua confis-são bastava. Com Henrique Pizzolato, ex-diretor de marketing e comunicação do Banco do Brasil (BB), foi pior: ele nunca confessou que tivesse desviado 73,8 milhões de reais do BB para o suposto esquema de corrupção do mensalão. Mas foi condenado por 11 votos a zero, no Supremo Tribunal Federal, por esse crime.

2012, dezembro

UM assassiNaTO sEM UM MOrTO

Foram feitas três auditorias pelo BB sobre o emprego dos recursos que o banco recebia da Companhia Brasileira de Meios de Pagamentos (CBMP) para uso em promoções e publicidade para a venda de cartões de bandeira Visa – dos quais os 73,8 milhões teriam sido desviados. É certo que em todas as auditorias há indícios de irregularidades. O ministro revisor da Ação Penal do mensalão, a AP 470, Ricardo Lewandowski – que fre-quentemente corrigiu, para menos, a fúria condenatória do ministro relator Joaquim Barbosa – disse que a gestão dos recursos era uma balbúrdia.

Uma das auditorias, feita em 2004, quando Henrique Pizzolato ainda era diretor do BB, apontava muitas imperfeições no processo de uso dos recursos. Nessa auditoria, como nas outras duas, aparecem – algumas vezes, inclusive – variações da mesma preo-cupação: a gestão era ruim, a tal ponto que deixava a dúvida de saber se todos os projetos de promoção e publicidade haviam sido de fato realizados.

A corte não se preocupou em obter as provas materiais do crime. O argumento dos ministros do STF foi o de que, em casos de gente muito po-derosa, com enorme capacidade para ocultar as provas, e, especialmente, em casos de corrupção, a fim de evitar a impunidade, se deveria condenar com base nos indícios. E pobre Pizzolato: como se viu, havia indícios de irregu-laridades.

Mas, afinal, os projetos foram realizados? Ou não? Antes: Pizzolato

era tão poderoso assim que teria sido capaz de ocultar todas as provas con-cretas do desvio realizado? Jamais. Ele pediu demissão de seu cargo no BB e na diretoria da Previ, o fundo de pen-são dos funcionários do banco, logo que seu nome apareceu no escândalo, em meados de 2005. Como se pode verificar na tabela que começa na pá-gina ao lado, os projetos de uso dos recursos do fundo dos quais os 73,8 milhões de reais teriam sumido eram todos, se realizados, de enorme expo-sição pública. Se não realizados, eram praticamente impossíveis de inventar.

Mais uma vez, pobre Pizzolato, ne-nhuma das instâncias com poder para tal mandou fazer essa simples prova da existência material do delito: investigar se as ações de incentivo haviam sido realizadas ou não, requisito essencial para condená-lo pelo desvio dos recursos destinados a elas. O PT, do qual Pizzolato foi um dos abnegados criadores (veja a história: “A verdade o absolverá?”, à página 14), que tinha a Presidência da República, o Ministério da Justiça e, em tese, o comando do Banco do Brasil, o abandonou como se ele fosse culpado.

A principal das três comissões parlamentares de inquérito que inves-tigou a história, a CPMI dos Correios, presidida pelo petista Delcídio Amaral e relatada pelo peemedebista Osmar Serraglio, ambos da chamada base aliada, encomendou inúmeros inqué-ritos à Polícia Federal, todos eles em busca, digamos assim, dos criminosos. Nenhum em busca do “morto”.

Cadeira africana do século XVIII, peçada exposição sobre a arte africana, 915 mil reais de patrocínio do Fundode Incentivo Visanet, no Rio, linha 17 da tabela ao lado: o STF diz que isso não existiu

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a TabEla Da CbMP Para a rECEiTa FEDEralA ex-Visanet, hoje Cielo, diz que tem todos os comprovantes de que os eventos foram feitos

ano Nota BB evento e documentação comprobatóriaValor em R$ (mil)

1 2003 0833bMarketing Cultural Brasília Music Festival; fatura dos fornecedores e imagens do

evento evidenciando a exposição da marca Visa750

2 2003 30 Marketing Esportivo Tênis Brasil Torneio Exibição; faturas da empresa Octagon 600

3 2003 48Marketing Cultural Projeto Educativo Formação de Professores; contrato de

patrocínio, notas fiscais, folheto do evento300

4 2003 1212Guia D — Mapa Campos de Jordão, criação de espaços Ourocard em areas especiais

da cidade; cópias do mapa, evidências da exposição390

5 2003 144648a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos; relatório fotográfico dos eventos

publicitários evidenciando a exposição da marca Ourocard320

6 2003 1657Marketing Esportivo Vôlei de Praia Shelda e Adriana; contrato de patrocínio, notas

fiscais da empresa Adriana B.B.900

7 2003 1677Marketing Social — contratação de atletas, produção de camisetas e divulgação;

faturas das empresas envolvidas; fotos da campanha324,4

8 2003 1884Publicidade em edifícios, relógios de hora e temperatura, painéis; faturas dos

fornecedores, imagens da exposição da marca Visa2.839,8

9 2003 1885Mídia aeroportuária; veiculação de publicidade em aeroportos; faturas de

fornecedores; documentação relativa à divulgação2.608,7

10 2003 1898Publicidade em edifícios, relógios de hora e temperatura, painéis; fatura dos

fornecedores, comprovantes de veiculação501,3

11 2003 1899Publicidade em doze aeroportos de dez capitais; planos de produção, fatura dos

fornecedores, comprovantes de veiculação389,9

12 2003 2290Mídia de apoio — Brasília Music Festival; fatura dos fornecedores, documentação

relativa ao evento605,6

13 2003 2805Mídia avulsa — Rede Vida de Televisão; fatura dos fornecedores, plano de mídia

relativo à veiculação760

14 2003 3057Mídia de apoio — Brasília Music Festival; fatura dos fornecedores, documentação

relativa ao evento89,7

15 2003 3058Doação Projeto Criança Esperança; recibo da Unicef referente à doação, carta de

agradecimento à doação350

16 2003 3122Patrocínio do XVIII Congresso dos Magistrados; contrato de patrocínio*,

informativos da Associação Brasileira dos Magistrados*200

17 2003 3163Veiculação e produção do projeto Africa CCBB RJ; descrição do projeto, material

publicitário do evento915

18 2003 3580Material de relacionamento Ourocard (kit vinho, faca para queijo); fatura do

fornecedor, relatório fotográfico do material1.493,2

19 2003 3625Marketing cultural: “Exposições Itinerantes acervo numismático BB”; descrição do

projeto, relatório fotográfico do evento1.873,2

20 2003 3638Marketing cultural: Filme Foliar Brasil; fatura dos fornecedores, material relativo à

campanha150

21 2003 3726Patrocínio Casa da Gávea — fatura de casa de show, contrato de patrocínio

obrigando a casa a dar descontos para clientes Ourocard200

22 2003 3749Guia D — 450 anos de gastronomia de São Paulo; fatura do fornecedor, cópia do

livro produzido expondo a marca Ourocard500

23 2003 3786Mídia aeroportuária e exterior — prorrogação; planos de produção, fatura dos

fornecedores e comprovantes de veiculação599,1

24 2003 3790Mídia aeroportuária — Viracopos — Campinas; planos de produção, fatura dos

fornecedores e comprovantes de veiculação73,1

25 2003 3792Propaganda e publicidade na revista 19º Prêmio Colunista Brasília 2003; fatura do

fornecedor, documentação relativa à veiculação7,8

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26 2003 3804Renovação do patrocínio da Casa Tom Brasil; fatura do fornecedor, documentação

comprobatória do patrocínio2.500

27 2003 3843Contratação de serviço técnico especializado — Trevisan Consultores; fatura do

fornecedor, proposta do serviço prestado534

28 2003 3859Consultoria econômico-financeira da Projeta Consultoria; fatura do fornecedor,

contrato de prestação de serviços12,6

29 2003 3899Marketing cultural “Bibi canta Piaf”; fatura dos fornecedores, documentação

relativa ao evento40

30 2003 3903Patrocínio Paço da Alfândega Recife; descrição do projeto, contrato de patrocínio*,

documentação relativa ao evento*1.000

31 2003 4136 Patrocínio do filme Cabra Cega; material relativo ao patrocínio 150

32 2003 4196 Marketing cultural DVD “Fábrica dos Sonhos”; material relativo ao patrocínio 110

33 2003 4289Patrocínio réveillon Rio de Janeiro; descrição do projeto, evidências do evento com

exposição da marca Visa637,7

34 2003 4380Patrocínio a eventos de incentivo à venda de cartões – Programa Superação 2003;

regulamento e lista dos funcionários contemplados1.200

35 2003 4562“Parada 450 anos de São Paulo” — patrocínio, ações promocionais e

apresentações “Pia Fraus 1”; faturas e material relativo ao evento 600

36 2003 4570Espetáculo teatral “Despertando para sonhar”; faturas e fotos do evento, matéria

de jornal50

37 2003 7540Casa da Beleza “Ações Promocionais”; descrição do projeto, evidências do evento

(fotos e matérias de jornais e revistas)*49,3

38 2003 nihilTV Globo — campanha Ourocard Gestos Dia dos Pais; fatura dos fornecedores,

plano de mídia870,7

39 2003 nihilMídia Shopping — campanha Ourocard Gestos; fatura dos fornecedores, planos de

mídia, material relativo à veiculação 350

40 2003 nihilTV Globo — campanha Ourocard Gestos — Dia das Crianças; fatura dos

fornecedores, plano de mídia1.832,4

41 2003 nihilTV Globo — campanha Ourocard Gestos — Natal; fatura dos fornecedores, plano de

mídia710,7

42 2003 nihilMarketing cultural IV Festival de Teatro de Bonecos de Brasília; descrição do

projeto, documentação relativa ao evento*52,5

43 2003 LC** 06705Patrocínio do Brasil Open 2003; nota fiscal de serviços do fornecedor, material

relativo ao evento, contrato de patrocínio3.000

44 2003 LC** 10713Premiação da campanha “Superação 2003”; nota fiscal da BB Turismo Ltda.,

regulamento, relação de funcionários contemplados861,5

45 2003 LC** 17232Serviços de tecnologia para desenvolvimento de sistemas; nota fiscal do

fornecedor, contrato de prestação de serviços, relatório500,6

46 2003 LC** 11140Patrocínio Vila Ourocard — promoção e aquisição de brindes; nota fiscal do

fornecedor, fotos de jornais e revistas falando sobre o evento500

47 2003 LC** 20176Evento para clientes corporate e empresarial na Casa Tom Brasil; fatura do

fornecedor, documentação comprobatória do evento400

48 2004 783Patrocínio do livro de registro da festa 450 anos de São Paulo; fatura da TV

Editorial, estimativa de custos, cópia do livro produzido*315

49 2004 785“Embaixadores olímpicos”; faturas relativas a viagens dos atletas e a produção de

camisetas, planilha de custos de contratação de atletas891,9

50 2004 981Patrocínio do livro O espírito e o sentimento da arte; estimativa de custos DNA,

comprovação de patrocínio15,9

51 2004 1016Mídia aeroportuária; fatura de emissão dos fornecedores, planos de mídia,

comprovantes de veiculação1.629,2

52 2004 1017Mídia em outdoors, relógios de temperatura, abrigos de ônibus e busdoors; fatura

dos fornecedores, comprovantes de veiculação1.864,7

53 2004 1141Patrocínio do evento “Antes, as histórias da pré-história”; faturas da empresa

Fazer Arte, material publicitário2.000

54 2004 1170Patrocínio do programa de rádio “Em boa companhia”; fatura do fornecedor,

comprovantes da veiculação2.900

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55 2004 1243Campanha Visa Electron Pré-Datado; fatura dos fornecedores, plano de mídia,

comprovantes de veiculação em jornais, rádio, TV e outros2.875

56 2004 1734Patrocínio do 12º Anima Mundi; notas fiscais da patrocinada (Idea), contrato de

patrocínio, evidências de realização do evento*230

57 2004 1934Patrocínio da exposição ”Do neoclassicismo ao impressionismo”; recibos, contrato

de patrocínio com a Artviva Produção Cultural420

58 2004 1969Projeto Som na Casa da Gávea; faturas da casa de shows, evidências da realização

do evento (cartazes e material publicitário)86,6

59 2004 1378Campanha Visa Alavancagem de vendas no varejo; lista dos funcionários que

participaram de treinamento, material do evento172

60 2004 1709Patrocínio da exposição “Eduardo Sued”; descrição do projeto, contrato de

patrocínio, evidências da realização do evento*350,4

61 2004 1684Seminário sobre Turismo da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado de São

Paulo; fatura da BBTur*10

62 2004 1261Projeto Agência Carta Maior — Boletim diário de imprensa, internet; plano de mídia,

nota fiscal do agente de veiculação570

63 2004 1263 Publicidade na Rede 21; plano de mídia, nota fiscal do agente de veiculação 798

64 2004 1264Publicidade na Rede TV — TV CUT; plano de mídia, nota fiscal do agente de

veiculação280,7

65 2004 1345Pesquisa de lançamento do cartão de crédito Banco Popular do Brasil; fatura

relativa aos serviços, relatório interno sobre pesquisa125

66 2004 2076Mídia aeroportuária; fatura dos fornecedores, planos de mídia e fotos das

campanhas1.146,9

67 2004 2082Mídia exterior (outdoors, abrigos de ônibus, busdoors etc); faturas dos

fornecedores, planos de mídia e fotos das campanhas2.829,9

68 2004 2193 Projeto “Tênis Brasil Espetacular”; fatura da Octagon referente ao projeto 800

69 2004 2248Campanha “Isto É Cinema”; recibos da Editora Três, material relativo à campanha

(revistas, DVDs e material publicitário)2.100

70 2004 2255Festival Internacional de Cinema de Brasília; fatura dos fornecedores,

documentação relativa ao evento700

71 2004 2353Estratégia de mídia — produção de folders; fatura dos fornecedores, exemplar do

material produzido47,1

72 2004 2372Show de Zezé de Camargo e Luciano na churrascaria Porcão; documentação

relativa ao evento, lista das agências contempladas73,5

73 2004 2429Patrocínio dos 52º Jogos Universitários Brasileiros; faturas da BBTur, evidências

da realização do evento*200

74 2004 2469Complemento Registro festa 450 anos de São Paulo; fatura da TV Editorial, cópia

do livro produzido*9,1

75 2004 252435º Festival de Inverno de Campos do Jordão; fatura dos fornecedores, relatório

fotográfico do evento350

76 2004 2566Patrocínio do Bloco Maria Fumaça ; recibo referente ao patrocínio, evidências do

evento (cartazes e material publicitário)70

77 2004 2749Contratação da Trevisan Consultoria; faturas da Trevisan, proposta de serviço

técnico relativo ao mercado de eventos462

78 2004 2844Patrocínio da exposição “Antoni Tapies”; evidências do patrocínio na exposição

(cartazes e material publicitário)500

79 2004 3165Mídia aeroportuária e exterior; planos de mídia, fatura dos fornecedores,

comprovantes de veiculação (TV, cinema, rádio etc.)11.500

80 2004 3647Circuito Cultural Banco do Brasil 2004; fatura dos fornecedores, evidências do

evento206,5

81 2004 3690Circuito Cultural Banco do Brasil Etapa Belo Horizonte; fatura dos fornecedores,

evidências do evento188,7

82 2004 3745Circuito Cultural Banco do Brasil Etapa Porto Alegre; fatura dos fornecedores,

evidências do evento184,7

83 2004 3827Programa de rádio “Em boa companhia”; fatura dos fornecedores, planos de

veiculação e textos de veiculação no rádio1.740

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* Sem exposição ou menção à marca Ourocard ou Visa** Lançamento contábil – o número da tabela é precedido, no documento, pelos números 51000Nihil: Falta o número no documento original

Nota da redação: a soma do valor dos eventos de 2003 e 2004 que, segundo o STF, não teriam sido feitos e cujo valor teria sido desviado é de R$ 73,8 milhões. A lista de eventos apresentada pela Visanet soma R$ 74,1 milhões. A diferença pode ser atribuída ao fato de um ou outro evento passar do orçamento de um ano para o outro.

84 2004 3839Previ — Encontro de conselheiros de administração e fiscal; fatura dos

fornecedores, evidências do evento (relatório fotográfico)19,7

85 2004 3958Circuito Cultural Banco do Brasil Etapa Porto Alegre; fatura dos fornecedores,

evidências do evento221,1

86 2004 4072Circuito Cultural Banco do Brasil Etapa Joinville; fatura dos fornecedores,

evidências da realização do evento268,5

87 2004 4088Cota de patrocínio Holiday on Ice Super; recibo da cota de patrocínio, contrato de

patrocínio 20

88 2004 4120Cota de patrocínio da 69ª Reunião da Associação de Ex-Alunos da Universidade de

Viçosa; recibo e documentação comprobatória 50

89 2004 4230Circuito Cultural Banco do Brasil Etapa Manaus; fatura de fornecedores, evidências

da realização do evento488,1

90 2004 4261 Patrocínio Livro Brinde Culinária; descrição do projeto, cópia do livro 311,8

91 2004 4297Previ — Encontro de conselheiros de administração e fiscal; fatura dos

fornecedores, relatório fotográfico do evento115,5

92 2004 4326Campanha de lançamento do cartão BB Crédito Pronto; fatura de fornecedores,

exemplar de material de campanha119,9

93 2004 4336“Embaixadores Olímpicos — Giovane Gávio”; fatura de fornecedores, contrato de

patrocínio, relatório fotográfico e matérias de jornais466,2

94 2004 4351“Embaixadores Olímpicos — Carlão, Paulão e Pampa”; fatura de fornecedores,

contrato de patrocínio, fotos e matérias de jornais120

95 2004 4561Prorrogação de patrocínio — Vôlei de Praia Adriana e Shelda; nota fiscal da

empresa Adriana B.B., contrato de patrocínio100

96 2004 4611Patrocínio da “Festa Pré-Caju”; recibos referentes ao patrocínio, relatório

fotográfico do evento200

97 2004 4762Evento “Círio de Nazaré”; fatura de fornecedores, documentação comprobatória

do evento80

98 2004 5030Campanha de ativação cartão Ourocard Visa — Pesquisas; fatura dos fornecedores,

plano de mídia 114,4

99 2004 nihilVeiculação de publicidade na revista Investidor Institucional; fatura do fornecedor,

plano de mídia17,3

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6177 retratodoBRASIL |

Na Justiça, o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, mal recebeu, em abril de 2006, as grandiosas conclusões da CPMI, de que teria sido cometido um dos maiores crimes da história política do País, graças ao desvio de dinheiro do BB, fez apenas uma depuração política nas conclusões, para deixar somente petistas na lista dos indiciados (con-fira o “Ponto de Vista”, à página 5). E abriu o inquérito 2245, que seria presidido – em nome do STF, visto que as investigações envolviam pessoas com foro privilegiado – pelo ministro Joaquim Barbosa.

Tanto o procurador-geral Souza como o ministro Barbosa viram a complexidade do problema e não quiseram encará-lo, fazendo sim-plesmente uma investigação policial, de campo, e não só de documentos, para saber se os serviços haviam sido realizados.

Os dois se depararam, concreta-mente, com os advogados da CBMP, dona e gestora – formalmente, por contrato – dos recursos que teriam sido desviados. Desde o início do ano, o procurador-geral Souza tentava ob-ter da companhia os papéis originais das prestações de contas feitas pela agência de publicidade DNA, de Mar-cos Valério, a respeito dos serviços, seus e de fornecedores contratados para fazer os trabalhos de promoção para a venda dos cartões, mas a CBMP resistia.

No dia 30 de junho de 2006, Bar-bosa autorizou a busca e apreensão de documentos da CBMP. A empresa ape-lou à presidência do STF. Mas a então presidente, Ellen Gracie, reafirmou a busca, feita em julho. Houve petições dos advogados da companhia para que fossem devolvidos documentos protegidos pelo princípio da inviolabi-lidade das relações advogados-clientes. Os documentos que ficaram foram encaminhados ao Instituto Nacional de Criminalística.

Àquela altura, Barbosa tinha am-plas condições de entender o proble-ma. Ele poderia ter visto – se é que não viu – o material que nos permitiu construir a tabela desta reportagem, do final de 2006, de um dos maiores escritórios de advocacia do País a serviço da CBMP, que argumentou, a fim de evitar o pagamento de impostos

indevidos pela companhia, terem sido todas as ações de incentivo realizadas. E observou, apenas, que algumas po-dem ter sido realizadas sem promover especificamente os cartões da bandeira Visa, que era o essencial para a CBMP, uma empresa controlada pela Visa Internacional, parte do oligopólio internacional dos cartões de crédito e débito de uso global.

Barbosa e o procurador-geral ti-veram toda a condição de entender a estranha forma de funcionamento do Fundo de Incentivo Visanet: a CBMP pagava os serviços de promoção dos cartões por meio da DNA, serviços esses programados pelo BB, sem que existissem contratos entre a CBMP e a DNA, nem entre o BB e a DNA, para operação desses recursos específicos. Nos autos existe um parecer jurídico do BB que considera perfeitamente legal essa engenharia jurídica. Ela foi

construída desde 2001 pelo banco estatal e a empresa de cartões multina-cional e seus outros sócios. Sobre ela, é óbvio, Pizzolato não teve a menor influência.

Barbosa e Souza não viram nos autos, ou não quiseram ver, também, que as vendas de cartões de bandeira Visa no BB eram atribuição essencial da diretoria de varejo (Direv), sendo que o funcionário que autorizava formalmente as ordens de serviço de promoções dos cartões a serem pagas pela CBMP era indicado pelo diretor da Direv.

No encaminhamento da denúncia aceita pelo STF em agosto de 2007, no entanto, Souza cometeu dois ab-surdos: 1) garantiu que o desvio de dinheiro do BB havia ocorrido, sem ter feito a prova contrária, muito simples, de verificar os abundantes comprovantes de realização dos ser-

Todo mundo viu: Shelda e Adrianapromovendo as marcas Visa e Ourocard, patrocínio do Fundo de Incentivo Visanet,linha 6 da tabela, 900 mil reais.O STF diz que isso não existiu

viços de promoção; e 2) disse que o laudo 2828, do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, que examinara a documentação e ao qual ele fizera as perguntas consideradas essenciais para esclarecer o caso, havia afirmado que Pizzolato e seu então chefe, Luiz Gushiken, secretário de Comunicação do governo Lula, eram os principais responsáveis pelo desvio – no entanto, no laudo 2828 os nomes de Gushiken e Pizzolato nem sequer foram citados.

O ministro Barbosa, ao defender a aceitação da denúncia que afinal criou a Ação Penal 470, também evitou todos os problemas estruturais que precisavam ser compreendidos para se contar efetivamente ao plenário do STF a história. Como ele mesmo disse, fez uma historinha. Reorganizou a denúncia do procurador-geral para destacar, em primeiro lugar, duas su-postas ações de corrupção de petistas, a de João Paulo Cunha e a de Henrique Pizzolato. Essas historinhas, para a mídia mais conservadora, caíram como o queijo no macarrão. Como disse o ministro Ricardo Lewandowski nos dias da votação da aceitação da denúncia em 2007, e que poderia ter repetido agora: “A imprensa acuou o Supremo. Não ficou suficientemente comprovada a acusação. Todo mundo votou com a faca no pescoço.”

Lewandowskipoderia repetir:a acusação nãofoi provada.O STF votou coma faca no pescoço

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Henrique Pizzolato — na foto, na sacada de seu apartamento em copacabana — está há sete anos mergulhado na

documentação que recolheu para sua defesa. ela é profunda e coerente. Poderá levar à revisão de sua sentença?

por Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira

a VErDaDE O absOlVErÁ?

o aPartaMeNto eM Copacabana onde mora Henrique Pizzolato, ex-diretor de marketing e comunicação do Banco do Brasil (BB), tem uma sacada da qual, em dias sem nuvens, se pode ver o Corcovado e o Cristo Redentor. Mas Pizzolato não curte muito a paisagem. De modo geral, é introspectivo, olha como se fosse para dentro de si ou para o passado. E a história do imóvel é parte de sua tragédia.

Pizzolato comprou o apartamento no começo de 2004, cerca de um mês depois de ter, segundo conta, repassado, a pedido do publicitário mineiro Marcos Valério, um pacote para o dire-

tório estadual do Partido dos Trabalhadores do Rio de Janeiro. Valério disse que o pacote conteria exatos 326.660,67 reais. Os jornais da época entrevistaram a vendedora do apartamento e descobriram que Pizzolato o comprou por 400 mil reais. E sugeriram então que o imóvel teria sido pago basicamente com o dinheiro enviado por Valério.

Em setembro deste ano, por unanimidade, os 11 juízes do Supremo Tribunal Federal condenaram Pizzolato sob o argumento, entre outros, de que o dinheiro que Valério alegou estar contido no pacote seria a propina que ele recebeu por

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ter desviado 73,8 milhões de reais do BB para o esquema corrupto do mensalão. A conclusão seria óbvia: com a propina, Pizzolato comprou o apartamento.

No julgamento, no entanto, ne-nhum dos juízes mencionou a história da compra do apartamento. Por que não? Retrato do Brasil já sabe, como demonstrou no artigo anterior desta edição, que o suposto desvio de 73,8 milhões de reais do BB para o esquema do mensalão não existiu. A propina, então, também não existiu? – RB per-gunta. É segunda-feira, 5 de novembro. Pizzolato é um homem metódico, organizado. Em dois minutos vai ao seu escritório e volta para a sala com uma pasta na qual está a conclusão de uma devassa feita pela Receita Federal em suas contas logo após o estouro do escândalo do mensalão, abrangendo todos os seus rendimentos, aplicações

e bens obtidos nos 20 anos até aquela data, em meados de 2005.

Foram encontrados, segundo a Recei-ta, três erros em suas declarações dessas duas décadas: uma no aluguel de um imóvel, outra no valor de uma “contri-buição de melhoria” relativa a um terreno também de sua propriedade e a terceira quanto ao fato de ele ter contabilizado como sua dependente a madrasta que o criou desde os seus nove anos. Em resumo, em números redondos: total da dívida com o IR pelos erros encontrados, 5 mil reais; multa, mais 3 mil reais; juros sobre a soma das duas parcelas anteriores ao longo do período transcorrido entre a data do pagamento e as infrações, 7 mil reais; total, pago por Pizzolato à Receita no dia 29 de dezembro do ano passado, 15 mil reais.

Pizzolato e sua mulher, Andrea – ele, catarinense; ela, gaúcha – são gente sim-

ples, não têm carro, tiveram oito imóveis, venderam a metade deles, os de menor valor, para pagar um primeiro advogado. E o bem maior que têm hoje é o aparta-mento de Copacabana, de cerca de 150 metros quadrados. Os dois são arquitetos. Compraram o apartamento e o reforma-ram completamente, organizando-o em torno de uma sala ampla e agradável, com saída para uma sacada, na qual Andrea, fumante há anos, faz suas incursões periódicas.

Não têm filhos. No apartamento, moram também dois amigos, um casal com uma bebê, o

que anima o ambiente e ajuda reduzir as despesas per capita. Pizzolato e Andrea se conheceram em São Leopoldo (RS), onde cursaram arquitetura. Na época, ficaram famosos graças a um trabalho de facul-dade. O professor pediu que projetassem

Resumindo a devassa feita pela Receita Federal:Pizzolato descontava da renda tributável a mesadada madrasta que o criou desde os nove anos

Pizzolato foi basicamente um sindicalista pela CUT, em Toledo, em Curitiba; em Brasília, como representante dos funcionários do BB. Mas teve também um início de carreira na política. Foi candidato a vereador, a prefeito, a governador. Para marcar posição, tornar o PT conhecido, buscar os primeiros votos. Na foto, com Lula, em 1990, quando foi candidato a governador do Paraná.

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um condomínio de classe média num terreno vazio da cidade. Eles sugeriram, como alternativa, uma “comuna”, para migrantes que tinham se apossado de um terreno, inundado durante parte do ano. O projeto era vanguardista: previa o aproveitamento de água das chuvas, o uso de energia solar, tetos com plantas, cozinhas comunitárias, ausência de muros internos. Deram palestras sobre o assunto em outras universidades e se tornaram relativamente conhecidos.

Depois da faculdade, foram para Toledo, interior do Paraná, cidade cuja economia gira em torno da Sadia, a grande produtora de carnes e derivados, levados pelas propostas da Pastoral Operária. Foram da turma que criou sindicatos e o Partido dos Trabalhadores na região, junto com pessoas como os atuais ministros do governo Dilma, Paulo Bernardo e Gilber-to Carvalho. Pizzolato foi presidente do sindicato dos bancários de Toledo e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Paraná. Pizzolato se aposentou quando se demitiu da diretoria do BB e da Previ, logo após o escândalo do mensalão, com 31 anos de banco. Era, talvez, o bancário mais conhecido no País. Na primeira eleição direta entre os funcionários do BB para eleger um representante no conselho de administração do banco, em 1993, teve 53 mil votos, mais que a soma de votos de todos os outros dez candidatos, escolhi-dos em prévias nas várias regiões do País.

No cargo até 1996, tinha um gabinete na sede do banco em Brasília. Mas não parava por lá.

Viajou pelo Brasil inteiro. Estima ter pas-sado por agências do banco em cerca de 3 mil municípios, em apoio à campanha contra a fome impulsionada pelo famoso Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, e sua Ação da Cidadania contra a Miséria e Pela Vida, apoiada no governo, pelo BB e pela criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar.

Depois, foi eleito diretor da Previ, fundo de pensão dos funcionários do BB. Nessa condição foi nomeado para o Conselho de Administração da Brasil Telecom, na qual a Previ tinha parte do negócio. Lá conheceu Cássio Casseb, que era, também, conselheiro da empre-sa – indicado pela Telecom Italia Movel (TIM). Por sugestão do então ministro Antônio Palocci, para quem os mercados não gostariam da nomeação de um pe-tista para a presidência do banco, como contou a RB um alto dirigente do PT,

Casseb, um nome do mercado, ex-diretor do Citibank, foi nomeado presidente do BB. Foi ele quem convidou Pizzolato para assumir a Diretoria de Marketing e Comunicação (Dimac).

Pizzolato assumiu em 17 de fevereiro de 2003. Dias antes, o conselho diretor do BB tinha aprovado a renovação do con-trato do banco com a DNA, a empresa de Marcos Valério, para prestar serviços de publicidade e promoção na área de varejo. Duas outras agências trabalhavam para o BB na época, a Lowe e a D+, também especializadas, para as outras duas áreas de negócios do banco: a das contas de governos e a das de empresas.

Durante o julgamento, o ministro--relator Barbosa insistiu que Pizzolato era o principal e único responsável pelo desvio, para um esquema de corrupção petista, de recursos do fundo de incen-tivos Visanet para a promoção da venda de cartões de bandeira Visa pelo BB, que é a tese central do mensalão. E detalhou esta acusação em vários aspectos. Um deles: Pizzolato não havia respeitado as competências definidas pelo banco para ordenar os serviços da DNA na promo-ção dos cartões.

Barbosa, a rigor, escolheu Pizzolato como bode expiatório de um problema que de fato existia. Mas não fora criado por Pizzolato. E, além do mais, o próprio Pizzolato estava tentando ajudar a resol-ver esse problema desde que assumiu a diretoria do banco e, já em maio, uma auditoria identificou a necessidade de se aumentar o controle sobre o uso dos recursos da Visanet.

“Levei quase um ano trabalhando nisso lá dentro, junto com a diretoria de Organização, Controle e Estratégia, que apontou o que poderíamos melhorar. Em julho de 2004, já conseguimos mu-danças. A partir dali, a DNA passou a ter que mandar relatórios mensais. Todo o trabalho foi para dar maior eficiência ao gerenciamento dos recursos. Em no-vembro de 2003, o Conselho Diretor do banco aprovou alguns aperfeiçoamentos na Dimac. Implantados esses novos pro-cedimentos, começamos a trabalhar em várias áreas, e a dos recursos da Visanet foi uma”, diz Pizzolato.

A maior das três auditorias internas do BB sobre o uso dos recursos desse fundo, feita por 20 auditores em quatro meses no segundo semestre de 2005, aborda o problema das competências da gestão de recursos do fundo de incen-tivos Visanet. Mas o faz de modo mais

amplo que o usado por Barbosa ao tentar incriminar Pizzolato. Diz que, desde o início do funcionamento do Fundo de Incentivo Visanet (FIV), nome oficial do fundo de onde vinham os recursos para a promoção da venda e uso dos cartões, havia um problema com a questão das competências.

No item 6.4.10 do relatório da audito-ria está escrito: “As normas internas sobre competências e alçadas, no período de 2001 a meados de 2004, não continham referência específica quanto às instâncias decisórias para aprovação, no âmbito do Banco, da utilização dos recursos do Fundo de Incentivo Visanet.” A seguir, no item 6.4.10.1, o relatório da auditoria diz: “As primeiras referências formais relacionadas ao assunto ‘competências e alçadas’ localizadas constam no ane-xo nº 3 à Nota Dimac 2004-2708, de 19.07.2004, que trata do ‘Fluxo de regis-tro dos processos e utilização do Fundo’, aprovada pelo Comitê de Administração da Dimac em 21.07.2004.”

Como se vê pela sua data e ori-gem, essa nota foi elaborada pela Dimac, na gestão de Pizzolato,

para aumentar o controle do uso dos recursos do fundo Visanet, como ele explicou a RB. Ela impunha, quando do uso de recursos de terceiros – no caso, os recursos do FIV obtidos da CBMP--Visanet –, as mesmas competências e alçadas praticadas pelo banco no caso de recursos próprios, de seu orçamento.

A auditoria também mostra que vi-nha havendo uma pequena melhoria na observância dessas normas já no governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, e que após a intervenção de Pizzolato, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, houve uma grande melhoria. Vejamos: em 2001, 54,76% das ações de incenti-vo ao uso do cartão Visa foram feitas com inobservância de alçada; em 2002, 20,53%; em 2003, 21,59%; mas em 2004, apenas 7,20%. A auditoria citada ainda conclui: “Os eventos realizados em 2005 têm seus processos melhor instruídos, re-fletindo o resultado dos aprimoramentos que vêm sendo implementados a partir de meados do segundo semestre de 2004, existindo, porém, oportunidade de me-lhorias para aprimorar procedimentos.”

Durante o julgamento, Barbosa disse, também, que os gerentes-executivos da diretoria de marketing eram subordinados a Pizzolato. A acusação tem o objetivo de afirmar que Pizzolato era muito

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poderoso e que, embora esses gerentes assinassem as notas de serviço para uso do FIV, era ele quem mandava. Pizzola-to não tinha competência para demitir um gerente-executivo. De fato, eles só podiam ser substituídos por ordem do presidente do BB. “A Dimac não é uma diretoria de negócios, mas uma diretoria de apoio. O diretor não pode contratar, demitir funcionários, nem autorizar gas-tos”, explica Pizzolato.

O ministro Barbosa encaminhou à Visanet pedido de esclarecimento sobre quem ocupava os cargos que comanda-vam o uso de recursos do FIV. Os docu-mentos obtidos na CBMP depois de uma busca e apreensão na sede da companhia foram analisados pelo Instituto Nacional de Criminalística e resultaram no laudo 2828. Neste laudo está claro quem era o responsável e quem nomeava o gestor dos recursos do BB no FIV. Não era Pizzolato e nem era ele quem nomeava esse funcionário.

Até o ministro revisor, Ricardo Lewandowski, aderiu à tese de Barbosa de que Pizzolato desviou

recursos públicos. Disse Lewandowski, no voto que condenou Pizzolato: “Convém assentar que os recursos direcionados ao Fundo Visanet, além de serem vinculados aos interesses do Banco do Brasil, saíram diretamente dos cofres deste, segundo demonstrado no item 7.1.2 do relatório de auditoria interna do Banco do Brasil, às folhas 5.236, volume 25, parte 1”.

Andrea, que está há sete anos estudando a defesa do marido, abre o volume 25, parte 1, da AP 470, nas folhas mencionadas por Lewan-dowski. A repórter lê. De fato, dali não se depreende, de forma alguma, que os recursos saíram dos cofres do BB. Pelo contrário, o item 7 explica que “o Fundo de Incentivo Visanet foi criado em 2001 com recursos disponibilizados pela Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP) para promover, no Brasil, a marca Visa, o uso dos cartões com a bandeira Visa e maior faturamento da

Visanet”. Ou seja, mesmo o capital social inicial do fundo foi da CBMP--Visanet, e não do BB.

O item diz, ainda, que esse fundo “é administrado por um comitê gestor – composto pelo Diretor Presidente, Di-retor Financeiro e Diretor de Marketing da Visanet”. E que constam, dentre os procedimentos previstos no regulamento do fundo, que: “a) o incentivador (banco) deve apresentar ao comitê gestor, para análise e aprovação, proposta descreven-do a ação de incentivo, seus propósitos, os resultados e os custos; b) após as apro-vações técnica e financeira, as despesas com a ação serão pagas diretamente pela Visanet às empresas executoras do proje-to.” A conclusão é óbvia: se as despesas são “pagas diretamente pela Visanet”, “após as aprovações técnicas e financei-ras” do “comitê gestor da Visanet”, que os recursos não saíram “diretamente dos cofres do BB”. E que para retirá-los da conta da CBMP-Visanet era preciso que as ações fossem aprovadas técnica e financeiramente por ela.

Barbosa serviu-se de quatro das chamadas “notas técnicas” do BB para uso dos recursos do fundo, cuja soma totaliza os 73,8 milhões de reais que teriam sido desviados, para incriminar Pizzolato. Três delas – uma é de período em que Pizzolato estava em férias – foram assinadas por ele, de fato. Mas também, e Barbosa não disse, foram assinadas pelo chefe da Direv, o diretor de varejo do BB e pelos gerentes-executivos das duas diretorias. Barbosa disse, absurdamente, que somente Pizzolato era o responsável.

Para justificar a concentração da culpa em Pizzolato, Barbosa usou o depoimento de uma senhora, Danevita Magalhães, que se tornou símbolo das vítimas do mensalão para a revista Veja. O depoimento está nos autos, mas foi dado sem a presença do advogado de Pizzolato. Nele, Danevita diz que teria sido demi-tida do BB por ter se recusado a assinar uma autorização para falsos serviços de promoção e publicidade no valor de 60 milhões de reais. Ocorre que Danevita nunca fui funcionária do marketing do

BB. Ela era funcionária das agências de publicidade no chamado núcleo de mídia do BB – isto está claro em seus próprios depoimentos na AP 470 –, fato que Bar-bosa, é claro, não considerou.

Danevita foi funcionária, em Brasília, de diversas agências de publicidade que prestaram serviços ao BB, a última delas sendo a DNA. Este depoimento apare-ceu em 2009. Qualquer pessoa de boa-fé que examine a acusação de Danevita sabe que é completamente absurda a afirma-ção de que ela teria poder para autorizar alguma despesa do BB, ainda mais no valor de 60 milhões de reais, equivalente ao das maiores campanhas de publicidade já feitas no País.

Pizzolato explica que as notas técni-cas eram notas internas da diretoria de varejo informando à de marke-

ting que havia aporte de recursos do Fun-do Visanet e que estes seriam usados em campanha publicitária. “O marketing fazia o trabalho braçal. Quem fazia o briefing, que dava as características da promoção a ser feita, era o varejo. Era ele que dizia ‘quero pôr tanto numa campanha do Dia dos Pais, tanto para patrocinar vôlei’. A utilização dos recursos da Visanet era feita de acordo com a demanda da diretoria de varejo. Minha estrutura, no marketing, era, originalmente, direcionada para fazer o trabalho de promoção e propaganda do banco. Ao vir um trabalho extra – a promoção dos cartões Visa –, essa mesma estrutura era utilizada”, diz.

Ele compara o seu trabalho no marketing ao de um comandante da cozinha que manda no ambiente da co-zinha, mas não controla o almoxarifado nem a tesouraria, que paga as contas. “Imagine que você esteja fazendo um jantar para 20 pessoas. Aí chega alguém e diz: ‘Vêm aí mais cinco pessoas para jantar.’ Você concorda. E pergunta: ‘Essas cinco pessoas vão pagar quanto?’ Eu tinha um orçamento para fazer um jantar para 20. Aí chegava a diretoria de varejo e dizia que tinha mais dinheiro, que viriam mais cinco pessoas. A nota técnica era eu dizendo: ‘Estou de acor-

Danevita disse ser do BB e que teria se recusado a assinar uma campanha falsa de R$ 60 milhões. Mas não era do BB nem poderia haver campanha nesse montante

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do, vou usar meus cozinheiros e minhas panelas, e como vocês arrumaram mais dinheiro, posso servir mais pessoas.’”

“Quando eu descobri que era assim que funcionava”, continua Pizzolato, “eu falei com o dono da casa, para saber se eu poderia receber esses cinco extras. Fui procurar o Casseb, presidente do banco. Ele me disse que os recursos não eram do orçamento do banco, eram privados. E me mandou falar com o Edson Monteiro, vice-presidente de varejo e distribuição e que era, também, do conselho de admi-nistração da Visanet. Monteiro me disse que, sim, era assim que funcionava. E me mostrou um parecer do departamento jurídico do banco dizendo que os recur-sos eram privados e que era conveniente para o banco que a Visanet pagasse diretamente a agência de publicidade, para não haver trânsito dos recursos pelo conglomerado, por questões fiscais.”

Pizzolato completa sua história: “Mas eu disse: ‘Eu já aprovei o plano anual de comunicação do banco, que vai para a Secom [Secretaria de Comunicação do Governo], e esse dinheiro extra não esta-va incluído nisso’. Monteiro me disse que,

como os recursos não eram públicos, seu uso não precisava ser submetido à Secom. Por isso, depois, aproveitei uma reunião para comentar isso com os assessores na Secom e, depois ainda, com o ministro Gushiken. E ele me disse que era isso mesmo, isso era uma boa notícia, porque o banco teria mais dinheiro para propa-ganda. E concordou que esse dinheiro não se submetia à Secom.”

Pizzolato explica o procedimento para liberar recursos do Fundo Visanet: todo início de ano, a

Visanet encaminhava uma carta ao BB informando o montante de recursos que haviam sido disponibilizados pelo conselho de administração da Visanet para a promoção dos cartões Visa. A di-retoria de varejo recebia esta carta e podia gastar o dinheiro sozinha ou com outras diretorias. Se precisasse da diretoria de marketing, o gerente-executivo da Direv fazia uma nota técnica conjunta com a Dimac, que selava o acordo de trabalho entre as duas diretorias.

As notas informavam que havia o valor disponibilizado pelo fundo que

não impactava o orçamento do BB. De qualquer forma, era a Direv que emitia as notas essenciais para o relacionamento com a Visanet, os chamados JOBs (de job, em inglês, trabalho), encaminhados à CBMP e que propunham o gasto de valo-res determinados para fazer a campanha apresentada. “Esses jobs não passavam pela diretoria de marketing. Antes de estourar esse escândalo, eu nem sabia da existência deles”, diz Pizzolato.

Os jobs não apresentavam a campanha detalhada como nas notas que circulavam dentro do banco. O regulamento da Visanet também não exigia esse deta-lhamento. Pizzolato diz que era assim porque mais de 20 bancos eram acionistas da Visanet, e nenhum queria entregar a campanha que faria para o concorrente.

Os repórteres de RB ficaram dez dias ouvindo Pizzolato, lendo documentos e acompanhando Andrea, que nos mostrou sua luta de sete anos mergulhado nos autos do processo para entender o que se passou. Nossa opinião é a de que Henrique Pizzolato diz a verdade. Pizzolato é cristão. Parodiando a Bíblia, pode-se dizer que a verdade o libertará?

Barbosa foi o juiz que autorizou a apreensão dos documentos da CBMP-Visanet e também quem pediu os esclarecimentos para saber qual o autor das ordens para que a empresa depositasse os recursos do Fundo de Incentivo nas contas da DNA. Sabia também que os recursos não passavam pelo orçamento do BB. Dispensou tudo isso. Para “pegar Pizzolato”?

ST

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2013, janeiro

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Que conclusão o prezado leitor tiraria ao saber de lista com grandes depósitos feitos pelo famoso marcos Valério na conta da maior emissora de tV do País?

por Lia Imanishi

os MiNistros do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Penal 470, a do chamado mensalão, consideraram ser uma “balbúrdia” a gestão da Diretoria de Marketing do Banco do Brasil (BB), a partir da qual teriam desaparecido 73,8 milhões de reais tidos como a viga mestra do tal escândalo. Parodiando esses ministros, depois de meses de pesquisa nos autos da AP 470 para avaliar a propriedade do julgamento feito, poderíamos dizer que essa documentação é uma “balbúrdia”. Ela é gigantesca. Tem cerca de 50 mil páginas. E é formada, em grande parte, por documentos de auditorias feitas pelo próprio Banco do Brasil para investigar a existência do tal desvio e por material de incursões da Polícia Federal nos arquivos da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP). Nos arquivos dessa empresa, cujo nome fantasia era Visanet (hoje, Cielo), ficavam os comprovantes de pagamentos feitos com o uso do Fundo de Incentivos Visanet (FIV) que financiava as ações de marketing do BB para vender cartões de bandeira Visa.

EsCÂNDalO?!a rEDE GlObO FiCOU COM O DiNHEirO DEsViaDO DO baNCO DO brasil?

Na edição de Retrato do Brasil de nº 65, dezembro, em “A prova do erro do STF”, publicamos uma lista, feita a partir de documento de escritório de advocacia da Visanet, dando conta de que a tese básica aprovada pelo STF, a de que o desvio de 73,8 milhões existiu, é despropositada: através de seus advogados, a Visanet diz, em documento para a Receita Federal, que a empresa de Valério realizou todos os trabalhos de promoção listados, num valor total basicamente igual ao montante do suposto desvio. Para esta reportagem, a fim de saber se os juízes do STF tinham como tomar conhecimento da existência desses eventos, investigamos, nos autos, provas de sua execução. Procuramos um dos eventos da lista da Visanet que pu-blicamos. Como já dissemos em edições anteriores, eles são descritos em “notas técnicas”, nas quais ficavam registradas as ações de promoção e marketing progra-madas pelo BB. No caso, procuramos a NT 2004-3165 PT 2004-2274. NT é, ob-viamente, Nota Técnica; 2004 é o ano em que a ação foi decidida; 3165 é o número da ação; e 2274 é o número do protocolo (PT) da ação naquele ano.

É difícil explorar a documentação relativa ao desvio de dinheiro do BB nos autos da AP 470 . Notas fiscais correspon-dentes a uma ação estão em um apenso diferente da ação em si. Não se respeita a ordem cronológica dos fatos. Documen-tos se repetem ou são mal copiados. Falta uma classificação básica e um índice do processo; e por aí vai. Mas, de início, segui-mos a regra. Buscar o dinheiro. E vimos

que dezenas de apensos do processo estão recheados de notas fiscais e comprovan-tes bancários de pagamentos feitos pela DNA, a agência do publicitário Marcos Valério, por meio da qual o BB realizava as ações de promoção e propaganda pagas com os recursos do FIV.

A NT-3165, em resumo, é a proposta de um gasto de 11,5 milhões de reais para a promoção dos cartões de bandeira Visa do BB em 2004. Ela ocupa seis páginas do apenso 423 entre as páginas 28.353 e 28.347 na numeração oficial dos autos. O texto da nota diz que ela dá continuida-de à campanha feita no ano anterior de divulgação do cartão Ourocard, um dos cartões de bandeira Visa do BB. Diz que, entre os bancos emissores de cartão de crédito e débito, o BB mantinha a lide-rança em faturamento, com 16,39% do mercado, sendo seguido por Bradesco, com 13,64%, Itaú, com 13,11%, Uni-banco, com 7,35%, e ABN, com 5,48%. Diz que a estratégia do BB na campanha era substituir os cartões BB Visa Elec-tron pelo cartão Ourocard de múltiplas funções – crédito e débito. O BB tinha uma base de 11,6 milhões de clientes com cartões. Desses, apenas 5 milhões tinham a função crédito ativada, diz a nota.

A expectativa, com a campanha, era ativar essa função nos 6,6 milhões de cartões restantes. Para isso, a Diretoria de Varejo, do banco, encarregada da venda dos cartões, propunha que fossem aplicados 7 milhões de reais em mídia aeroportuária e exterior e 4,5 milhões em mídia televisiva, impressa, de rádio e

É a Globo no mensalão? Na página ao lado, no fundo, uma planilha de inserções de anúncios feitos pela empresa de Mar-cos Valério, para promoção dos cartões

de bandeira Visa do Banco do Brasil, nos principais programas da TV Globo, em

Brasília e em Belo Horizonte. Sobrepostos à planilha, recibos de quatro depósitos

feitos pela empresa, a DNA Propaganda Ltda., na conta da TV Globo Ltda.

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internet. O dinheiro foi aplicado mesmo nessas atividades? Enfrentando a, vale repetir, “balburdia” da documentação da AP 470 relativa ao Fundo de Incentivo Visanet, RB foi em busca das provas. Encontramos os primeiros comprovantes de pagamento no apenso 381, bem longe do 483, no qual está a NT 3165.

Chamou nossa atenção uma nota fiscal da TV Globo, para a DNA, por conta de um serviço de 42.033,31 reais. E em outro local, na página 17.278 do mesmo apenso, um comprovante de transferência eletrônica bancária, uma TED, da conta da DNA Propaganda Ltda. para uma conta da TV Globo Ltda., no mesmo valor, com data, hora e local do depósito. Algumas páginas depois, aparece até um documento de recolhimento de DARF, ou seja, o re-colhimento de Imposto de Renda que o BB faz por conta do pagamento feito à Globo: no caso, um imposto de 3.866,94 reais, com referência à nota fiscal de nº 120362742, emitida pela Globo para receber os 42.033,31 reais.

São muitos os depósitos da DNA para empresas das organizações Globo, a de TV e outras. No apenso 447, outra TED certifica que a DNA transferiu 1,03 mi-lhão de reais para a TV Globo, em 29 de outubro de 2004. No apenso 457, outro comprovante mostra depósito de 276,9 mil reais para a emissora, três dias antes. Nesse mesmo apenso, mais duas TEDs mostram depósitos para a Editora Globo S.A., de 113,6 mil reais, em 15 de outubro de 2004, e 49,5 mil, em 1º de novembro do mesmo ano.

Depois de mais algumas horas em meio à confusão dos autos, no apenso 384 localizamos planilhas detalhando inserções de propaganda do cartão Ou-rocard em várias emissoras de televisão. No alto das páginas, à direita, o número do protocolo PT 2004-2274 garante que ela é relacionada à NT 3165. Na página 17.461, se vê uma planilha da TV Globo, dando conta de 18 inserções de anún-cios nas transmissões da emissora para a capital paulista, no valor de 487,7 mil reais. A planilha mostra que o anúncio, de 90 segundos, passou em intervalos dos programas Big Brother Brasil, Domingão do Faustão, Jornal da Globo, Jornal Hoje, Jornal Nacional, Novela I, Novela III, Praça TV 2ª Edição e Zorra Total. A vei-culação no intervalo do Jornal Nacional, a mais cara da emissora, saiu por 57,83 mil reais. No intervalo da novela das nove, custou 57,36 mil reais.

NO BB, DeVeRIaM SeR cONDeNaDOS 20 e NãO aPeNaS 1?o stF acha que o desvio existiu. deveria, então, punir todos

Uma “nota técnica” do banco do Brasil (a NT 3165, veja no texto ao lado) é o maior investimento feito na gestão de Henrique Pizzolato, o diretor de Marketing do BB condenado pelo suposto desvio de 73,8 milhões de reais do banco. Contrariando a tese apresentada pelo ministro Barbosa no STF, de que Pizzolato teria autorizado, sozinho, o adiantamento do dinheiro para a DNA, a nota é assinada por mais de 20 pessoas do BB, do Comitê de Comunicação, da Diretoria de Marketing, da Diretoria de Varejo, no documento ao lado. É assinada, inclusive, pelo próprio Conselho Di-retor do BB, como se vê por anotação da secretária da diretoria, à qual a NT 3165 foi submetida em 31 de agosto de 2004. Esse conselho era composto, na época, pelo presidente do banco, Cássio Casseb, e por seus sete vice-presidentes: Ros-sano Maranhão (área Internacional), Cerqueira César (Tecnologia e Informação), Edson Monteiro (Varejo e Distribuição), Luiz Eduardo (Finanças), Luiz Osvaldo Santiago (Recursos Humanos), Ricardo Conceição (Agronegócios) e Lima Neto (Corporativo). Teriam todos esses diretores e o presidente participado, junto com Pizzolato, do desvio do dinheiro da Visanet? Deveriam ser todos eles acusados e condenados como Pizzolato? Óbvio que não, porque o desvio, de fato, não existiu.

Nas outras emissoras as planilhas mostram inserção de anúncios em di-versas capitais brasileiras, também nos seus mais famosos programas, embora a preços unitários e valores totais bem menores. A Globo tem a maior audiência entre as emissoras. É natural que tenha se beneficiado mais com as verbas da

Visanet. Além da campanha programada pela NT 3165, outras três campanhas da Globo figuram na lista de eventos con-firmados pela Visanet que publicamos na edição passada. Uma é a Campanha Ourocard Gestos Dia dos Pais, que custou 870,7 mil. Outra, a Campanha Ourocard Gestos Dia das Crianças, ao custo

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O PIOR ceGO: O STF NãO quIS VeR que eRROuNo quadro acima estão seis imagens: 1) a de um ponto de ônibus no Rio, com propaganda do cartão Visa do Banco do Brasil, de janeiro de 2005; 2) a de um anúncio em página dupla na revista Época, publicado em janeiro de 2005, para anunciar o que é considerado o “maior evento do tênis na América Latina”, com patrocínio da Petrobras e do cartão Ou-

rocard, o “Brasil Open da Costa do Sauípe”, Bahia, de 12 a 20 de fevereiro daquele ano; 3) um pôster gigante do Ourocard, no Shopping Taguatinga, do Distrito Federal; 4) um anúncio publicado na Folha de S. Paulo, em julho de 2003, com pro-moção do cartão Ourocard, a propósito do Festival de Inverno de Campos do Jordão, patrocinado pelo governo do Estado de São Paulo e pelo BB; 5) um anúncio no jornal DCI (Diário

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de 1,8 milhão. A terceira, a Campanha Ourocard Gestos Natal, de 710,7 mil. Somando as três, são mais 3,3 milhões de reais que saíram da conta da DNA para a da Globo. E isso não é tudo. Grande parte dos eventos culturais promovidos pelo Banco do Brasil com uso de recursos do fundo da Visanet têm publicidade pela televisão. Para calcular quanto, no total, a Globo levou dos recursos do FIV seria necessário organizar a documentação da AP 470 com outro propósito, não, como já dissemos, o dos procuradores-gerais da República encarregados de investigar o mensalão e o do ministro hoje presidente do STF, Joaquim Barbosa.

Os procuradores e Barbosa, como já dissemos na edição anterior, se compor-taram como investigadores e juiz de um processo medieval. Não partiram para a comprovação material do crime, em pri-meiro lugar. Ouviram dizer que a bruxa tinha matado o santo papa. E não foram ver se o papa estava morto, para provar

que o crime, de fato, existia. Se tivessem feito isso, se tivessem primeiro buscado provar a materialidade do crime, achariam nos autos abundantes indícios de que os serviços tinham sido realizados e de que o crime, o desvio, não existia.

Como os procuradores e Barbosa partiram, como nos tempos medievais, primeiro em busca dos criminosos, não lhes interessava ver esses comprovantes de que o crime não existiu. De que for-ma poderiam interpretar os depósitos na conta da TV Globo? Iriam dizer que a empresa deu recibos frios, que pegou o dinheiro do BB e repassou para a tal qua-drilha que seria chefiada pelo ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, do governo Lula, comprar deputados?

Os ministros nem sequer olharam direito os autos. E deveriam ter ido além dos autos, para entender o que foi a promoção e publicidade para a venda dos cartões de bandeira Visa do BB. A procuradoria apresentou durante a

fase processual, como testemunha para avaliar os documentos desses serviços, um engenheiro que entendia tão pouco de publicidade que foi desqualificado como perito pelo STF. RB entrevistou uma pessoa que entende dos serviços feitos. “Todo publicitário sabe que é im-possível desviar 73 milhões de um banco com campanhas publicitárias”, diz um ex-executivo da DNA, na nova agência em que ele trabalha, em Belo Horizonte. “Como você vai falsificar um recibo da Globo, da SBT?”. Ele trabalhava há dez anos para o BB, quando estourou o escândalo do mensalão. A DNA era a agência mais premiada de Minas. Ganhou todos os prêmios importantes no Brasil. Teve peças selecionadas para o Festival de Cannes de publicidade. “Tínhamos 120 funcionários. O que mais me entristece é ver uma agência que era um sonho para muita gente acabar desse jeito. A DNA ga-nhou, em 2003, a medalha de prata no 19º Prêmio Colunistas Brasília, na categoria

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Comércio e Indústria) da campanha de Natal de promoção do cartão de bandeira Visa do BB; e 6) o roteiro do anúncio para a promoção do cartão Ourocard Visa veiculado nos intervalos do Domingão do Faustão para as TVs do estado de São Paulo, em janeiro de 2005. Todas as seis são imagens do Arquivo da Propaganda, uma empresa sediada em São Paulo que acompanha a realização das campanhas de publicidade

para ajudar as agências do ramo a controlarem os trabalhos dos veículos que utilizam e para terem conhecimento do que estão fazendo os seus concorrentes. Se quisesse ver, de fato, se as promoções com os recursos do Fundo de Incentivos Vi-sanet tinham sido realizadas, bastava ao STF ter consultado o Arquivo da Propaganda. Mas o Supremo agiu como o pior cego: não quis ver

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serviços financeiros e de seguros, com a campanha ‘Investimentos BB’. Em 2004, ganhou o grande prêmio de comercial do ano da 20ª edição do mesmo prêmio, com a peça ‘Banda’, e a medalha de bronze, com a peça ‘Família’. E mais inúmeros outros prêmios”, ele conta.

O publicitário não quer se identificar. Tem razão, porque, como se viu no final do ano que passou, a fúria punitiva do STF ainda não passou. Tem ministro querendo processar até o presidente da Câmara dos Deputados se ele não cassar os deputados condenados na AP 470. Mas ele explicou detalhes técnicos das cam-panhas de promoção e publicidade para a venda dos cartões do BB de bandeira Visa. Como se pode concluir da lista de eventos desse período, do total dos 73,8 milhões de reais para os anos 2003-2004, mais de 30% foram gastos em “mídia exterior e aeroportuária”, aí inclusos os 7,5 milhões, já citados, e alocados para este fim pela NT 3165. RB pede ao publicitá-

rio para explicar o que são essas mídias. Em mídia exterior se inclui “mobiliário urbano”. Durante o julgamento, muita gente não entendeu o que é isso. Houve quem achasse que a DNA teria comprado móveis com o dinheiro da Visanet, o que foi considerado totalmente descabido.

O publicitário explica que, mesmo a compra de móveis às vezes é necessária para uma determinada promoção. Mas, no caso, mobiliário urbano, quer dizer locais, na cidade, onde podem ser fixados carta-zes e exibidos diversos tipos de propa-ganda em outros formatos, como filmes e vídeos. “Isso é regido por leis municipais. Em geral, pode-se afixar propaganda em bancas de jornais, fachadas laterais de edifícios, relógios de tempo e temperatu-ra, placas de rua e painéis back light, os iluminados por luzes internas. Também é considerada mídia exterior aquela afixada em outdoors e a que envelopa ônibus e táxis”, diz ele. “Já a mídia aeroportuária aparece em painéis nas salas e portas

das salas de embarque e desembarque, nas portas de aeroportos, nas esteiras de bagagem, em painéis chamados carrossel, back light e escadas rolantes”.

Os autos da AP 470 estão cheios de documentos sobre as campanhas de mídia exterior e aeroportuária. Alguns exemplos:

• No apenso 379, planilhas de inser-ções de propaganda do BB em aeropor-tos. A empresa responsável pela inserção é a Meta 29.

• No apenso 380, comprovantes de veiculação de filmes publicitários em apa-relhos de vídeo de aeroportos, localizados na área comercial e nas salas de embarque. Uma verificação feita em 1º de fevereiro de 2005, por exemplo, dá conta de 298 registros de exibição de propaganda do BB, das 4h da madrugada às 23h59.

• No apenso 382, recibos de 156 mil e 319 mil e comprovante de depósito na conta corrente de 430,1 mil reais para a empresa Carré Advertising Ltda.,

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a aSSOcIaÇãO DOS MaGISTRaDOS DO BRaSIL DeSVIOu DINheIRO Da VISaNeT?eram 3 mil juízes, lá estava até a daniela mercury. será que isso também não existiu?

uma das maiores no setor de mídia ae-roportuária.

• No apenso 381, várias notas fiscais da Clear Chanel Adshel, grande empresa do setor de mobiliário urbano, referente à instalação de propaganda nos relógios de rua do Rio de Janeiro, uma de 46,9 mil reais, outra de 168 mil e, mais adiante, outra de 337 mil reais.

• No apenso 383 há uma lista deta-lhando as ruas principais de São Paulo para o tráfego de ônibus com as sua transversais mais próximas dos 540 pontos de abrigos para passageiros onde foram colocados materiais de promoção dos cartões do BB.

O publicitário mineiro diz à RB que existe uma forma ainda mais simples de verificar se determinada campanha publicitária foi feita, e que ela poderia ter sido usada pelos ministros do STF. Ela se chama Arquivo da Propaganda e é o maior acervo publicitário do Brasil. Ele coleta e arquiva todas as campanhas de propaganda de TV, revistas, jornais, in-ternet, rádio e mídia exterior. A empresa foi fundada em 1972, pelo publicitário e artista plástico Newton Carvalho. Fica na capital paulista, na avenida Jabaquara, 2.940, 1º andar. Ela tem uma engenharia de software própria e uma infraestrutura de internet com sistemas de pesquisa on-line. Tem aplicativos para disponibi-lização na rede ou intranet do cliente e ferramentas para análises quantitativas. Qualquer um pode acessar o material

do Arquivo da Propaganda, a partir de pedidos avulsos. Também pode ser assi-nante. Nesse caso, seleciona os produtos ou serviços que deseja acompanhar, as mídias, a forma de recebimento e a periodicidade – mensal, quinzenal, se-manal ou diária. Existe uma assinatura voltada exclusivamente para agências de propaganda. Com ela é possível solicitar material sobre qualquer setor ou período. A agência recebe uma planilha de com-putador do tipo Excel, e a partir dela lista e escolhe as campanhas que quer ver. Essa assinatura dá direito a uma cota de cópias de anúncios ou comerciais e gravações. A partir dessa cota, a agência tem que pagar mais se quiser ir além. O arquivo de campanhas publicitárias está catalogado por produto ou serviço, anunciante e período.

Através desse arquivo também é pos-sível fazer o controle e a fiscalização da veiculação das campanhas, com os locais e o número de vezes que cada campanha foi veiculada. Esse controle pode ser feito para peças publicitárias de TV, mídia im-pressa, rádio ou mídia exterior. O cliente fornece a grade de veiculação e o arquivo faz um relatório indicando se ela foi ou não cumprida. A fiscalização em televisão consiste na verificação da inserção dos comerciais nos intervalos dos programas determinados. Se um comercial não foi inserido conforme programado, o cliente pode solicitar a gravação do programa onde a inserção deveria ter ocorrido para

averiguação junto à emissora. No caso da mídia impressa, o arquivo confere a publicação nos jornais e revistas predeter-minados e informa a publicação ou não de cada anúncio programado. Enquanto a fiscalização se destina a monitorar as pró-prias campanhas das agências, o controle de veiculação permite à agência acompa-nhar as campanhas dos seus concorrentes.

O publicitário conclui sua entrevista a RB explicando como foi o fechamento da DNA e o que foi feito de seus arqui-vos. “Quando estourou o negócio todo e veio a acusação de desvio de dinheiro da Visanet, fui ajudar a levantar tudo que existia. Tínhamos todas as fatu-ras de pagamento, as notas recebidas. Quando houve a mudança nas normas do Banco do Brasil, no final de 2003”, diz ele, referindo-se às reformas pro-movidas por Pizzolato, já citadas por RB em edições anteriores, tudo ficou ainda mais rigoroso, tudo tinha que ser documentado. “No caso do BB, não tenho dúvida de que o dinheiro foi utilizado em propaganda. Na auditoria feita pelo próprio BB tem uma docu-mentação muito completa sobre isso”. Ele conta que, quando a DNA fechou, toda a documentação levantada por ele para auxiliar o BB nessa auditoria foi para um depósito. A partir de certo momento, que ele não sabe especificar quando, os sócios da DNA deixaram de pagar os custos do depósito e perderam o acesso à documentação.

Na lista das ações executadas pela Diretoria de Marketing do BB com o dinheiro do Fundo Visanet, consta o patrocínio ao XVIII Congresso Brasileiro dos Magistrados, que aconteceu entre 22 e 25 de outubro de 2003, no Centro de Convenções de Salvador, na Bahia. O patrocínio foi de 200 mil reais. O congresso reuniu mais de 3 mil magistrados na capital baiana e foi notícia nos maiores jornais do País. O Correio da Bahia deu matéria destacando que “a tônica do evento é uma renovação no Judiciário do País, tanto criticado pela morosidade e por muitas vezes não fazer a devida justiça”. O encontro dos juízes em Salvador foi notícia ainda nos jornais Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Gazeta Mercantil, Jornal do Commercio (RJ), Jornal de Santa Catarina e A Tarde (BA). Além disso, mais de 7 mil internautas acompanharam o evento pela internet, através de câmeras instaladas no centro de convenções. No evento, organizado pela DNA, houve debate com o publicitário Duda Mendonça e palestra do economista Luiz Gonzaga Beluzzo sobre os efeitos das mudanças propostas pelo governo petista na reforma da

Previdência Social. O professor dividiu a mesa com o juiz Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço, presidente da As-sociação dos Magistrados de Santa Catarina.Na visão de Beluzzo, a proposta de reforma era resultado da falta de compreensão do governo petista em relação ao papel das carreiras de Estado, na medida em que trazia gran-de dose de insegurança para os futuros servidores públicos.“Não se pode entregar a aposentadoria desses servidores à incerteza de um fundo de pensão privado, pois se cria uma grande insegurança quanto ao futuro”, argumentou Beluzzo.No encerramento do congresso houve show da cantora Daniela Mercury. Será possível que os 200 mil reais do patro-cínio tenham ido parar em outro lugar que não no congresso dos magistrados? Se o dinheiro da Visanet foi para a AMB e a entidade desviou o dinheiro para a supo sta quadrilha petista comprar deputados, os juízes da Associação dos Magistrados Brasileiros deveriam ser acusados pelo STF? Essa é a pergunta que não deveria calar para quem acredita que o desvio de dinheiro do BB existiu.

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como o atual presidente do supremo tribunal Federal armou as condenações de João Paulo cunha e dos dirigentes da agência smP&b por um suposto desvio de dinheiro da câmara dos deputados por Raimundo Rodrigues Pereira

a GraNDE arTE DE JOaQUiM barbOsa

2013, março

Está no YouTube, na sessão do dia 16 dede agosto no julgamento da Ação Penal 470 no STF. O ministro relator já faloupor mais de três horas apresentandoseu voto pela condenação de João Paulo Cunha e da agência de publicidade SMP&B,quando revela um argumento do Tribunal de Contas da União que o contradiz completamente. Então ele tem uma espécie de surto, sai do script, gesticula freneticamente enquanto ataca a corte de contas

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o diabo Mora nos detalhes, é o di-tado. Para tentar entender a condenação de João Paulo Cunha e dos dirigentes da agência de publicidade mineira SMP&B por desvio de dinheiro público num contrato de publicidade de 10,7 milhões de reais assinado pelo então presidente da Câmara dos Deputados e a agência no final de 2003, sugerimos que o leitor comece revendo um curto trecho da 31ª sessão do julgamento da Ação Penal 470 (AP 470) no Supremo Tribunal Federal, no dia 16 de agosto do ano passado. Esse detalhe está perto do final da fala do ministro Joaquim Barbosa, o relator da ação. Barbosa falara praticamente sozinho durante quase quatro horas. Sua fala fora repetitiva, pesada. Ele apresen-tou e reapresentou fatos que provariam a justeza de sua condenação. Cunha, o principal acusado, teria cometido quatro crimes: um de corrupção passiva, por ter recebido propina de 50 mil reais; outro, de lavagem de dinheiro, por ter tentado ocultar o recebimento dessa vantagem; e dois de peculato: um por ter se beneficia-do de dinheiro público, cerca de 250 mil reais da Câmara, através da contratação de um assessor pessoal, e outro porque teria repassado cerca de 1,1 milhão de reais, também da Câmara, não para a SMP&B, mas, na verdade, para o PT.

Os 20 segundos escolhidos pelo repórter estão perto do final da sessão. Podem ser vistos no YouTube: AP 470, 16/08/12, 2/2. É a segunda parte da sessão. Barbosa está cansado, nervoso, como se pode ver nos 11 fotogramas da página ao lado tirados desses 20 se-gundos. Ele vinha lendo pausadamente seu voto – longuíssimo, 159 páginas. Teria provado, como escreveu à página 75 e leu para o plenário, que “o crime” estava “materializado”. Cunha teria desviado a maior parte do dinheiro da Câmara para o PT por ter contratado a agência SMP&B para que não fizesse praticamente nada. Dos quase 11 mi-lhões pagos pela Câmara no contrato, menos de um centésimo seria trabalho feito efetivamente pela agência.

O cronômetro no YouTube marca 1h03min10s, ou seja, essa segunda parte da sessão já tem uma hora, três minutos e dez segundos de duração. Aparente-mente, então, Barbosa percebe que é preciso destacar também o contraditório, a defesa de Cunha. Cita, nesse sentido, um trecho da conclusão do acórdão 430 do Tribunal de Contas da União (TCU), de 2008: o trabalho efetuado pela agência

tem um valor maior, 11,32% do contrato. E, então, de repente, como se percebesse a extensão da diferença entre o que vinha afirmando e o que o TCU diz – 11% é mil vezes 0,01% –, interrompe a leitura, ergue a cabeça, sai do script e, como se falasse diretamente para o espectador da TV Justiça, que transmite a sessão, fala, gesticulando rapidamente com o indicador da mão direita, com a mão inteira e com todo o braço: “Uma secre-taria disse uma coisa... o que eu já citei”. Ri rapidamente e conclui: “Foi trocada toda a equipe, que posteriormente diz o contrário”.

Com isso, claramente, o ministro Barbosa tentou passar para o País a tese de que a absolvição de Cunha e da SMP&B pelo TCU fora armada. No entender do repórter, isso é uma insinuação grosseira, sem fundamento. E é pouco provável que Barbosa man-tenha esse improviso no acórdão com a sentença a ser publicada, a princípio, até o final deste mês de março. Não foi o TCU que tentou armar a absolvição dos acusados. Foram as artes do ministro que construíram a condenação do STF. Para condenar, Barbosa selecionou, basicamente, informações dos meses após o 6 de junho de 2005, quando foi feita a denúncia do deputado Roberto Jefferson sobre a existência do chamado “mensalão”, e desprezou as principais investigações feitas – das quais a do TCU é apenas uma – que provam exatamente

o contrário, isto é, que não houve desvio de dinheiro da Câmara dos Deputados no contrato da Câmara com a SMP&B. Cunha, um parlamentar com sete man-datos populares – de vereador, deputado federal e estadual –, com uma carreira sem mácula, foi condenado a nove anos e quatro meses de prisão. A SMP&B era até então uma das principais empresas de publicidade do País, com mais de 30 anos de atividades. Foi destruída: em menos de dois meses não tinha mais condições de funcionamento e demitiu todos os seus quase 200 funcionários.

A condenação de Cunha por corrup-ção e o suposto desvio de dinheiro da Câmara, logo na primeira sentença da AP 470, criaram o clima para o que alguns já chamam hoje, como veremos no último capítulo de nossa história, o “mentirão”, um julgamento com condenações por indícios, não por provas. No caso de Cunha foi até pior: ele foi condenado contra as provas. Ele provou que os 50 mil reais recebidos eram de um esquema de caixa dois do PT e apresentou as tes-temunhas e os recibos de que gastou esse dinheiro com pesquisas eleitorais. Mas a maioria dos juízes preferiu condená--lo pelo que supunha ter acontecido. A ministra Cármen Lúcia, por exemplo, disse que achava que ele tentou esconder o fato de ter recebido os 50 mil por ter mandado sua esposa, Márcia Regina, receber o dinheiro e tê-lo feito às claras, deixando recibo.

a GRaNDe INVeSTIGaÇãO Da câMaRaela resultou de pedido do próprio João Paulo cunha. Foi de 2005 a 2011 e concluiu: não houve qualquer desvio de dinheiro público

Para entender os interesses políti-cos por trás do escândalo chamado “mensalão”, um episódio a ser revisto, mesmo que rapidamente, é a eleição do pernambucano Severino Cavalcanti, do Partido Progressista (PP), a presidente da Câmara dos Deputados em meados de fevereiro de 2005. Severino ganhou a eleição porque o PT se dividiu e apre-sentou um candidato dissidente, Virgílio Guimarães (PT-MG), no mesmo pleito. Severino, com 124 votos, e Virgílio, com 117, tinham sido derrotados no primeiro turno pelo candidato oficial do PT, Luiz Eduardo Greenhalgh, que tivera 207 votos. No segundo turno, Severino bateu Greenhalgh por 300 a 195 votos. Virgílio foi o homem que apresentou Marcos Valério, mineiro de

Curvelo como ele e diretor financeiro das empresas de publicidade DNA e SMP&B, a Delúbio Soares, o tesoureiro do PT, a quem Valério ajudou na tarefa de obter dinheiro para o partido.

Na nossa história, a candidatura de Virgílio contra o candidato oficial do seu partido serve para ressaltar o fato conhecido de que o PT é formado por várias correntes. O grande apoio a Seve-rino e a baixa votação de Greenhalgh no segundo turno mostram ainda que a já então chamada base aliada estava longe de ser petista. A vitória de Severino, a rigor, foi o fato que puxou o enredo da trama política para um lado: contra o PT e a favor da invenção do “mensalão”. No caso da Câmara, ajudou a criar a historinha contra o ex-presidente da

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casa. Da assessoria do pernambucano emerge Alexis Souza, o operador na produção do principal documento usado por Barbosa na condenação de Cunha e dos dirigentes da agência SMP&B.

Alexis é um funcionário da Câmara ligado ao PP. Com Severino na presidên-cia, Alexis foi para a chefia da Secretaria de Controle Interno (Secin) da Câmara. Quando Severino renunciou à presidên-cia, sete meses depois, Alexis tornou-se assessor da bancada de deputados do PP. Até meados de fevereiro estava no gabi-nete da vice-presidência da Câmara, ocu-pada pelo deputado Eduardo da Fonte, também do PP de Pernambuco, como Severino. Foi lá que Alexis conversou com RB no início de fevereiro. Pouco antes, o repórter desta história tinha revisto, no YouTube, a condenação de Cunha por Barbosa e citou para Alexis o fato de o ministro ter destacado o seu documento na condenação. Aparente-mente, Alexis ficou orgulhoso com o reconhecimento, mas pediu para que não fossem registradas as avaliações que fez inicialmente sobre a natureza política do “mensalão”. Sua presença se destaca na história contada a seguir primeiro pelo relatório e depois por seus depoimentos nos autos da grande investigação feita pela Câmara dos Deputados a respeito do contrato SMP&B-Câmara assinado em dezembro de 2003.

A investigação começou com um pedido formal do deputado Cunha a Severino: que a Câmara oficiasse ao Tribunal de Contas da União para ser feita uma investigação do contrato. O pedido foi feito a 7 de julho de 2005, logo que Cunha foi apontado como receptor de dinheiro do chamado valerioduto e surgiu a tese de que isso

fora uma propina para ele aprovar o contrato com a SMP&B. Severino não só encaminhou o pedido ao TCU como deu ordem a Alexis, segundo o próprio repete em seus depoimentos, para re-alizar uma investigação sobre o caso. E o chefe da Secin a fez, de imediato. Quando, de 25 de julho a 3 de agosto de 2005, o TCU mandou uma equipe da sua Terceira Secretaria de Controle Externo (3ª Secex) à Câmara para uma investigação inicial, Alexis repassou a essa equipe as conclusões a que tinha chegado. O trabalho da 3ª Secex seguiu em frente e foi desembocar no acórdão

430 do TCU, de 2008, que absolve Cunha e a SMP&B. Esse acórdão é o mesmo torpedeado pela diatribe de Barbosa citada no início deste artigo. A investigação e as conclusões do TCU serão examinadas no segundo capítulo de nossa história. Por enquanto, se descreverá a investigação da Câmara, que começa com o relatório de Alexis e é a que o repórter considera mais importante.

O relatório final dessa investigação é de 26 de fevereiro de 2010 e está ao final do oitavo volume de um conjunto

Cunha pediu queSeverino pedisseuma investigaçãoao TCU. Severinopediu esta e mais outra: a de Alexis

de 1.929 páginas. Basicamente, ela se desenvolve em três etapas: 1) a iniciada com o pedido de Cunha, a 7 de julho de 2005, e comandada por Alexis, que produz dois relatórios: um dois meses depois, em setembro, e outro, a se-guir, em outubro; 2) a conduzida pelo Núcleo Jurídico da administração da Câmara, entre o final de 2005 e mea-dos de 2006; 3) e a que se passa daí em diante, conduzida por uma Comissão de Sindicância (CS) criada pela direção administrativa da Câmara na época em que era presidente da Casa o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Como as co-missões de sindicância só podem, pelo estatuto da Câmara, funcionar por 30 dias, prorrogáveis por mais 30, a rigor foram nomeadas oito dessas comissões, sempre com o mesmo presidente e pra-ticamente com os mesmos funcionários, o que permite considerá-las uma só.

Nas suas conclusões finais, a CS diz que sua investigação consumiu 480 dias de trabalho, descontados os 1.115 dias nos quais os autos tramitaram entre os diversos órgãos interessados, que são: a Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara, na qual Cunha foi julgado e absolvido; a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, cujo relatório foi publicado no início de 2006 e enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR); a Polícia Legislativa da Câmara, que fez inquéritos sobre a denúncia de crimes que teriam sido co-metidos na apresentação de propostas e na execução dos contratos; a Procurado-ria-Geral da República, que apresentou a denúncia contra Cunha e outras 39 pessoas do grupo dos chamados “men-saleiros” ao Supremo Tribunal Federal, logo depois do relatório da CPMI; e, finalmente, o próprio STF, por meio do ministro Joaquim Barbosa, que presidiu o inquérito da PGR e, após a aceitação da denúncia pela corte suprema, tornou-se o relator da AP 470.

Não existe a menor dúvida de que a CS foi criada para ajudar a esclarecer a denúncia básica do “mensalão”: a de que o PT usara dinheiro público para realizar seu projeto político pela compra de voto dos parlamentares. E, a esse respeito, também não existe a menor dúvida nas quase 2 mil páginas dos autos: o contrato da Câmara com a SMP&B foi absolutamente legal, os pagamentos à agência estavam de acordo com os termos contratados e todos os trabalhos previstos nele foram realizados.

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Não é o que disse e repete Alexis. A primeira parte do seu relatório, entre-gue a 28 de setembro de 2005, condena completamente a licitação feita durante a gestão de Cunha. Ela não teria um objeto bem definido, não incluiria um indispensável parcelamento de tarefas e teria a participação de empresas com sinais de conluio entre si. A licitação teria sido, ainda, julgada por critérios subjetivos, entre os quais o preconceito da comissão licitante contra uma das concorrentes, a empresa Ogilvy, por ela ter adquirido a Denison Propaganda, vencedora de licitação semelhante rea-lizada em 2001, quando o presidente da Câmara era Aécio Neves (PSDB-MG). No segundo documento, de outubro, Alexis analisa sete de 52 processos de compra de serviços conduzidos pela SMP&B através de tomada de preços entre três fornecedores para cada com-pra e diz ter encontrado neles inúmeros sinais de irregularidade, entre os quais: a presença de empresas de existência duvidosa; a falsificação de propostas de serviços para simular concorrência; a introdução de elementos estranhos em pesquisa de opinião pública, com perguntas que citavam o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu e o próprio pre-sidente da Câmara, João Paulo Cunha; e, finalmente, a falta de comprovação da veiculação de anúncios em 76 jor-nais do interior. Nesse segundo docu-mento, Alexis faz também a avaliação que, depois, o ministro Barbosa usaria com, digamos, uma ênfase exagerada. Alexis diz que a SMP&B não tinha feito praticamente nada: 99,9% dos serviços do contrato teriam sido terceirizados. Barbosa multiplicou isso por, como diriam os matemáticos, 10-1 (10 à po-tência menos 1): em vez de a agência ter feito apenas 0,1%, um décimo por cento dos serviços, teria feito apenas 0,01%, um centésimo por cento dos serviços.

Alexis entregou esse segundo relató-rio com Severino já fora do comando da Casa, depois da posse de Aldo Rebelo, a 28 de setembro de 2005. Logo a seguir, a revista Época, semanário das Organi-zações Globo, de 28 de novembro pu-blica matéria dizendo que Alexis havia entregado, ao novo presidente, carta de renúncia a seu mandato na Secin, que só terminaria em 2006. Seu relatório é, visivelmente, a base da matéria, que diz haver “fraudes e mais fraudes” no contrato em discussão. Tudo indica, no entanto, que Alexis nem chegou a ser efetivamente secretário de Controle Interno da Câmara. O deputado Cunha pretende entrar com um embargo ao acórdão a ser publicado pelo STF com sua condenação, no qual declarará que o relatório de Alexis é nulo de pleno direito porque ele não foi nomeado efetivamente diretor da Secin. Foi in-dicado para o cargo por Severino, mas a nomeação não se consumou porque necessitava de aprovação dos outros integrantes da mesa da Câmara e isso não ocorreu. E, a despeito de Joaquim Barbosa dizer que o relatório de Alexis

era de um colegiado, a investigação da Câmara não conseguiu esclarecer quem elaborou o relatório com ele, embora repetidamente lhe tenha pedido esses nomes. O relatório só tem a assinatura de Alexis, que alega ter sido isso uma decisão sua, para proteger de represálias os demais participantes.

O debate do relatório de Alexis continuou na Câmara após sua saída da Secin. No final de 2006, a Câmara deci-diu instalar a CS já citada, que só come-çou a funcionar meio ano depois, como vimos. Enquanto isso não ocorria, a 9 de novembro, o Núcleo Jurídico da casa encaminhou o relatório de Alexis para os cinco membros da Comissão Especial que havia realizado a licitação do contrato. Num documento assina-do por todos os cinco, essa comissão refutou as acusações ponto por ponto. No essencial, disse que o contrato era a cópia melhorada do que havia sido usado pela Câmara para a licitação que acabara resultando na contratação da agência de publicidade Denison em 2001, quando o presidente era o mi-neiro Aécio Neves. Esse contrato

O PT Se DIVIDe, PeRDe a câMaRa e, Da BaSe aLIaDa, NaSce O “MeNSaLãO”A eleição de Severino Cavalcanti (PP-PE) a presidente da Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2005, criou uma das bases para a invenção do “mensalão”. A vitó-ria do pernambucano foi tornada possível pela divisão do PT, que apresentou dois candidatos: Luiz Eduardo Greenhalgh, o oficial, e Virgílio Guimarães, o dissidente, cujo cartaz se vê na foto. Severino era da chamada “base aliada”, mas o auxiliar nomeado por ele para dirigir a Secretaria de Controle Interno da Câmara (Secin) foi o articulador do relatório que é a principal peça do ministro Barbosa para torpedear decisão do Tribunal de Contas da União de 2008 que absolveu tanto Cunha como a SMP&B. A vitória de Cunha, em 2003, na foto da página à esquerda, a de Severino, ao alto e, ao lado, numa montagem publicada na internet, Severino faz o V de Vitória diante do cartaz de Virgílio, na campanha de 2005

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também previa o pagamento, por parte da Câmara, de três tipos de serviços a serem produzidos ou supervisionados pela agência: 1) os de criação própria de peças publicitárias; 2) os de supervisão de serviços de terceiros, que não os de veiculação de publicidade; e 3) os de veiculação de publicidade. Em relação à criação própria, a Câmara pagaria com base numa tabela de preços do Sindicato das Agências de Propagan-da do Distrito Federal, e a SMP&B daria um desconto de 80% sobre o total. Sobre os serviços de terceiros, a agência receberia uma comissão de 5%. Quanto à veiculação de publicidade, dos descontos de 20% normalmente concedidos pelos veículos – TVs, jor-nais, revistas –, 5% seriam repassados à Câmara pela agência.

Feitas as contas, como faria depois o ministro revisor da AP 470, Ricar-do Lewandowski, no julgamento do caso, chega-se à conclusão de que os trabalhos da SMP&B, pelos termos do contrato, valeram: 948,3 mil reais pelo

serviço de acompanhamento e plane-jamento da veiculação de publicidade; 129,5 mil reais pela comissão devida ao acompanhamento de serviços de tercei-ros; e 14,6 mil reais pelos trabalhos pró-prios de criação (veja as conclusões de Lewandowski no quadro com sua foto, nesta página). Por esse detalhamento feito pelo ministro revisor, fica evidente que a conta de Barbosa para chegar ao 0,01% implicou excluir os outros dois rendimentos aos quais a SMP&B tinha direito pelo contrato e considerar ape-nas os 14,6 mil reais. Foi uma contabi-lidade criativa, digamos, mas não muito honesta. Nos autos estava também, para comparação, o contrato feito antes, em 2001, pela Câmara, ganho pela agência Denison. Como deu um desconto de 100% nos trabalhos próprios, a Deni-son, pelo critério de Barbosa, não fez absolutamente nada.

No total, o valor dos serviços da SMP&B, por contrato, é de 1,09 milhão de reais, ou 11,32% do total de 10,7 milhões, como dizem Lewandowski

e o TCU, e não 0,1%, como diz o relatório de Alexis, nem muito menos 0,01%, como disse Barbosa no seu frenesi acusatório. Os cinco membros da Comissão de Licitação afirmaram também que as eventuais fraudes na apresentação de propostas tinham sido encaminhadas para a Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados (PL-CD) e estavam sendo investigadas. A Secreta-ria de Comunicação Social da Câmara (Secom) tinha sido dirigida na gestão de Cunha por Márcio Araújo, também integrante da Comissão de Licitação e um dos principais responsáveis pelos problemas encontrados na licitação e aplicação do contrato, segundo Alexis. O setor jurídico da Câmara mobili-zou, então, a nova direção da Secom, da gestão Rebelo, para responder às acusações de pagamentos feitos indevidamente. Eram várias. Uma se referia a campanha de cerca de 850 mil reais com anúncios de promoção das atividades da Câmara em 153 jornais, sendo 76 deles fora das capitais. Esse

a condenaÇÃo É “ceRebRina”, nÃo tem QUalQUeR base tÉcnica, diZ o ministRoNo voto com o qual reviu a condenação de Joaquim Barbosa ao petista Cunha e à SMP&B, o ministro Ricardo Lewandowski apresentou a relação minuciosa dos veículos de comunicação contratados pela Câmara por meio da agência, citando ex-pressamente todos os principais jornais e redes de TV do País.Em sua lista, tirada dos recibos encontrados nos autos, entre as empresas de TV, a Globo veio à frente, por ter recebido 2,7 milhões de reais do total de 7 milhões gastos na campanha; o SBT ficou em segundo, com 708 mil reais; a Record, em terceiro, com 418 mil; e a Bandeirantes, em

quarto, com 251 mil. Na lista das editoras de jornais e revistas, a Abril, da revista Veja, ficou em primeiro, com 334 mil; os diários O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo aparecem em segundo, cada um com 247 mil; e a Editora Globo, em terceiro, com 166 mil.Lewandowski disse que a acusação, repetida diversas vezes por Barbosa, de que a SMP&B realizara “serviços ínfimos”, não dera “praticamente nenhuma contrapartida” pelo contrato, fora “mera recebedora de honorários” e que a finalidade do contrato era “repassar dinheiro para a agência”, era “cerebrina”, não tinha “qualquer base técnica” e a licitação fora “absolutamente lícita e regular”

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montante correspondia a 21% do valor total dos anúncios, mas seus compro-vantes não tinham sido localizados e constava no relatório de Alexis a sus-peita de que fossem falsos. Em meados de janeiro de 2006, no entanto, a nova Secom encontrou a grande maioria das comprovações e ficou faltando apenas uma dúzia delas.

Perto do final de 2006, a CS apre-sentou seu primeiro relatório. Resumiu toda a história: as alegações do rela-tório de Alexis, o exame que o então diretor da Secin fez nos contratos de compra de serviços e materiais e das veiculações de publicidade e as primei-ras conclusões da 3ª Secex do TCU. E concluiu: 1) quanto à elaboração do edital: “nada” havia de desabonador; 2) quanto ao tipo de licitação, com base na chamada “melhor técnica”, que o relatório de Alexis considerara muito subjetivo: o tipo de melhor técnica, por se tratar de trabalho intelectual, era, de fato, o mais indicado, como já fora na licitação de 2001. Além disso, a SMP&B assumira o menor preço entre os apresentados por mais sete concorrentes; 3) e, quanto à avaliação das propostas de compra de serviços e materiais: “não encontrou nenhuma irregularidade administrativa”. Por fim, a conclusão da CS era que o processo deveria ser encerrado e os autos, ar-quivados.

A CS deixou aberta, no entanto, a questão da investigação de eventuais fraudes na apresentação de propostas para as compras de serviços e materiais, a despeito de todas as compras e servi-ços terem sido considerados realmente feitos. Para saber se as propostas falsas existiram e se teriam falseado a concor-rência em um conluio de perdedores com ganhadores se deveria constituir uma nova Comissão de Sindicância. Aparentemente, a investigação, do pon-to de vista da apuração do “mensalão”, o “crime histórico” do suposto desvio de dinheiro público para o PT, estava encerrada. Restavam malfeitos de deta-lhe numa concorrência como muitas ou-tras. A apresentação de propostas falsas para simular concorrência não deveria ser tolerada, mas faria parte de outra investigação, menor. Possivelmente, é a aceitação da denúncia do “mensalão” pelo STF, em agosto de 2007, que leva à reinstalação da Comissão de Sindi-cância por mais seis períodos de dois meses cada, três no mandato de Arlindo

Chinaglia (PT-SP) como presidente da Câmara (2007-2008) e mais três no de Michel Temer (2009-2010).

No entanto, como a CS foi pratica-mente a mesma, como se disse, o que ela faz é basicamente eliminar uma lista de problemas remanescentes, especial-mente quanto às fraudes porventura existentes nas propostas perdedoras e os anúncios da campanha da Câmara publicados em jornais do interior cujos comprovantes ainda não tinham sido todos encontrados. Os trabalhos nesse período têm esse sentido e a CS resolve encerrá-los definitivamente no início de 2010, como citado. Faz, então, um balanço final dessas pendências: tinham sido analisados os 40 procedimentos de contratação de compras e serviços, impugnados, de modo geral, pelo rela-tório de Alexis. Os ganhadores dessas contratações tinham executado todos esses contratos e apresentado as notas

fiscais correspondentes. À base de três propostas para cada contratação, eram 119 empresas – uma delas havia apre-sentado duas propostas. A CS oficia então a todas as 79 empresas perde-doras para saber se realmente tinham apresentado as propostas derrotadas e, assim, confirmar a existência, de fato, de concorrência. Resultado da consulta: 11 empresas não foram localizadas, 24 não mandaram resposta e 44 responderam, das quais 36 confirmaram as propostas em poder da comissão e seis não con-firmaram.

Que mais a sindicância da Câmara deveria fazer? Já tinha concluído que a licitação vencida pela SMP&B fora benfeita e os serviços tinham sido executados sem que tivesse havido qualquer desvio de dinheiro público. Do ponto de vista do que deveria ser o objetivo central do STF, provar ou não se houve o famoso “mensalão” – em essência, o desvio de dinheiro público

da Câmara para a compra de votos pelo PT –, o caso estava liquidado. A sindicância deveria prosseguir para apurar todos os eventuais malfeitos nas 40 contratações, para descobrir se os seis que negaram ter feito as propostas tinham sido substituídos por falsários e se os 35 que não foram localizados ou não responderam tinham, talvez, algo a esconder? Um exemplo de uma investigação dessas que foi bem longe sem qualquer resultado razoável foi fei-ta num contrato de produção de textos para a primeira-secretaria da Câmara, na época ocupada pelo deputado Ged-del Vieira Lima, vencido pela empresa GLT com uma proposta de 10 mil reais mensais e perdido pelas empresas Cogito e Agenda, que apresentaram propostas de 11 mil e 11,3 mil reais mensais, respectivamente.

O diligente Alexis diz, em depoi-mento de junho de 2008 à PL-CD, que teria sido avisado pelo TCU, logo após o início de sua investigação, de que a proposta da Cogito tinha sido assinada por uma funcionária da Câmara, o que implicaria uma contravenção penal. Afirma ainda que, por esse motivo, ou-viu a funcionária e a encaminhou para exame grafotécnico depois de ela negar ter assinado o documento.

Essa investigação prosperou. Foi aberto um inquérito policial pela PL--CD e localizados os dirigentes das três empresas, que se submeteram a exame grafotécnico. Abriu-se também um in-quérito na Polícia Federal (PF). Dois de seus agentes foram a Belo Horizonte para ouvir uma funcionária da SMP&B sobre o caso. Nos autos da investigação da Câmara, essa história desaparece depois que o dirigente da GLT, a empresa da proposta vencedora, não comparece para prestar depoimento e apresenta atestado médico creditando sua ausência ao fato de ter se subme-tido a operação de catarata. No enten-der do repórter, quem tentar ir mais longe no esclarecimento de eventuais malfeitos semelhantes, que possam ter existido no contrato SMP&B-Câmara, dizendo que faz isso para esclarecer o “mensalão”, confunde e não esclarece nada. Embora possa até pensar que está combatendo o desvio de dinheiro público para fins políticos escusos, na prática pode mesmo é estar desviando dinheiro público de atividades que poderiam ser concebidas de modo mais sensato.

Não há ilegalidade,diz a Comissão deSindicânciaconvocada e reconvocada oito vezes

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Num ato recente, no auditório da Asso-ciação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, pela anulação do julgamento do “mensalão”, com a presença de cerca de 800 pessoas, a colunista social Hildegard Angel deu um depoimento emocionante no qual misturou a história da morte de três parentes no período da ditadura militar – sua mãe, Zuzu Angel, e dois irmãos – com a defesa dos condenados no “mensalão”. Disse que, no julgamento militar de um de seus irmãos, quando ele já estava morto, fatos levaram a junta mili-tar a decretar sua absolvição. Hildegard re-batizou o “mensalão” como “mentirão”, pelo fato de, no julgamento da AP 470, o STF ter ignorado direitos elementares dos acusados e fatos básicos da história, que a própria ditadura levou em conta no caso de seu irmão, pelo menos para uma absolvição póstuma.

A história de Simone Vasconcelos, diretora da SMP&B, uma das pessoas responsáveis pela administração do dinheiro da agência, confirma essa ava-liação: fatos básicos da história na qual ela foi envolvida e direitos elementares de sua defesa foram ignorados pelo Supremo. RB foi encontrá-la na casa de parentes, no interior de Minas, durante o Carnaval. Dores na coluna fizeram com que ela ficasse de pé durante a maior parte do tempo da entrevista, de cerca de uma hora. Simone trabalhou seis anos na SMP&B, depois de 15 como funcionária administrativa no governo de Minas. Assinou inúmeros pagamentos pela agência. Na página ao lado, junto com sua foto, está o recibo de um deles, de 860.742,57 reais para a TV Globo, e a história de outro, de 300 mil reais para um certo Davi Rodrigues. O da Globo é um dos que a emissora recebeu por pro-paganda veiculada para a Câmara, pelo contrato da SMP&B. Como se viu no voto do ministro Lewandowski, citado anteriormente, a veiculação de publici-dade pela televisão, jornais, revistas e internet corresponde a mais de 65% das despesas desse contrato. E a TV Globo foi a que mais recebeu: 2,73 milhões do total. O pagamento a Rodrigues é igualmente muito significativo. Como está nos autos da AP 470, Rodrigues foi o intermediário de um doleiro que recebia numa agência do Rural o dinhei-ro depositado por Simone e, depois, o

enviava ao exterior, para uma conta de Duda Mendonça no BankBoston, nas Bahamas.

Como também está nos autos, Duda, que foi o publicitário da campanha de Lula para presidente em 2002 e fez outras campanhas para o PT em 2004, confes-sou ter recebido 15,5 milhões de reais do partido, sendo 10,5 milhões na conta do BankBoston nas Bahamas. O que um pa-gamento tem a ver com o outro? Ambos são assinados por Simone, mas se ligam a duas histórias completamente distintas. Uma, a da TV Globo, se refere a um contrato absolutamente legal, analisado exaustivamente e aprovado por diversos órgãos. Foi vencido pela SMP&B em lici-tação com mais sete concorrentes, em que nenhum contestou o resultado. O outro é um pagamento pelo famoso “caixa dois”. Em nenhum momento, a despeito da fúria da maioria dos juízes do STF e da quase unanimidade da grande mídia que os açulava, ninguém disse que Duda recebeu esse dinheiro porque estava envolvido no suposto “maior escândalo de corrupção da história da República, no qual o PT corrompeu o processo político brasileiro comprando voto de deputados”.

Por que Simone foi condenada a 12 anos e sete meses de prisão, inclusive por crime de evasão de divisas, se o próprio Duda, que indubitavelmente recebeu o dinheiro que chegou a ele por meio da assinatura de Simone num cheque, foi ab-solvido? Porque o STF embaralhou dois fatos: 1) o crime do caixa dois, que existiu, do qual Simone foi uma das executoras e no qual estão o dinheiro recebido por Duda e mais o de duas dúzias de políticos e intermediários seus; e 2) o “mensalão”, uma criatura fictícia, batizada com esse nome pelo deputado Roberto Jefferson em junho de 2005 e animada finalmente pelo STF com sua sentença no julgamen-to da AP 470 no final do ano passado.

O dinheiro que Simone disponi-bilizava ao PT, por ordem de Marcos Valério, era de empréstimos tomados pela SMP&B dos bancos mineiros Rural e BMG e repassados ao partido. Simone apenas cumpria ordens. Foi arrolada como integrante de uma “quadrilha pu-blicitária” porque o crime de formação de quadrilha exige quatro integrantes e a acusação só tinha três donos efetivos na agência de publicidade: Ramon Hol-

DOIS FaTOS eMBaRaLhaDOS, e uM DeLeS é FaLSOa história de simone, diretora da smP&b, é outra prova:o stF desprezou o crime existente e inventou um outro

lerbach, Cristiano Paz e Marcos Valério. A “quadrilha publicitária” a que Simone “pertencia” foi subordinada a outra: a “quadrilha política”, em que estaria o chefão de todos, José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil do governo. Também teria havido o incentivo de uma terceira, a “quadrilha de banqueiros”, liderada pela presidente do Banco Rural, Kátia Rebelo. E isso tudo porque três quadrilhas arti-culadas e com um propósito grandioso ficavam bem na teoria do “maior crime da história da República”. Simone parece ser uma mulher forte. Tem noção das forças poderosas que foram desencadeadas para a construção da história do “mensalão” e o apoio entusiasmado dos seus familiares, além de uma leve esperança de que a verdade seja restabelecida.

O ministro Barbosa disse, na sua sen-tença contra Cunha e a SMP&B, que se apoiava em três decisões colegiadas. Uma delas, a de Alexis, como vimos no capítulo anterior, tudo indica, não é válida e não se sabe se é, de fato, colegiada. A terceira é a do TCU, com a qual encerraremos nossa história. E a segunda, por fim, é a de uma equipe do Instituto Nacional de Criminalística, órgão da Polícia Federal encarregado, entre outras coisas, da aná-lise de documentos. Nossa história não entrará em detalhes dessa investigação por três motivos: 1) ela é confusa, tanto que foi usada pelo ministro Barbosa para condenar os acusados e pelo ministro Lewandowski para absolvê-los; 2) os técnicos encarregados de realizá-la não conseguiram separar as atividades da SMP&B nas três modalidades previstas expressamente no contrato – ao que tudo indica, por não serem especialistas no as-sunto, como insistem tanto os defensores de Cunha como os da SMP&B; e 3) a principal acusação que é feita, a de que os trabalhos da empresa IFT – Ideias, Fatos e Textos, do jornalista Luiz Costa Pinto, de assessoria a Cunha, não foram confir-mados, está em absoluta contradição com a avaliação do processo que resultou no acórdão do TCU de 2008, em cujos autos estão, claramente, os comprovantes da realização dos serviços.

Finalmente, quanto ao esforço de Barbosa para desmoralizar a conclusão do TCU, ele não a estudou, ao que tudo indi-ca. O que cita como sendo uma decisão colegiada da corte de contas é o relatório preliminar apresentado pela equipe de inspeção da 3ª Secex do tribunal, após a visita à Câmara e a consulta ao trabalho de Alexis Souza, já citadas. Inclusive, esse

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relatório da Secex, de agosto de 2005, repetia o argumento apresentado depois em forma exagerada por Barbosa, de que os serviços do contrato tinham sido ter-ceirizados pela SMP&B em 99,9%. Pedia, ainda, que fossem ouvidos, em 15 dias, o presidente da Câmara, João Paulo Cunha; o diretor da Secom, Márcio Araújo; e o diretor-geral da Câmara, Sergio Contreras, e os ameaçava com multa de 252 mil reais, equivalentes ao valor do trabalho do IFT prestado ao presidente da Câmara, serviço esse que o relatório considerava ilegal. Além disso, no detalhe, também pedia a Cunha, Araújo e Contreras explicações sobre os mesmos pontos cobrados na investigação da Secin.

Essa posição foi sendo desmontada totalmente à medida que a investigação do TCU evoluía. Já em meados de setembro de 2005, o secretário da 3ª Secex decidiu que todas as medidas determinativas do primeiro relatório deveriam aguardar o exame do mérito da questão. No início de outubro, o então ministro relator do caso no TCU, Lincoln Rocha, reduziu ainda mais o caráter repressivo das propostas: acolheu apenas a de sobrestar a prestação

de contas da Câmara dos Deputados do exercício de 2004 e determinou à 3ª Secex que acompanhasse o desdobramento das investigações na Câmara e analisasse especialmente a prestação de contas da assessoria denunciada, a dos serviços prestados pela IFT.

Com a criação da Comissão de Sindi-cância da Câmara, em meados de 2006, e para verificar mais informações enviadas ao TCU, o novo ministro relator do caso, Benjamin Zymler, enviou nova equipe da Secex para mais uma inspeção na Câmara, feita nos primeiros dias de março de 2007. A preocupação principal era verificar a possibilidade de terem ocorrido paga-mentos por serviços não realizados. Em relação à IFT, que estava no topo das pre-ocupações, a Secex considerou corretas as explicações dadas pela Câmara e a suspeita foi afastada. Outras irregularidades, no entanto, ainda continuaram em análise.

A questão das contratações de tercei-ros foi esclarecida logo depois. A 3ª Secex concordou com a avaliação da Câmara de que elas correspondiam não aos 99,9% apresentados pela Secin, mas a 88,68%, e o relator Zymler disse que, nas auditorias

realizadas pelo TCU em diversos órgãos e entidades da administração pública federal na área de publicidade e propaganda no segundo semestre de 2005, os contratos examinados mostraram graus semelhantes de terceirização. Posteriormente, o TCU aceitou a explicação dada pela Câmara para praticamente todas as outras pen-dências e, a 19 de março de 2008, o caso foi levado ao plenário do tribunal, tendo como relator o ministro Raimundo Car-reiro, que apresentou voto, acompanhado unanimemente pelos membros da corte, considerando as informações prestadas pela direção-geral da Câmara “suficientes para demonstrar a regularidade nos atos de gestão analisados”. Ao final, Carreiro lembrou que as eventuais propostas falsas apresentadas por perdedores de concor-rências, como a da Cogito Consultoria, deveriam ser analisadas em inquéritos po-liciais, como efetivamente, no exemplo, a Câmara continuava fazendo. Por fim, após recomendar o aprimoramento do modelo de contrato da Câmara para as próximas licitações que visarem a contratar agência de publicidade, deu o caso por encerrado e mandou arquivar os autos.

ela Foi enFiada nUma das tRÊs QUadRilHas do “mensalÃo” PoR Falta de QUÓRUmSimone, entre outras funções na SMP&B, administrava o caixa da agência por meio de instruções de Marcos Valério. Nesse caixa basicamente entrava dinheiro de duas origens. Uma delas eram os clientes, como a Câmara, com a qual tinha o contrato ganho em dezembro de 2003. Desse di-nheiro saíam pagamentos como o feito pela TED que se vê ao lado da foto de Simone. É uma transferência eletrônica, por meio do BRB, Banco de Brasília. Mostra 860.742,57 reais sendo repassados da conta da SMP&B no Banco Rural para a TV Globo. Foi feita no dia 17 de janeiro de 2005.RB teve acesso, ainda, ao cheque, de 21 de fevereiro de 2003, no valor de 300 mil reais, também assinado por Simone, por

meio do qual saiu dinheiro do caixa da SMP&B para o PT pagar uma parte do que devia a Duda Mendonça, o marque-teiro de Lula, na sua vitoriosa campanha para presidente em 2002. O dinheiro para Duda vinha de empréstimos tomados pela SMP&B nos bancos mineiros Rural e BMG.O dinheiro que entra e sai de um caixa não tem nem carimbo de origem nem de destino, é certo. Porém, o STF embaralhou as histórias: a do caixa dois, existente, e a do “mensalão”, do “grande escândalo de corrupção da República”, inventada. É claro, como no caso do dinheiro de Duda, que a SMP&B operava um caixa dois para o PT. Mas ela tinha apenas três donos. Por lei, para uma quadrilha é preciso haver quatro pessoas. Simone, que era apenas funcionária, entrou no enredo do “mensalão” por falta de quórum

Alo

ísio

Mo

raes

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a TraMa DOsTrÊs aCUsaDOrEs

2013, junho

há iNúMeros iNdícios de que os procuradores-gerais da República, primeiro Antonio Fernando de Souza e depois Roberto Gurgel, e o ministro Joaquim Barbosa, que conduziram no Supremo Tribunal Federal o inquérito policial 2245 e a Ação Penal 470 (AP 470), do chamado mensalão, trabalharam ao longo dos já quase oito anos desse feito para esconder dos demais ministros da corte aspectos essenciais da trama que julgavam. Comecemos por mostrar as causas de um incidente entre os ministros Barbosa e Marco Aurélio de Mello, ocor-rido na 53ª e última sessão do julgamen-to, no final do ano passado. Barbosa diz que vai encerrar o julgamento com um elogio a seus auxiliares. Marco Aurélio considera o fato inusitado e descabido. Mas Barbosa não ouve seu argumento e continua sua laudação. Marco Aurélio diz então que não vai continuar ouvindo e se retira do plenário.

A cena poderia parecer apenas uma manifestação do estilo aguerrido dos dois ministros, não fosse pela discussão an-terior entre eles, ocorrida minutos antes e que, no fundo, tratou de uma questão central da AP 470: o desvio, entre os anos 2003 e 2005, de 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil (BB) que teria sido promovido pelo petista Henrique Pizzolato, então diretor de Marketing e Comunicação do banco. O plenário do Supremo, normalmente com 11, mas então com apenas dez ministros, não era o mesmo que condenara Pizzolato, três meses antes, por quase unanimidade de votos. Tinham saído Ayres Britto e Ce-zar Peluso e entrado um novo ministro, Teori Zavascki. Mas, entre os presentes, Marco Aurélio era o único que, na época, dera um voto a favor da absolvição de Pizzolato, num dos quatro crimes pelos quais ele foi julgado. Foram 44 votos; 43 de condenação. Só Marco Aurélio votou

pela absolvição, numa das acusações, a de lavagem de dinheiro.

A discussão Barbosa-Marco Aurélio deu-se em torno de um agravo regimental do advogado de Pizzolato, Savio Lobato, e era o último recurso dos advogados da defesa a ser julgado na AP 470. O agravo regimental é um recurso que obriga o ministro autor de uma sentença mono-crática, ou seja, decidida isoladamente por ele, a submeter o pedido a uma outra apreciação, pelo plenário da corte. Basi-camente, Lobato cobrava que Barbosa apresentasse a seus pares a cópia do IPL 0555/2006-SR-DPF-DF, isto é, do inqué-rito policial de número 0555, instaurado em 2006 pela Superintendência Regional da Delegacia de Polícia Federal do Distrito Federal e supervisionado pelo juiz da 12ª vara daquela região.

O leitor pode apreciar a discussão no YouTube: <http://www.youtube.com/watch?v=eRr2ZByx7MI>. Esse endereço

no julgamento da ação Penal 470, as autoridades ao lado – dois procuradores-gerais da República e o atual presidente do supremo tribunal Federal – agiram numa espécie

de conluio para ocultar fatos básicos da história

por Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira

PROTeSTO e cOBRaNÇaFinal da AP 470: Marco Aurélio passa por Barbosa e se retira da corte, para não ouvir a laudação do presidente. Antes, quis saber se o embargo de Pizzolato tinha ou não a ver com a ação penal. Barbosa diz não, de palavra, e, com as mãos, diz sim

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é de um vídeo de 38 minutos e 5 segun-dos que descreve a parte final da já citada 53ª sessão plenária do julgamento. E as imagens na página ao lado são do mesmo vídeo, de três instantes que destacamos. A primeira, aos 33min19, é de quando Marco Aurélio passa por trás da cadeira de Barbosa, retirando-se da sessão, em protesto. A segunda, aos 28min52, é do momento em que Marco Aurélio gesticula e pergunta: “Nada a ver com a AP 470?”. E a última, aos 29 min, quando Barbosa entrelaça os dedos e responde: “Sim, pode haver”. Ao longo deste artigo, os repórteres que o assinam procurarão demonstrar a importância do inquérito 0555 para os que estão interessados em compreender o chamado mensalão. Por ora, basta guardar desse vídeo o seguinte: 1) ao longo de todo o tempo da discussão com Marco Aurélio, Barbosa em nenhum momento diz o número do IPL – batiza-o, curiosamente, de “X”; 2) Marco Aurélio pede a Barbosa a garantia de que esse in-quérito, no essencial, nada tenha a ver com a AP 470; 3) a esse pedido Barbosa diz “não” e, em seguida, vacila e diz: “Pode haver”. Como se vê na foto, Barbosa une a ponta dos dedos das duas mãos, como se mostrasse a união das duas ações, mas responde, em contradição com seu gesto, com um pode ser: “Sim, pode ter, pode ser que haja, sim, alguma pertinência”; 3) Marco Aurélio reage a essa vacilação e diz que não pode votar se Barbosa não explicar se o que o advogado pretende que os juízes examinem tem ou não tem a ver com a AP 470. “Talvez? Não posso pro-nunciar-me a partir do ‘talvez’”, diz Marco Aurélio. E, finalmente, quando concorda com Barbosa em não dar curso ao pedido do advogado de Pizzolato, Marco Aurélio

repete enfaticamente: “Não tem nada a ver”, como para dizer, finalmente, que só acompanha Barbosa em negar o pedido do advogado porque isso – a não relação do inquérito que o relator chama de “X” com a AP 470 – lhe foi assegurado pelo relator. Considere-se, finalmente, que a obrigação moral do relator é apresentar honestamente aos outros juízes, que não têm como ler detalhadamente os autos – e, neste caso, especialmente, são dezenas de milhares de páginas – os fatos básicos do processo.

Retrato do Brasil já demonstrou várias vezes que o STF cometeu um erro essencial no julgamento

da AP 470. Ao se julgar um crime por métodos não medievais – ou seja, não pela tortura, física ou moral, de supostos criminosos – é obrigatório, primeiro, provar sua materialidade, isto é, provar que o crime existiu. Ao julgar o men-salão, o Supremo se colocou diante de um dilema. Tinha diante de si centenas de fatos – documentos, laudos periciais, depoimentos, confissões – do horroroso crime do caixa dois, conhecido de pra-ticamente todos os partidos e políticos do Brasil. Mas resolveu aceitar a tese do mensalão, de que todos esses fatos sob sua apreciação não se referiam ao crime do caixa dois, mas, sim, a um crime muito mais sensacional: uma quadrilha de dirigentes do PT, comandada por José Dirceu, o então chefe da Casa Civil do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tinha, essencialmente, desviado 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil para, em conluio com uma quadrilha de publicitários e outra de banqueiros, após ter simulado um falso caixa dois, com-

prar deputados e subverter o processo democrático brasileiro, no “maior crime de corrupção da história da República”.

Essa aceitação da tese do mensalão poderia ter sido evitada se o STF tivesse cumprido o seu papel de identificar o aspecto básico do crime espetaculoso que estava sendo apresentado para julgamento pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que era o suposto desvio de 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil. Feito isso, era preciso, primeiro, provar sua materialidade, isto é, provar que o desvio de fato existiu. Essa oportunidade ocorreu a 9 de dezembro de 2006, quan-do foi discutido o desmembramento do inquérito 2245, ainda não transformado em ação penal. Àquela altura, as posições do então procurador-Geral da República, Antonio Fernando de Souza, e também do já relator do inquérito, Joaquim Barbo-sa, não estavam ainda consolidadas. Mas a oportunidade foi perdida. E, já àquela altura, Souza e Barbosa, como também se verá, procuravam esconder dos outros juízes o fato básico de que, embora dis-sessem enfaticamente que Pizzolato era o responsável pelo desvio, procuravam esconder dos outros ministros os traba-lhos da polícia para tentar descobrir quem o teria, de fato, praticado. Para piorar essa situação, em 2009, Souza foi substituído no cargo por Roberto Gurgel, que, como igualmente se mostrará, desprezou a prin-cipal investigação existente.

Souza apresentou a denúncia do men-salão ao STF no dia 30 de março de 2006. Naquele momento, ele e Bar-

bosa estavam empenhados numa disputa jurídica com a Visanet, o nome fantasia da Companhia Brasileira de Meios de

PROTeSTO e cOBRaNÇaFinal da AP 470: Marco Aurélio passa por Barbosa e se retira da corte, para não ouvir a laudação do presidente. Antes, quis saber se o embargo de Pizzolato tinha ou não a ver com a ação penal. Barbosa diz não, de palavra, e, com as mãos, diz sim

Dois acusadores por profissão: o ex-procurador-geral, Souza, e o atual, Gurgel. E o presidente do STF, Barbosa, acusador por escolha

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O aSTeRiScO 5No subtexto, a história é a mesma: Souza diz que vai investigar quem é o responsável. No texto, a conversa agora é outra: não é preciso ler tudo...

Pagamento (CBMP), que era a dona dos recursos do fundo de incentivo à venda dos cartões de bandeira Visa destinados ao BB, do qual os 73,8 milhões teriam sido desviados. A CBMP, cujo nome fantasia mudou depois do escândalo – hoje é Cielo –, é uma espécie de filial da Visa International, uma companhia gigante cujos cartões giraram, em 2012, 6 trilhões de dólares. Na página de rosto das ações judiciais encaminhadas a Barbosa e movi-das para defender a CBMP das investidas da Polícia Federal, que queria fazer uma devassa em sua documentação, consta uma lista de mais de cem advogados, com bancas em diversos cantos do mundo. A luta desses titãs da advocacia global para preservar a CBMP do escândalo durou praticamente um ano, de meados de 2005 a meados de 2006. O final des-sa disputa jurídica tem um marco: foi quando Barbosa devolveu à companhia a correspondência dos advogados com a empresa, apreendida indevidamente na devassa autorizada e realizada, algum tempo antes, na sede da empresa, em Ba-rueri, São Paulo. Chama a atenção o fato de que, entre os documentos devolvidos, está um no qual os advogados da CBMP dizem, basicamente, que o desvio não existiu. No documento, eles afirmam que a companhia tinha a prova de que todas as ações de incentivo referentes aos 73,8 milhões supostamente desviados tinham sido realizadas (RB mostrou um resumo desse documento em “A prova do erro do STF”, em sua edição de número 65, de dezembro de 2012).

Souza, por sua vez, sabia que a gestão do fundo de incentivo Visanet era muito complicada. Sua denuncia do mensalão tinha se baseado nas conclusões do de-putado Osmar Serraglio (PMDB-PR), relator da principal investigação do Congresso sobre o escândalo, tornadas públicas no mesmo dia de sua denúncia. Serraglio apresentava uma lista grande de pessoas a serem indiciadas pelo eventual desvio. Além do petista Pizzolato, o par-lamentar pedia também o indiciamento de outro diretor do BB, o de Varejo. Sugeria

indiciar ainda os gerentes executivos das duas diretorias, bem como a pessoa formalmente encarregada da gestão dos recursos do fundo de incentivos. Do BB, no entanto, Souza, só pediu o indicia-mento de Pizzolato. Deixou, contudo, alguma margem para dúvida. No texto da denúncia, no qual diz que o desvio do dinheiro do fundo “foi efetuado pelo diretor de Marketing do Banco do Brasil”, logo após o nome de Henrique Pizzolato, acrescenta um asterisco, de número 99. E, no pé da página, em tipo menor, esclarece o que ele significa: “Há outros envolvidos, cujas condutas serão apuradas no foro adequado”.

Barbosa recebeu a denúncia também no mesmo 30 de março de 2006, mas os fatos indicam que tanto ele quanto Souza tinham dúvidas em relação ao tratamento a ser dado a Pizzolato ao longo de todo aquele ano. No final de agosto, tendo recebido de Souza a tarefa de investigar essencialmente quem eram os responsáveis pelo suposto desvio de dinheiro do BB, a PF do Distrito Federal abriu o inquérito 0555, o “inquérito X”, citado por Barbosa no início desta histó-

ria. Em setembro, Souza encaminhou a Brasília documentos para a investigação de Cláudio Vasconcelos, o segundo da diretoria de Pizzolato, mas que estava no cargo desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Nessa época, em correspondência que está nos autos, o procurador-geral pergunta a Barbosa se não é mais razoável tirar Pizzolato do inquérito do STF e encaminhá-lo para a instância inferior, a 12ª Vara Federal da capital, para onde fora encaminhada a investigação de Vasconcelos. Em 9 de novembro, Barbosa, numa questão de ordem em sessão plenária do Supremo, pede o desmembramento amplo do inquérito 2245, deixando naquela corte apenas oito acusados que àquela altura tinham o chamado foro privilegiado e remetendo para a instância inferior todos os outros 32. A proposta de Barbosa, no entanto, perdeu para outra, do então ministro Sepúlveda Pertence, que conti-nha uma lógica aparentemente imbatível. O Código Penal brasileiro não permite que os acusados de coautoria num cri-me sejam julgados em processos penais distintos. Não se podia julgar no STF,

Souza se baseou em Serraglio, relator da CPMI, mas com uma diferença: o peemedebista pediu para que fossem indiciados cinco; ele só indiciou os petistas

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citar os empréstimos feitos ao PT. Entre outras conclusões, esse laudo respondia à pergunta da PGR destinada a saber a quem competia gerir os recursos do fundo Visanet. No laudo, os peritos mostram que os gestores dos recursos eram nome-ados não pela Diretoria de Marketing e Comunicação, comandada por Pizzolato, mas pela Diretoria de Varejo. E o nome do petista não aparece nem uma só vez na lista de oito nomes citados como ligados à gestão dos recursos do fundo, nos quatro anos e meio de sua existência, do início de 2001 a meados de 2005. Isso era um problema grave para Souza, que, como vimos, tinha, apressada e arbitrariamente, destacado Pizzolato como “o” autor do desvio e, cavilosa e sub-repticiamente, fizera a nota de rodapé 99, já citada, man-dando investigar quais eram os autores desse mesmo desvio. Mais ainda: Souza tinha que fazer aprovar a denúncia do mensalão no STF, em meados de 2007, para poder processar e prender os réus, como pretendia (achava que eles deveriam ser presos preventivamente, mas Barbosa não aprovou o pedido quando este lhe foi formalmente encaminhado). No co-meço do ano, ainda por cima, chegaram a Souza dois novos laudos do INC refe-rentes à movimentação de dinheiro em contas bancárias das empresas das quais Marcos Valério era o operador financei-ro: o 1449/2007, referente ao período 2001–2002 (no governo Fernando Hen-rique Cardoso, portanto), e o de número 1450/2007, de 2003 a meados de 2005, no governo petista. A própria divisão dos laudos em dois períodos já mostrava que

os peritos tinham o claro entendimento de que Valério operava com o Banco do Brasil e com a Visanet havia tempos. A rigor, a DNA, a principal das empresas das quais Valério era uma espécie de tesoureiro, tinha contrato de publicidade com o BB havia dez anos e operava com o fundo Visanet desde o início da operação dele, em 2001. Um exame superficial dos laudos mostrava também que os dois pe-ríodos deveriam ser investigados, porque muito mais gente parecia estar envolvida no recebimento de recursos, tanto nos distribuídos pelo esquema Delúbio–Va-lério como nos do que se chamava, já então, de “mensalão tucano”, operado pelo mesmo Valério, mas, no caso, com Clésio Andrade, importante empresário e político do PSDB de Minas Gerais.

Para agravar as dificuldades do pro-curador Souza, no começo de 2007 ele recebeu também, do Banco do Brasil, uma detalhada análise dos responsáveis pela gestão do fundo Visanet. O BB já tinha feito uma investigação nesse fundo, com 20 auditores, entre julho e dezembro de 2005. Com os resultados dessa auditoria, abriu, em seguida, um inquérito administrativo concluído em 13 meses, no final de fevereiro de 2007, e apresentado num relatório de 85 páginas. Esse relatório aponta Pizzolato apenas como um entre oito dirigentes do BB responsáveis pelo fundo.

O que Souza e Barbosa fizeram? Eles ignoraram esses laudos e relatórios. Na denúncia do mensalão, afinal aprovada no final de agosto daquele ano, nenhum dos dois se referiu à necessidade de

Denúncia no Inquérito nº 2245 60

serviços subcontratados pela agência DNA Propaganda, passíveis de cobrança

do chamado “bônus de volume”, indicou que no período contratado, ou seja,

22/03/2000 a 27/09/2005, o desvio pode alcançar a cifra de R$

37.663.543,6998.

No que concerne ao Banco do Brasil, o desvio desses

recursos foi efetuado pelo Diretor de Marketing do Banco do Brasil, Henrique

Pizzolato99, responsável direto pelo acompanhamento e execução do contrato e

pleno conhecedor das cláusulas contratuais que obrigavam a transferência da

comissão “bônus de volume” ao banco contratante100.

Do lado beneficiado, constam Marcos Valério, Ramon

Hollerbach, Cristiano Paz e Rogério Tolentino, responsáveis pelas empresas do

núcleo Marcos Valério.

Henrique Pizzolato desviou os valores em prol do grupo

liderado por Marcos Valério, pois tinha pleno conhecimento que citada

quadrilha aplicava os valores correspondentes à comissão BV em benefício do

núcleo central da organização delitiva, caracterizando um dos mecanismos

para alimentar o esquema criminoso ora denunciado.

Por esse motivo, de forma deliberada e consciente, deixou

de desempenhar as suas atribuições funcionais, consistente em impedir o

desvio desses vultosos valores.

Como será detalhado no item seguinte, Henrique

Pizzolato tem profunda ligação, principalmente na área de finanças, com o

Partido dos Trabalhadores, razão pela qual participou do crime de peculato

98 Vide item “33” do Relatório de Auditoria referente ao PT n.º 019.032/2005-0, em anexo.99 Há outros envolvidos, cujas condutas serão apuradas no foro adequado. 100 Trecho extraído do Relatório de Auditoria PT n.º 019.032/2005-0, itens 26 e seguintes: “26. Vislumbramos, nesse sentido, a omissão e negligência dos responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização do contrato, à medida que não acompanharam nem adotaram medidas objetivando garantir o adequado controle dos preços praticas no âmbito do contrato, bem como o cumprimento de cláusulas contratuais, especialmente a cláusula segunda, itens 2.5.11 (concorrência nº 99/1131) e 2.7.4.6 (concorrência nº 01/2003), evidenciados pela não devolução ao Banco das bonificações de volume pelas agências. 27. Como os gestores conheciam de antemão as bonificações, até porque previram em contrato a devolução das mesmas, não podem alegar ignorância quanto a existência de bonificações de volume.”

Denúncia no Inquérito nº 2245 60

serviços subcontratados pela agência DNA Propaganda, passíveis de cobrança

do chamado “bônus de volume”, indicou que no período contratado, ou seja,

22/03/2000 a 27/09/2005, o desvio pode alcançar a cifra de R$

37.663.543,6998.

No que concerne ao Banco do Brasil, o desvio desses

recursos foi efetuado pelo Diretor de Marketing do Banco do Brasil, Henrique

Pizzolato99, responsável direto pelo acompanhamento e execução do contrato e

pleno conhecedor das cláusulas contratuais que obrigavam a transferência da

comissão “bônus de volume” ao banco contratante100.

Do lado beneficiado, constam Marcos Valério, Ramon

Hollerbach, Cristiano Paz e Rogério Tolentino, responsáveis pelas empresas do

núcleo Marcos Valério.

Henrique Pizzolato desviou os valores em prol do grupo

liderado por Marcos Valério, pois tinha pleno conhecimento que citada

quadrilha aplicava os valores correspondentes à comissão BV em benefício do

núcleo central da organização delitiva, caracterizando um dos mecanismos

para alimentar o esquema criminoso ora denunciado.

Por esse motivo, de forma deliberada e consciente, deixou

de desempenhar as suas atribuições funcionais, consistente em impedir o

desvio desses vultosos valores.

Como será detalhado no item seguinte, Henrique

Pizzolato tem profunda ligação, principalmente na área de finanças, com o

Partido dos Trabalhadores, razão pela qual participou do crime de peculato

98 Vide item “33” do Relatório de Auditoria referente ao PT n.º 019.032/2005-0, em anexo.99 Há outros envolvidos, cujas condutas serão apuradas no foro adequado. 100 Trecho extraído do Relatório de Auditoria PT n.º 019.032/2005-0, itens 26 e seguintes: “26. Vislumbramos, nesse sentido, a omissão e negligência dos responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização do contrato, à medida que não acompanharam nem adotaram medidas objetivando garantir o adequado controle dos preços praticas no âmbito do contrato, bem como o cumprimento de cláusulas contratuais, especialmente a cláusula segunda, itens 2.5.11 (concorrência nº 99/1131) e 2.7.4.6 (concorrência nº 01/2003), evidenciados pela não devolução ao Banco das bonificações de volume pelas agências. 27. Como os gestores conheciam de antemão as bonificações, até porque previram em contrato a devolução das mesmas, não podem alegar ignorância quanto a existência de bonificações de volume.”

por exemplo, um deputado mensaleiro acusado de um crime e, noutro processo, numa instância inferior, um coautor des-se mesmo crime sem o privilégio de foro.

Para fazer cumprir a proposta ven-cedora, a maioria decidiu que Barbosa deveria apresentar, em nova plenária da corte, um processo de desmembra-mento que deixasse no STF apenas os acusados com foro privilegiado e todos aqueles que tivessem sido coautores de seus crimes.

No dia 6 de dezembro, o Supremo discutiu várias propostas de desmembra-mento com esse propósito e não chegou a conclusão alguma. Decidiu-se, então, manter todos os 40 acusados no STF, e a corte se viu na enrascada da qual não se livrou até hoje. Na opinião dos autores desta reportagem, essa foi a chance que o Supremo perdeu de concentrar seus esforços na questão central, da busca da materialidade do grande crime, que era, indubitavelmente, o desvio de dinheiro do BB. Era com esse desvio que a Pro-curadoria procurava “matar” a tese do caixa dois feito a partir de empréstimos bancários tomados pelo PT, direta ou in-diretamente. Os empréstimos eram uma simulação, não existiam, o dinheiro vinha do BB, dizia a Procuradoria. Se orientas-se a discussão da aceitação da denúncia no sentido de fazer a PGR provar a materialidade desse grande crime, o STF teria concentrado na corte o julgamento do essencial, conseguiria simplificar a sua pauta e impediria a balbúrdia que se se-guiu, de um julgamento esquartejado, no qual certas partes acabaram se tornando maiores que o todo e personagens secun-dários da história foram sentenciados a penas quase quatro vezes mais longas do que a dos supostos chefes.

No final de dezembro de 2006, a PF mandou para Souza o primeiro de três laudos que

seu Instituto Nacional de Criminalística (INC) vinha preparando desde que pusera as mãos nos documentos das empresas nas quais Marcos Valério, o homem da distribuição de dinheiro para o PT, tinha participação e nos da CBMP, nos quais estavam os recibos dos serviços de promoção e publicidade para a ven-da dos cartões de bandeira Visa feitos com o fundo Visanet. Trata-se do laudo 2828/2006-INC-DPF, com uma análise da contabilidade das empresas de Valério, que tinha sido refeita em 2005, para expli-

O aSTeRIScO 99No texto, o procurador Souza diz que o responsável pelo desvio é Pizzolato. No subtexto, no fundo, ele diz que ainda vai investigar quem é o responsável

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concluir essas investigações para saber se houvera o desvio e, caso tivesse havido, quem o comandara. Ambos continuaram repetindo que o petista Pizzolato era o único responsável. Quando finalmente anexou o laudo 2828/2006 aos autos do inquérito policial 2245, já então trans-formado na AP 470, o apresentou com um texto no qual sugere aos ministros que não é preciso ler o documento todo porque a imputação, que apresentara na denúncia, de que Pizzolato desviou os re-cursos “ao fazer adiantamento de valores sem a devida contraprestação de serviços foi comprovada pelos dados levantados”. Mas nem o nome de Pizzolato nem o de outro petista, Luiz Gushiken, também citado por ele, constam do laudo 2828.

Os anos de 2008 e 2009 foram difíceis para a PGR. Por um lado, foi o período da troca de

comando, da saída de Antonio Fernando de Souza para a entrada de Roberto Gur-gel. Por outro, era preciso, desde logo, apresentar as testemunhas da acusação, as primeiras a serem ouvidas na ação penal. Mas onde achar testemunhas se inquéritos policiais para descobrir os culpados, espe-cialmente no caso do suposto desvio de dinheiro do Banco do Brasil, não tinham ido muito além da escolha arbitrária de Pizzolato? No início de 2007, Souza tinha apelado para a ajuda do mais experiente delegado da PF no caso do mensalão, Luiz Flávio Zampronha, da superintendência regional da organização em Brasília. Zam-pronha comandara a operação de busca e apreensão de documentos nos arquivos do banco Rural, em Belo Horizonte, em 15 de julho de 2005, quando foram descobertos a lista de nomes e os recibos assinados por boa parte dos beneficiados pelo valerioduto. As tarefas dadas a Zam-pronha por Souza foram: estudar os três laudos do INC (2828/2006, 1449/2007 e 1450/2007); descobrir de onde o dinheiro de Valério tinha saído e em quais mãos havia pousado; e, finalmente, realizar as investigações de campo necessárias para localizar financiadores e beneficiários

do suposto desvio, já que, como vimos, desde o início se afastava a hipótese de a dinheirama ter sua origem nos emprésti-mos declarados pelo PT.

Foi Zampronha quem localizou Danévita Magalhães, que iria, digamos assim, solucionar as dificuldades de Gurgel em encontrar uma testemunha que claramente incriminasse Pizzolato. Isso, ao que parece, aconteceu por acaso. Perto do final do relatório de 346 pági-nas de Zampronha, Danévita aparece como tendo recebido 25 mil reais de uma empresa chamada Diretorial, que tinha recebido 2,3 milhões de reais das contas de Valério e funcionava como uma intermediária dentro do núcleo de mídia, uma organização das agências de publicidade que atendiam ao Banco do Brasil. Nas regras para orientar sua investigação, Zampronha procurava buscar irregularidades e vínculos dos recebedores do dinheiro de Valério com os políticos e estranhou as funções da Diretorial e, mais ainda, o fato de ela per-tencer a um genro do ex- vice-presidente da República nos governos de FHC, o pernambucano Marco Maciel.

Danévita foi ouvida a 1º de abril de 2008, no inquérito de Zampronha, de número 2474-1/2007. Nesse depoimento, a publicitária explicou detalhadamente o

funcionamento do núcleo de mídia, por meio do qual as agências negociavam para evitar que uma invadisse o contrato da outra com o BB. Danévita disse também que tinha sido demitida por Valério, a seu ver por ter se oposto à simulação de uma campanha de publicidade no valor de “60 milhões” para os cartões Visa Electron, cujo dinheiro a DNA, agência ligada a Va-lério, receberia graciosamente. Mas ela nem sequer mencionou o nome de Pizzolato.

Quase um ano depois, a 18 de fe-vereiro de 2009, Danévita foi dar um segundo depoimento, não mais no inquérito de Zampronha. Dessa vez, na AP 470, como testemunha de acusação, quando a PGR substituiu uma de suas poucas testemunhas por ela. Aí então, embora dissesse claramente não ter qualquer contato com Pizzolato, por existirem, entre ele e o núcleo de mídia, dois escalões de comando na Diretoria de Comunicação e Marketing do BB, ela acusou frontalmente o petista. Disse explicitamente que ele tinha relação “di-reta” com Valério, que a teria demitido, e que era “o senhor Henrique Pizzolato quem realmente comandava” o uso do fundo Visanet. Seu depoimento veio re-forçado por uma matéria da revista Veja, que a apontou como uma “testemunha--bomba”, uma petista injustiçada que

O delegado tinha a tese de que Valério pegou um dinheiro limpo, dos empréstimos, e sujou com ocaixa dois, do PT. Por esse motivo, caiu em desgraça

a heROÍNa e O INcONVeNIeNTeZampronha e Danévita: o delegado localizou a publicitária transformada em heroína por Gurgel e Barbosa. Mas foi dispensado: porque diz que os empréstimos são verdadeiros

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Para concluir esta história, a repórter que a assina foi a Brasília em busca do promotor que supervisiona e da delegada que comanda o misterioso inquérito “X”, como denominado por Barbosa no início deste relato. A conversa com o procura-dor José Robalinho Cavalcanti foi longa e por telefone. Ele recebeu uma lista de perguntas por escrito e sua primeira observação foi a de que a repórter estava “enganada sobre algumas questões”. Para ele, Pizzolato confessou o desvio: “O Pizzolato é réu confesso”.

A repórter diz, então, que leu inte-gralmente os depoimentos de Pizzolato à polícia, às comissões do Congresso e em juízo e não encontrou nenhuma confissão de ele ter autorizado sozinho a anteci-pação de recursos da Visanet. Mesmo porque, o laudo 2828 comprova que, no cargo que ocupava, ele não tinha a prer-rogativa ou a autoridade para antecipar ou mesmo liberar recursos de qualquer ordem ou proveniência. “Não tive acesso a esse laudo”, disse Robalinho, para sur-presa da repórter, que pergunta se apenas o gerente executivo hierarquicamente logo abaixo de Pizzolato na época, Cláudio Vasconcelos, está sendo investigado. Por que não todos os que assinaram as notas técnicas que autorizaram a transferência dos 73,8 milhões de reais para a DNA e tiveram sugestão de indiciamento dada pela CPI dos Correios?

“Não é apenas o Cláudio Vasconce-los que está sendo investigado”, Robali-nho garante. “Posso te garantir também que o presidente do Banco do Brasil à época [Cássio Casseb] não está no foco da investigação, mas não posso dizer o nome dos outros, para não atrapalhar

o inquérito. Veja bem, o crime que foi imputado a Pizzolato é peculato, desvio de dinheiro público. Ele foi condenado por 11 votos a zero, por peculato. Por quê? Porque a tese do procurador-geral Antonio Fernando, endossada pelo atual procurador Gurgel e acatada pela Supre-ma Corte é que o Henrique Pizzolato sabia que o dinheiro não seria usado em publicidade, mas ia ser passado ao Partido dos Trabalhadores. Foi feita uma análise das contas das empresas do Mar-cos Valério, o dinheiro chegava na DNA, era depositado em uma conta no Banco Rural e nos dias seguintes era repassado ao Partido dos Trabalhadores.”

A repórter diz que a autorização, pelo BB, de antecipações de recursos do Fundo de Incentivo Visanet existia desde que o fundo foi criado, em 2001. “A antecipação dos recursos da Visa-net pelo BB foi excepcional. Nunca li que houve antecipações em 2001. As antecipações foram determinadas por Henrique Pizzolato.”

A conversa com a delegada Fernanda Costa de Oliveira, que dirige a investiga-ção 0555, foi bem mais curta. A repórter perguntou se ela lera o laudo 2828/2006. Ela disse que tinha cem inquéritos para tocar e não tinha como se lembrar de um documento. Ela insistiu que não poderia falar muito porque a investigação está sob sigilo, pedido por ela mesma. Em resumo: já vimos que os procuradores Souza e Gurgel e o ministro Barbosa agiram para esconder o inquérito 0555. Agora sabemos que a delegada Fernanda o mantém sob sigilo. Se agíssemos como os três acusadores de nossa história, diríamos que é uma quadrilha.

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ohavia sido demitida do Banco do Brasil por tentar impedir um desfalque de 60 milhões de reais. Danévita nunca fora do banco. Jamais existiu nem poderia haver qualquer campanha de publicidade de 60 milhões de reais para promover a venda dos cartões Visa Electron pelo BB: entre 2003 e 2005, todas as 93 campanhas e promoções do fundo Visanet para pro-mover a venda de todos os cartões Visa do BB somaram 73,8 milhões de reais.

Mesmo assim, o depoimento de Danévita foi a peça básica para a conde-nação de Pizzolato. Gurgel repetiu pra-ticamente todo o segundo depoimento da publicitária nas alegações finais que apresentou a 7 de julho de 2011, quando pediu a condenação de Pizzolato. Exa-tamente o mesmo fez Barbosa, quando votou pela condenação do petista no jul-gamento da AP 470 em 15 de setembro do ano passado.

O sinal mais revelador da vali-dade da tese de que os dois procuradores-gerais e Barbosa

tramaram para esconder dos demais ju-ízes do STF fatos básicos da história do mensalão é que as investigações da PF para descobrir se houve ou não o desvio de dinheiro do BB e, se houve, quem o fez foram sendo jogadas para baixo, de asterisco em asterisco ou, como no caso do inquérito de Zampronha, simples-mente ignoradas. Mantido sob sigilo pela PGR, durante muito tempo, seu inquérito foi finalmente desprezado por Roberto Gurgel, que não o incluiu na AP 470. Quando Zampronha se manifestou pu-blicamente após o início do julgamento, no final do ano passado, tanto Barbosa como Gurgel o atacaram também em público e, inclusive, pediram que a PF o investigasse. Zampronha tinha uma tese interessante: Valério, em suas movimen-tações de dinheiro, pegara dinheiro limpo, dos empréstimos bancários, o sujara, ao repassá-lo ao caixa dois do PT, e não tivera tempo de limpá-lo de novo, após receber o pagamento dos empréstimos feitos, devido à denúncia. O PT contri-buiu para melar seu negócio de vez ao expulsar Delúbio e não aceitar honrar os compromissos escritos de pagar os empréstimos que o conhecido tesoureiro do partido assinara. Ao declarar que os empréstimos eram verdadeiros, Zampro-nha bateu de frente com Souza, Gurgel e Barbosa, para os quais é essencial que os empréstimos sejam falsos.

MuITa ceRTeza e MuITa OcuPaÇãOO procurador acha que já está tudo resolvido, que Pizzolato confessou. A delegada diz apenas que tem cem casos para cuidar e não tem como se lembrar do laudo 2.828

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a HisTÓria DO DElEGaDO lUÍs

FlÁViO ZaMPrONHa

2013, agosto

as respostas a três questões mostram por que foi punido o principal investigador do mensalão, que se colocou contra os rumos definidos por dois procuradores-gerais da

República e pelo presidente do stF

por Lia Imanishi

No últiMo 11 de junho, o delegado Luís Flávio Zampronha foi punido com dois dias de suspensão, pela Corregedoria--Geral de Polícia Federal (PF), por ter, em agosto do ano passado, dado entrevistas aos diários Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo sobre o julgamento do mensalão, criti-cando a “falta de humildade” do Ministério Público, que, segundo ele, teria cerceado e desconsiderado o trabalho da PF. Como se sabe, a sentença básica do mensalão, cujos embargos declaratórios estão para ser julga-dos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a partir deste mês de agosto, é a de que foram formadas três quadrilhas – comandadas por José Dirceu, o ex-chefe da Casa Civil do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva –, que desviaram dinheiro público, 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil (BB), com os quais compraram apoio político para o governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Para encobrir o desvio, teriam simulado empréstimos com empre-sários mineiros, dirigentes do Banco Rural e de agências de publicidade. Zampronha, nas entrevistas, resumidamente, disse que a acusação de quadrilha era “motivo de piada” na PF, que os empréstimos eram verdadeiros e que o desvio de 73,8 milhões de reais não procedia.

Zampronha tem 39 anos, é casado, pai de três filhos, formou-se advogado pela Universidade Federal de Goiás e está na PF há 13 anos. Está ligado à investigação do mensalão desde o início. Apareceu pela primeira vez no noticiário nacional em 17 de junho de 2005, quando entregou à

Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional um re-latório da PF sobre corrupção na estatal Correios. A revista semanal Veja havia publicado, um mês antes, no dia 14 de maio, cenas de um vídeo em que Maurício Marinho, funcionário da estatal, negociava favores em troca de propina com um su-posto empresário. Na gravação, Marinho dizia ser homem de confiança e agir sob a supervisão de Roberto Jefferson, então deputado federal e presidente do PTB, partido da base de sustentação do governo. Logo após a denúncia de Veja, Zampronha foi designado pelo então diretor-geral da PF, Paulo Lacerda, para investigar a história. No dia 6 de junho, Jefferson atacou o PT. Segundo ele, o partido, sob o comando de Dirceu, teria criado o que o petebista bati-zou, com sucesso, de “mensalão”.

A história da corrupção nos Correios e a do mensalão, então, se embaralharam. Por essa razão, quando entregou seu relatório sobre a investigação na estatal à CPMI dos Correios, que havia sido instalada em 9 de junho, Zampronha passou a investigar, em seguida, o “mensalão”. Essa investigação foi aberta em Minas Gerais pelo fato de a principal figura do escândalo na época ser o publicitário Marcos Valério, diretor de agências de publicidade com sede em Belo Horizonte, apontado por Jefferson como um homem-chave na distribuição de dinheiro pelo PT em Brasília. Zampronha começou pelo depoimento e pela agenda de uma secretária de Valério, Karina So-maggio, que deu entrevistas a revistas e

jornais no começo de junho e falou em malas de dinheiro sendo distribuídas a partir da agência do Banco Rural em Brasília. Zampronha logo localizou o tesoureiro da agência do Rural na capital, José Francisco de Almeida Rego. Este disse que a agência do banco mineiro em Brasília era, de fato, a distribuidora de dinheiro vindo da conta da SMP&B (uma das empresas de publici-dade de que Valério era diretor financeiro) para os políticos indicados pelo tesoureiro do PT, Delúbio Soares. A partir dessas informações, Zampronha conseguiu que o juiz federal Jorge Gustavo Costa, da 4ª Vara Penal de Minas Gerais, responsável por acompanhar o inquérito, autorizasse uma operação de busca e apreensão no Banco Rural, em Belo Horizonte, onde estariam os documentos de autorização das transferências de dinheiro e o nome dos destinatários. Com o mandado judicial, no dia 13 de julho, sete agentes comandados por ele foram à sede do banco na capital mineira em busca dos documentos.

A sede do Rural em Belo Horizonte tem seis andares, inúmeras salas e arquivos. Logo a equipe de Zam-

pronha descobriu que, sem a ajuda do banco, seria difícil localizar os documentos pretendidos. Isso só aconteceu no dia seguinte, 14 de julho, quando funcioná-rios do banco lhe entregaram, em outro endereço, no arquivo central do Rural, localizado no número 380 da avenida João Azeredo, faxes, e-mails, cheques e notas com ordens de pagamento enviadas pelos

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gerentes de Valério à agência do Rural em Brasília. De posse dos documentos, Zampronha e sua equipe dirigiram-se ao avião da PF que os aguardava no aeroporto da Pampulha para levar o material à sede da PF, em Brasília. Antes da partida, no entanto, Zampronha recebeu um tele-fonema do juiz Costa, que disse que o material deveria ser lacrado e entregue a ele. Os documentos “subiriam” para o Supremo por envolverem pessoas com foro privilegiado, disse o juiz. Isso porque o advogado de Marcos Valério, Marcelo Leonardo, tinha estado no mesmo dia 14, acompanhado de seu cliente, com o então procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, para entregar cópias da mesma lista de beneficiários do dinheiro distribuído pelo Rural, na qual constavam os nomes de vários deputados, pessoas com foro privilegiado, o que obrigava as investigações a saírem da 4ª Vara de Minas Gerais e passarem para o foro superior, do STF. Souza despachou favoravelmente à petição de Leonardo, o juiz Costa foi avi-sado, ligou para o então presidente do STF, Nelson Jobim, e deste partiu a ordem para os documentos serem lacrados e levados pessoalmente pelo juiz ao STF.

Os autos, isto é, a documentação for-mal de um inquérito policial, passeiam entre o delegado que o preside, o procurador que é responsável por apresentar a denúncia à Justiça se considera os indícios de crime suficientes para a abertura de uma ação penal e o juiz relator do caso, responsável por supervisionar o inquérito e por enca-minhá-lo ao plenário de um tribunal para a eventual aceitação da denúncia e o posterior julgamento. Zampronha só recuperou o material do inquérito policial que presidia, de número 2245, no final de agosto. O juiz Costa levou a documentação para o STF uma semana depois. Como era julho, mês de recesso no Judiciário, a papelada ficou estocada na corte suprema. No começo de agosto, houve o sorteio para a escolha do juiz relator e o inquérito, então, passou para a supervisão do ministro Joaquim Barbosa.

Quando chegou de volta às mãos de Zampronha, a lista de Valério já havia vazado para a imprensa e o escândalo ganhara um novo ingrediente. No dia 3 de agosto, além dos nomes de depu-tados que haviam recebido dinheiro do esquema Marcos Valério–Delúbio Soa-res, apareceu nas manchetes dos jornais o diretor de Marketing e Comunicação

do Banco do Brasil, o petista Henrique Pizzolato, como tendo recebido do esquema a quantia de 326.660,27 reais em dinheiro, a partir de um cheque da empresa SMP&B, do esquema Valério, descontado na agência do Banco Rural no Rio de Janeiro. Zampronha não quis dar entrevistas e só aceitou falar infor-malmente, depois de muita insistência. Nas duas longas conversas que a repórter manteve com ele, uma das várias coisas das quais ele se queixa é de não ter po-dido investigar melhor toda a história. O caso Pizzolato é um dos aspectos que ele acha mal investigados. O consenso aprovado no STF, pela unanimidade dos 11 juízes, é o de que aquela quantia era propina recebida pelo petista por favores prestados a Valério, para lhe facilitar o desvio de dinheiro do BB. Além disso, Zampronha, no inquérito 2474, uma nova investigação que fez, por quatro anos, entre 2007 e 2011, a pedido do mesmo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, encontrou, vindo da conta de outra das empresas das quais Valério era diretor, a DNA, mais um saque em dinheiro no valor de 326.660,27 reais. Na época, no relató-

Zampronha: o delegado da Polícia Federal foi punido por dar entrevistas nas quais declarou que a acusação de formação de quadrilha contra os “mensaleiros” era “motivo de piada”

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rio que entregou a Roberto Gurgel, novo procurador-geral, que passou a cuidar do caso em meados de 2009, supôs tratar--se de uma segunda parcela da propina a Pizzolato. Hoje, escaldado por vários reveses, pela punição recebida, pelas divergências com os dois procuradores, pelos rumos que o julgamento tomou, Zampronha acha, entre muitas outras coisas, por exemplo, que o caso do su-borno de Pizzolato foi mal investigado e ainda não está provado.

Resumidamente, o trabalho de investi-gação do mensalão por Zampronha pode ser dividido em três fases: a primeira, cujo início foi descrito acima, com a apreensão dos documentos da conta da SMP&B no Rural em meados de julho de 2005 e que se estende até o final de março do ano seguinte, quando o procurador Souza faz a denúncia do mensalão sem esperar pelo

relatório de Zampronha, a despeito de seus pedidos para prorrogar a investigação; a segunda, que se estende dos últimos dias de 2005 até outubro de 2006, quando Zam-pronha acompanha as operações voltadas para conseguir os documentos da Visanet, nome fantasia da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento, a empresa que depo-sitou na conta da DNA os 73,8 milhões de reais considerados pelo STF como tendo sido desviados do Banco do Brasil para o esquema de corrupção petista; e a terceira, a investigação da qual falamos há pouco e na qual Zampronha trabalhou com laudos que ele próprio pediu aos órgãos técnicos da PF sobre o funcionamento da Visanet e com as contas de todas as empresas das quais Marcos Valério participava, e não apenas a SMP&B.

Do exame do trabalho de Zampronha, hoje silenciado pela punição oficial, podem

ser extraídas três perguntas que este texto procurará responder:

1. Por que, sendo ele o principal dele-gado da PF na investigação do mensalão, Zampronha foi dispensado, pelo procura-dor Souza, de concluir o seu relatório oficial sobre o caso, no final de março de 2006?

2. Por que ele foi afastado das inves-tigações sobre as relações entre o BB e a Visanet se é justamente o suposto desvio de dinheiro do banco estatal a viga mestra da teoria da existência do chamado “maior e mais atrevido escândalo de corrupção política da história do País”, no dizer do procurador Roberto Gurgel?

3. Por que, finalmente, Zampronha foi punido?

As primeiras duas perguntas têm uma resposta única e simples. Quando fez sua denúncia do men-

salão a 30 de março de 2006, o procurador Souza tinha ouvido e lido muito escândalo, mas comandado a investigação de muito pouco e chegado a uma conclusão absolu-tamente precipitada em relação ao grande crime concreto que denunciava: os 73,8 milhões de reais do Fundo de Incentivos Visanet (FIV), dinheiro público, do Banco do Brasil, que teria sido desviado para comprar deputados.

Em sua denúncia, Souza, no fundo, adota a tese de que o desvio teria sido provado pelo fato de Pizzolato ter recebido a propina de cerca de 330 mil reais. Des-prezou a investigação minuciosa e ampla de toda a vida econômico-financeira de Pizzolato, que a Receita Federal acabou fazendo, de certo modo animada pelas primeiras impressões da mídia, que ligava o recebimento do dinheiro à compra do apartamento no qual o petista mora em Copacabana. Essa investigação acabou provando que, de todos os defeitos de suas declarações de rendimentos em 20 anos – pelos quais pagou 15 mil reais, sendo 5 mil a punição, 3 mil a multa e mais 7 mil reais de juros de mora –, o maior tinha sido o fato de ter declarado como dependente a madrasta que o criara desde os nove anos. Em 29 de dezembro de 2011, a investigação de suas

Souza, Gurgel e Barbosa aferraram-se à tese de 2006 e desprezaram em grande parte os laudos periciais pedidos por Zampronha

Zampronha entrega relatório à CPMI dos Correios (17/6/2005): a seguir, o “mensalão”

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contas terminou, Pizzolato pagou esses 15 mil reais e tem ficha limpa na Receita. A acusação de que usou os tais 300 mil para comprar o apartamento em Copacabana nem sequer foi usada na Ação Penal 470 (AP 470), que se seguiu ao inquérito 2245.

Souza também desconsiderou com-pletamente a amplíssima auditoria feita ao longo de quatro meses por 20 auditores do Banco do Brasil no uso do Fundo de Incentivos Visanet e concluída a 7 de de-zembro de 2005 sem qualquer prova de que tivesse havido o desvio denunciado ou coi-sa parecida. Souza apresentou sua denúncia culpando pelo desvio, do qual não buscara provas, apenas os petistas Pizzolato e Luiz Gushiken, o ministro responsável, então, pelos gastos da propaganda oficial do governo. Não esperou pela grande inves-tigação que Zampronha e peritos da PF, a seu pedido, faziam na Visanet. A empresa estava, claramente, no centro do problema. Era a depositante do dinheiro nas contas da empresa DNA, a partir da qual teria havido o desvio. Era sócia do BB desde 2001, por meio de contratos e mecanismos de repasse de dinheiro que deveriam ser, evidentemente, investigados. A Visanet montou uma comissão de acompanha-mento da crise. Em um e-mail de Mariluce Vilella, que fazia parte dessa comissão, encaminhado aos diretores da Visanet, ela diz que tudo andava a contento na CPMI e que “quem vai se complicar é o Pizzolato”. Mais do que relações públicas, a Visanet armou um aparato jurídico com dezenas de advogados para manter-se fora da CPMI e das investigações.Várias correspondências

nos autos, entre a Procuradoria-Geral, o ministro Barbosa, o delegado Zampronha e os advogados da Visanet, mostram que a empresa resistiu até o último momento a entregar documentos importantes para a investigação. Desde o início de janeiro de 2006, o procurador Souza tentava ob-ter da companhia os papéis originais das prestações de contas feitas pela agência DNA a respeito dos serviços, seus e de seus fornecedores, contratados para fazer os trabalhos de promoção da venda dos car-tões de bandeira Visa. No dia 30 de junho, finalmente, o ministro Barbosa autorizou a busca e apreensão na empresa, para a qual Zampronha escalou uma equipe co-mandada pelo delegado Fragoso Praxedes. Oito agentes apreenderam quatro malotes de documentos e os lacraram. Praxedes relata a diligência à então presidente do STF, Ellen Gracie, e diz que lhe foi co-municado informalmente que os malotes deveriam permanecer lacrados até segunda ordem. Isso porque a Visanet entrou com ação para recuperar parte dos documentos contidos nos malotes. A disputa durou até 9 de outubro de 2006. Os advogados da Visanet requeriam que fossem devolvidos ao menos os documentos protegidos pelo princípio de inviolabilidade das relações advogados–cliente. Finalmente, a 10 de outubro, Barbosa deferiu o pedido de de-volver esses documentos. Entre eles, havia um (ver RB nº 65, dezembro de 2012), elaborado por um dos maiores escritórios de advocacia do País, a serviço da Visanet, para ser apresentado à Receita Federal. A fim de evitar o pagamento de impostos in-

devidos pela companhia, o escritório argu-mentava que todas as ações de incentivo ao uso dos cartões Visa contratadas pelo BB foram realizadas pela DNA. O documento trata dos comprovantes da realização de 99 ações feitas com os recursos do fundo da Visanet pela DNA, a mando do BB. Descreve o tipo de comprovante – notas fiscais, vídeos, cartazes, filipetas, filmes, livros, fotos de outdoors e painéis afixados em shopping centers, aeroportos, pontos de ônibus, etc. e traz planilhas de veiculação de anúncios. Elas mostram que foram gas-tos aproximadamente 73,8 milhões de reais nessas ações – e que, portanto, não houve o desvio de dinheiro do Banco do Brasil.

O tratamento dado pelos dois pro-curadores-gerais da República e pelo relator da AP 470 aos laudos

periciais pedidos à PF por Zampronha e os inquéritos paralelos ao 2245 que eles mon-taram são outra prova clara de que os três – Souza, Gurgel e Barbosa – aferraram-se à tese construída na denúncia de março de 2006 e foram jogando fora ou para baixo de tapetes convenientes tudo que poderia contrariar essa tese. Um exemplo típico é o laudo 2828/2006, do Instituto Nacional de Criminalística (INC). Ele visava obter o nome dos responsáveis pelo uso dos re-cursos do fundo da Visanet distribuídos ao BB. Tinha sido pedido pela Procuradoria e foi aberto por Zampronha no INC a 22 de dezembro de 2005. Ficou pronto em dezembro de 2006. Apresenta vários res-ponsáveis pelas relações BB–Visanet: três diretores de Varejo do BB no período

Souza, Gurgel e Barbosa: eles deixaram de lado o que podia contrariar a ideia de que houve desvio de recursos públicos

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a ser investigado, de 2001 a meados de 2005, e quatro gestores do próprio fundo de incentivos, todos eles da área de Varejo do BB, e não da área de Comunicação e Marketing, que era a de Pizzolato.

Pizzolato, o único denunciado por Sou-za, não aparece em nenhuma das 43 páginas do laudo. O procurador não apensa o 2828 aos autos da AP 470 a não ser depois de a denúncia do mensalão, apontando Pizzolato e Gushiken como responsáveis pelos des-vios no uso do FIV, ter sido aceita pelo STF, em agosto de 2007. Apenas em novembro desse ano tal apensamento é feito. E mesmo sem que, em qualquer momento, o laudo 2828 faça referência a Pizzolato, na carta que serviu para encaminhá-lo aos autos, o procurador diz: “Em que pese seu teor completo ser de leitura obrigatória, ante a profundidade da análise empreendida, alguns trechos do Laudo Pericial nº 2828-INC merecem destaque, pois a imputação feita na denúncia de que Henrique Pizzolato e Luiz Gushiken beneficiaram a empresa de Marcos Valério, ao fazer adiantamentos em valores sem a devida contraprestação de serviços, foi confirmada pelos dados levantados”. Essa carta está na folha 20 do apenso 142, dos autos da AP 470. Ela é um flagrante da adulteração do conteúdo do laudo 2828, feita pelo procurador-geral da República. Por fim, o ministro Joaquim Barbosa chegou a indeferir, no dia 24 de setembro de 2007, o pedido do Banco do Brasil para ver o laudo 2828.

T al laudo foi apartado do inquérito 2245 e incluído em outro inquéri-to, aberto no STF. Um ofício do

procurador-geral endereçado ao ministro Joaquim Barbosa lhe pede que sejam separados os documentos que continua-vam sendo enviados por Zampronha dos documentos que já estavam no inquérito 2245, porque eles versariam sobre “outros fatos” e supostamente poderiam gerar “confusão” ou “questionamentos”. Esse inquérito foi aberto no início de 2007, com o número 2474, e também foi pre-sidido pelo delegado Zampronha. Sobre ele, falaremos ao final desta história.

Antes, outro inquérito. Como era evi-dente, para qualquer um que investigasse minimamente os fatos, que havia muito mais gente envolvida num suposto desvio de dinheiro do Banco do Brasil por meio do fundo Visanet e que Souza só havia pedido o indiciamento de Pizzolato e Gushiken, numa nota de rodapé da denúncia ele diz que outros possíveis envolvidos no desvio de recursos do BB através do fundo seriam investigados em outras instâncias compe-tentes. Mandou então abrir, na Delegacia Regional da PF em Brasília, um inquérito protegido por sigilo, o 0555/2006, e des-tacou para sua supervisão o procurador da República José Robalinho, da 12ª Vara Penal de Brasília. No dia 17 de maio deste ano, a repórter conversou por telefone com ele. Queria saber a quantas andava a investigação do 0555/2006. O procurador disse, entre outras coisas, o seguinte: “Veja bem, não queremos aqui perseguir estafetas, pessoas que apenas assinam papéis sem im-portância”. E prosseguiu: “Esse inquérito não estava andando bem, porque o próprio Henrique Pizzolato bateu a bola no peito e disse com todas as letras que ele é que tinha adiantado o dinheiro para a DNA do Marcos Valério. Esse processo estava ca-minhando para ser arquivado. Como é que eu podia dizer que os outros membros do banco participaram desses adiantamentos se o próprio Pizzolato disse que adiantou os recursos do Fundo Visanet sozinho? Só que aí veio a público o inquérito do Zampronha. Ele até está sendo investigado dentro da Polícia Federal por isso. Eu não tenho nada contra ele, que é meu amigo, mas ele tornou público o inquérito dele”.

A repórter disse a Robalinho que em nenhum momento de seus depoimentos Pizzolato afirmou ter autorizado sozinho antecipações para a DNA. Mesmo porque, completou, como mostrou o laudo 2828, Pizzolato não tinha competência para au-torizar a transferência de nenhum recurso dos cofres da Visanet para a DNA. Para sua surpresa, Robalinho mostrou que não conhecia o laudo 2828.

Como já se disse, Zampronha presidiu, a partir de 2007, mais um inquérito sobre o

mensalão, ao qual foi apensado, inclusive, o laudo 2828, embora com a recomendação explícita de que a questão de saber quem eram os responsáveis, na Visanet e no BB, pelo suposto desvio de recursos não esti-vesse entre os fatos a serem investigados. Com esse novo mandado, Zampronha estudou a movimentação dos recursos por Marcos Valério em várias contas, e não apenas aquela da SMP&B no Banco Rural da qual obtivera a documentação a 14 de julho de 2005, durante a operação de busca e apreensão no banco em Belo Hori-zonte. Com base no exame dessas contas, Zampronha foi em busca de pessoas envolvidas em casos suspeitos e examinou vários aspectos paralelos ao “mensalão”. Analisou as 17 visitas de Valério ao Banco Central para tentar apressar – sem sucesso – a liquidação do Banco Mercantil de Per-nambuco, na qual o Rural tinha interesse. Analisou a hipótese de o mensalão ter sido sustentado por recursos do Banco Opportunity – do financista Daniel Dan-tas, que na época controlava a Telemig e a Brasil Telecom, servidas por empresas de publicidade ligadas a Valério – e chegou à conclusão de que havia sido preparado um acordo entre as empresas de Dantas e as de Valério para a veiculação de 50 milhões de reais em publicidade, mas o estouro do escândalo do mensalão, em junho de 2005, cancelara o negócio. Descobriu, ainda, que mais políticos tinham recebido dinheiro de Valério, não pela famosa conta do Rural, mas pelas da DNA, e citou quatro casos que pediu ao procurador-geral que fossem investigados.

Foi aí que, no meio de suas inves-tigações, no final de março de 2008, Zampronha achou aquela que seria a testemunha-bomba na acusação contra Pizzolato, Danévita Magalhães, que acabou sendo uma prova em sentido contrário. Danévita era contratada por uma agência de publicidade que mantinha, junto com outras agências que tinham contrato com o BB, um núcleo de mídia em Brasília. Em seu depoimento, tomado pelo delegado Zampronha na sugestiva data de 1º de abril de 2008, ela disse que teria sido demitida do

Zampronha alertou sobre Danévita. Mas elaera o que faltava para tornar verossímila história do desvio de dinheiro do BB

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BB porque, em 2003, o diretor de mídia da DNA, Fernando Braga, teria lhe pedido para assinar um falso plano de mídia no valor de 60 milhões de reais que, segundo ela, Braga informou que não tinha sido nem seria realizado. Serviria apenas para simular serviço e desviar dinheiro.

No depoimento, ela não cita o nome de Pizzolato, mas, sim, o do gerente de Mídia do Banco

do Brasil à época, Roberto Messias, que, segundo ela, teria lhe oferecido dinheiro para pedir demissão voluntária. O depoi-mento chamou a atenção de Zampronha, que o encaminhou ao procurador Souza. Porém, prosseguindo suas investigações, Zampronha descobriu um depósito de 25 mil reais na conta de Danévita, proveniente da DNA, mas com passagem pela empresa Diretorial, de um empresário pernambuca-no genro do ex-vice-presidente da Repú-blica Marco Maciel. A Diretorial aparecia na planilha das 15 empresas que mais receberam dinheiro da DNA proveniente do fundo Visanet. Segundo apurou RB, Zampronha alertou o procurador Souza. “Danévita não contou tudo. É uma teste-munha fria.” Mas já era tarde. Danévita era o que faltava para que a história do desvio no BB parecesse verídica.

Messias trabalha hoje como secretário--executivo de Comunicação Social do governo da presidente Dilma Rousseff. Um de seus assessores informou a RB que Messias, de fato, pediu à agencia de

publicidade que contratou Danévita que a demitisse, mas isso porque ela era uma “criadora de caso”. Segundo esse assessor, outros sete funcionários do núcleo de mídia do BB, que eram bancados pelas agências de publicidade, fizeram um motim e disseram que não voltariam ao trabalho enquanto Danévita não fosse dispensada.

Outro laudo encomendado por Zam-pronha, o 1866/2009-INC, também serviu para a acusação da Procuradoria, a essa altura já comandada por Roberto Gurgel, mas de modo estranho. O laudo mostra que em 22 de abril de 2004 a DNA sacou 10 milhões de reais da conta 602000-3 no BB, na qual recebeu adiantamentos por serviços de publicidade prestados ao banco. Esses recursos foram transferidos para uma aplicação da DNA no BMG: a compra de um CDB, Certificado de Depósito Bancário. Esse CDB depois serviu de lastro para um empréstimo de valor equivalente no BMG, dois dias depois, por uma empresa de Rogé-rio Lanza Tolentino, sócio de Valério. Essa transação, para Gurgel, teria sido a “prova definitiva” da ação da quadrilha publicitária que seria formada por Tolentino, Valério, Cristiano Paz e Ramon Hollerbach para, junto com a quadrilha chefiada por Dirceu e a dos banqueiros, promover o desvio de recursos do Banco do Brasil.

Apesar da conclusão de Gurgel, lê-se no laudo 1866/2009, do INC, o seguinte: “Os peritos entendem que o contrato está acobertado por garantias adequadas, vez que atendem características de suficiência

e liquidez exigidas pelas normas. Destaca--se que essa conclusão diz respeito ao aspecto formal do negócio, não tendo sido avaliado o seu aspecto ideológico, como a motivação da DNA Propaganda Ltda. em fornecer a garantia ou mesmo a origem dos recursos que a constituíram”. Evidentemente, o procurador Gurgel fez uma escolha ideológica e caracterizou o empréstimo como a prova definitiva do crime do desvio.

Quanto à resposta da terceira per-gunta, o que se sabe é que Zampronha foi punido disciplinarmente pela PF por duas razões: porque o ministro Barbosa manifestou-se dizendo que ele deveria ser punido e porque, em suas conclusões finais, apresentadas em 2011, o delegado contestou frontalmente o que viria a ser o resultado do julgamento ao dizer que os empréstimos eram verdadeiros, dinheiro limpo que os banqueiros haviam empres-tado ao PT com a expectativa de que o partido o devolvesse limpo, mesmo saben-do que sua movimentação seria por meio do famoso caixa dois. A consideração de que a acusação de formação de quadrilha era uma “piada” só agravou a contundên-cia de sua conclusão e, de certa forma, foi um final à altura de seu desempenho ao longo desses cinco anos e oito meses de investigações, de julho de 2005 a feverei-ro de 2011, nem sempre formulando as hipóteses mais corretas, mas sempre de espírito aberto, procurando provas que as confirmassem ou negassem.

Danévita e Pizzolato: no depoimento em que falou do desvio de R$ 60 milhões, ela não citou o diretor do BB, que foi acusado

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O GraNDEErrO DO sUPrEMO

2013, setembro

há cerca de quatro meses, no dia 22 de abril passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) publicou o acórdão com o resultado do julgamento dos réus do chamado mensalão, um catatau de 8,4 mil páginas. O presidente do tribunal, Joaquim Barbosa, como se sabe, tinha pressa para encerrar toda a história. Que-ria, então, um prazo de cinco dias para que os advogados de defesa apresentassem os primeiros recursos de apelação, os chama-dos embargos de declaração, os quais, no linguajar jurídico, devem apontar “omis-sões, contradições e obscurantismos” no que foi dito no julgamento, transcrito e apresentado no acórdão. Os réus apelaram ao pleno do tribunal contra a exiguidade do prazo, e o tempo foi esticado para dez dias. Mesmo assim, Luiz Fernando Pacheco, advogado do deputado federal José Genoino, um dos réus, condenado a seis anos e 11 meses de prisão mais multa de 468 mil reais, nos embargos de declaração apresentados em defesa de seu cliente, criticou o novo prazo concedido. Fez algumas contas: se tivessem lido o acórdão durante 12 horas por dia, ao rit-mo de 78 folhas por hora, teria sobrado aos advogados um dia apenas para redigir seus embargos, uma hipótese que, disse ele, beirava “a surrealidade”, em função da complexidade dos temas abordados.

Mesmo com protestos como esse, todos os 25 réus condenados na Ação

Penal 470 (AP 470), que é o nome for-mal do mensalão no STF, apresentaram embargos declaratórios. E, no dia 14 do mês passado, o tribunal começou a julgá-los. As esperanças dos réus quanto a alguma mudança importante nas sen-tenças pareciam, no entanto, dissipadas após duas semanas de apreciação dos recursos. Uma das grandes expectativas dos advogados de defesa era quanto aos votos do novo ministro, Luís Roberto Barroso, de posições liberais. Barroso, no entanto, embora em diversas vezes tivesse sugerido ou mesmo dito expressamente que, se tivesse votado na ocasião, não aprovaria as penas propostas – a seu ver, muito altas –, sistematicamente acom-panhou o presidente Barbosa, negando os embargos, sob o argumento de que eles não são a oportunidade para revisão das penas, mas, sim, têm o objetivo de tornar o acórdão coerente com o que já foi decidido.

Ainda no segundo dia de votações, Barbosa teve um ataque de exasperação e atropelou um voto do ministro Ricar-do Lewandowski, com quem já tivera sucessivos entreveros anteriormente. Foi quando Lewandowski anunciou que iria rever o voto dado numa das condenações do ex-deputado federal Bispo Rodrigues, penalizado com seis anos e três meses de prisão. Lewandowski argumentou que a lei a ser aplicada no caso deveria ser

outra, mais branda do que a usada. Bar-bosa, evidentemente, perdeu o controle: acusou Lewandowski de fazer “chicana”, de tentar reexaminar provas e retardar o julgamento. Lewandowski exigiu que ele se retratasse imediatamente. Barbosa se recusou. Mas percebeu que a maioria da corte condenava seu destempero e, após áspera troca de palavras com seu desafeto, encerrou a sessão. Quando foi restabelecida, na semana seguinte, a 22 de agosto, Barbosa continuou irredutível em sua decisão de não se desculpar. Mas Lewandowski pôde declarar seu voto a favor da redução da pena do ex-deputado. E foi saudado por outros ministros, como Marco Aurélio Mello, que chegou a insinuar que, nas posições de Barbosa, no caso, havia até mesmo “hipocrisia”. Mas, no essencial, quanto ao julgamento dos embargos, tudo continuou como antes na suprema corte: o embargo do deputado Bispo Rodrigues não foi aceito, como todos os outros.

Na segunda semana de julgamento, o momento de destaque foi, de novo, a agressividade das posições do presidente do STF, desta vez na análise dos 11 em-bargos declaratórios apresentados pelo advogado Marcelo Leonardo na defesa de seu representado, Marcos Valério, conde-nado à maior de todas as penas aplicadas aos réus, 40 anos de prisão e multa de 2,7 milhões de reais. Leonardo apresentou

ao comandar o esforço de negar todos os embargos à sentença do mensalão,o presidente do stF se apoiou na tese do desvio de dinheiro público.

e acusou os que a desmentem de serem “penas de aluguel”

por Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira

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minuciosa defesa de redução das penas de Valério analisando os critérios usados pela corte. E o próprio Barbosa teve de admitir que os cálculos terão de ser refeitos. Mas contestou, em termos provocativos, a afirmação de Leonardo de que Valério não poderia ser condenado por peculato, pelo suposto desvio de 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil (BB), vindos do Fundo de Incentivo Visanet e destinados à promoção de vendas dos cartões de bandeira Visa do banco. Leonardo argumentou que os autos teriam farta documentação em contrário – que provam que os serviços de promoção e publicidade foram feitos – e isso não teria sido levado em conta no acórdão pu-blicado. Leonardo apontou, por exemplo, a omissão no exame e consideração dos documentos oriundos de auditoria interna do BB, juntados em cerca de 20 mil páginas dos autos, em 108 apensos, os de número 319 a 427 dos autos. “Essa omissão levou o Tribunal a erro, pois ali existe prova da prestação de serviços que torna impossível, materialmente, o suposto desvio das verbas transferidas”, escreveu Leonardo. O advo-gado de Valério citou ainda outro apenso, o 340, em que, na folha 5496, aparece a “Planilha de Controle do Fundo VISA-NET”. “A planilha ordena centenas de ordens de pagamento a redes de televisão, rádios, jornais, revistas, mídias alternativas e outros meios de comunicação, da ordem de mais de 105 milhões de reais”, escreveu

ele. Citou também o apenso 400, em que estariam centenas de comprovantes de pagamentos, com dinheiro do suposto desvio, aos mais importantes veículos de mídia do Brasil, dos anos de 2003 e 2004.

Ao apresentar e analisar os embargos de declaração de Leonardo em defesa de Valério, Barbosa descartou a maioria deles sumariamente. Admitiu a necessi-dade de algumas correções, no caso das

penas, como já citado, e se concentrou na questão do desvio de dinheiro do BB. Aí fez o que se pode chamar de um show de histrionismo e provocação, que vale a pena examinar em detalhe. A certa altura, depois de citar documentos e números que provariam o peculato e passando os olhos sobre papéis que pe-gava em sua mesa, Barbosa disse: “Esses números, devidamente documentados,

senhores ministros, me levam a pensar como é que certos...” Aí fez uma pausa. Vacilou por alguns segundos. Pareceu procurar algo no papel, preso diante de seus olhos – aparentemente, o roteiro de seu discurso. E, então, completou: “certos plumes... plumes à gages”, disse, com parte em francês, “que existem no Brasil têm a coragem de afirmar que não havia provas nos autos desta ação penal”. Nova pausa. Barbosa sorriu, com aparente satisfação. Olhou para os ministros que estavam à sua direi-ta, depois para os que estavam à sua esquerda E prosseguiu: “Só [que] essa transferência ilegal de quase 74 milhões de reais” – disse, arregalando os olhos, franzindo a testa e repetindo palavras que apenas enfatizavam o que já havia dito – “de maneira sorrateira, do BB, do dinheiro que pertencia ao Banco do Brasil, está documentada nos autos”. Estendeu os braços, alongando as mãos, e continuou: “por... por...”. Gaguejou, como se procurasse saber que palavras acrescentar depois do “por”. Até que achou as palavras: “perícias contábeis, tudo!”, disse, apertando os lábios, numa careta. Depois pareceu, de contente, beijar o ar duas vezes e então prosseguiu: “O acórdão foi exaustivo na análise de todo o acervo probatório”.

Para concluir, de repente, Barbosa sacudiu todo o corpo e pareceu ter

Plumes à gages,penas de aluguel, disseBarbosa, sem precisar a quem atacava

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Barbosa, ao analisar a defesa de Valério: só “certos plumes à gages têm a coragem de afirmar que não havia provas nos autos”

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pressa em anotar algo no papel que pa-recia ser o roteiro de sua fala e no qual leu a expressão plumes à gages. E terminou seu show lendo esse papel. “Essa vultosa quantia foi transferida para uma conta de livre movimentação da empresa DNA Propaganda, controlada pelos corréus e corruptores Marcos Valério, Cristiano Paz e Ramon Hollerbach, que emitiram notas frias para respaldar o recebimento do dinheiro, conforme os laudos peri-ciais que respaldaram o acórdão lavrado por esta corte.” A câmera da TV Justiça ajudou a dar o fecho de ouro ao espe-táculo: fez uma grande-angular sobre o tribunal enquanto a voz de Barbosa continuou ao fundo, como uma trilha sonora: “Tudo isso, somado, permitiu a ampla e unânime convicção confirmada por este plenário”. A câmera fechou em close novamente sobre Barbosa enquanto ele concluía – “no sentido de condenação do embargante pela prática dos delitos de corrupção e peculato em continuidade delitiva”.

Embora toda a pompa e circuns-tância das palavras do presidente do STF, e a despeito também de

sua acusação genérica de que são, na tra-dução em português, “penas de aluguel” os que divergem da sentença do tribunal, um número expressivo de pessoas e en-tidades, entre as quais se inclui Retrato do Brasil, está completamente convencido de que não existe o tal desvio de dinheiro do BB que é a viga mestra da tese do mensa-lão, “o mais atrevido e escandaloso” caso de corrupção da história do País, como disse o procurador-geral da República

Roberto Gurgel. No dia 14 de agosto, no escritório da Simonaggio Perícias, no bairro do Brooklin, em São Paulo, por exemplo, Hollerbach e Paz, os dois publicitários mineiros expressamente citados por Barbosa ao negar o embargo de Valério, apresentaram a alguns dos maiores órgãos da imprensa escrita do País “um parecer técnico de natureza fi-nanceira” sobre os pagamentos efetuados pela empresa DNA Propaganda Ltda. em nome do BB, com os recursos do Fundo de Incentivos Visanet. Hollerbach foi

condenado a 29 anos e 8 meses de prisão; Paz, a 25 anos e 6 meses.

Como se sabe, o argumento central para a condenação dos dois publicitários e de mais 23 dos 40 réus iniciais do mensalão é o de que três quadrilhas, ou seja, três organizações criminosas, tendo como chefe supremo José Dirceu, o ex--ministro da Casa Civil do governo de Luiz Inácio Lula da Silva no seu primeiro mandato, usaram o poder do governo federal, conquistado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na eleição de 2002,

A perícia daSimonaggio mostra o oposto do quefoi dito por Barbosa

para, por meio de um petista, Henrique Pizzolato, desviar 73,8 milhões de reais do BB e, através de outro petista, João Paulo Cunha, desviar mais 1,1 milhão da Câmara dos Deputados e, com o dinheiro acumulado, comprar parlamentares e desenvolver um projeto de perpetuar o PT no comando do País. É isso o que dizem, explicitamente, tanto Barbosa, o ministro relator do caso no STF, hoje presidente dessa corte de justiça, como o então procurador Gurgel, que encami-nhou, no pleno do tribunal, os pedidos de condenação dos réus no segundo semestre do ano passado.

A perícia encomendada por Holler-bach e Paz foi apresentada a jornalistas de O Estado de S. Paulo, Correio Braziliense, CartaCapital, Época, IstoÉ e Retrato do Brasil por Sílvio Simonaggio, diretor da empresa, que tem mais de três décadas de serviços de auditoria, feitos para uso em tribunais de justiça, como no caso, ou em juizados de arbitragem, quando se trata de contratos comerciais. No essencial, o resultado do trabalho de Simonaggio contradiz frontalmente o que dizem Barbosa e Gurgel. Ele foi feito ao longo de três meses, por quatro profissionais seniores em tempo integral, auxiliados por mais oito técnicos em tempo parcial, disse Simonaggio na apresentação aos jornalistas. A Simonaggio, disse ele, não trabalhou com a contabilidade da DNA, considerada falsa pelo STF. Examinou os extratos bancários fornecidos pelo BB de duas contas da DNA no banco – as de números 601.999-4 e 602.000-3, nas agências 3032-5, 3392-8 e 3608-0. Por uma das contas, a 602.000-3, a DNA recebeu os 73,8 milhões de recursos da Visanet e, pelas duas, os serviços de promoção e publicidade para o BB foram pagos.

A perícia cotejou os pagamentos – feitos através de cheques e transferências eletrônicas de dinheiro e registrados nos extratos bancários – com documentos de fornecedores e prestadores de serviços que atestassem os recebimentos, como faturas, notas fiscais, propostas de in-serção de publicidade, recibos e guias de pagamentos de impostos. Na entrevista à imprensa para a entrega da perícia, Hollerbach e Paz falaram das grandes dificuldades que tiveram para localizar a documentação original da DNA. Eles têm, junto com Valério, 50% das cotas da empresa Mas, por acordo de acionistas, visto que os três eram donos de outra

Hollerbach, Simonaggio e Paz: sem usar a contabilidade da DNA

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uM LeVaNTaMeNTO MINucIOSOOs reais que o grupo Globo recebeu... no meio de centenas de outros beneficiários

Se o dinheiro do fundo Visanet tivessse sido desviado do Banco do Brasil, o principal acusado pelo desvio deveria ser o grupo Globo de mídia. Ele inclui a TV Globo Ltda., a Globosat Programadora Ltda., a Rádio Globo de São Paulo Ltda., a Rádio Globo S.A., do Rio, e a Infoglobo Comunicações Ltda. No quadro acima, à esquerda, estão todos os pagamentos feitos para essas empresas com dinheiro do fundo, cerca de 5,5 milhões de reais. Esse total, entre os grupos que receberam dinheiro do fundo, é a maior fatia dos gastos com mídia, que, por sua vez, é a maior rubrica dos dispêndios. A coluna da direita ajuda a ver que o tal desvio só existiu na imaginação dos ministros do STF: ela lista parte dos gastos do fundo com publicidade e propaganda num dos seus muitos programas, no caso para o apoio à venda do cartão Visa Electron Pré-Datado. Cem empresas de mídia – TV, rádio, imprensa e internet – receberam recursos desse programa (para simplificar, a lista foi reproduzida apenas do número 46 ao 78). As setas vermelhas indicam as duas do grupo Globo na lista à esquerda que correspondem às duas na lista à direita. Os números não são os mesmos porque na lista à direita eles aparecem já com os descontos dados pelas agências, de cerca de 20% do total. Conclusão: embora a Globo tenha recebido uma boa parte dos recursos do fundo Visanet, muitas outras empresas, do Brasil inteiro, poderiam atestar que receberam também uma parte, ou seja, que não houve o tal desvio inventado para condenar os petistas e seus aliados

TV Globo Ltda 3.600.000,00

TV Globo Ltda 637.500,00

Globosat Programadora Ltda 1.122.807,21

Globosat Programadora Ltda 18.000,00

Rádio Globo S.A. 50.168,30

Rádio Globo São Paulo Ltda. 58.021,60

Rádio Globo São Paulo Ltda. 5.491,20

Rádio Globo São Paulo Ltda 24.864,40

Rádio Globo São Paulo Ltda 1.372,80

Rádio Globo S.A. 21.570,00

TV Globo Ltda 5.500,00

TV Globo Ltda 51.150,00

TV Globo Ltda 46.498,00

TV Globo Ltda 58.922,40

TV Globo Ltda 97.288,88

TV Globo Ltda 79.994,12

TV Globo Ltda 258.425,06

TV Globo Ltda 98.110,46

TV Globo Ltda 44.337,24

TV Globo Ltda 59.509,22

TV Globo Ltda 513.378,52

Correio Braziliense 14.960,40

Diário Grande ABC 10.258,56

O Estado de S. Paulo 73.515,00

Diário de Cuiabá 7.949,76

Rádio Atual 6.720,00

Rádio Nativa 14.976,00

Rádio 93 FM RJ 7.081,20

Rádio JB FM RJ 7.488,00

Rádio Globo AM, RJ 40.134,64

Rádio Tupi 21.403,20

Rádio Liberdade BH 6.021,12

Rádio Alvorada FM BH 1.935,36

Rádio BH FM 4.914,00

Rádio CBN FM Curitiba 3.436,16

Rádio CBN AM Cuiabá 898,56

Rádio Stereo Vale 1.751,04

Rádio Planalto Brasília 3.690,96

Rádio Antena Um 3.386,88

Rádio Laser 4.608,00

Rádio Cidade Campinas 5.376,00

Rádio Alpha SP 21.216,00

Diario do Nordeste 18.450,43

Rádio Globo AM 4.392,46

Rádio Ribeirão Preto AM 1.040,26

Rádio Band Vale 3.312,00

Rádio Independência FM 1.585,92

Rádio Iemanjá, Salvador 1.370,88

Rádio Recife Verdes Mares 2.352,00

Rádio 96 de Maceió 1.618,56

Rádio Difusora 14.784,00

Rádio Tupi FM 12.700,80

Rádio Globo AM 46.417,28

Rádio 93 Fortaleza 2.210,88

Rádio Verdes Mares 1.740,48

agência, a já citada SMP&B, não podiam participar de sua direção de publicidade. Além disso, a DNA, antes a maior em-presa de publicidade de Minas Gerais, é hoje um fantasma do que foi: pratica-mente deixou de existir após o escândalo provocado pela denúncia do mensalão pelo então deputado federal e presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson, em junho de 2005, e a busca e apreensão de documentos, pela Polícia Federal (PF), em sua sede, no mês seguinte. Ajudados pelos outros dois sócios da DNA que não são réus na AP 470, e a despeito da má vontade da PF, do BB e da Cielo, empresa herdeira da Visanet, em lhes fornecer a documen-tação que têm sobre o caso, disseram Hollerbach e Paz, conseguiram levantar boa parte dos documentos. No caso dos pagamentos feitos, eles correspondem a 63 milhões de reais, ou seja, 85,34% dos 73,8 milhões de reais que teriam sido supostamente desviados.

Os dois publicitários mostraram aos jornalistas a lista de todos os fornecedo-res e as petições que lhes encaminharam para que confirmassem os trabalhos realizados. Mostraram também o pedido que encaminharam à PF para recuperar os materiais apreendidos por ela na sede da DNA, com o objetivo de completar toda a documentação. E apresentaram ainda o pedido feito ao BB e à Visanet para terem acesso a todas as autorizações de gasto para uso dos recursos do fun-do – visto que têm as que são chamadas as notas técnicas “mães”, que liberaram quatro depósitos que somam os 73,8 milhões transferidos pela Visanet à con-ta da DNA, mas têm apenas 72,5% do valor total das chamadas notas técnicas “filhas”, que detalham esses gastos.

Do total de 63 milhões de reais de gastos comprovados, a perícia constatou que mais da metade, 32,1 milhões de re-ais, ou 54,6% do total, foi para a mídia de rádio e TV. Nesse bloco, disparadamente, o mais importante é o grupo Globo, em que estão a TV Globo Ltda., a Globosat Programadora Ltda., a Rádio Globo de São Paulo Ltda., a Rádio Globo S.A. e a Infoglobo Comunicações Ltda., com 5,5 milhões de reais recebidos, em 21 pagamentos. A seguir, no mesmo bloco de mídia, vêm o grupo Bandeirantes, com 1,7 milhão de reais, e, bem abaixo, os grupos menores: SBT, Record, Rede Vida e várias TVs regionais, com desta-que para a de São José do Rio Preto

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(SP), com a qual o BB patrocinou, com 640 mil reais de publicidade do fundo da Visanet, a festa do peão boiadeiro da cidade. A listagem da perícia mostra também pagamentos a inúmeros dos principais veículos de comunicação de todo o País, do Sul, Sudeste, Centro--Oeste e Nordeste, como os diários Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Correio Braziliense, Zero Hora, Estado de Minas e Diário de Pernambuco rádios como a Tupi, Atual, América, Antena 1, Gaúcha e Verdes Mares E mesmo empresas de internet, como a UOL – Universo Online Ltda., a Internet Group do Brasil Ltda. e a Yahoo! do Brasil Internet Ltda.

Os patrocínios culturais e espor-tivos, somados às promoções e eventos nos quais o BB fazia

propaganda de seus cartões com bandeira Visa, com 36,6% do total, são a segunda rubrica em termos de gastos com os pagamentos apresentados na perícia. As conhecidas campeãs de vôlei de praia Shelda e Adriana Behar, com suas em-presas, estão na lista, com cerca de quatro dezenas de recebimentos e um total próxi-mo de 1 milhão de reais. Lá estão também perto de 150 recibos de pagamentos por viagens feitas por meio da empresa de turismo do BB, a BBTur, pois, como se sabe, uma das grandes promoções dos cartões Visa do BB é o chamado Clube Ouro, que premia com viagens pelo País os que somam mais pontos em suas com-pras com esses cartões. Estão na listagem também os recibos de quatro pagamentos, no total de pouco mais de 1,2 milhão de reais, feitos ao longo de 2004 à Mag + Rede Cultural de Produção e Edição, que trouxe ao Brasil a fantástica exposição de arte da África, a partir das peças do Museu Etnográfico de Berlim, que teve a visitação recorde de mais de 1 milhão de pessoas, ao Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, onde foi apresentada. Consta da lista de pagamentos também uma dezena de empresas de promoção, com cartazes e filmes para apresentação dos cartões de bandeira Visa do BB em aeroportos, pontos de ônibus e outros lo-cais do chamado mobiliário urbano, como a Meta 29 Serviços de Marketing S/C Ltda., especialista em mídia aeroportuária, que recebeu perto de cem pagamentos de 3 reais a 40 mil reais cada um.

Constam também da lista contabili-zada pela Simonaggio de duas a três cen-tenas de pagamentos que vão de 5 reais a

cerca de 40 mil reais de subcomissões da DNA a outras agências de publicidade, como Lowe, D+, Grottera, Calia, Ogilvy, e que formam no total um bolo de 1,2 milhão de reais. Também estão todas as comissões da DNA, uma centena delas, discriminadas uma a uma, que somam, no total de documentos examinados na perícia, 2,9 milhões de reais. E constam, além disso, para cada uma o seu valor bruto e o desconto dado: no total de 3,9 milhões e de 1 milhão de reais respecti-vamente. E ainda está presente na lista cerca de meio milhar de comprovantes de recolhimentos de impostos sobre as notas fiscais emitidas, que, somados, chegam a 1,8 milhão de reais.

Quando se examinar o trabalho da Simonaggio e se relembrar o voto do ministro Gilmar Mendes na sessão do julgamento da AP 470, a 29 de agosto do ano passado, aos 47 minutos da sessão,

quando ele diz explicitamente, como o ministro Barbosa disse agora, um ano depois, que o dinheiro tirado do BB pela DNA a partir do fundo Visanet “não era para fazer serviço algum”, e mais, se sabe que essa foi a opinião unânime do STF, fica a pergunta: que julgamento foi esse? De onde os ministros tiraram a conclusão de que o dinheiro foi desviado e os serviços não existiram? A perícia da Simonaggio não é a primeira contestação de que houve o desvio de dinheiro do BB. O próprio banco fez duas enormes auditorias para saber se houve desvio e apontar os eventuais culpados: uma em 2005 e outra em 2007. Todas apontam problemas de controle dos gastos, devi-dos ao fato de as despesas serem feitas a mando do BB, mas os pagamentos, por acordo entre as partes – BB, Visanet e DNA – e com vistas a obter vantagens fiscais, serem feitos sem assinatura

Obra é um dos mais eloquentes libelos contra o mito da democracia americana

Relatório Final dos Trabalhos da CPMI “dos Correios” Volume I - Pág. 771

Segundo Marcos Valério e Delúbio Soares, a distribuição dos recursos aos partidos e parlamentares se deu conforme a tabela abaixo.

TABELA 1 – DISTRIBUIÇÃO DE RECURSOS AOS

PARTIDOS Partido Liberal - PL R$ 12.237.500 Deputado Valdemar Costa Neto 10.837.500 Deputado Bispo Rodrigues 400.000 Ex-deputado Anderson Adauto 1.000.000 Partido Progressista R$ 7.800.000 Deputado José Janene 4.100.000 Deputado Vadão Gomes 3.700.000 Partido Trabalhista Brasileiro - PTB

R$ 3.818.600

Ex-Deputado José Carlos Martinez 1.000.000 Emerson Palmieri 2.468.600 Deputado Romeu Queiroz 350.000 PMDB R$ 2.100.000 Ex-Deputado José Borba 2.100.000 Partido dos Trabalhadores R$ 29.735.126 Duda Mendonça 15.500.000 Deputado Paulo Rocha 920.000 Deputado João Magno 350.000 Deputado Josias Gomes 100.000 Deputado João Paulo Cunha 50.000 Deputado Professor Luizinho 20.000 PT Nacional 4.932.467 PT (RJ) – Manoel Severino 2.676.660 PT (RS) - Marcelino Pies 1.200.000 PT (DF) – Raimundo Ferreira da Silva Junior 370.000 PT (CE) - Deputado Estadual Guimarães 250.000 PT (DF) – Vilmar Lacerda 235.000 PT (SC) – Jose Adelar Nunes 50.000 Carlos Magno (MG) 774.000 Márcio Lacerda (SP) 457.000 Roberto Costa Pinho 450.000 Carlos Cortegoso – Carlão (Ponto Focal) (SP) 400.000 Mauro Santos – (PE) 300.000 Ideal Gráfica – João Ferreira dos Santos (DF) 260.000 Carlos – Goiânia (GO) 250.000 Paulão – PT (NE) 160.000 Armando Costa 30.000 Total Geral R$ 55.691.226 Total dos Demais Partidos R$ 25.956.100 Total do Partido dos Trabalhadores R$ 29.735.126

OBS: 1) A entrega dos recursos não foi para Márcio Lacerda e, sim, para Einhart Jacome da

Paz da New Trade, empresa de marketing, consoante documentos arquivados na CPMI. 2) Na CPMI consta a tramitação de inquérito investigando as operações de Marcelino

Pies, no Rio Grande do Sul. Por ser matéria estadual, não se examinou.

As tabelas acima mostram como o dinheiro do valerioduto, cerca de 55,7 milhões de reais, corresponde ao montante tomado emprestado pelas empresas ligadas a Marcos Valério e repassado ao PT, 55,3 milhões de reais. Nelas se vê também que a maior parte do dinheiro foi para o próprio PT, 29,7 milhões de reais. Dessa quantia, a fatia maior foi a de Duda Mendonça, marqueteiro da campanha de Lula em 2002. A terceira maior parte foi para o partido do vice de Lula, José Alencar, do PL, por acordo que está nos autos

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de contrato formal entre as empresas e com o controle dos pagamentos a cargo da Visanet. Mas, nenhuma das duas auditorias do BB aponta desvio de dinheiro e muito menos aponta esse ou aquele funcionário como responsá-vel. Mais ainda: em dezembro do ano passado, Retrato do Brasil publicou um documento da Visanet no qual se diz que todos os serviços correspondentes aos 73,8 milhões de reais repassados à DNA para a promoção da venda dos cartões de sua bandeira pelo BB tinham sido feitos e que a empresa tinha todos os comprovantes da realização dos ser-viços. Finalmente, deve-se registrar que até hoje não existe qualquer iniciativa dos supostos roubados – o BB e a Visanet – para recuperar os recursos desviados.

Para entender o mensalão é preciso reconstruir a sua história. Ele é um crime inventado para negar um crime anterior,

já existente. Voltemos ao que escreveu o ministro Barbosa ao encaminhar o julgamento da AP 470. Ele disse que os recursos públicos desviados do BB e da Câmara teriam sido “esquentados” para ter “a aparência de meros empréstimos bancários” obtidos pelo PT e pelas agências de propaganda de Valério, Paz e Hollerbach. Escreveu Barbosa nas suas alegações finais já citadas: “Os recursos públicos obtidos pelas agências DNA Propaganda e SMP&B, através dos con-tratos com a Câmara dos Deputados e o BB – recursos esses repassados às agên-cias dos réus de modo antecipado e/ou sem a correspondente prestação integral dos serviços – teriam sido ‘esquentados’ com recursos de empréstimos que o pro-curador-geral da República afirma serem fraudulentos (ideologicamente falsos). As-sim, o dinheiro público em tese utilizado no esquema criminoso teria a aparência

eMPRéSTIMOS RePaSSaDOS aO PT

Dinheiro tomado dos bancos Rural e BMG por empresas de publicidade ligadas a Marcos Valério e transferido para os

partidos pelo chamado “valerioduto”

Banco Tomador Renovações Valor bruto liberado

25/02/03 BMG SMP&B 1 R$ 12.000.000,00

26/05/03 Rural SMP&B 6 R$ 19.000.000,00

12/09/03 Rural 5 R$ 10.000.000,00

08/01/04 BMG 2 R$ 15.728.000,00

28/01/04 BMG SMP&B pago R$ (14.932.000,00)

28/01/04 BMG Tolent&Assoc 2 R$ 10.000.000,00

14/07/04 BMG SMP&B 1 R$ 3.516.000,00

Total R$ 55.312.000,00

Fonte: relatório final da CPMI dos Correios, pág. 502

As tabelas acima mostram como o dinheiro do valerioduto, cerca de 55,7 milhões de reais, corresponde ao montante tomado emprestado pelas empresas ligadas a Marcos Valério e repassado ao PT, 55,3 milhões de reais. Nelas se vê também que a maior parte do dinheiro foi para o próprio PT, 29,7 milhões de reais. Dessa quantia, a fatia maior foi a de Duda Mendonça, marqueteiro da campanha de Lula em 2002. A terceira maior parte foi para o partido do vice de Lula, José Alencar, do PL, por acordo que está nos autos

de meros empréstimos bancários obtidos pelo Partido dos Trabalhadores e pelas agências de propaganda junto a institui-ções financeiras”. Nesse documento, de novo, o ministro Barbosa diz, em fins de 2011, aquilo que diria o procurador Gur-gel em 12 de agosto do ano passado. No fundo, Barbosa e Gurgel adotaram a tese do desvio de dinheiro público – o pilar do que chamam “o mais atrevido e es-candaloso crime de corrupção da história política do País” – para negar outra tese: a de que uma distribuição clandestina de recursos, de cerca de 55,6 milhões de reais feita pelo PT, se baseava em empréstimos tomados nos bancos mineiros Rural e BMG pela SMP&B, uma das agências dos publicitários Valério, Paz e Hollerbach, e transferidos ao partido.

No começo do escândalo, no dia 15 de julho de 2005, uma força-tarefa comandada pelo

delegado da PF Luís Flávio Zampronha obteve, nos arquivos do Banco Rural em Belo Horizonte, a lista de pagamentos do que ficou conhecido depois como “valerioduto”. Essa lista mostrava um esquema de distribuição clandestina de 55,6 milhões de reais para políticos de vários partidos, que tinha sido operado por Delúbio Soares, tesoureiro nacional do Partido dos Trabalhadores, e Marcos Valério, diretor financeiro de empresas de publicidade mineiras. Na tabela da página ao lado se vê a lista oficial dessa distribuição obtida pela PF e transcrita no relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, a principal das três comissões de inquérito do Congresso Nacional que investigaram o mensalão. Reorganizada por partido, ela mostra que a maior parte do dinhei-ro – 29,7 milhões de reais – foi para o próprio PT, sendo metade desse dinheiro para Duda Mendonça, o marqueteiro da campanha de Lula à presidência em 2002. Obviamente, não era dinheiro para com-prar deputados: o PT não iria comprar a si mesmo. Vê-se ainda que quase um quarto do total foi para o Partido Liberal (PL), do então vice-presidente José Alencar, que formou a chapa com Lula em 2002. PL e PT fizeram, em 2002, um acordo para realizar uma campanha conjunta, forma-lizado com a presença de Lula e Alencar. Esse acordo está detalhado nos autos da própria AP 470.

Esse esquema foi esclarecido e con-fessado em depoimentos dados em

O VaLeRIODuTO, TRaDuzIDO POR PaRTIDOS

Quantias distribuídas pelo PT, somadas por legenda, em reais

PL (Partido Liberal) 12.237.500,00

PP (Partido Progressista) 7.800.000,00

PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) 3.818.600,00

PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) 2.100.000,00

PT (Partido dos Trabalhadores) 29.735.126,00

Duda Mendonça 15.500.000,00

Total 55.691.226,00

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dezenas de inquéritos da PF e nas três comissões parlamentares de inquérito do Congresso Nacional que também investigaram a história – por cerca de uma centena de pessoas ao longo de quase todo o segundo semestre de 2005. O PT tomara do Banco Rural e do BMG, indiretamente, através da SMP&B, em-préstimos que foram distribuídos pelo chamado valerioduto e somavam, apro-ximadamente, os 55,6 milhões de reais distribuídos, como se pode ver compa-rando as duas tabelas da página anterior. Esse esquema, confessado, repita-se, se constituía em clara violação das leis elei-torais e era passível de várias penalidades, Mas os diversos interessados em atacar o PT viram, ao que tudo indica, não só o crime existente, mas as circunstâncias que o cercavam. O sagaz Jefferson, por exemplo, que tinha recebido dinheiro do esquema, embora jurasse que a parte dele era caixa dois, dizia que a parte dos outros era de outro tipo, “mensalão”, e resolveram embarcar na construção da teoria desse outro crime, que, até o momento, é a teoria vitoriosa no STF.

Deve-se destacar no trabalho da Simonaggio ainda uma de-talhada investigação sobre a

questão das autorizações para o gasto do dinheiro do fundo Visanet pelo BB. Como se sabe, o primeiro procurador--geral da República que encaminhou a denúncia do mensalão ao STF, no final de março de 2006, Antonio Fernando de Souza, apontou os petistas Pizzolato e Luiz Gushiken, então ministro para Assuntos Estratégicos do governo Lula e encarregado da publicidade veiculada pelo governo, como os responsáveis pelo suposto desvio dos 73,8 milhões de reais. Posteriormente, Gushiken foi absolvido dessa acusação e não está na lista dos condenados do mensalão. Pizzolato, não. Ficou como o único responsável, embora o próprio procurador Souza soubesse, como mostra em sua denúncia, que poderiam existir outros implicados. Sobre esse assunto se falará-se mais adiante. Por enquanto, vale destacar o trabalho feito na perícia da Simonaggio sobre as pessoas do BB responsáveis pelas autorizações. Ele coletou todas as assinaturas de funcionários do banco que autorizaram os pagamentos de gastos através dos documentos periciados. São 767 autorizações. Elas são de dois tipos. Um é o das chamadas “notas técnicas

A “prova” dapropina aPizzolato, detão semfundamento,não foi usada

mães”, que são quatro: uma de 5 de maio de 2003, no valor de R$ 23.000.000,00; outra de 3 de novembro de 2003, no valor de R$ 6.454.331,43; mais uma, de 20 de janeiro de 2004, de R$ 35.000.000,00; e a última, de 11 de maio de 2005, no valor de R$ 9.097.024,73, cuja soma completa os exatos R$ 73.851.356,18 que teriam sido desviados – segundo a sentença atual da AP 470, por Pizzo-lato. Além dessas notas-mães, existem também as “notas-filhas”, que detalham cada um dos serviços, pagamento por pagamento, e das quais a Simonaggio recebeu e analisou 767. A perícia mostra inicialmente que a competência, dentro do estatuto do BB, para assinar as notas técnicas era não apenas da Diretoria de Marketing e Comunicação, ocupada por Pizzolato, mas também da Diretoria de Varejo, com outro diretor, que não tinha sido indicado pelo governo do PT. Mos-tra depois que todas as notas-mães são

assinadas por quatro diretores, das duas diretorias, e, não apenas por Pizzolato, o qual, aliás, não assina a nota de novembro de 2011 – ao que parece, por estar de férias. E mostra mais: 57 funcionários do BB têm suas assinaturas nas 767 notas, num total de 2.631 assinaturas. A lista de pessoas que mais assinaram notas tem, em primeiro lugar, uma que assinou 541 notas; em segundo, uma que assinou 386 notas; seguem-se seis pessoas que assina-ram, mais de cem notas cada uma. Nessa lista, Pizzolato está em 20º lugar, com 19 assinaturas. Como ele transformou-se no único responsável por um grande desvio de dinheiro público e, além do mais, um desvio não existente?

A teoria do mensalão, do desvio de dinheiro público pelo PT, que seria o par-tido mais corrompido da história do País, foi construída na CPMI dos Correios. Quando o presidente dessa comissão, o peemedebista do Paraná Osmar Ser-

raglio, foi erguido nos ombros de seus apoiadores para comemorar a aprovação, por 17 votos a 4, de seu relatório final, a fotografia dessa comemoração, publi-cada no site do extinto Partido da Frente Liberal (PFL), mostra os sorrisos e as palmas de seus parlamentares Antônio Carlos Magalhães Neto, César Borges e Demóstenes Torres, do bloco mais conservador do Congresso Nacional. O relatório da CPMI não foi aprovado nos plenários da Câmara e do Senado. A lista de parlamentares que o relatório de Serraglio incriminava e das pessoas em geral que indiciava – mais de cem – foi amplamente desidratada ao ser analisado nesses fóruns, menos reacionários. Mas, de fato, foi a conclusão que o PFL tirou do relatório o que prevaleceu na grande mídia, ainda mais conservadora e que, além do mais, é a que domina o processo de formação da opinião pública. Diz o texto publicado no site do PFL como legenda da foto com o herói Serraglio sendo carregado: “[O relatório aprovado na comissão é] o que todo o País com-provou em 11 meses de depoimentos e investigações: o PT, braço político eleitoral do governo, comprou, com dinheiro público, a adesão de deputados para formar a tristemente famosa base governista”.

O Congresso, no entanto, nos jul-gamentos políticos que fez, como que lavou as mãos, em duas sentenças evi-dentemente contraditórias: cassou tanto Dirceu, que seria o chefe da quadrilha na denúncia logo depois apresentada ao STF pela Procuradoria-Geral da Repú-blica, e cassou também Jefferson, sob o argumento de que ele não tinha provado a existência do mensalão e, logicamente, nem a quadrilha que ele teria chefiado para comprar deputados.

A tese das três quadrilhas, sendo a de Dirceu a principal, estava presente no relatório de Serraglio. Não foi aprovada pela maioria da Câmara nem do Senado, foi encampada pelo procurador Souza mas foi “provada” graças aos esforços e ao talento especial do ministro Barbosa e dos dois procuradores-gerais da Repúbli-ca que encaminharam o caso no STF por oito anos, de meados de 2005 a meados de 2013: Souza, primeiro, e Gurgel, de-pois. Graças à esperteza desse trio, dois petistas de fichas completamente limpas até então, Cunha e Pizzolato, tornaram-se corruptos e peculatários diante da Justiça, que talvez seja o poder mais corrompido

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POR que aPeNaS PIzzOLaTO?

Henrique Pizzolato, diretor de Marketing e Comunicação do Banco do Brasil, do início de 2003 a julho de 2005, quando o chamado mensalão foi denun-ciado, foi condenado a 13 anos de prisão, basicamente por que assinou três das quatro notas que autorizaram a transferência de 73,8 milhões de reais do fundo da Visanet para uso, pela DNA, em serviços de promoção da venda dos cartões de bandeira Visa pelo BB. Como conta nossa história, um exame, da Simonaggio Perícias, examinou 767 dessas notas, número que inclui, além das quatro citadas, todas as que detalham o uso e a comprovação da veracidade desses gastos. Cinquenta e sete pessoas assinaram as notas. Nenhuma nota é assinada por apenas uma pessoa. São 2.631 assinaturas. Pizzolato assinou apenas 19 notas — é o vigésimo colocado na lista por número de notas assina-das. Um inquérito para investigar especificamente quem poderia ter ajudado Pizzolato no suposto desvio de dinheiro público foi aberto, não andou e está parado há sete anos. O ministro Barbosa esconde até o nome desse inquérito. Por quê? Por que não se quis e nem se quer investigar que o desvio não existe. (Raimundo Rodrigues Pereira)

Signatário Nº de vezes que assinou

1 Rogerio de Oliveira 541

2 Claudio Vasconcelos 386

3 Roberto Messias 279

4 Rosemere Souza 229

5 Carlos Alberto Netto 177

6 Maria Luzineide Soares 143

7 Carlos de Vasconcelos 130

8 Regina Cruz 111

9 Carlos Reis Figueiredo 85

10 Giselle Frattini Vieira 61

11 José Augusto Gonçalves 49

12 Paulo de Tarso Pereira 49

13 Fabrício Costa 46

14 Anderson Maciel 39

15 Francícero de Araujo 38

16 Luciano de Fries 35

17 Roberta Sampaio 26

18 Cláudio de Oliveira 25

19 Poliana Cunha 21

20 Henrique Pizzolato 19

21 Eimar da Silva 16

22 Manoel Araújo Medeiros 13

23 Simão Luiz Kowalski 12

24 Rafael de Freitas Peixoto 11

25 Marcos Carraca 10

26 Stela Araújo 9

27 Murilo Silva Martins 8

28 Cleuber de Rezende Costa 5

29 Jorge Veloso 5

Signatário Nº de vezes que assinou

30 Marcos Oswaldo Chaves 5

33 Isabella de Macedo Britto 4

32 Silvio Bizzo 4

33 Danon Lacerda 3

34 Marcelo Nonnenmracher 3

35 Max Lage 3

36 Stênio Araujo Correia 3

37 Tatiana Lima Rosa 3

38 Carlos Frederico Vieira 2

39 Fabíola Medeiros 2

40 Jenner Marinho 2

41 Lucas Rogeiro de Souza 2

42 Luiz Felipe de Oliveira 2

43 Alessandro Godinho 1

44 Ana Carolina Castro 1

45 Beatriz Nogueira 1

46 Carolina Maciel 1

47 Cláudio (falta sobrenome) 1

48 Cláudio Britto Filho 1

49 Cloves Nogueira 1

50 Francisco da Silva 1

51 Kadié Medeiros 1

52 Marco Silva 1

53 Marcos Mantoan 1

54 Marcos Osvaldo 1

55 Romeu Kreutz 1

56 Sônia do Vale 1

57 Walter Vasconcelos Jr 1

do País. Cunha tinha recebido 50 mil reais do valerioduto; Pizzolato, R$ 326.660,27. Cunha explicou detalhadamente o di-nheiro recebido, através de inúmeros depoimentos à PF e à Câmara: recebera dinheiro do partido e o gastara em pesquisa para campanhas eleitorais nos municípios da região onde tem grande

influência, na região de Osasco, a oeste de São Paulo. Exibiu até os formulários da pesquisa. Pizzolato disse que o dinheiro tinha sido enviado para o PT do Rio, o que é uma hipótese muito plausível quan-do se examina a tabela do valerioduto, já citada, que mostra o diretório do PT do Rio como o que, dentre os diretórios do

PT, mais recebeu dinheiro desse esque-ma. Nenhum dos dois escapou. O que prevaleceu, na mídia e no STF, foi a tese de que ambos tinham sido “comprados” por Valério para desviar dinheiro público para o esquema petista. Cunha foi con-denado a nove anos e quatro meses de reclusão e mais 370 mil reais de multa; Pizzolato, a 12 anos e sete meses de reclusão mais 1,316 milhão de reais de multa – ambos pelos crimes de corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro.

A conclusão de que houve desvio de dinheiro público como vimos anterior-mente é uma das mais grotescas do julga-mento do mensalão. Embora esse desvio fosse o pilar da história construída, fosse a prova essencial a ser feita – primeiro é preciso provar a materialidade do crime, é o que se recomenda na Justiça desde que os processos deixaram as trevas medievais –, em nenhum momento do inquérito e do processo do mensalão a acusação tentou prová-lo. A prova de que Pizzolato teria recebido dinheiro de suborno para comprar o apartamento onde mora, levantada pela imprensa, não resiste à menor análise. A Receita Federal fez uma monumental devassa nas decla-rações de rendimentos, aplicações e bens obtidos por ele em 20 anos até meados de 2005. Foram encontrados, segundo a Receita, três erros em suas declarações: a principal se referia ao fato de ele ter contabilizado como sua dependente a madrasta, que o criou desde os nove anos. Total da dívida com o Fisco, somando-se multa, juros e correção monetária: 15 mil reais, pagos por Pizzolato no dia 29 de dezembro de 2011. Nas acusações contra Pizzolato, a prova da propina com a com-pra do apartamento, de tão desprovida de fundamento, não foi usada.

Cunha, para os padrões da maioria dos deputados brasileiros, é um pobretão. Quando um repórter de RB foi, de táxi, procurá-lo, no final do ano passado, o taxista ficou surpreso ao ver que ele mora até hoje num bairro operário. Sua casa, modesta, se vendida, mal serviria para pagar a multa que o STF, no momento, lhe atribuiu. Vejamos as provas apresen-tadas pelo ministro Barbosa ao condenar Cunha pelo suposto desvio de dinheiro da Câmara. Barbosa diz que o desvio está provado por três órgãos colegiados de auditoria: a Secretaria de Controle Interno (Secin) da Câmara, o Tribunal de Contas da União e o Instituto Nacional de Criminalística. Total de assinaturas nas 767 notas 2.631

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Primeiro: Barbosa diz que uma auditoria da Secin concluiu que hou-ve um desvio de dinheiro público no contrato da SMP&B com a Câmara. Isso é falso. Retrato do Brasil entrevistou várias pessoas e leu cuidadosamente as 1.929 páginas do inquérito da Câmara a respeito. O que existiu de fato? Foi feita uma auditoria preliminar do contrato, em julho de 2005, por Alexis Souza, um funcionário da Câmara indicado para dirigir a Secin pelo então presidente da casa, Severino Cavalcanti. Esse fun-cionário não chegou a ser empossado no cargo de diretor da Secin. Foi subs-tituído com a queda de Cavalcanti e a posterior eleição de Aldo Rebelo para presidente da Câmara. O relatório de Alexis Souza foi então sucessivamente aprofundado e reformulado por oito comissões de sindicância da Câmara. Ao final, em fevereiro de 2010, a conclusão foi a seguinte: não foi comprovado qualquer desvio de dinheiro público no contrato investigado.

Segundo: Barbosa diz que “a equipe de auditoria da Secretaria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União” comprovou a existência do des-vio. Isso também é falso. O que aconte-ceu de fato? Uma “turma de inspeção” de uma das secretarias de Controle Externo do TCU esteve na Câmara do dia 25 de julho a 3 de agosto de 2005 e utilizou os trabalhos já feitos por Alexis Souza. Esse relatório de inspeção foi reformulado pela secretaria do TCU que o recebeu, a 3ª Secretaria de Controle Ex-terno. E a partir daí a análise do contrato continuou tramitando no tribunal até 2008, quando foi publicado o acórdão do pleno do tribunal que considerou o contrato regular.

Terceiro: o ministro Barbosa diz que “os peritos do Instituto Nacional de Criminalística” da PF também foram unânimes em apontar o desvio. Essa é a mentira mais escandalosa de todas. Por que não foi aceito o relatório do dele-gado Zampronha, deve-se perguntar? Zampronha é o principal investigador do mensalão. Ele investigou o mensalão desde o início, ajudou na CPMI dos Correios, esteve em Belo Horizonte para pegar os documentos do valeriodu-to, supervisionou as buscas na Visanet de fevereiro de 2007 a fevereiro de 2011, fez as investigações finais nas contas de Valério. Suas conclusões – de que o crime de formação de quadrilha era

“piada” e de que os empréstimos do PT eram verdadeiros e, portanto, o desvio de dinheiro público não existiu – batiam de frente com as dos procuradores Sou-za e Gurgel e do ministro Barbosa. Por isso, Zampronha foi punido.

A leitura dos embargos de decla-ração apresentados por diversos réus mostra que seus advogados

perceberam as grandes contradições e incongruências do julgamento, embora, como o objetivo de cada um deles com esses recursos, limitados por sua própria definição, fosse conseguir algum bene-fício para seu cliente, eles não tivessem procurado contestar o julgamento em si. O ex-ministro da Justiça do governo Lula Marcio Thomaz Bastos, defensor do diretor do Banco Rural José Rober-to Salgado, teve seus embargos todos negados, menos o que pedia a grafia correta do nome de seu cliente. Mas,

com um argumento preciso, apontou o absurdo de o STF considerar que o julgamento tinha de ser unitário, em virtude de uma suposta imbricação inextricável dos fatos, e o relator Barbo-sa ter conseguido, apesar da dura opo-sição inicial do revisor Lewandowski aprovar a decisão de julgá-lo em fatias. “Se o Plenário desta Corte decidiu pela permanência dos autos como estavam, isto é, pela unicidade do processo, em razão do liame substancial existente en-tre os fatos narrados na denúncia, como admitir, então, a divisão do julgamento por ‘fatias?’”, escreveu Bastos.

Pacheco e os outros três defensores de Genoino – Sandra Gonçalves Pires, Marina Chaves Alves e Natasha do Lago – também apontaram a contradi-ção entre o fatiamento do julgamento e o caráter unitário do processo, o que impediria que ele fosse desmembrado. Acabaram argumentando, porém, que

o fatiamento deveria ter sido comple-mentado com o desmembramento do processo: “Rompido o caráter unitá-rio do julgamento, mesmo advertido da possibilidade da produção de um ‘acórdão capenga’ (fls. 52.250), o no-bre Relator asseverou que dinâmica diversa à fracionada significaria ‘aposta no caos’ (fls. 52.247) e ameaçou sobre ‘o risco de não ter o Relator até o final’ (fls. 52.428).” O argumento dos defensores de Genoino prossegue: “Distanciando-nos da discussão acerca da adesão precoce à lógica acusató-ria e a toda sorte de incongruências promovidas pelo fatiamento operado, importa destacar que, com a dinâmica, este Egrégio TRIBUNAL acabou por assumir a possibilidade lógica de fra-cionamento dos autos. O julgamento totalmente separado das imputações, sem qualquer entrelace entre os nú-cleos, mostra que o desmembramento, além de possível, revelar-se-ia, a bem da verdade, salutar. Bem por isso, a defesa aproveita a presente oportuni-dade para provocar este TRIBUNAL a resolver a contradição latente: se a ‘tes-situra imputada pela Procuradoria’ (fls. 51.741), ‘o intrincamento das relações’ (fls. 51.744), tornaria ‘extremamente difícil fazer-se essa separação’ (fls. 51.744) processual, a ponto de sonegar dos acusados direito constitucional ao duplo grau de jurisdição, por que foi possível a este Egrégio colegiado julgá-los de modo absolutamente apar-tado? A contradição salta aos olhos”. Evidentemente, Barbosa negou esse pedido e nem mesmo Lewandowski procurou relembrar sua forte oposição ao fatiamento. Quando o julgamento começou, ele disse que não obedeceria ao fatiamento. Houve, então, uma es-pécie de votação comandada pelo, na época, presidente da corte, Ayres Brit-to, concluída por maioria no sentido de que cada juiz votasse como quisesse, o que seria, no mínimo, curioso de ver. Mas, afinal, Lewandowski recuou.

Outro ponto lembrado por muitos dos advogados dos réus nos embargos declaratórios foi o fato de o ministro Luiz Fux, além de ter sido campeão na deleção de pronunciamentos que fez no plenário, ter extirpado totalmente a defesa candente que fez da necessidade de o tribunal, desprezando princípio secular do direito penal, reconhecido quase mundialmente, inverter o ônus

Os repórteres de RB, por precaução,estão com Toffoli. Com Fux, jamais... nem pensar

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da prova, jogando-o, no caso, sobre os acusados. Castellar Guimarães, ad-vogado de Paz, destacou a propósito, num dos embargos que apresentou, o protesto apresentado no tribunal pelo ministro Dias Toffoli, que fez questão de manter sua contestação a Fux no acórdão publicado, a despeito de Fux ter tentado destruir a confirmação do que disse. Diz Toffoli no acórdão: “Se-nhor Presidente, com a devida vênia do Ministro Fux, a acusação – pelo menos no nosso sistema constitucio-nal, desde 1988 – é que tem que fazer prova. Não vamos inverter isso, pois muita gente lutou para que tivéssemos essa garantia constitucional. A defesa não é obrigada a comprovar as suas versões. É a acusação que tem que comprovar e trazer provas sobre o seu libelo acusatório. Isso é das maiores garantias que a humanidade alcançou, e penso ser necessário que este Su-premo Tribunal Federal as resguarde [...]”. Antes e depois da intervenção de Toffoli, havia trechos de falas de

Fux. No acórdão elas não aparecem: figuram como canceladas.

Tanto o fatiamento como a inversão do ônus da prova e, ainda, a condenação apenas por indícios foram instrumentos essenciais para o ministro Barbosa aceitar as condenações pedidas pela Procuradoria para os réus do mensalão. Com a inversão do ônus da prova, a Procuradoria não precisou demonstrar, acima de qualquer dúvida razoável, como mandam a lei e a tradição, que Dirceu era chefe supremo de três quadrilhas e que Cunha e Pizzolato eram corruptos e peculatários.

Com a condenação apenas por indícios, transformou-se um problema de esperteza – que era o de não assinar contrato entre as partes para reduzir pagamentos de Imposto de Renda nas transações entre BB, DNA e Visanet – no fantasioso “mais atrevido e escanda-loso caso de desvio de dinheiro público e de corrupção da história do País”. E isso tudo, diga-se de passagem, com a ajuda da grande mídia conservadora, A qual, a bem da verdade, o ministro Barbosa não

colocou na categoria de plumes à gages. Com certeza, ele espera o auxílio dela para, apesar de todos os percalços, en-cerrar o julgamento do mensalão o mais rápido possível, sem a concessão dos outros embargos, os infringentes, que exigiriam um reexame completo dos 11 casos de réus que tiveram quatro ou cin-co votos contra sua condenação, como é o caso de Dirceu. Uma modesta opinião dos dois repórteres que escreveram este texto: a rigor, o julgamento deveria ser anulado, porque a materialidade do cri-me, o desvio de dinheiro público, não foi provada. Aliás, como o advogado de Valério mostra nos seus embargos e os publicitários Hollerbach e Paz detalham com a auditoria da Simonaggio, o contrá-rio é que foi provado: os 73,8 milhões de reais do BB foram gastos corretamente. Bem, mas isso é apenas a opinião de dois repórteres. Se o ministro Barbosa discorda e nos considera plumes à gages, precisa provar. A opinião do ministro Toffoli é essa. A do ministro Fux, a ver, se for o caso.

ST

F

Toffoli (à esq., com Fux): a acusação é que tem que “fazer prova”, diz a Constituição, algo pelo qual “muita gente lutou”

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2013, outubro

depois dos embargos infringentesse cai a “quadrilha”, não há como manter de pé a teoria que sustenta o mensalão, “o mais escandaloso e atrevido crime de corrupção política da história da República”

Não se Pode esquecer, como denunciado por dois procuradores-gerais da República, Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, como relatado pelo atual ministro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, e como aprovado, até agora, numa maratona de cinco dúzias de sessões, na corte suprema da Justiça brasileira, o mensalão é “o mais escandaloso e atrevido crime de corrupção da história política da República”. Ele não é, dizem os construtores dessa espécie de grife dos crimes políticos do País, um delito comum, um mero crime de “caixa dois”, uma distribuição clandestina de dinheiro para políticos a partir de empréstimos tomados pelo Partido dos Trabalhadores, como dito pelo ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em cujo governo essa história aconteceu.

Na narrativa dos procuradores Souza e Gurgel, do ministro-relator Barbosa e ain-

da de outros, como os ministros Luís Fux e Gilmar Mendes – que o qualificaram, respectivamente, como tendo dimensões “oceânicas” e como um marco da descida do País na ladeira abaixo da “escala das degradações” –, o mensalão é um crime sem par. Foi cometido por três quadrilhas: uma, com a alta cúpula do PT – o presi-dente, o tesoureiro e o secretário-geral do partido –; outra, de pessoas ligadas à atividade publicitária, entre as quais um cidadão chamado Marcos Valério, que seria uma espécie de “gênio do mal”; e a terceira, de banqueiros. Essa trinca de bandos criminosos teria praticamente assaltado o Banco do Brasil (BB), retirado de seus cofres cerca de 74 milhões de reais, “sabendo que não era para fazer serviço algum”, como disse o ministro Mendes, em espetacular performance numa das sessões do STF. Teria também desviado boa parte de um contrato com a Câmara

dos Deputados, para serviços no valor de 9 milhões de reais, dos quais teria sido realizado apenas 0,01%.

Pior ainda: o comandante-geral desses três pelotões de malfeitores seria o pró-prio chefe da Casa Civil da Presidência da República do governo Lula, José Dirceu. Segundo o ministro Barbosa, no acórdão do julgamento, o texto que resumiu as condenações e as penas dos 25 culpados por diversos crimes, Dirceu era a “posição de força no plano partidário, político e administrativo” do governo, “foi fundamental para a outorga de cobertura política aos integrantes da quadrilha”, ele “desempenhou papel proeminente na condução das atividades”, não de um, apenas, mas “de todos os réus”.

Retrato do Brasil tem insistido numa série de investigações iniciada no segundo semestre de 2011, e agora acrescida de um vídeo, que essa história não resiste

Celso de Mello: “Nunca presenciei um comportamento tão ostensivo dos meios de comunicação sociais buscando, na verdade, pressionar e virtualmente subjugar a consciência de um juiz”

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Na armação de suahistória, Barbosa teveduas grandes vitórias:uma em 2007 e outrano ano passado. Mas,hoje, algumas coisasmudaram. E, comose sabe, a mentiratem pernas curtas

a um exame minimamente objetivo (o vídeo está no YouTube, com narrativa do jornalista e escritor Fernando Mo-rais, autor de Olga e Os últimos soldados da guerra fria). O pilar da tese do mensalão é o desvio de dinheiro público. Mas RB afirma que não existe o desvio. Quanto ao desvio de dinheiro do BB, existem abundantes provas, no geral e de detalhe, de que todos os serviços de publicidade correspondentes aos 73,8 milhões de reais supostamente desviados do banco foram realizados. RB apresentou um documento da empresa que repassou os recursos ao BB – a Companhia Brasileira de Meios de Pagamento, cujo nome fantasia era Visanet e hoje é Cielo – enviado à Receita Federal, no qual ela lista, especificamente, uma a uma de 99 ações de publicidade feitas com o dinheiro e diz ter os recibos e comprovantes de que todas elas foram realizadas. Em mais de duas dezenas de milhares de páginas dos autos da própria Ação Penal 470 (AP 470) estão documentos de detalhe na comprovação dessas ações: um dos apensos mostra, por exemplo, até mesmo a contagem das vezes em que um anúncio de promoção da venda de cartões de bandeira Visa pelo BB foi veiculado no circuito de tevê de determinado aeroporto em determinado dia. Quanto ao desvio de dinheiro da Câ-mara que o ministro Barbosa diz, no seu voto de condenação do então presidente daquela casa legislativa, o petista João Paulo Cunha, ter sido comprovado por “três órgãos colegiados de auditoria” – a Secretaria de Controle Interno da Câmara, o Tribunal da Contas da União e o Ins-tituto Nacional de Criminalística –, RB provou que todas as três afirmações são, simplesmente, falsas.

No dia 18 do mês passado, por seis votos a cinco, com o desempate feito pelo decano da corte, o ministro Celso de Mello, o STF confirmou o direito, existente no seu regimento interno, de 12 dos réus apresentarem os chamados “embargos infringentes”, para um novo julgamento de crimes pelos quais foram condenados pela maioria dos juízes, mas com divergência, pela absolvição, de pelo menos quatro dos magistrados. Mello, ao longo de duas horas, leu e interpretou um voto corajoso. Ele queria votar já no dia 12, uma quinta-feira. Mas, numa manobra protelatória, os ministros Marco Aurélio de Mello e Gilmar Mendes esticaram a sessão com votos esparramados e de pou-ca substância e, finalmente, o presidente

Barbosa suspendeu o julgamento, con-vocando nova sessão para a quarta-feira seguinte, a despeito de Celso de Mello ter pedido para votar imediatamente.

A manobra visava pressionar o juiz, no final de semana, através dos grandes veículos da mídia, unanimemente contra o voto pelo direito aos embargos infrin-gentes. Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, do diário Folha de S.Paulo, Mello disse: “Eu imaginava que isso [a pressão da mídia para que ele votasse contra o pedido dos réus] pudesse ocorrer e não me senti pressionado. Mas foi insólito esse comportamento. Nada impede que você critique ou expresse o seu pensamento. O que não tem sentido é pressionar o juiz.” Ele disse ainda: “Eu honestamente, em 45 anos de atuação na área jurídica, como membro do Ministério Público e juiz do STF, nunca presenciei um com-portamento tão ostensivo dos meios de comunicação sociais buscando, na verda-de, pressionar e virtualmente subjugar a consciência de um juiz.”

No seu voto, Mello não apenas apro-vou o direito dos 12 réus a um novo julgamento, em função da divergência no veredito comprovada pela existência de quatro votos contrários, como tam-bém defendeu, explicitamente, que o Brasil tem compromisso assinado com a Organização dos Estados Americanos para garantir a todos – o que vale dizer, no caso, também para os outros 13 condenados com menor divergência de votos – o direito à chamada dupla juris-dição. Como se sabe, todos os réus foram julgados diretamente no STF, portanto, sem uma instância superior à qual apelar.

Eloisa Machado, professora de direito da Fundação Getulio Vargas, disse em entrevista ao diário O Estado de S.Paulo que a aprovação dos embargos infringentes para quem é julgado diretamente no STF é apenas um remendo, não garante o direito, que deveria ser amplo e universal, de recorrer de uma sentença dada apenas numa instância. Diz a professora: “O di-reito à revisão não pode ser dado apenas a um ou outro aspecto de um julgamento; precisa ser do caso como um todo, como aceito pelo Brasil ao assinar a Convenção Americana dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. É preciso incluir na revisão os fatos, a valoração das provas e as penas; e fazer isso por um tribunal diferente, de hierarquia superior”.

O argumento é importante pelo fato de que, muitos dos que se opunham aos embargos infringentes, agora que eles foram aprovados os consideram como elementos importantes para provar, ao final, que o julgamento terá sido justo. Não é verdade. A apresentação desses embargos pelos 12 réus, especialmente pelos nove que foram condenados por formação de quadrilha, pode servir para provar a falsidade da teoria do mensalão. Se uma nova maioria na corte suprema decidir pela não existência do crime de quadrilha, como pode subsistir o grande crime do mensalão? A essência desse suposto crime decorre exatamente da unidade das três quadrilhas criminosas, do fato de Dirceu ser, como a acusação insistiu o tempo todo em dizer, o coman-dante supremo de todas elas, de ele estar na Casa Civil da presidência da República, com capacidade, portanto, de desviar dinheiro público para realizar os diversos crimes pelos quais todos os réus foram penalizados. Se a quadrilha de Dirceu não existe, como pode existir o mensalão?

O ministro Luís Fux foi escolhido por sorteio eletrônico para ser o revisor do caso nessa nova etapa, a ser realizada no final deste ano ou no começo do próximo. Segundo declarações que deu aos jornais, não se tratará de um “rejulgamento” do caso: “Os embargos infringentes são adstritos à matéria objeto da divergência”, afirma o ministro. Ou seja, julgar se houve ou não formação de quadrilha é um as-pecto isolado do caso, não tem a ver com as outras condenações do julgamento. Pelo menos Fux, o presidente Barbosa e os ministros Mendes e Marco Aurélio de Mello já deram também declarações aos

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jornais no sentido de que as penas para os outros 13 réus sem direito a embargos infringentes e mesmo as penas para os 12 com direito a eles, mas decretadas com menos de quatro votos de divergência, poderiam ser aplicadas logo que o STF publique o acórdão com as decisões sobre os embargos declaratórios, ainda neste mês de outubro, por exemplo.

Tome-se o caso de Dirceu. Ele foi con-denado a dez anos e dez meses de prisão, sendo sete anos e 11 meses por corrupção ativa e dois anos e 11 meses por formação de quadrilha. No entendimento de Barbosa, Mendes e Marco Aurélio e, tudo indica, também no de Fux, o STF, agora, com a publicação dos embargos declaratórios já julgados, poderia fatiar a sentença, no sentido de apressá-la. Dar todas as penas aplicadas pelo STF para as quais não cabem os embargos infringentes como “transitadas em julgado”, ou seja, de aplicação imediata. Então, voltando ao exemplo: Dirceu deveria ser preso imediatamente, restando apenas, como disse Marco Aurélio, a definição do regime de cumprimento da pena. No caso, como a pena do ex-chefe da Casa Civil de Lula cairia para sete anos e 11 meses, abaixo, portanto, do piso de oito anos acima do qual se exige a prisão em “regime fechado”, Dirceu, então começaria a cumprir sua pena já, embora, em regime semiaberto, com o dia livre para trabalhar fora, sendo confinado à prisão apenas à noite. Posteriormente, se

seus embargos infringentes contra a con-denação por formação de quadrilha não fossem aceitos, ele seria submetido, então, ao regime fechado.

Qual o motivo para tanta pressa? Quer-se esquartejar a sentença do mensa-lão, como já se esquartejou o julgamento? Essa parece ser a ideia. Barbosa já tinha esquartejado a história antes. Já a havia fatiado e reestruturado no primeiro ato do julgamento, em 2007, para conseguir a aceitação da denúncia do então procu-rador Souza pelo STF, quando o inquérito 2425 foi transformado na AP 470. Souza começava sua acusação, num texto mal escrito e confuso, pelo crime de formação de quadrilha e com um detalhamento das ações de Dirceu, já então apresentado como o todo-poderoso da história. O fatiamento da história, para vendê-la sob uma nova forma aos ministros “da banca-da” – no jargão do STF, os que decidem como votar a partir do voto do relator e do revisor – foi a grande armação de Barbosa. Como disse o semanário Veja, que desde então o transformou em herói, ele “subverteu” a ordem da argumentação do procurador. Em primeiro lugar apre-sentou duas historinhas de corrupção, de desvios de dinheiro público suposta-mente feitos por dois petistas, Henrique Pizzolato e João Paulo Cunha, quando dirigentes do Banco do Brasil e da Câmara dos Deputados.

Barbosa completou sua obra quan-do apresentou sua sentença, em agosto passado. Na denúncia foram apenas cinco dias, 30 horas de debates. Na sentença foram meses, cerca de 300 horas de julgamento, apresentado a todo o País pela TV Justiça, com ele no centro do palco. Na denúncia, ele apresentou as fatias num prato só, de uma sacada. Para a sentença, ele as apresentou por partes, para julgamento uma a uma. Houve protestos. O rela-tor, Ricardo Lewandowski, disse que a manobra era contra o regimento do tribunal. O ministro Marco Aurélio de Mello disse que, na condição de ministros da bancada, “que não so-mos nem revisores nem relatores [da AP 470] e temos inúmeros processos para relatar”, “precisamos ter uma visão abrangente”, principalmente por tratar-se de “um caso em que atos e fatos saltam aos olhos entrelaçados”.

Barbosa espera consumar sua obra agora, com o esquartejamento das pe-nas. Certas coisas mudaram, no entanto. Há dois juízes novos na composição do tribunal. O atual procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não parece apressado como Gurgel, seu antecessor, que já queria prender os réus no final do ano passado. Há certo tempo para se con-testar a armação feita. E, como se sabe, a mentira tem pernas curtas.

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Janot: o atual procurador-geral da República não parece tão apressado como seu antecessor, que queria prender os réus no final do ano passado

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quaNdo esta edição especial de Retrato do Brasil seguia para impressão, no início da segunda quinzena do mês passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) tinha resolvido não esperar o julgamento dos embargos infringentes, previsto para ocorrer em meados do ano que vem, no qual serão reexaminados al-guns dos crimes dos quais são acusados vários réus. Decidiu “fatiar” a aplicação da sentença, considerando, na linguagem forense, “transitadas em julgado” – ou seja, prontas para serem executadas – todas as “fatias” das penas a que foram condenados os réus nos casos em que não houvesse mais possibilidade de recurso. Com isso, foram presos, no dia 15 de novembro, vários deles, entre os quais José Dirceu, o mais famoso dos julgados. Dirceu foi preso por uma das duas fatias de sua condenação – a sete anos e 11 meses de prisão, referente ao crime de corrupção ativa, para a qual, segundo o STF, não há mais apelação – e aguardará o julgamento da outra fatia, na qual recebeu sentença conde-natória de dois anos e 11 meses pelo crime de formação de quadrilha, que, no entanto, será revista no ano que vem, no julgamento do respectivo embargo infringente aceito pelo STF.

Nossa opinião é a de que o fatia-mento das sentenças dos réus completa o tripé de arbitrariedades no qual o julgamento da Ação Penal 470 foi as-sentado. No início da ação, quando ela foi aceita pelo STF, em 2007, a Procu-radoria-Geral da República, por meio de Antonio Fernando de Souza, então seu titular, e o ministro Joaquim Bar-bosa, relator do caso, sustentaram que seu desmembramento seria impossível,

tendo-se em vista a imbricação dos cri-mes cometidos e o fato de os acusados formarem três quadrilhas intimamente relacionadas. Posteriormente, no acór-dão do julgamento, Barbosa confirmou a inextricabilidade do caso ao dizer que o chefão dos três bandos era um só, Dirceu, que teria desempenhado papel “proeminente” não junto a um bando apenas, mas a “todos os acusados”.

Qual o grande crime chefiado por Dirceu e para o qual ele comandou três quadrilhas: uma de seu partido, o PT, outra de publicitários e a terceira de ban-queiros? Segundo a acusação, a compra de deputados. Com que dinheiro foi feita essa compra? Não com os empréstimos fictícios, inventados pelos quadrilheiros banqueiros, diz a acusação, mas com 74 milhões de reais desviados do Banco do Brasil (BB) pelos quadrilheiros pu-blicitários.

Cabia então, indubitavelmente, à acusação apresentar a prova material do crime – que o desvio de dinheiro do BB existiu. E cabia ao pleno do STF cobrar essa prova, da existência do instrumento material indispensável à execução do crime. Nenhum dos dois procuradores-gerais da República que tocaram o caso – Souza, já citado, e Roberto Gurgel, a seguir – fez a prova. E, pasmem, nenhum dos juízes do STF a exigiu, embora se saiba que, desde a Idade Média, a primeira tarefa do Estado acusador, ao privar uma pessoa de sua liberdade, é provar a materialidade do crime.

Esse primeiro absurdo foi comple-tado por um segundo: não se começou o julgamento do crime unitário, com-posto de partes totalmente imbricadas,

examinando-se o crime considerado central pela acusação, o de formação de quadrilha, no qual estariam os ner-vos da ligação viva entre suas diversas partes. O crime foi esquartejado, foram extirpadas as ligações entre suas partes e o julgamento começou pela fatia do desvio de dinheiro público, não pelos fatos básicos, da existência material do desvio, mas por indícios de que o desvio poderia ter existido. E isso foi feito, é claro, pelo fato de que o desvio de dinheiro do BB não existiu – como RB prova exaustivamente nesta edição especial.

O fatiamento das sentenças e as prisões já determinadas de vários réus – não só de Dirceu, mas também dos outros subchefes de quadrilhas: Kátia Rabelo, pelos banqueiros, e Marcos Valério, pelos publicitários – visam dar por concluída a história. Um mínimo de bom-senso, no entanto, mostra que isso é um absurdo. Pelo crime de formação de quadrilha, Dirceu foi condenado por 6 votos a 4. Tem direito a um novo jul-gamento porque, num julgamento para o qual não existe uma instância superior de apelação, a própria jurisprudência da corte considera quatro votos contra uma condenação um sinal de dúvida suficien-te entre os juízes para que o tribunal a julgue novamente. Ou seja, além de não existir o instrumento material do crime chamado mensalão, que é o desvio de dinheiro público, existe dúvida sobre a existência do elemento subjetivo central da peça acusatória: a formação de três quadrilhas comandadas pelo então chefe da Casa Civil do ex-presidente Luiz Iná-cio Lula da Silva para desviar dinheiro público e comprar deputados.

O TErCEirO absUrDOo stF, primeiro, não aceitou julgar os réus separadamente: alegou que seus crimes eram inextricáveis. depois, “fatiou” o julgamento. Por fim, esquartejou também a sentença

Posfácio

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