mensagens trocadas entre edmauro e um soldado da pm

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  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

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    REVELAES INDITAS SOBRE A

    GUERRILHA DO VALE DA RIBEIRA

    Mensagens trocadas entre o ex-

    guerrilheiro Edmauro Gopfert e um

    soldado PM da regio onde ocorreu a

    Guerrilha do Vale da Ribeira

    Durante dois meses no comeo de 1970, o Vale do

    Ribeira, interior paulista, foi cenrio de

    perseguies, emboscadas, fugas, tiroteios, prises,

    torturas e uma execuo at hoje presentes na

    memria dos moradores. Comandados pelo capitoCarlos Lamarca (1937-1971), os homens que

    arriscaram suas vidas naquela regio acreditavam

    que a revoluo comearia pelo campo.

    A troca de mensagens entre Edmauro Gopfert e um

    soldado da Polcia Militar que mora e trabalha na

    regio onde ocorreu a guerrilha, um importante

    documento sobre o perodo e desmonta as verses

    que so espalhadas por pessoas e grupos

    saudosistas da ditadura.

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    Edmauro foi preso no Vale da Ribeira em maio de

    1970 e em junho foi trocado, juntamente com

    outros 39 presos polticos, pelo embaixador alemono Brasil.

    O nome "Jlio" dado ao soldado da PM nas

    mensagens obviamente fictcio. Mas a conversa

    esclarecedora e acho que contribui com a verdade.

    Edmauro - Jlio, um dia a gente se v a no SulMaravilha. Eu estou na Chapada Diamantina e com

    filhinhas pequenas. Gostaria de saber as histrias

    que ainda contam por a sobre a gente. Estive no

    Vale do Ribeira faz uns 15 anos e ouvi histrias to

    fantsticas, que at resolvi que iria escrever umlivro que seguiria o curso da histria real, que ns

    vivemos. Mas o relato viajaria pelas histrias que as

    pessoas da regio "inventaram", como um mito

    muito mais interessante que a histria real. Depois,

    o Marcelo Paiva escreveu o "No vers pas

    nenhum" e eu desanimei. Abrao e obrigado pelos

    elogios, nem to merecidos. Bom dia!

    Jlio - Bom dia! O senhor no imagina o quanto

    estou feliz em receber essa mensagem

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    H pouco tempo morava aqui na cidade o senhor

    Jos de Araujo Nbrega ou mudando para outra

    cidade tive o prazer de conhecer Darcy Rodrigues.Estiveram no bairro da capelinha, onde em 1970 os

    senhores se alojaram, eu cresci ouvindo a histria

    de Lamarca e seus companheiros essa histria

    povoa a imaginao do povo dessa Regio incrvel

    muitos acreditam que o Lamarca ainda esta vivo.

    Hoje sou um Policial Militar e trabalho na regio.

    Onde os senhores estiveram, ainda so localizadas

    bombas e outros artefatos da poca. Pra mim um

    orgulho muito grande e uma felicidade saber que

    ainda vivo no mesmo tempo que os senhores fica

    aqui minha eterna admirao por vocs. Muito

    obrigado hoje e sempre.

    Edmauro - Obrigado pelos elogios, tirando o

    senhor, que est no Cu. Existem muitas histrias

    interessantes, nem tanto da guerrilha que sucedeu

    ao ataque ao nosso campo de treinamento, que um

    dia eu te conto. Mas o que eu acho que s eu e o

    Nbrega vivemos, e que pode sim te interessar, foi

    o que realmente aconteceu nos combates que

    travamos com a patrulha que guarnecia a cidade de

    Eldorado, onde fui ferido na cabea, e,

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    principalmente, com o peloto da ROTA (recm-

    criada, justamente para nos combater). Se voc

    tiver o que fazer com o relato. Acho muitoimportante que seus colegas de farda saibam a

    verdade disso tudo, bem factual, sem puxar a brasa

    para a sardinha de nenhum interesse ideolgico.

    Jlio - A duvida entre ns militares se refere ao

    encontro em que o nosso oficial ento hoje Patronoda Policia Militar, Tenente Alberto Mendes Junior

    que por sua vez recebe o nome do Batalho aqui da

    cidade de Registro teria se omitido durante o

    confronto entre Sete Barras e cidade de Eldorado,

    tendo um sargento tomado a frente de comando e

    o oficial aps perceber que no haveria mais perigo

    se apresentou. Hoje esse oficial carrega

    infelizmente uma posio de omisso mesmo pelo

    fato de perder a prpria vida. O sargento Lino

    visto com bons olhos pela tropa, j o oficial carrega

    a sina de ter se acovardado. Seria isso mesmo?

    Edmauro - No foi bem assim. J vi que bom

    mesmo te escrever e contar como foi. S pra

    adiantar: Na verdade, todos fomos vtimas de uma

    situao que nenhum dos que participaram do

    combate escolheu. No houve nem covardes, nem

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    heris, no peloto da ROTA. Como voc sabe, eu

    no estava mais com o grupo guerrilheiro que

    executou o Tenente Mendes. Mas conversei muitocom ele, e conheo bastante bem as condies em

    que todos se encontravam no momento desse

    desfecho trgico e indesejvel. O que vou te

    escrever no procura justificar nada. Mas, com

    certeza, explica muito bem a situao.

    Fao a voc esse relato, que escrevi hoje de uma

    sentada, conforme lhe prometi, porque acho que os

    soldados da PM de hoje, tm a obrigao de saber

    como e para que foram usados e militarizados pela

    ditadura. Hoje, o comportamento dessa tropa, com

    as mais honrosas excees, o de uma fora de

    ocupao, como se em pas estrangeiro estivesse.

    Uma pena que assim seja. Uma lstima que tarde

    tanto a mudar.

    A vai. Nada daqui confidencial, mas peo-lhe que

    no publique, ainda que o autorize a usar qualquer

    informao aqui contida e mencionar meu

    testemunho, se achar isso realmente necessrio.

    No dia 22 de abril de 1970, os helicpteros UH-1

    Iroquois (os mesmos que atuaram no Vietn,

    aqueles do filme Apocalipse Now) de um pelotar

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    (Peloto Aerotransportado), protegidos por caas

    T6, passaram a sobrevoar a rea de treinamento da

    VPR nas montanhas prximas ao Vale do Ribeira.Decidimos abandonar a rea, depois de ter

    dispensado mais da metade do nosso contingente.

    Ficaramos apenas Lamarca, Darcy, Nbrega,

    Fujimori e eu, para esconder o armamento e demais

    pertences que julgvamos importantes. Como parte

    do pessoal no pde mais sair em segurana,

    juntaram-se a ns mais cinco companheiros que

    deveriam ter abandonado a rea pela rodovia BR-

    116, como se fossem civis esperando um nibus e

    com documentos em ordem. Darcy e Jos Lavechia

    perderam-se do grupo principal e foram presos diasdepois. Os sete que compuseram o grupo que

    tentou abandonar a rea pela mata caminharam em

    direo ao norte (12 norte verdadeiro) at o dia 8

    de maio, quando estavam prximos ao povoado de

    Barra do Areado. Decidimos por descer damontanha e fazer-nos passar por caadores

    perdidos, j que nos pareceu que a represso havia

    desmobilizado a grande quantidade de efetivos e

    armamentos com que invadiu o Vale. Ao chegarmos

    ao povoado, vimos sair um homem a cavalo e a

    galope. Suspeitamos do risco, mas continuamos o

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    plano pois no queramos exercer qualquer presso

    ou violncia contra os moradores. Alm de

    tentarmos fazer-nos passar por caadores perdidosna mata. Fomos muito bem tratados e

    correspondemos hospitalidade, pagamos pelo que

    consumimos, deixamos muitos presentes,

    cobertores, faces e algum equipamento que, para

    no ter que dar explicaes, prometemos voltar

    para buscar. Era um povoado muito pobre e os

    presentes foram bem recebidos.

    Fretamos ento um caminho do dono do armazm

    local, que j estava por transportar uma carga de

    arroz at a cidade de Eldorado Paulista. L, segundo

    o dono do armazm, conseguiramos uma Rural

    Willis que nos conduziria, por uma estrada

    secundria, at So Paulo. No era um bom plano.

    Mas foi o que seguimos.

    Ao passar pelo centro do povoado de Barra do

    Brao, percebemos que no havia qualquer

    mobilizao da represso. As atitudes eram bem

    normais. Ns viajvamos na carroceria, entre os

    sacos de arroz.

    J noitinha, ao chegarmos a Eldorado, fomos

    surpreendidos por uma patrulha numerosa da Fora

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    Pblica (acho que j se chamava PM, mas era assim

    que ainda era conhecida) que nos ordenou descer

    da carroceria para revistar o caminho. Em menosde dois minutos travou-se um intenso tiroteio, onde

    s usamos armas civis (j que os FALs e uma

    submetralhadora INA estavam desmontados e

    envoltos em pacotes). Fui ferido na cabea, um

    pouco mais que de raspo e comecei a sangrar

    bastante, mas com conscincia e podendo

    continuar sem maiores problemas. Deixamos alguns

    feridos junto ao caminho, afastamo-nos uns 50

    metros e passamos a montar os dois FALs e a INA.

    Dois companheiros retornaram ao caminho (todo

    o local tinha sido abandonado pelos soldados, quecorreram aps o tiroteio, deixando l os feridos) e

    continuamos com ele pela estradinha que seguia

    at Sete Barras. Um Jipe parou na entrada da

    cidade e apreendemos a sua chave de ignio para

    que no fosse utilizado para perseguir-nos.Dissemos ao motorista que deixaramos a chave no

    meio da estrada, pouco depois da entrada de

    Eldorado, para que ele pudesse encontra-la. Assim

    o fizemos. Lembro-me uma conversa cordial onde

    ele interessou-se pelo meu ferimento e desejou boa

    sorte.

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    No caminho paramos numa venda, margem

    direita, para comprar algum alimento. Eu fiquei na

    cabine enquanto os demais companheiros foramat a tal venda. Pagaram o que compraram, me

    trouxeram uma garrafa de guaran.

    Depois de rodar por uma hora, aproximadamente,

    por aquela estrada, muito prejudicada pela chuva

    incessante, divisamos dois pares de faris quevinham em sentido contrrio ao nosso. Ariston

    dirigia o caminho, eu estava no meio e Lamarca no

    lado direito. Os demais, quatro companheiros,

    estavam na carroceria onde construram uma

    trincheira com alguns sacos de arroz.

    Lamarca indicou a Ariston que no fechasse os

    veculos que se aproximavam, mas que no lhes

    desse espao para passar, suficiente para que

    pudssemos descer e toma-los, trocando pelo

    nosso.

    Quando estvamos a cerca de dez metros do

    primeiro par de faris, Nbrega gritou bem alto que

    eram veculos da represso e, ato seguido, atirou,

    com uma espingarda calibre.12, carregada com

    chumbo fino de caa, no para-brisa do primeiro

    veculo. Instantaneamente nosso para-brisa foi

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    perfurado por uma rajada de metralhadora, que por

    sinal no atingiu nenhum de ns trs.

    Os companheiros saltaram da carroceria eadentraram o mato da margem esquerda,

    protegendo-se e atirando contra as viaturas.

    Lamarca desceu do caminho pela porta direita,

    postou-se a poucos metros de distncia dos

    veculos da represso e disparou o FAL em rajadacontra o caminho que transportava o grosso da

    tropa; a viatura da frente era uma C-14 que,

    suponho, transportava o comando. Fujimori

    protegeu-se atrs da roda dianteira direita do nosso

    caminho e disparou o FAL, tiro a tiro, contra os

    veculos. Eu, ferido, estava armado apenas s com

    um Taurus Cal. 38 que disparei contra os faris da

    C-14 que nos iluminavam.

    O forte tiroteio seguiu-se por apenas dois ou trs

    minutos. Num intervalo - parece que durante essa

    tenso extrema, as munies acabam todas ao

    mesmo tempo, Lamarca pede tropa que se renda.

    Eu comecei uma espcie de guerra psicolgica,

    gritando que eles no iriam render-se e pedia

    autorizao para atirar as granadas sob o caminho

    (ns no tnhamos granadas). Lamarca grita para

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    que eu espere porque eles vo se render. Uma voz,

    vinda dos que aparentemente estavam sob o

    caminho, grita: Ns estamos feridos, eu sousargento e no comando a tropa, pedindo que no

    atirssemos mais. Um grito vindo do mato, sempre

    esquerda da estrada, mandava que ele calasse a

    boca, bem ao estilo militar. Era a voz do Tenente

    Mendes. Nesse momento havia tal pnico no

    peloto da ROTA, que eles no reagiram mais. Eu e

    Fujimori entramos na C-14 onde, no banco

    dianteiro, encontrei uma grande lanterna. Ato

    seguido um sargento grande e corpulento passou

    por debaixo da cerca de arame farpado que ladeava

    o lado esquerdo da estrada, muito gil, e me pediuque iluminasse suas costas que estariam cheias de

    formigas. Atendi o sargento (ele havia sido

    atingido pelos chumbinhos da espingarda e tinha

    alguns furinhos na testa, sem gravidade). A partir

    da ficou o tempo todo ao meu lado (meu ferimentovoltou a sangrar e ele mesmo interessou-se e me

    deu conselhos).

    A tropa toda foi saindo do mato esquerda da

    estrada, com todo seu armamento (fuzis Mauser e

    metralhadoras INA, alm dos seus revlveres. 38). O

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    Ten. Mendes apareceu logo em seguida, vindo do

    mato, por trs do caminho militar, e passou a

    destratar os soldados que entregavam seuarmamento longo e mantinham seus revlveres.

    Dizia que aquilo ia dar um grande inqurito. Eu

    conversei com ele na traseira do caminho militar

    (onde estvamos depositando as armas longas) e

    lhe disse para preocupar-se com os feridos (coisa

    que parte de ns j estava fazendo). Havia feridos,

    aparentemente graves, atingidos por tiros de fuzil,

    que colocamos na traseira da C-14 depois de, com

    umas vassouras de mato, limp-la dos cacos de

    vidro.

    Soubemos ento de uma conversa que Lamarca

    havia mantido com o Ten. Mendes, ao lado do

    caminho, e que ele relata num texto que, meses

    depois enviou imprensa internacional e que eu li

    em Argel. Assim foi como eu ouvi l na estrada: ns

    cuidaramos dos feridos e os transportaramos atonde pudessem receber auxlio e transporte. No

    tiraramos os revlveres dos soldados (que

    continuaram com eles durante todo o tempo) e o

    tenente se comprometeria a no permitir que nos

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    emboscassem no trajeto at o ponto onde

    escolhssemos para deixar os feridos.

    Um soldado sem camisa, ferido no brao com umtiro, aparentemente de revlver, muito assustado e

    chorando, me pede para procurar a fotografia da

    noiva que estava em sua gandola. Outro soldado

    me explica afinal o que gandola e vai procurar a

    tal foto. O Digenes Sobrosa diz que perdeu nomato a munio de seu 38. Outro soldado abre o

    tambor e lhe d a sua munio, dizendo que depois

    vai declarar que atirou. Eu, fumante, peo um

    cigarro a outro soldado que tenta acender o seu,

    sentado sobre uma poa de combustvel do

    caminho militar. Tirei os que estavam ali e filei o

    cigarro. Outro soldado diz que ns estvamos bem

    porque nosso comandante estava junto conosco,

    enquanto o deles estava no bem bom na cidade.

    Outro me diz: Ns vnhamos cantando no

    caminho. Ns no temos nada que ver com aguerra de vocs. Eu lhe digo que ns tambm

    vnhamos cantando no nosso caminho, at chegar

    a Eldorado.

    Houve uma certa pressa em sair dali e atender os

    feridos que no estavam nada bem. Lamarca nos diz

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    para segui-los com nosso caminho enquanto entra

    na C-14 dirigida pelo Ariston, acompanhado do

    Digenes e do Nbrega, alm do Tenente Mendes.Quando tentamos segui-los verificamos que o pneu

    direito de nosso caminho estava arriado, atingido

    por um tiro. A C-14 distanciou-se e ns ficamos na

    estrada, junto com o restante do peloto (incluindo

    o sargento das formigas). Conversamos muito com

    a tropa (toda armada de revlveres, pois as armas

    longas continuavam no caminho militar) at

    ouvimos a aproximao de um veculo que vinha do

    lado de Eldorado. Temendo ser da represso,

    improvisamos uma emboscada, acompanhados

    pelos soldados. Eu fiquei junto com o sargento. Elefoi o primeiro que viu que o caminho que se

    aproximava era civil e saiu na frente, ao encontro

    ao veculo. Fui logo atrs, subi na boleia e pedi ao

    dono que sasse, pois tinha havido um combate e

    ns precisvamos de seu caminho. O donoacompanhado de um jovem de uns vinte e poucos

    anos, seu filho relutou em sair. Acho que eu pedia

    com cordialidade demais. O sargento subiu tambm

    boleia e, de maus modos ao estilo da PM, disse a

    ele que descesse, que ali era a polcia. No vi mais o

    motorista.

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    Despedimo-nos dos soldados, um por um,

    desejando encontrar-nos em momento melhor,

    Ariston lhes dizia que deviam sair da Fora, essascoisas de jovenzinho de 18 anos. Eu tinha 19.

    Quando estvamos para partir no novo caminho a

    diesel, os companheiros que levaram os feridos

    estavam retornando a p. Disseram que a

    camionete C-14 atolara na estrada, junto de outrocaminho que encontraram tambm atolado no

    barro. L deixaram os feridos, junto com o Tenente

    Mendes, pois eles tinham medo de ficarem

    sozinhos na noite.

    Ao retornarem a p, vindo ao nosso encontro,notaram duas canoas na margem do Rio Ribeira,

    prximas estrada. Resolveram que seguiramos

    com o novo caminho at o ponto das canoas e,

    com elas, continuaramos abandonando a rea pelo

    rio.

    Dividimo-nos em dois grupos, um para cada canoa.

    A nossa tinha muita dificuldade em seguir o rio,

    muito cheio, numa noite em que no percebamos

    nem para que lado ele corresse. A outra canoa fazia

    muita gua. Tornamos a reencontrar-nos na

    margem. Foi quando, pelos rudos que no

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    pudemos evitar, ouvimos a voz do Tenente Mendes,

    vinda da estrada, gritando, pedindo-nos licena

    para passar. Como no pudemos evitar que nopercebesse nossa presena, voltamos estrada e

    reencontramos o tenente. Ele nos disse, e eu ouvi

    que os feridos tinham sido atendidos, uma viatura

    apareceu e os levou. Ordenaram que ele voltasse

    para reencontrar o restante da tropa. Dizia-nos que

    havamos fuzilado os soldados, muito nervoso.

    Parecia haver levado uma bronca do comando.

    Disse que queriam mandar uma viatura para nos

    combater, mas ele os dissuadiu pois no era preo

    para ns. O tenente Mendes no quis uma camisa

    civil que lhe oferecemos (parece que haviaensanguentado demais a sua, junto com os feridos,

    o fato que estava sem camisa) para no ser

    confundido conosco. Afirmou no haver nenhuma

    emboscada no caminho.

    Retomamos o tal caminho a diesel, colocamos otenente na cabine (eu fui l pra carroceria) e

    continuamos pela estrada, sempre no sentido de

    Sete Barras, at encontrarmos a C-14 atolada. Ali

    mesmo, atolamos tambm. A estrada ficou

    interditada pelos trs veculos.

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

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    Seguimos ento a p, numa longa coluna defensiva,

    um homem a mais de dez metros do outro,

    caminhando pela margem, noite adentro. Lamarca,Nbrega e o tenente iam frente. Eu, que no

    carregava sacola com vveres, era o ltimo da

    coluna e portava uma submetralhadora INA

    apreendida da Fora Pblica.

    Caminhamos por mais ou menos uma hora. Numponto do caminho, recebo a ordem de sair da

    estrada, pelo lado esquerdo, como se estivesse

    vindo algum veculo em sentido contrrio. Foi o que

    fiz at no vir nada anormal e comear a caminhar

    pela borda da estrada para ter contato com o

    companheiro que vinha na minha frente. Acho que

    caminhei demais, pois, ao cochichar perguntando se

    estavam ali, algum, cuja voz me pareceu ser a do

    Nbrega, me diz em voz baixa que me cale.

    Nisso comeo a ouvir vozes que no reconhecia, na

    estrada, muito prximas de ns. Aguardei ento

    qualquer outra ordem para retornar. Continuava a

    ouvir vozes, tudo muito estranho pois no sabia

    onde estvamos.

    O que ocorreu, como pude perceber depois, foi

    muito diferente do que imaginara. Estvamos quase

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    em cima de uma grande emboscada, formada por

    soldados do Exrcito, sob o comando do Coronel

    Erasmo Dias, guarnecendo a estrada no local deuma grande ponte que atravessava o Rio Ribeira.

    Vrios ninhos e metralhadoras .30, sacos de areias e

    muitas viaturas estacionadas. To grande que no

    conseguiam manter silncio e foram denunciados

    pelas vozes que os companheiros da frente

    ouviram. Assim, ao invs de parar, como eu supus,

    eles desbordaram a emboscada e seguiram em

    frente pelo mato. Eu continuava parado, esperando

    a ordem de voltar estrada.

    Nesse momento chega, com grande rudo, um

    caminho militar, vindo da direo de Eldorado, que

    para praticamente em cima de mim, escondido na

    parte baixa da margem esquerda da estrada. O

    caminho foi crivado de balas. Uma potncia de

    fogo imensa, que no podia ser nossa, atingia o

    caminho militar. Depois de uns dois minutos demuitos tiros, algum grita da emboscada para que

    se rendam, que ali estava o Exrcito. Os do

    caminho gritam que tambm so do Exrcito. Os

    da emboscada no acreditam, atiram mais sobre o

    caminho e pedem uma senha. Os do caminho

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

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    gritam que so do Stimo Regimento de Guardas e

    que transportam os soldados da Fora Pblica que

    havamos deixado no local do primeiro encontro.Seguem-se vozes de decepo, gente ferida, um

    certo caos.

    Ato seguido resolvem desmontar a tal emboscada,

    acendem os faris de todas as viaturas de forma a

    iluminarem bem a estrada e passam a parar ospoucos veculos que chegam, muito nervosos,

    causando pnico nos civis que aparecem no meio

    da noite. Eu estou a poucos metros da estrada, bem

    ao lado do caminho atingido pelos tiros, a cerca de

    vinte metros da emboscada mal feita.

    Essa situao durou a noite toda, sem que eu

    pudesse abandonar minha posio.

    Quando amanheceu o local ficou coalhado de

    tropas, vrios helicpteros. Vasculharam tudo o que

    puderam, mas no me encontraram ali, encostadoneles. Isso durou o dia todo, soldados conversando,

    sentados a menos de cinco metros de onde eu

    estava. At voltar a anoitecer.

    Quando acalma um pouco a situao, com o

    barulho que faziam ao interceptar qualquer veculo

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

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    que entrasse na rea, comeo a abandonar o local,

    tentando desbordar pelo mesmo lado que me

    pareceu ter sido a rota do resto do grupo. Encontreium grande pntano, que continuava por toda a

    extenso desse caminho, sem ter como atravess-

    lo. Resolvi, ento, voltar pela margem da estrada,

    na direo de Eldorado, at ver o que podia

    encontrar para tomar uma deciso de qual rota

    seguir. Caminhei bastante pela margem da estrada,

    caindo para o mato quando enxergava as luzes de

    algum veculo. Nada no caminho me pareceu

    razovel e, sem comer, com o sangue coagulado

    atraindo nuvens de mosquitos, encontrei uma

    casinha de campons, a menos de cem metros damargem. Havia um abrigo onde se encontravam

    dois carros: Uma Rural e um Gordini. A porta do

    Gordini estava aberta e, sem fazer rudo, resolvi

    passar a noite dentro dele, sem chuva e sem

    mosquitos.Pouco antes de amanhecer, escondi a INA sob a

    roda dianteira da Rural e, com o revolver sob a

    camisa, toquei a portinha da casa. Atendeu uma

    velhinha. Expliquei a ela que tinha batido com a

    cabea e que, com aquela confuso toda, tinha

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

    21/27

    atolado meu carro na estrada. Convidou-me a

    entrar e esperar o caf que tardava porque a lenha

    estava molhada. Entrei numa pequena sala onde,sob uma montanha de sacos de aniagem usados

    para cobrir alguma colheita, me ajeitei e esperei o

    tal caf. Um jovem saiu da cozinha e foi at a sala

    conversar comigo. Contei a ele alguma explicao

    de que no lembro e ele voltou a desaparecer no

    interior da casinha. Havia passado uns quinze

    minutos quando vejo um olho a espiar por um

    buraco da porta. Ato seguido, ela arrombada com

    um pontap e um sargento do exrcito, com uma

    carabina M2, dispara uma rajada sobre mim.

    Nenhum dos tiros me atingiu. O sargento pareciaestar com mais medo que eu, tremia, plido como

    cera, acompanhado de um grupo de soldados,

    todos muito assustados. Comeou a me pedir

    explicaes sobre o que fazia ali. Falei bastante e

    me pareceu que ia conseguir convenc-lo da minhahistorinha. Tinha uma carteira de trabalho falsa e

    cerca de pouco menos que um salrio mnimo em

    dinheiro no bolso de minha camisa. Foi primeira

    coisa que ele pegou. Disse que o dinheiro era da

    firma e que ele no mexesse.

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

    22/27

    Fazendo o que achava que devamos fazer em

    situaes como essa, tentei timidamente empunhar

    o 38 escondido minha frente, sob os panos dostais sacos. Estava enroscado (por sorte...) e o

    sargento notou algo em meus movimentos.

    Mandou que eu sasse dali e comeou a revirar os

    panos at dar com o revlver e eu levar a primeira

    porrada. A se seguiram muitas outras, pegou meu

    relgio e o dinheiro, amarrou minhas mo para trs

    e atirou-me para dentro da camionete que os

    trouxera at ali.

    O que se seguiu, meu encontro com o Cel. Erasmo

    Dias, o comportamento dos oficiais que me

    interrogaram ali na barreira da grande ponte, na

    cova de um cemitrio que existia ali numa colina

    junto ponte, a minha entrega para quatro

    homens, que se comportavam como um bando de

    bandidos e diziam ser do DOPS, as torturas dentro

    da C-14 dos tais bandidos, a recepo na cadeiapblica de Jacupiranga, onde um soldado da PM me

    recebeu correndo com um forte chute de coturno

    no joelho esquerdo, que tem uns grilos at hoje, e

    o resto das torturas ali, na Base Area do Galeo,

    para onde fui transportado diretamente de

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

    23/27

    Jacupiranga, no vale a pena contar aqui. muito

    comprido e sai da histria do Vale da Ribeira.

    Para terminar, o Nbrega caiu de um barrancoquando desbordavam a emboscada da ponte e

    perdeu-se do resto do grupo, vindo a ser preso

    quatro dias depois. Eu me perdi atrs, ele muito

    frente.

    O que, afinal, aconteceu com o Tenente Mendes?

    Como eu no sou mais testemunha dessa parte da

    histria vou contar, com os detalhes que conheo,

    toda a situao que envolveu os cinco

    companheiros que continuaram: Lamarca, Ariston,

    Fujimori, Digenes e o Gilberto Faria Lima.

    Quando a represso invadiu o Vale, no dia 22 de

    abril, dois companheiros (Darcy e Lavechia) me

    substituram no posto avanado de vanguarda.

    Como no retornavam e as comunicaes por rdio

    estavam cortadas, Digenes foi ao encontro deles.Ao voltar, disse ter ouvido os gritos dos dois.

    Acreditava que o pelotar havia deixado uma tropa

    de paraquedistas no caminho deles que,

    capturados, estavam sendo torturados. No

    tnhamos como confirmar informao alguma, mas

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

    24/27

    foi isso que ficou nas nossas cabeas durante toda a

    retirada.

    Quando os companheiros desbordaram aemboscada da ponte, ouviram o intenso tiroteio

    travado pelas duas tropas do Exrcito que se

    estranharam, justo onde eu me encontrava. Ao

    perderem a mim e o Nbrega, fcil perceber que,

    para eles, aqueles tiros todos foram dirigidos a ns.A partir da, o tenente Mendes passou a ser o

    principal suspeito de ter armado a tal emboscada

    ou, pelo menos sabido dela. A nossa perda, a

    provvel traio ao acordo firmado com o

    companheiro Lamarca e a impossibilidade decontinuar com ele terminaram com seu julgamento

    sumrio, em tempos de guerra, e na sua

    condenao ao fuzilamento. Para no denunciar sua

    posio, foi determinado que a execuo se desse

    com um golpe fatal na cabea, sem provocar

    sofrimento e sem que ele o esperasse. O resto dos

    detalhes s o Nbrega pode hoje contar, alm do

    conhecido relatrio do companheiro Lamarca

    imprensa internacional, sobre a campanha do Vale.

    Espero que aproveite a histria.

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

    25/27

    Jlio - Sem duvida o seu relato pra mim motivo

    de muito orgulho fica aqui os meus agradecimentose minha eterna admirao a todos vocs.

    Edmauro - Pois Jlio, a histria sempre meio

    mtica quando contada nos livros (pela imprensa

    ento, pior)... quando no mentirosa. Mas as

    pessoas tm que meter na cabea que guerra no um esporte, nem fbrica de heris. S se comea

    uma quando no h nenhuma outra sada. Todos os

    que participaram da luta armada, todos os que eu

    conheo, e so muitos, so pacifistas. Abrao.

    Jlio - boa tarde! durante um patrulhamento naarea rural do bairro Guarau local este que fica entre

    a cidade de Cajati chamou minha ateno uma

    chcara chamada Constantinopla

    Edmauro - No me lembro desse nome.

    Jlio - Ela possui um forte esquema de segurana ao

    procurar saber de quem descobri que pertence ao

    cunhado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,

    o qual passa finais de ano naquele local.

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

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    Eu - Cacilda! Os caras se criaram por a. A gente,

    meio sem querer, mudou muito a vida no Vale.

    Trouxe "desenvolvimento", os prefeitos falavamdiretamente com o Delfim Neto, inventaram novas

    escolas para crianas e, algumas terras, que

    ningum conhecia antes, podem ter sido produto

    de bons negcios...

    Jlio - bairro Guarau uma rea rural que ficaentre Jacupiranga e a cidade de Cajati

    Edmauro - Bem pertinho das nossas bases, do stio

    onde a Tia morava. Mas eu no conheo muito bem

    a regio.

    Jlio - ainda muito carente essa chcara sedestaca pela sua grandiosidade em local to carente

    Edmauro- Interessante uma investigao. Sei l no

    que pode dar... mas, quem sabe, em nome da

    Histria...

    Jlio - o cunhado do coronel dono da chcara

    senhor Constantino como conhecido ligou para o

    coronel Ustra no dia em que fui visitar a chcara e o

    mesmo disse que iria me presentear com o seu livro

    a Verdade Sufocada. Segundo ele muitos

    frequentam as festas ali e nunca imaginariam que

  • 8/11/2019 Mensagens Trocadas Entre Edmauro e Um Soldado Da PM

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    ali estaria o coronel Ustra mais a minha admirao

    pela audcia e coragem e amor a o nosso Brasil ao

    qual vocs um dia lutaram lEdmauro- muito obrigado.

    Jlio - Parabns e muitas felicidades