meninas de sinhá

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  • 5/24/2018 Meninas de Sinh

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    Thais Nogueira Gil

    MENINAS DE SINH:

    A REINVENO DA VIDA NAS

    TRAMAS DO DISCURSO MUSICAL

    Belo Horizonte, Minas Gerais2008

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    Dissertao apresentada ao Curso de Mestradoda Faculdade de Educao da UniversidadeFederal de Minas Gerais, como requisito

    parcial obteno do ttulo de Mestre emEducao.

    Orientador: Rogrio Cunha Campos.

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    Dedico este trabalho aRoberto Patrus, meu marido.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador Rogrio Cunha Campos que me ensinou a ter calma em uma

    produo acadmica. Eu queria comear a escrever a dissertao desde a primeira visitaa campo e ele dizia: calma! Voc acha que encontrou uma grande riqueza, mas aindavai encontrar ouro l. E foi realmente o que aconteceu. Graas ao Rogrio eu meenvolvi mais com a pesquisa e pude perceber a singularidade do grupo que,literalmente, me en-cantou.

    s Meninas de Sinh que transformaram no apenas suas vidas e a de seus familiares,mas alteraram tambm a minha concepo sobre pesquisa. Se no incio eu desejava umarealizar uma pesquisa no-participativa, hoje sei que ela seria impossvel. O grupotransmite uma energia que en-canta a todos.

    s entrevistadas pelos exemplos de vida que me enriqueceram: Clia, boa vontade edisponibilidade; Valdete, determinao; Ephignia, facilidade de adaptao; Mercs,

    bom humor e alegria; Romancina, coragem de enfrentar desafios; Rosria, energiacontagiante; Seninha, fora interna e disponibilidade; Isabel, vontade de ultrapassarseus prprios limites e a todas aquelas que sempre estiveram disponveis para meatender e me contar suas histrias.

    A Carlos Roberto Jamil Cury pelo acolhimento em um momento difcil, demonstrando agrande elevao de um ser realmente humano.

    A Roque , Gil Amncio, Gal du Valle, Calos Ferreira por se colocarem disposiopara as entrevistas e por contriburem com detalhes muitas vezes, emocionados. Setornaram grandes amigos!

    A Roberto Patrus Mundim Pena, meu marido pelo acolhimento em todos os momentose pela grande ajuda e compreenso.

    Giovana, ngela e Dbora, minhas filhas, que em vrios momentos tiveram deconviver com a me imersa em um trabalho (ora visitando o grupo, ora escrevendosobre ele, ora ao piano tocando e escrevendo as msicas e com um olhar fixo para a tela

    do computador). Alm de respeitar esses momentos, tambm se envolveram com asMeninas de Sinh. Cantam, adoram as msicas e tambm se vestiram de Meninas deSinh:

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    Ao Dr. Hildebrando, por me ajudar a manter a mente quieta, a espinha ereta e ocorao tranqilo.

    A Roberto Mundim Pena, meu sogro, pela disponibilidade de traduzir o resumo para oingls, dando grandes contribuies tambm para o portugus.

    A Lucas Oliveira Minelvino pela grande ajuda com as partituras.

    A Ceclia Cavalieri Frana, pela grande ajuda com a Teoria de Swanwick.

    A Lencio Soares, o responsvel por despertar em mim a idia de que a msica deveriaestar presente em meus estudos acadmicos. Assim como a msica de Milton

    Nascimento, ele foi um Rouxinol1que cantou para mim: Quando a msica ia e quaseeu fiquei/Rouxinol me ensinou que s no temer/Cantou, se hospedou em mim.Buscando outros caminhos Lencio me perguntou: e onde fica a msica que esteve

    presente em toda a sua vida? Assim, me apresentou trabalhos referentes ao tema e um

    horizonte mais significativo se abriu, a msica voltou a se hospedar em mim.

    A Rose e Raquel, secretrias da ps-graduao da Fae que ultrapassam em muito suasfunes burocrticas. Elas sabem o que quero dizer!

    Aos meus pais, autores da minha existncia.

    1Rouxinol uma msica que Milton Nascimento fez quando estava doente e queria abandonar a msica.O Coral Rouxinol, de crianas, convidou-o para uma apresentao e ele relutou em aceitar. No queriaparticipar. Estava doente e pensava em abandonar a msica, mas aceitou. Ficou no fundo do palco. Emum determinado momento, uma criana vira de costas para a platia e canta olhando nos olhos de MiltonNascimento que se emocionou profundamente. A partir da ele resolveu no abandonar a msica.Comps: Rouxinol tomou conta do meu viver/Chegou quando procurei/ Razo pra poder seguir/Quandoa msica ia e quase eu fiquei/Quando a vida chorava mais que eu gritei/Pssaro deu a volta ao mundo e

    brincava/Rouxinol me ensinou que s no temer/Cantou, se hospedou em mim/Todos os pssaros, anjosdentro de ns/Uma harmonia trazida dos rouxinis.

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    "O que me surpreende o fato de que, em

    nossa sociedade, a arte tenha se transformado

    em algo relacionado apenas a objetos e no a

    indivduos ou vida; que a arte seja algo

    especializado ou feito por especialistas que

    so artistas. Entretanto, no poderia a vida de

    todos se transformar numa obra de arte? Por

    que deveria uma lmpada ou uma casa ser um

    objeto de arte, e no a nossa vida?"

    (FOUCAULT, 1995, p.261)

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    RESUMO

    Este trabalho um estudo qualitativo sobre um grupo musical conhecido como Meninasde Sinh. formado por 34 mulheres negras, idosas, de classes populares, residentes noAlto Vera Cruz, uma comunidade na periferia de Belo Horizonte. O grupo se formou

    com o objetivo de reunir senhoras que usavam medicamentos antidepressivos parainterromperem a medicao. Encontraram na msica a alegria de viver. Seu repertrioinclui cantigas de roda, versos e canes prprias e de domnio pblico. Este trabalho

    procurou reconstituir a histria desse grupo considerando o discurso dos sujeitosenvolvidos neste processo. Para isso, foram realizadas observaes, entrevistas semi-estruturadas com 7 integrantes do grupo, dilogos com as demais, filmagens, gravaes,visitas s casas das entrevistadas, aos ensaios e shows, entrevistas com algumas pessoasque se relacionaram com o grupo. Assim, foi possvel entender a trama do discursomusical. Trama aqui entendida como o efeito de tranar uma rede de possibilidades,de construo de uma vida mais feliz por meio das trocas. As tramas deste discurso,com seus aspectos musicais e humanos, foram tecidas pelo grupo por meio da sua

    capacidade de significar e de costurar as contribuies daqueles que participam da suahistria. O desenvolvimento do grupo se tornou evidente sob diferentes aspectos:

    pessoal, pois suas integrantes j no se sentem deprimidas; musical, pois no inciocantava apenas canes de domnio pblico e, atualmente, inclui, composies prprias,tornando-se conhecido nacionalmente. Este trabalho finalizado propondo ao grupo odesafio de no deixar perder a linha de sua trama inicial: promover a alegria e a sadede suas integrantes por meio da msica.

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    ABSTRACT

    This work is a qualitative study about a collective subject that transformed its memberslife through music practice. It concerns to a musical group known as Meninas deSinh, composed of 34 afro-descendent elderly women living in Alto Vera Cruz, a

    poor community in Belo Horizonte, MG. The group was formed aiming to joining somewomen who usually needed anti-depressant drugs. Since then, they could suppress themedication, bringing joy to themselves, to their families and to the community. Thegroups repertory includes ring around songs, verses and self-made or public domainsongs. This work makes the reconstitution of the groups history, considering itssubjects speech. After a long time of observation, semi-structured interviews and talkswith 7 members of the group and of the community, films, recording, home visits,observation of shows and rehearsal, it became possible the understanding of the plot ofthe musical speech. In this context plot is assumed as the effect of making a net of

    possibilities, of building a happier life trough interchanges. In the research events wereconsidered both according to the group subjects musical speech as well as that of the

    people who met them. The plots of this speech with its musical and human aspects weremade by the group, according to its ability of giving a meaning and of joining thecontributions of those who share its history. The group development became evidentunder different aspects. Personally, the group members no more feel themselvesdepressed. In relation to the musical aspect an improvement is noticed: in the beginningthe group used to sing only songs of public domain and at present it has also his owncompositions, becoming known throughout the country. This work is concluded

    proposing to the group the challenge of not loosing the line of its initial plot: to promotethe joy and the health of its members, by means of the music.

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    FOLHA DE APROVAAO

    A aluna foi considerada ........................................... pela banca examinadora.

    _____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Rogrio Cunha Campos

    Orientador

    _____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Patrcia Furst Santiago

    Escola de Msica/UFMG

    _____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Roberto Jamil Cury

    PUC MINAS

    _____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Luiz Alberto Oliveira Gonalves

    FAE/UFMG

    _____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Carmem Lcia Eitener

    FAE/UFMG

    Belo Horizonte, 29 de agosto de 2008.

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    SUMRIO

    1- INTRODUO...................................................................................................... 11

    A escrita................................................................................................................. 13

    O tema.................................................................................................................... 14

    Justificativa............................................................................................................ 19

    Procedimentos Metodolgicos............................................................................... 202- AS MENINAS DE SINH.................................................................................... 24

    Sujeitos da Pesquisa............................................................................................... 27

    A Reinveno da Vida........................................................................................... 35

    Trabalhos manuais: primeiro momento de constituio do grupo.................... 49

    Expresso corporal: segundo momento de constituio do grupo.................... 51

    Cantigas e versos: terceiro momento de constituio do grupo........................ 58

    Fama: quarto momento de constituio do grupo............................................. 68

    O Alto Vera Cruz.................................................................................................. 823- O DISCURSO MUSICAL DAS MENINAS DE SINH...................................... 89

    Discurso Musical.................................................................................................... 91

    Elementos verbais, musicais e de interpretao................................................ 96 Relao com o grupo................................................................................... 112 Relao com a memria............................................................................... 118 Relao com o pblico................................................................................. 120 Relao com o urbano................................................................................. 121

    Elementos de circulao.................................................................................... 1254- O DESENVOLVIMENTO DO DISCURSO MUSICAL DAS MENINAS DESINH........................................................................................................................ 1315- CONSIDERAES FINAIS................................................................................. 1646- REFERNCIAS..................................................................................................... 1737- ANEXOS................................................................................................................ 177

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    1-INTRODUO

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    Meninas de Sinh um grupo musical formado por 34 mulheres negras, idosas,

    que no cotidiano vivenciam as condies de vida coletiva das classes populares no Alto

    Vera Cruz, uma comunidade na periferia de Belo Horizonte. A vida da grande maioria

    delas foi marcada por depresso psquica em conseqncia de falta de recursos

    financeiros, problemas familiares e falta de esperana. Assim, a falta de moradia,

    ausncia de famlia e de amigos de umas e abandono de outras compunham a histria de

    vida dessas mulheres. Muitas at se sentiam excludas da vida social. Nesse cenrio, foi

    a msica, conforme relatam, que transformou a vida de desnimo e desesperana. Mas,

    como essas mulheres reinventaram um novo modo de vida nas tramas do discurso

    musical?

    Considero trama o efeito de tranar uma rede. Rede de trocas, de possibilidades.

    Possibilidades de reinveno. Reinveno de uma vida mais feliz. A construo por

    meio de trocas. No caso desta pesquisa observei os fatos considerando o cruzamento

    entre o discurso musical, o discurso dessas mulheres - sujeitos do grupo e o dos

    sujeitos que se encontraram com o grupo. Nesse entrelaar, trancei de uma rede, por

    meio das trocas.

    Isso posto, o objeto desta pesquisa reconstituio da histria do grupo Meninas

    de Sinh tendo por base as tramas do discurso musical, responsvel pela produo do

    grupo. Meu objetivo foi identificar, descrever e analisar as tramas desse discurso

    musical e articul-lo com a vida das integrantes do grupo. Para isso analisei a estrutura

    musical e a influncia da msica e seus significados para algumas componentes desse

    grupo.

    Como objetivos especficos, busquei contextualizar os tempos e os espaos do

    grupo; relatar algumas experincias relevantes que tornaram possvel a atual

    configurao do grupo; identificar os fatores que facilitaram o surgimento do grupo,

    suas propostas, estilo e significados; contextualizar a importncia do grupo para seus

    membros; identificar o discurso musical do Compact Disc(CD)2e das composies do

    grupo por meio da anlise das letras das msicas, das estruturas e estilos; cifrar e

    transcrever as msicas para partitura; analisar o desenvolvimento musical do grupo e

    recuperar os materiais3que o grupo perdeu ao longo do tempo. Dessa forma, procurei

    mostrar qual a expresso musical que singulariza o grupo e seus sujeitos.

    2Trata-se do primeiro CD do grupo, lanado no segundo semestre de 2007 de nome T Caindo Fulo.Nesta pesquisa, sempre que eu me referir ao CD do grupo estarei falando dessa produo.3Vdeos, fotos, trabalhos acadmicos, reportagens, gravaes em K7.

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    A escrita

    Considero de suma importncia descrever com detalhes os meus dilemas e as

    minhas reflexes sobre a escrita deste trabalho, bem como demonstrar quais elementos

    presentes em minha vida me permitiram a articulao com o presente tema. Usarei um

    certo tom coloquial. Certamente, este trabalho no impessoal como recomendam os

    manuais de normalizao tcnica (FRANA et al, 2001). Ao contrrio, ainda que essa

    forma de introduzir no seja universal, minha expectativa que ele possa ser lido como

    a expresso de uma vida que no se cansa de buscar sentido, com entusiasmo e alegria,

    como faz o grupo musical Meninas de Sinh, sujeitos desta pesquisa.

    Meu primeiro dilema ao escrever esta dissertao foi encontrar a forma pela qual

    eu a elaboraria. Seria em primeira ou em terceira pessoa? Optei por usar a primeirapessoa do singular pois me coloco na condio de pesquisador-sujeito neste trabalho,

    como explicarei com mais detalhes adiante.

    A propsito, no romance O Retrato de Dorian Gray, Wilde (2006) revela que

    impossvel uma produo artstica sem que o artista se revele. No caso de produo de

    uma dissertao, eu diria que impossvel ao pesquisador no estar presente em sua

    prpria escrita, pois ela retrata a percepo que ele teve da pesquisa que realizou.

    Voltando ao romance, o personagem Dorian Gray era um rapaz que irradiava beleza econtagiava a todos. Ele posava para um pintor que o retratou em uma verdadeira obra-

    prima. Ao ser questionado sobre uma possvel exposio de sua obra, o pintor se

    posicionou contra da seguinte forma: [] todo retrato pintado com sentimento retrata

    o artista [...]. Eu diria que o pintor, na sua tela, se revela a si prprio. O motivo por que

    no tenciono expor este retrato o receio de ter deixado nele o segredo da minha alma

    (WILDE, 2006, p.14).

    Hoje, eu penso que numa dissertao ou qualquer trabalho na rea das cinciashumanas, h uma troca entre os sujeitos da pesquisa e o pesquisador em uma relao

    dialtica. O fruto (dissertao) dessa troca revela tanto o modelo(sujeitos da pesquisa)

    quanto o artista(arteso, autor de uma dissertao).

    No romance citado acima, o fruto do trabalho uma tela. Surpreendentemente, o

    retrato pintado sofre fortes alteraes ao longo do tempo: a expresso muda, os cabelos

    dourados ficam cada vez mais raros, Dorian Gray envelhece apenas no retrato,

    mantendo-se nas demais situaes. O fruto de um trabalho acadmico, neste caso, a

    minha dissertao, sofrer tambm alteraes ao longo do tempo, no no sentido

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    perverso como no romance, mas no aperfeioamento atravs do dilogo acadmico e

    com a perspectiva de se tornar cada vez mais, bela e til.

    O tema

    Considero que este tema representa a sntese mais articulada que pude elaborar

    at o presente momento, da minha trajetria pessoal e profissional. Ele articula msica,

    seres humanos (mulheres, idosas, negras), meio social, educao e alegria. Para

    entender melhor essa articulao entre a pesquisa e a minha vida, vou apresentar a

    seguir, um pequeno relato que considero relevante para a escolha do objeto dessa

    pesquisa.

    Meu av era pianista. Chamo-me Thais por causa de uma msica4e estou imersa

    no ambiente musical desde que nasci. Minha casa respirava msica e alegria. Fui para o

    Conservatrio de Msica Lourenzo Fernandes (Montes Claros) com oito anos de idade.

    Aluna aplicada, sempre fui bem avaliada. A relao com a msica remetia-me alegria

    e ao aconchego da minha famlia. Segundo Charlot (2000, p.60), a definio do homem

    enquanto sujeito de saber se confronta pluralidade das relaes que ele mantm com o

    mundo. Assim, no confronto com a pluralidade das minhas relaes, recolhi-me naquilo

    que me dava prazer: a msica. Aprendi que se eu soubesse a melodia de uma msica de

    cor, com o cor-ao (by heart), era mais fcil aprender a toc-la. (S mais tarde fui

    aprender, teoricamente, que no existe aprendizagem sem mobilizao afetiva).

    Entretanto, ramos obrigados, no Conservatrio, a tocar um roteiro de msicas eruditas.

    Independentemente do aluno, as msicas ensinadas eram as mesmas. Algo estava

    errado, eu pensava.

    J naquela poca, percebo hoje, desenvolvia uma crtica quanto falta de

    sentido no ensino da msica no Conservatrio. Entendo por sentido, o que acontece com

    um indivduo e tem relaes com outras coisas de sua vida, coisas que ele j pensou,

    questes que ele j se props (CHARLOT, 2000, p. 56). As msicas ensinadas no

    Conservatrio, embora ampliassem a apreciao musical, muitas vezes, eram

    descontextualizadas5e ns, alunos, as achvamos chatas e enfadonhas.

    4pera Meditation Thais, de Jules Massenet.5Eram msicas eruditas apenas. A msica popular brasileira era considerada vulgar no ensino de piano. Somentealunos do violo poderiam estud-la e aqueles que se limitavam ao violo clssico tinham um status superior. Nopiano, o mximo que nos permitiam tocar eram chorinhos brasileiros, antecessores da bossa nova.

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    Afinal, com 14 anos, comecei a ministrar aulas de piano e desenvolvi uma

    didtica completamente diferente da adotada no Conservatrio. Sem nunca ter estudado

    as concepes pedaggicas, buscava ensinar a msica de forma significativa para os

    alunos. Para isso, primeiramente, eu precisava saber de que tipo de msica eles

    gostavam para, ento, ensinar-lhes as partituras que lhes fizessem sentido. Meu lema

    era: quero ser a professora que gostaria de ter tido. Como afirma Tardif, uma boa parte

    do que os professores sabem sobre o ensino, sobre os papis do professor e sobre como

    ensinar provm de sua prpria histria de vida (TARDIF, 2002, p.68). Foi assim que,

    estudando dez anos, dando aulas de piano, fiz o exame da Ordem dos Msicos do Brasil

    e abracei a profisso de professora de msica. Hoje, tendo cursado disciplinas eletivas

    no Mestrado da Escola de Msica da UFMG, vejo que muita coisa continua como antes,

    mas muita coisa anda mudando. Discutirei esse assunto quando abordar sobre a

    evoluo musical do grupo.

    Com referncia docncia, ministrei aulas particulares em Belo Horizonte para

    todas as idades, em escola infantil (como uma disciplina), em escola de msica (aulas de

    piano, flauta e teclado) no Sesi Minas (aulas de piano para jovens e adultos), no

    Pitgoras (piano e teclado), inclusive preparando recitais de alunos. Montei um estdio

    (Piano & Teclado) onde pude desenvolver a didtica personalizada para o ensino de

    piano e teclado. Para crianas, desenvolvi jogos, brinquedos e brincadeiras. Para

    adultos, eu escrevia partituras baseadas na lgica da msica (sem fugir dos seus

    princpios bsicos). Para idosos (que eram a minha preferncia), eu transcrevia msicas

    antigas como tangos, boleros, chorinhos, alguns raros, extrados de partituras que herdei

    do meu av. Muitos desses alunos sempre tiveram vontade de tocar piano, mas se

    julgavam incapazes porque acreditavam que no tinham dom, vocao. No entanto,

    minha forma de ensinar destrua completamente essa idia, pois eles aprendiam em

    poucas aulas, o que lhes aumentava a auto-estima.

    Dediquei-me s aulas de msica at sentir a necessidade de estudar o processo

    de ensino-aprendizagem de modo sistemtico. Lancei-me, ento, na graduao de

    Pedagogia em busca de um acorde perdido6. Li e ouvi variaes sobre um mesmo tema,

    termo usado na msica erudita para referir-se a uma frase musical que alterada sem

    perder a origem. (Por exemplo: ao invs de D Maior, toca-se D Menor, mantendo-se

    o mesmo tema musical). O tema da educao foi tocado, interpretado e representado sob

    6Eu procurava conhecer o processo ensino-aprendizagem, mas no sabia exatamente o que me aguardava. Sentia queeu estava no caminho, s isso.

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    diferentes abordagens, por meio de aulas, estgios, projetos de interveno pedaggica e

    de iniciao cientfica. Ao olhar para a minha trajetria discente, observo que, sempre

    que possvel, levei a msica para apresentaes de trabalhos, dinmicas, oficinas e

    projetos. (No teria essa percepo se no tivesse o hbito de refletir sobre minha

    histria. Perceber essa trilha me deu grande impulso para lanar-me e ingressar-me na

    ps-graduao).

    Algumas dessas experincias vividas na graduao valem a pena relatar. Como

    estagiria em uma turma de ensino noturno do curso Educao de Jovens e Adultos

    (EJA), trabalhei a questo da interdisciplinaridade a partir do tema A Escravido. Para

    tal, servi-me da msica em todas as atividades. Em uma delas, usei a msica

    Brasileirinhopara sensibilizar os alunos sobre a importncia das trocas culturais para a

    formao do Brasil. Levei o teclado para a escola e cantamos a msica. No final, alguns

    alunos me procuraram dizendo que nunca tinham visto um teclado de verdade e queriam

    toc-lo. Uma aluna disse que sentiu vontade de chorar durante a aula, pois a msica era

    muito bonita e ela estava muito sensvel naquele dia. Pensei: ser que esta sensibilidade

    ocorreu apenas hoje? Ser que no uma sensibilidade latente precisando de estmulo?

    Ou pior: precisando de espao para poder se expressar? Por que no ter esse espao?

    Em outro estgio, tambm na EJA, elaborei um projeto de interveno para um

    estgio de superviso em que trabalhei vrias linguagens musicais. O objetivo era levar

    msica para dentro da sala de aula. Foram trabalhadas msicas clssica, barroca,

    popular brasileira, folclrica, contempornea, jazz e percusso. Nos finais dessas aulas,

    os alunos se mostravam muito mais alegres e comunicativos. Contavam casos,

    cantavam algumas msicas de suas cidades. Uma aluna idosa me disse: ainda bem que

    hoje a aula ser alegre. Isso me marcou muito, pois era exatamente esse o ponto que

    tanto me incomodava nos estgios que realizei na Eja: faltava alegria. Eu observava

    uma discrepncia entre as propostas educativas e a realidade em sala de aula. Uma

    ironia, pois um dos grandes saltos na educao veio justamente atravs de Paulo Freire

    que atuava com adultos.

    Eu no s observava como tambm sentia esse quadro ainda mais agravado

    quando se tratava de alunas idosas. Elas estavam l, mas muitas no gostavam. Havia

    atividades extra classes como aulas de arte, bordados, tapearia, mas elas sentiam aquilo

    tudo muito distante da realidade delas. Na verdade, essas no eram atividades

    demandadas por elas. A escola as oferecia simplesmente. Mas, quando lhes ofereci amsica, senti que foi diferente. verdade que no fora uma demanda discente, mas por

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    ser uma linguagem no-verbal e no exigir nenhum esforo, a msica as tocava. Longe

    de ser mera experincia esttica, o exerccio da msica tambm uma experincia

    fisiolgica, psicolgica, mental, com o poder de nos fazer sentir (ZAMPRONHA, p.

    13). Por ser um no dito que literalmente toca, a msica atinge todos.

    Assim, por tocar a sensibilidade e mobilizar as emoes, em minha opinio, os

    educadores da EJA deveriam explorar mais esse aspecto e enriquecer seu trabalho com

    a msica. E no meu caso, senti que era muito pouco tempo para tocarum aluno. Os

    alunos queriam participar com suas prprias experincias, mas no havia tempo para

    isso. Dessa forma, o meu incmodo era justamente esse: por que a msica to distante

    da EJA7? Por que no explorar a sensibilidade dos alunos?

    Prosseguindo a descrio de minha trajetria, foi durante a graduao, com a

    bolsa da Iniciao Cientfica que descobri a vocao de pesquisadora, valendo-me de

    muita leitura para problematizar questes tericas e indo a campo para descobrir

    pessoas e prticas que dessem respostas s minhas questes. Nesse sentido, fatores que

    muito me chamaram a ateno foram: a importncia da educao para alm da sala de

    aula, a importncia de aes coletivas e movimentos populares para facilitar a

    integrao de seres humanos e a necessidade de participao efetiva daqueles que

    pretendem se articular na vida social. Entretanto, elaborei um projeto inicial para

    ingressar no Mestrado: pretendia pesquisar os professores de msica que se articulavam

    na EJA. Na defesa do projeto, etapa da seleo do Mestrado, foi suscitada a idia da

    investigao sobre o discurso musical ao invs de investigar a msica apenas como

    recurso. O nome das Meninas de Sinh surgiu nesse dia.

    Cursando o Mestrado, tive dvida: eu pesquisaria sobre professores de msica

    na EJA ou analisaria o discurso musical de sujeitos jovens e/ou adultos? Mas, conheci

    em um evento da UFMG o grupo musical Meninas de Sinh, cujo nome tinha sido

    sugerido pela banca examinadora e elas literalmente me en-cantaram. Achei muito

    curioso e rico pesquisar o discurso musical, seus significados e transformaes em um

    grupo de idosas. A partir da, fiz contato com a lder do grupo, Valdete, para que eu

    pudesse realizar a pesquisa. Ela foi muito simptica idia.

    7Essa interrogao baseada em experincias particulares. Sei que existem educadores que exploram esse universo.Inclusive a minha proposta inicial para o Mestrado era descobrir esses educadores. Quando levanto essa questo,baseio-me nos estgios que realizei em escolas pblicas e privadas, juntamente com 49 colegas do curso dePedagogia, que demonstraram um quadro semelhante: ensino de EJA sem significado, fora da realidade e penoso paraos alunos.

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    Assim sendo, marquei uma visita, por telefone, e fui assistir a alguns ensaios do

    grupo. Os primeiros contatos foram recheados de dilogos, sorrisos, msica e tambm

    de relatos emocionados, de histrias que mobilizam qualquer ser humano. Promovi uma

    apresentao do grupo na escola Balo Vermelho (um sucesso) e tambm assisti a uma

    palestra que a lder do grupo promoveu para o curso de Psicologia da Faculdade

    Metropolitana. Uma professora do curso havia terminado uma dissertao de Mestrado

    (Psicologia/UFMG) sobre a histria de vida da Dona Valdete e intermediou a palestra.

    Com a aprovao do Comit de tica em Pesquisa (COEP/UFMG), tomei as seguintes

    providncias: realizei entrevistas semi-estruturadas com algumas participantes do grupo

    e com pessoas que se relacionaram com o grupo; sistematizei as msicas cantadas pelo

    grupo (por meio de transcrio para partitura); recuperei alguns materiais que o grupo

    perdeu ao longo do tempo (fitas de gravaes antigas, pesquisas sobre o grupo; assisti a

    alguns encontros com profissionais da msica e registrei dados importantes para o meu

    trabalho. Tambm, promovi uma interveno ensinando a compositora do grupo a tocar

    alguns acordes no teclado.

    Enfim, Meninas de Sinh: mulheres, idosas, negras, de classes populares,

    cantoras, motivaram-me a escrever o trabalho que ora apresento. Afinal, educao,

    velhice8, msica so temas que j haviam despertado a minha ateno em estgios

    anteriores e agora, se fazem presentes em minha pesquisa de Mestrado.

    Resumindo, este trabalho o ponto de chegada de um grande esforo de sntese

    dos meus aprendizados como pessoa, cidad, professora de msica h 27 anos,

    pedagoga, bolsista de iniciao cientfica e estudante de ps-graduao em educao e

    psicologia. Procurei organiz-lo tendo como referncia eixos integradores que me

    permitissem trabalhar com alegria e entusiasmo, por um lado, e com a perspectiva de

    contribuir para o aperfeioamento da comunidade e da humanidade, por outro.

    Nessa perspectiva, identifico-me com o personagem do livro de Wilde (2006) ao

    acreditar que esta dissertao uma expresso que articula elementos da minha prpria

    histria de vida (entendendo por histria no a mera coletnea de experincias, mas a

    prpria experincia refletida e organizada em funo de eixos integradores vitais).

    Diferencio-me do personagem quando se trata de expor o trabalho. Exp-lo a crticas

    contribuir para seu aperfeioamento. Quanto mais aperfeioado, mais ele poder ser

    relevante para um contexto social. Quero, assim, colocar-me a servio, com o meu

    8Usarei o termo velhice ao invs de terceira idade. Concordo com Lenoir (1979) que a expresso terceira idade umainveno capitalista que v o idoso associado ao consumo.

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    trabalho de pesquisa, de modo que a trajetria a percorrer tenha sentido para mim e

    frutos para os outros.

    Justificativa

    Do ponto de vista cientfico, a presente pesquisa se justificou medida que

    procurei reconhecer, numa perspectiva concreta, que movimentos culturais perifricos

    (contra-hegemnicos) tm emergido e procurado comunicar. Esse fato confirma a tese

    de Santos (2005), ou seja: a globalizao neoliberal no nica, pois em reao a ela

    est surgindo uma nova globalizao contra-hegemnica por meio de movimentos que

    lutam contra a excluso social. No caso do grupo em questo, a articulao se deu por

    meio de suas participaes, mobilizaes pblicas, cada vez maiores, viagens e troca de

    experincias com grupos semelhantes que se expressam por meio da cultura popular.

    Nesse sentido, reforo que este trabalho relevante ao destacar a importncia da cultura

    popular na luta pela igualdade e na formao de identidades que articulam o local com o

    global fazendo surgir novas identidades, hbridas (HALL, 2001).

    Em termos pessoais, julgo que este trabalho foi importante por ter agregado

    diferentes caminhos da minha trajetria, levando a msica para todos os meus trabalhos.

    Quero agora busc-la em um grupo, cujas vidas de seus membros foram transformadas

    pela msica. Considero, assim, que este trabalho constitui uma sntese do que para mim

    repleto de significado. Mas no tem sentido fazer pesquisa apenas para se realizar.

    Percebo que tambm h uma justificativa social. Por conseguinte, interessei-me

    pelo discurso musical, que foi fundamental para as Meninas de Sinh na reinveno de

    um novo modo de vida. Assim, procurei compreender, analisar e divulgar elementos

    significativos que promoveram a transformao das integrantes do grupo pelas prprias

    experincias delas.

    Do ponto de vista da educao, tentei valorizar e ampliar vises para alm da

    escola. Procurei mostrar que possvel uma educao que valorize as experincias de

    seus sujeitos como fatores fundamentais para a integrao deles em seu meio social.

    Nesse sentido, penso que minha pesquisa tambm poderia enriquecer a educao na

    forma escolar e no-escolar, pois, a partir do momento que um educador leva para sua

    prtica, elementos que favoream a formao humana, ele contribuir para a melhora da

    qualidade do ensino. preciso enxergar humanizao, saberes, cultura onde o olhar

    pedaggico viciado s v barbrie e analfabetismo, ignorncia, atraso ou violncia

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    (DAYRELL, 2005, p.17). preciso desvelar as formas que os sujeitos buscam para

    superar as difceis condies em que vivem e que as tornam invisveis do ponto de vista

    esttico. preciso destacar os elementos discursivos que as tornam visveis em uma

    sociedade na qual se tornaram invisveis.

    Em ltima anlise, procurei lanar um olhar para o carter educativo da msica,

    presente na formao dos sujeitos. Isso contribui para a reflexo daqueles que trabalham

    com a formao de sujeitos e buscam um ensino significativo dialogando com a

    diversidade. Assim, defendo a idia de que a experincia das Meninas de Sinh pode

    servir de exemplo tambm para que ambientes escolares e no-escolares experimentem

    prticas significativas na formao de sujeitos.

    Procedimentos Metodolgicos

    Algumas caractersticas revestem o procedimento metodolgico que adotei na

    presente pesquisa. Assim, eu diria que foi de cunho etnogrfico porque houve imerso

    em campo. Foi exploratria, descritiva e explicativa. Foi exploratria porque no existia

    uma hiptese pr-concebida. Existia apenas a noo de um problema: como as Meninas

    de Sinh reinventaram um novo modo de vida nas tramas do discurso musical? Na

    pesquisa exploratria, necessrio, segundo Gil (1995, p.44), esclarecer, desenvolver e

    alterar idias e conceitos para que sejam elaborados problemas e hipteses mais precisos

    para futuras pesquisas. A pesquisa foi descritiva porque eu pretendia descrever como o

    grupo se produziu, como o discurso da msica foi estruturado e como esses elementos

    (o grupo e a msica) facilitaram a construo de uma nova vivncia. Por fim, foi

    explicativa porque procurei analisar o discurso musical e refletir sobre ele com o intuito

    de detectar os elementos significativos que transformaram a vida das mulheres desse

    grupo e produziram o sujeito coletivo musical Meninas de Sinh.

    Os dados da pesquisa foram coletados a partir do segundo semestre de 2007 por

    meio dos seguintes recursos: observao participante; entrevistas semi-estruturadas com

    seis membros do grupo; Valdete Cordeiro (lder do grupo); dilogos durante as visitas

    aos ensaios, ao Alto Vera Cruz, s casas das entrevistadas, s pessoas que tiveram

    algum envolvimento com o grupo; filmagens; gravaes; fotos. Esses dados foram

    coletados nos ensaios do grupo, nas manhs de segunda, quarta e sextas-feiras, das 7:30

    s 9:00 na Associao Comunitria do bairro; nas apresentaes dentro de Belo

    Horizonte. Tambm foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com pessoas que, de

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    alguma forma, estiveram envolvidas com o grupo e influenciaram-no (neste caso, foi

    entrevistado o produtor do CD, a empresria, o supervisor de informaes tcnicas da

    Urbel9- rgo da Prefeitura de Belo Horizonte que se articula no Alto Vera Cruz; a

    professora de percusso Gal du Valle; o professor de percusso Carlos Ferreira e Roque

    Antnio Soares, amigo do grupo que muito contribuiu para a sua formao).

    Uma vez contextualizados os espaos, os tempos, a trajetria e expectativas do

    grupo e identificado o discurso musical presente nas msicas das Meninas de Sinh

    (tanto as de domnio pblico como as composies feitas por uma integrante do grupo),

    o passo seguinte foi verificar a evoluo musical10 do grupo. Para entender essa

    evoluo, dialoguei com Swanwick (1994). Trata-se de um educador que escreveu sobre

    o aprendizado da msica. Embora ele tenha desenvolvido uma reflexo em contexto

    escolar, em Londres, considerando o desenvolvimento de crianas, eu vi muita

    semelhana entre essas reflexes e a experincia das Meninas de Sinh. Mesmo em

    contextos diferentes, percebi que o desenvolvimento musical foi propiciado por um

    movimento que engloba tanto o lado intuitivo quanto o racional do sujeito que se

    comunicam incessantemente.

    O momento do grupo poca da pesquisa foi comparado com o momento em

    que o grupo se encontrava no incio de seus encontros. Isso me permite ressaltar a

    importncia da educao, da mediao de conhecimentos pois, nesse processo, houve

    trocas de experincias e encontros que ampliaram suas vivncias e conhecimentos de

    forma significativa. Esses encontros ampliaram a participao social das integrantes do

    grupo tornando-se eficaz para a realizao pessoal de seus sujeitos, que papel da

    educao. O grupo no existia antes dessa expresso musical. Foi a msica que fez com

    que as mulheres desse grupo dessem sentido existncia. Entretanto, finalizo o trabalho

    colocando para o grupo o desafio de viver o novo momento defama(palavra usada pelo

    grupo) sem perder o valor original de seus encontros. No deixar perder a linha de sua

    trama inicial: promover a alegria e a sade de suas integrantes por meio da msica. Por

    fim, o meu recado: sentir a arte como um caminho para re-significar a vida.

    Quanto primeira fase da pesquisa de campo, baseei-me em observao no-

    participante feita durante os ensaios e apresentaes do grupo. Coletei dados sobre o

    problema da pesquisa e dados para contextualizar o grupo como um todo, anotados em

    9Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte.10Evoluo musical aqui tratada como o processo. No pretendo analisar qualidade musical dentro dos parmetrosusados por estudiosos da performance musical. Estes valorizam a interpretao e a execuo de uma obra dentro dedeterminados parmetros.

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    um caderno de campo. Ouvi e gravei (udio e vdeo) as msicas para que eu pudesse

    estudar as tonalidades, campos meldicos, estruturas, seqncias, letras, timbres. As

    msicas compostas pelo grupo foram transcritas para partitura para que fosse possvel

    um registro formal das composies11. Tambm observei a integrao dos membros do

    grupo, suas danas, os rituais e rotinas nos ensaios, a forma como constroem o estilo, os

    significados que lhe atribuem, o que expressam.

    Para a segunda fase da pesquisa de campo, baseei-me nas entrevistas semi-

    estruturadas com o grupo, em seus ensaios e apresentaes. Abordei temas referentes s

    vidas das integrantes do grupo, pois, para identificar a contribuio da msica na

    produo de novos sujeitos, foi necessrio conhecer as trajetrias e realidades de suas

    componentes. Sabendo que o grupo possui uma compositora (Ephignia12), realizei

    entrevistas com ela para conhecer suas composies.

    Percebendo que o significado de sua msica sofrera mudana a partir de novas

    experincias, busquei identificar, em uma terceira fase, por meio de entrevistas, como

    este processo foi se constituindo. Elas se reuniam no incio por causa da depresso,

    depois para brincar, depois para apresentaes/participaes. Lanaram um CD, fazem

    apresentaes em Belo Horizonte, no interior do estado e em outros estados e

    concorrem a prmios.

    De posse dos dados coletados e das partituras transcritas, descrevi e analisei todo

    o material procurando identificar o processo de reinveno da vida nas tramas do

    discurso musical.

    Afinal, o trabalho est estruturado de acordo com o processo de anlise que

    adotei. Primeiramente, apresento o grupo Meninas de Sinh (seu espao fsico, suas

    trajetrias, encontros, transformaes) e as relaes estabelecidas no grupo. A seguir,

    fao uma reflexo sobre o discurso musical das Meninas de Sinh. Para tal, levantei

    alguns elementos da msica. Apresento e analiso algumas msicas de domnio pblico,

    de composio do grupo e o CD lanado em 2007. Na seqncia fao um dilogo com

    os sujeitos que se encontraram e influenciaram o grupo. Apresento os momentos desses

    11Na Etnomusicologia no existe um consenso sobre transcries para partituras de composies. A Etnomusicologia uma linha de pesquisa que considera a msica em toda sua diversidade. No se limita ao estudo oficial da msica,considera toda expresso musical relevante, independente de ser considerada muito elaborada. Valoriza o significadoda msica. Explicarei esses termos a seguir. Segundo a Etnomusicologia as transcries podem causar desvios emalguns elementos, que muitas vezes no so possveis de acrescentar em uma partitura. Considera-se que o discursoda msica mais amplo do que a sua estrutura musical. Entretanto, ela importante como um elemento derepresentao e de preservao da memria do grupo. Dessa forma, optamos pela transcrio.12Dado colhido por meio de dilogos com o grupo. Ephignia a nica do grupo que j estudou um instrumentomusical (violo) quando jovem.

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    encontros e sua relevncia na formao do grupo como um grupo musical. Valho-me

    nesse momento de pesquisas, autores, concepes, de acordo com as necessidades do

    trabalho, e no excurses intelectuais ou citaes interessantes. nessa direo que

    apresento, ento, o referencial terico deste estudo para possibilitar um dilogo diverso

    e articulado com o tema de pesquisa.

    Por fim, com relao aos procedimentos metodolgicos, optei por uma escrita

    contnua ao longo do trabalho. Tentei no fragmentar o texto para torn-lo mais

    explicativo, mais processual, no precisando fragmentar o momento da coleta de dados

    para depois articul-la com as anlises. Tal escolha contempla a idia da criao e da

    liberdade dentro da pesquisa acadmica e o dilogo entre as reas de conhecimento, sem

    perder a seriedade que um trabalho dessa natureza exige.

    Considero tambm que importante olhar para os sujeitos e considerar toda a

    complexidade que os envolvem. Destaco os processos e produtos do grupo Meninas de

    Sinh, as falas e aes, assim como o contexto. medida que os sujeitos esto

    envolvidos em um empreendimento comum, eu no poderia deixar de analisar os

    significados que seus prprios integrantes lhe atribuem. Eles esto incorporados nos

    processos, produtos, aes e falas. Neste caso, tambm no discurso musical. Como o

    grupo faz parte de uma trama nela existem tambm outros atores, como outros grupos,

    sujeitos e empresas. Entrevistei os sujeitos que conviveram com o grupo, mas no

    pesquisei as verdadeiras intenes das empresas que patrocinaram o grupo. Ressalto que

    uma curiosidade que tenho, pois tenho a hiptese de que, por mais bem intencionadas

    que essas empresas sejam, deve haver algum motivo implcito de ordem econmica.

    No realizei essas investigaes devido ao pouco tempo que havia para que eu

    finalizasse essa pesquisa. Entretanto, quero faz-las para futuras publicaes desse

    trabalho em que pretendo refletir sobre a Responsabilidade Social dessas empresas, a

    indstria cultural e o verdadeiro sentido da arte como forma de expresso, para os

    artistas.

    Quanto escolha dos sujeitos dessa pesquisa, optei em destacar os critrios

    dessa escolha no captulo seguinte que diz respeito s Meninas de Sinh.

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    2- AS MENINAS DE SINH

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    Descrevo a seguir alguns caminhos percorridos pelo grupo para chegar aonde

    chegou. Minha preocupao foi considerar que esses caminhos, de fato, representassem

    o discurso dos sujeitos do grupo. Retrato algumas componentes do grupo, os espaos,

    tempos, encontros, alm dos elementos da vida particular de algumas integrantes e as

    msicas que estiveram presentes em cada momento. Para tal, considero o discurso das

    pessoas que esto dentro do grupo (integrantes do grupo) e o dilogo com pessoas que

    esto fora do grupo: pessoas que se relacionam diretamente com o grupo e a minha

    prpria viso sobre os fatos.

    Em linhas gerais, Meninas de Sinh um grupo musical formado por trinta e

    quatro mulheres negras, idosas, de classes populares, residentes no bairro Alto Vera

    Cruz, em Belo Horizonte (Anexo A). Cantam cantigas de roda de domnio pblico,

    compem outras cantigas prprias, danam, tm feito apresentaes em eventos locais,

    estaduais e nacionais para pblicos infantis, adultos e idosos, participam de concursos

    musicais, lanaram um CD prprio, j participaram de gravaes de CD de outro grupo,

    j se apresentaram com grandes nomes da Msica Popular Brasileira como Daniela

    Mercury e Jair Rodrigues, inspiram a criao de novos grupos como as Netinhas de

    Sinh13e j ganharam prmios de instituies pblicas e privadas. Hoje elas so idosas

    alegres, sorridentes, cantoras, percussionistas, com uma vida movimentada em espaos

    pblicos. Essa a imagem que temos quando conhecemos as Meninas de Sinh. Como

    foi a construo desse sujeito coletivo chamado Meninas de Sinh? Qual foi a

    participao da msica nessa trama?

    O grupo chegou a ter cinqenta componentes ao longo da sua histria e

    composto, hoje, por trinta e quatro componentes na faixa etria entre 40 e 90 anos, mas

    se consideram um grupo de idosas. Nem todas participam dos shows. Algumas, em

    razo de opo religiosa, no se apresentam em pblico. A grande maioria mora no Alto

    Vera Cruz, periferia de Belo Horizonte. Inicialmente, elas cantavam cantigas de roda e,

    aps algum tempo de imerso na msica, passaram a compor. O significado da msica

    13Vendo suas avs cantarem e fazerem shows, algumas netas de 3,8 anos de idade falavam: tambmqueremos vestir essas roupas e cantar. Elas so netas de algumas mulheres do grupo, diz Valdete.Dessa forma, a prpria Valdete teve a idia de fazer um grupo de crianas que tambm vestissem saias

    rodadas, colocassem lenos na cabea e cantassem cantigas e versos. Reuniram nove netinhas ecomearam os ensaios com Roquinho que ia ao Alto Vera Cruz para esse fim. Novamente ele saiu dogrupo e hoje o grupo ensaia com outro grupo: ziriguidum.

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    no apenas transformou a vidas delas como tambm se transformou tambm dentro

    delas. Hoje alm de possuem seu prprio discurso musical.

    Quanto ao figurino do grupo, hoje, composto de uma saia estampada de

    vermelho, lenos na cabea, blusa vermelha e colares, conforme mostra a figura abaixo:

    Figura 114 Figurino usado pelas Meninas de Sinh.

    Todas elas cantam os versos, as canes e as composies. Alm do canto,Valdete, Ephignia, Maria Gonalves (Mariinha) e Rosria tocam zabumba; Neide toca

    pandeirola; Geralda, Caxixi.

    Ao longo da pesquisa, observei que das trinta e quatro senhoras que compem o

    quadro das Meninas de Sinh, onze esto presentes em todos os eventos. Muitas

    apresentaes so realizadas em pequenos espaos e apenas so contratadas algumas

    mulheres do grupo. As onze que esto presentes em todos os eventos, como filmagens,

    entrevistas so: Aparecida, Diva, Dorvalina, Ephignia, Geralda, Maria das Graas,Maria das Mercs (Mercs), Maria Gonalves (Mariinha), Neide, Rosria e Valdete.

    Se o espao for ainda menor ou no tiver transporte para todas, apenas seis

    representam o grupo. So elas: Ephignia, Geralda, Maria Gonalves, Mercs, Neide,

    Valdete.

    De posse desses dados, eu havia pensado em entrevistar essas seis Meninas de

    Sinh, mas como elas possuem a caracterstica comum - participar de todos os eventos -

    14 Todas as fotos usadas neste trabalho, sem referncia so de minha autoria. As demais seroapresentadas com notas, indicando seus autores.

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    desisti dessa idia. As entrevistadas foram ento escolhidas da seguinte forma: trs

    Meninas de Sinh que estavam presentes em todos os shows, trs que freqentavam os

    ensaios, mas no viajavam sempre alm de Valdete Silva Cordeiro, por ser a

    idealizadora do grupo. Alm dessas entrevistas, realizei dilogos com Clia Oliveira

    Fidelis,sobrinha da Valdete e considerada a coordenadora do grupo. Ela acompanhou

    muitas entrevistas e muito me ajudou no conhecimento do grupo. Alm de marcar os

    shows e se encarregar da parte administrativa como acertos financeiros, ela um tipo de

    porta voz do grupo. Realizei dilogos tambm com as componentes do grupo que

    estavam presentes nos ensaios.

    Embora haja relatos personalizados sobre as vidas dessas seis mulheres,

    preocupei-me o tempo todo em ver o grupo como um sujeito coletivo. Os relatos

    personalizados em ambientes fora do grupo me pareceram-me importantes, pois eu

    buscava, nos discursos, unidades, disperses e regularidades15. Foucault (1986) prope

    que a diversidade dos discursos seja repartida em figuras diferentes. Embora eu achasse

    bvio que o discurso particular fosse diferente do discurso coletivo, eu sentia que era

    preciso deixar que as contradies aflorassem para que aparecessem as diferenas, os

    esquecimentos e eu pudesse ver o coletivo a partir desses detalhes. As entrevistas com

    perfis diferentes, os dilogos com o grupo durante os ensaios e as observaes foram

    minhas principais ferramentas para obter informaes que pudessem descrever o grupo.

    Obtive informaes substanciosas. Dessa forma, comungo com Fischer (2001) ao

    afirmar que o discurso o lugar da multiplicao dos discursos, da multiplicao dos

    sujeitos.

    Sujeitos da Pesquisa

    Minha escolha dos sujeitos para as entrevistas semi-estruturadas baseou-se em

    dois critrios: trs Meninas de Sinh que estivessem presentes em todos os shows e trs

    que freqentassem os ensaios, mas no viajassem sempre. Alm disso, precisava que as

    seis escolhidas tivessem perfis diferentes, mas pudessem me mostrar quem so as

    Meninas de Sinh em sua singularidade. Para tal, escolhi, dentre as que viajavam, as

    sequintes: Ephignia Romualda Lopes, por se tratar da compositora do grupo; Maria

    15 Termos sugeridos por Foucault (1986) para se pensar as prticas discursivas. Em suas anlises sobre Foucault,Nalli (2005) levanta uma importante questo: para que o conceito de disperso possa ser empregado comoalternativa ao de unidade, Foucault aproxima aquele conceito ao de regularidade (NALLI, 2005, p. 156). Sendo

    assim, busquei encontrar o que h de regular no discurso do grupo e considerei, nessa pesquisa, que Unidadese refereao comum, ao que dito por todos, unanimidade. Dispersose refere quilo que se ope unidade.Regularidadeo que se mantm, diz respeito quilo que h de comum tanto na unidade quanto na disperso.

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    das Mercs Pedro (Mercs), por ser uma pessoa com perfil completamente diferente

    daquele relatado nos discursos sobre a composio atual do grupo (de ser composto por

    mulheres com perfil de depresso). Mercs como chamada, uma pessoa sorridente,

    alegre e de bem com a vida; Escolhi tambm Rosria Madalena Andrade Damasceno,

    por eu perceber, nos ensaios, sua paixo pelo grupo e por ser uma das poucas

    componentes que estavam presentes no grupo desde a sua fase inicial. Das trs Meninas

    de Sinh, sempre presentes nos ensaios, mas no viajavam sempre, escolhiMaria Isabel

    Carlos (Isabel) por ser uma pessoa que o grupo muito ajuda. Embora tivesse entrado

    para o grupo h muito, tivera recentemente um derrame e apresentou problemas na fala.

    Logo, o grupo a acolhe. Curioso que, mesmo no falando normalmente, ela canta as

    canes como se nunca tivesse tido um derrame. Bernadina de Sena (Seninha) foi

    escolhida por eu perceber que sua uma relao com o grupo se transformava numa

    experincia para se expressar, para ser feliz. EscolhiRomancina Ramos de Oliveira, por

    se tratar de uma pessoa que vivia um grande drama na vida e dizia estar viva devido ao

    grupo.

    As entrevistas semi-estruturadas foram realizadas no segundo semestre de 2007,

    nos meses de outubro e novembro. Embora houvesse um roteiro para desenvolve-las,

    tive de tomar caminhos diferentes em cada entrevista, de acordo com a histria relatada.

    Mas sempre eu iniciava a entrevista pedindo a elas que falassem sobre suas vidas e

    sobre suas experincias com o grupo.

    A seguir, apresento o discurso de cada entrevistada, acompanhado da respectiva

    foto:

    Apresento Valdete, a idealizadora do grupo:

    Figura 2: Foto de Valdete

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    Valdete, a primeira entrevistada16, fez questo de esclarecer como inventara a

    sua vida:

    Eu j ouvi dizer que o grupo Meninas de Sinh de baianas.Acho que eles falam isso por causa da roupa. Eu sou a nica

    baiana do grupo. Sabe, desde pequena eu, eu no sabia a data domeu aniversrio. Eu sabia s do ano que eu nasci. E eu pensava:Oh! Meu Deus! Todo mundo faz aniversrio! S eu que no faoaniversrio! Mas eu tenho de fazer aniversrio um dia! A euinventei a data do meu aniversrio: 07 de setembro. Eu gostavadesse dia. A eu fiz uma festa muito simples, mas a meninada que

    foi gostou demais! Fiz um bolo de caixa de sapato e doce debotequim. Saiu uma reportagem sobre isso no Museu da Pessoadizendo que eu inventei a minha vida e a vida da minhacomunidade. que eu sempre fui muito engajada na comunidade esou a lder comunitria aqui. S que eu no preocupo s com

    esgoto. Acho que a qualidade de vida tambm tem de ser pensada.Foi a que criei o Meninas de Sinh, para tirar algumas mulheresda depresso.17

    Abaixo, apresento Mercs e Romancina:

    Figura 3: foto de Mercs e Romancina

    Mercs, muito alegre e sorridente, conta como era sua vida antes do grupo, como

    16 Entrevista realizada em sua casa, no dia 07 de novembro de 2007. Aps um ensaio fui casa daValdete e acabei passando o dia todo l, pois alm de nossa entrevista, ela me mostrou vdeos, fotosantigas do grupo, gravaes. A famlia chegou e todos falavam da importncia do grupo tambm paraeles. A sobrinha de Valdete, Clia, se envolveu tanto com o grupo que hoje em dia se considera acoordenadora, pois estando em casa, atendia aos telefonemas, marcava shows, ligava para as outras

    componentes.17Registrei todas as falas das entrevistas usando itlico e aspas, embora contrarie a ABNT (uso de mesmafonte do texto, seguida de expressoInformao Verbal).

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    foi sua entrada para o grupo e como ele lhe faz ainda mais feliz18:

    Sempre convivi bem com meus pais. Eles no brigavam, nofalavam palavro, eram amigos. Eles sempre deram bom exemplo.

    Sabe, as pessoas me acham alegre. J me pararam depois de showpara falar que sou alegre, j quiseram conversar comigo porcausa disso, mas lembrando agora, meu pai tambm era alegre.Ele de farra e festa. Vivia danando. A gente tinha uma vitrola edanava com a gente. Isso era l em Diamantina. Quando eu eracriana eu tinha muitas amiguinhas e a gente brincava muito!

    Brincava de tudo que criana brinca, mas brincava de roda. Entobrincar de roda agora com minhas amigas do grupo me fazlembrar desse tempo que era to bom! Quando eu quis entrar parao grupo eu tinha vergonha delas no gostarem de mim, mas elasso to amigas! Eu nunca pensei que eu fosse ficar tanto tempo l

    e nem que eu ia viver tanta coisa boa depois de ficar velha. tudomuito bom. Eu casei com meu marido, quem conheceu ele

    primeiro foi minha me. Ele era coletor de lixo e eu casei depoisde trs meses de namoro. E num que deu certo? Ele me apiamuito. Gosta do grupo. Eu tive uma filha. Olha, eu to muito felizno grupo Meninas de Sinh porque eu gosto muito de passear, decantar, de danar e agora de viajar, n?.

    Romancina, por sua vez, relatou a tragdia que viveu encontrando, no grupo, sua

    salvao19:

    Em Ipatinga quando eu era pequena a gente ia para o cafezal ecantava muito l, catando caf. Eu casei em 59 e vim para c. Meumarido trabalhava noite e eu ficava sozinha dentro de casa.

    Depois ns compramos um lote aqui no Alto. Aqui no tinha nada. sofrimento! No tinha luz. Era um sofrimento. Meu maridomorreu e fui levando a vida. Tem uns dois anos que estou nogrupo. Aconteceu um acidente com meu menino. Mataram o meucaula e o rapaz era amigo dele. Eu conhecia ele demais! Ningumesperava. Ns dois estava sentado e o rapaz atravessou a rua eatirou no peito do meu filho (36 anos). A mulher do rapaz

    confirmou para ele que gostava do meu filho. Ele no mexia comdroga! A vida dele era trabalhar, mas ele era mulherengo. Ele erabonito. Meu filho correu e eu corri atrs dele gritando: Pelo amorde Deus! No faa isso no, mas meu filho correu e levou outrotiro nas costas. Se ele morresse aqui dentro de casa era pior para

    18Essa entrevista com Mercs foi realizada na Associao, local do ensaio do grupo. Aps um ensaio, nodia 14 novembro de 2007, gravei e transcrevi seus depoimentos. Todos os outros fragmentos deentrevistas com ela foram colhidos nesse mesmo dia.19Entrevistei Romancina na casa da Valdete. Fomos para l depois de um ensaio no dia 21 de novembrode 2007. Romancina falava sobre sua experincia e se emocionou muito. Eu a gravei e perguntar se ela

    queria parar por um tempo e ela disse que no, que se emocionava, mas era bom falar. Houve momentosque eu tambm me emocionei com seu relato. Todos os outros fragmentos de entrevistas com ela foramcolhidos nesse mesmo dia.

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    mim. O rapaz no est preso e a famlia dele mora em frente aminha casa. Se eu no tivesse entrado para o grupo talvez eutivesse morrido.

    A seguir, apresento as simpticas Ephignia e Rosria:

    Figura 4: Foto dasMeninas Ephignia e Rosria

    Ephignia, a compositora, descreve sua vida, desde criana, como mostra este

    relato20:

    A gente era amiga, eu e a Valdete, desde criana. A mulher quecriava ela morava na rua Bernardo Monteiro. Era uma costureiramuito conhecida. A minha av que me criava. Eu morava na ruaTimbiras. A ficando mocinha, com 9, 10 anos, a gente pegoucontato l no catecismo, no Colgio Arnaldo, a gente encontrava e

    brincava de roda! Com 15 anos eu aprendi corte e costura echuleava. Eu ficava chuleando na casa dela. Eu pegava 8 horase ficava at 5 horas. Foi na casa dela que eu conheci meu marido.Casamos, ele morreu com 20 anos de casada. Tive seis mulheres.

    A ela casou tambm. Ela morava no Cruzeiro. Ela trabalhava emcasa de famlia mesmo e eu continuei morando na Timbiras.

    Depois ns samos de l e fomos para o So Gabriel. A nscomeamos a penar em lugar mais ruim, n? De l ns fomos parao Sagrada Famlia, para o Vera Cruz. Depois que fui para o VeraCruz ela foi muito boa para mim. Eu passava cada aperto... NossaSenhora! Depois ns fomos para o Esplanada e l ele morreu.

    Estou em casa de parente. Estou l, mas eu no gosto no. Euqueria entrar pro grupo, queria participar e aparecer tambm. Eu

    20Entrevistei Ephignia em minha prpria casa. Ela demonstrou em alguns encontros que tinha interesseem aprender a tocar piano. Combinamos uma data e ela foi no dia 15 de novembro, feriado, para minhacasa. Ela treinava persistentemente o piano e o teclado. Repetimos isso por quase um ms, nas teras equintas. Eu a buscava no Alto Vera Cruz pela manh, ela passava o dia na minha casa, treinando nopiano. Algumas vezes eu tinha de sair e ela ficava l, insistentemente treinando. Aps um ms, empresteio meu teclado para ela e o levei para o Alto Vera Cruz. Nesses encontros a gente conversava muito sobresua experincia com o grupo, sobre as composies. Eu gravava as composies, tirava no piano juntocom ela, cifrava as msicas (ela no violo e eu no piano). Como ela toca violo, escrevia as msicas empapis soltos e eu os organizei (por pedido dela) em uma pasta. Depois digitei as msicas com as cifras e

    dei uma pasta para ela. Essa entrevista acima foi realizada na primeira visita de Ephignia minha casa.Eu gravei seu depoimento e como as demais, os fragmentos de suas falas, apresentados ao longo dotrabalho tambm se referem a essa entrevista.

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    vivia visitando elas, mas s entrei mesmo depois que aposentei.Isso foi antes de gravar o CD. Hoje fao msicas pro grupo e paraas Netinhas de Sinh.

    Rosria mostra, neste trecho, o significado do grupo para ela21:

    Olha, eu sou de Itabira, tenho 61 anos, sou casada e tive quatrofilhos.Esse negcio do meu marido beber e tudo, a gente fica maisbrigando que tudo. Ento tinha hora que eu ficava deprimida de

    ficar dentro de casa. Eu sabia que na hora que ele ia chegar jchegava naquele estado. Ento pra mim agentar essas coisas, euteria de procurar uma coisa boa pra mim, n? Eu tinha uma filha.Ela morreu de orverdose. Eu entrei pro grupo antes disso. Ela meincentivava mais, me acompanhava no show. Os outros meincentivam mas no tem aquela coisa de ir. Eu fiz de tudo pra elalargar as drogas, mas no teve jeito. Ali em Meninas de Sinh eu

    chorava, contava minhas mgoas, falava tudo o que sentia. Cadauma me dava um conselho, cada uma falava uma coisamaravilhosa pra mim, era tudo carinhosa pra mim e tudo isso eusuperei. Lembro dela com saudade.

    Seninha e Isabel22 so irms, so mineiras e moram no Alto Vera Cruz.

    Valorizam a alegria do grupo mais do que seu sucesso:

    Figura 5: Foto das irms Seninha e Isabel

    Esto presentes no grupo h muitos anos. Seninha comeou a participar dos

    encontros e, dois anos depois, Isabel entrou quando ainda se chamava Lar Feliz

    (primeiro nome do grupo Meninas de Sinh). A me delas, atualmente, no freqenta

    mais o grupo, mas houve uma poca que as trs (me e filhas) saiam de casa em direo

    aos ensaios para cantar e lavar a alma. Tenho saudade dessa poca. Era muito bom. A

    21A entrevista com Rosria foi realizada no dia 11 de fevereiro de 2008, na casa da Ephignia. Comosempre, aps um ensaio. Os fragmentos ao longo do trabalho tambm se referem a esse dia.22 Foram entrevistadas juntas, no dia 13 de fevereiro de 2008, aps um ensaio na casa da Seninha.Combinamos previamente esse encontro e aps o ensaio Seninha me perguntou se podamos ir sua casa.Os fragmentos de suas falas tambm se referem a essa entrevista.

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    gente vinha s para cantar mesmo, brincava. Ia embora leve!diz Seninha. Quando

    Isabel dizpara cantar mesmoela se refere ao fato de que hoje o grupo possui tambm o

    desejo de realizar apresentaes o que, muitas vezes, demanda esforo nos ensaios.

    Quando os encontros eram apenas encontros por si s Era muito bom,diz Seninha.

    Eis o que nos diz Seninha:

    Nasci em Pedra do Anta, tenho o segundo grau completo, masmorei na roa mesmo quando era criana. Se a gente olhava da

    janela parecia que no tinha sada. Meus pais eram muito rgidos enos criaram assim: muito honestos, cumpridores dos nossosdeveres e obrigaes. Eu moro aqui no Alto nem sei quanto tempotem. Casei e criei meus filhos aqui (...).Eu trabalha no CIAME23e

    ficava s observando as Meninas de Sinh que na poca nemtinham esse nome. Quando entrou a expresso corporal e o

    horrio deu com o meu a eu comecei a participar. Eu j sentianecessidade de fazer alguma coisa. Alm de ser funcionria, donade casa e esposa, eu precisava de cuidar um pouco de mim. Foimuito bom entrar para o grupo. Uma terapia e o crescimento

    pessoal e humano, muito bom. A gente convive com as pessoas, vo problema de cada uma e saber que todos ns temos problemas ea gente tem de ter energia para aprender a superar essasdificuldades e com essa unio do grupo todo, a fala, a experinciade cada uma, a gente aprende a contornar a situao e ser mais

    feliz. Levar at alegria para os outros. Trabalha o corpo, a mente.A gente vira uma outra pessoa. Esse grupo me deu muita fora.

    Apesar de eu ter muita tristeza eu no me deixei abater. Osproblemas no acabaram, mas eu consegui passar por cima delescom dignidade. Meu pai est doente e eu saio correndo da casadele e vou para a minha. Se no tivesse o grupo acho que eu estavano fundo do poo da depresso, sabe? Triste, deprimida, chateada,mas eu ia para o grupo. As lgrimas escorriam mas eu estavacantando e at viajava assim mesmo. Eu separei e perdi a autoestima, perdi minha valorizao humana. Descobri que fui trada avida inteira. Eu agradeo ao grupo por me emprestarem osouvidos porque eu fiquei chata, insuportvel. Eu falava! Meu Deuscomo eu falava!

    Por fim, assim, se manifesta Isabel:

    Eu nasci em Pedra do Anta. em Minas mesmo. Mudei pra c em1961 e desde 62 estou aqui no Alto. Gosto daqui, mas no incio euno gostava no. Aqui no tinha boa imagem. Eu gosto de fazer

    poesias. Acho que sou compositora tambm, fico inventando coisa,mas nunca estudei. Eu at que gostaria, mas difcil porque se eu

    23Centro de Integrao e Atendimento ao Menor (antiga Febem). Ele atende crianas nos horrios em que elasno esto na escola. Tem oficina de capoeira, percusso, artes. um rgo do Estado e possui financiamentotambm da Prefeitura, graas articulao dos pais.

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    fosse pra escola tinha de ser de noite e tenho medo. Bom, quemais? Eu casei, eu estava com dezesseis anos e o Joo tinha vinte eum anos. Eu tive oito filhos, 5 rapazes e 3 moas. Eu tive uma vida

    pobre na roa, mais foi boa. Eu sou a mais velha de sete filhos (...)Entrei para o grupo por causa da minha irm Seninha que

    trabalhava no CIAME na poca que elas comearam com aexpresso corporal. Olha minha filha, entrar para esse grupo foi amelhor coisa da minha vida. Eu no queria sair de casa e hoje no

    paro nela. J andei at de avio. Fomos para So Paulo e foi tudouma maravilha. O grupo me deixou independente. Antes eu tinhade dar notcia at de onde estavam as meias do meu marido. Hojesaio de casa e eles fazem at comida (...).Eu tive um problema desade, eu dei derrame,mas no atrapalhou de eu estar junto aqui.T meio assim, meio assada, mas t inteira.

    Algumas dessas mulheres testemunham um histrico marcado pela excluso da vida

    pblica, pela depresso psquica. Ser que correram o risco de deixarem de mobilizar o

    sentir e ficarem anestesiadas para a vida? Percebi alguns elementos que me remeteram a

    pensar nesse risco nas seguintes passagens:

    Isabel: eu no QUERIA sair de casa;Seninha: se no tivesse o grupo acho que eu estava no fundo do poo da depresso(...) era triste, deprimida, chateada;Romancina: eu ficava sozinha dentro de casa;

    Rosria: eu ficava deprimida de ficar dentro de casa;Ephignia: estou em casa de parente. Estou l, mas eu no gosto no.

    Mas, o que acontece quando as pessoas que se sentem excludas tornam-se

    invisveis? O que acontece quando um sujeito deixa de conquistar a vida pblica? Eles

    perdem a humanidade j que a cultura que humaniza o homem? Perdem o direito de

    conquista submetendo-se cultura hegemnica? H como produzir um movimento

    inverso para que aqueles seres que esto em situao de excluso tenham alguma

    chance de incluso?

    O processo de produo dessa dissertao levou-me a concluir que foi a msica,como discurso e comunicao que articulou as integrantes do grupo de forma tal queelas se relacionaram com outros grupos e encontraram uma alternativa que produziua identidade coletiva Meninas de Sinh, fortalecendo a auto-estima de seus membrose promovendo participaes sociais mais ricas. A partir da fuso entre diferentestradies culturais, foram produzidas novas experincias.

    Essa temtica lana um olhar para a importncia da prtica musical nasocializao de grupos populares, pois a msica estimula emoes, comunica com asubjetividade, ultrapassa os limites do racional e amplia as possibilidades. Aexperincia das Meninas de Sinh um caso prtico em que a prtica musical fezcom que aquelas senhoras se tornassem visveis para a vida pblica.

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    A Reinveno da Vida

    Compreender as Meninas de Sinh, seus sujeitos, encontros e transformaes

    por que passaram, exigiu-me analisar os contatos que tive com o grupo e, ainda,

    focalizar alguns momentos de sua formao que permitiu a reinveno da vida nas

    tramas do discurso musical.

    O primeiro contato com o grupo foi realizado por meio de telefone e percebi

    uma msica muito alta que tocava ao fundo. Tambm ouvi, no decorrer da conversa,

    algum cantando muito alto. Eu, ento, disse-lhe: Vocs gostam mesmo de msica, n?

    Ela me respondeu: minha flor, voc no viu nada!.Eu me enchi de esperana nesse

    momento e pensei: estou no caminho certo.

    Quando me organizei para ir a campo pesquisar deparei-me com um problemainesperado: ir sozinha favela! Questionei se isso seria um preconceito ou se se tratava

    de uma realidade social (medo da violncia que tanto se v nesses meios). A propsito,

    segundo Arajo (2006), o discurso hegemnico d s favelas alguns adjetivos que so

    agregados como verdadeiros. Transmitem uma ideologia, ainda, pouco questionada.

    Alis, isso se v nos registros feitos pelos espaos pblicos: a imagem da favela

    coincide com lugar do trfico de drogas e da violncia. Mas, associado ao meu medo

    havia a minha intuio de que eu deveria ir, pois algomuito rico me esperava ali. Euainda no sabia da mina de ouroque realmente encontraria!

    Senti que era importante levar para ambientes acadmicos experincias que nos

    mostram as riquezas esquecidas presentes nesses espaos. Essas experincias nos

    mostram suas particularidades e nos fazem conhecer o desconhecido, tornando-nos

    assim mais flexveis a novas descobertas. Essa uma forma de incluso real. Trabalhar

    a comunidade para que a diferena enriquea ao invs de causar estranhamento.

    Ao chegar ao local de ensaio do grupo, encontrei Valdete sentada assistindo aoaquecimento24 das Meninas25. Estranhei a cena: porque ela no participava do

    aquecimento? Ser que ela era apenas uma lder e no participava dos encontros

    cantando e danando junto com asMeninas? Depois, soube que ela trabalhava naquele

    horrio e por isso no participava dos ensaios. Ela ia ao incio e logo saa para

    24O aquecimento faz parte dos exerccios feitos para preparar a voz.25Essa a forma com que cada componente do grupo se refere s colegas. Vale lembrar que a idade delas entre 50 e 90, sendo a maioria de 70 anos de idade.

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    trabalhar26. Entretanto, est presente em quase todos os shows e quem realiza palestras

    para falar da experincia do grupo.

    Nessa primeira visita ao grupo, encontrei com uma antroploga que fazia

    observaes sobre o grupo. Me vi fazendo perguntas a ela e logo senti que no deveria

    ter feito isso. Afinal, suas respostas no seriam as do grupo. Isso, na verdade, no me

    interessava. A minha idia era falar do discurso do prprio grupo e eu teria de descobri-

    lo sozinha.

    De repente, enquanto eu conversava com a antroploga, fui pega de surpresa

    com o toque de uma zabumba e com as mulheres cantando em coro. Senti-me

    literalmente invadida por uma emoo inexplicvel, quase um choque emocional.

    Tentei disfarar essa emoo, mas o grupo me puxou para a roda que elas haviam feito.

    O jeito era participar e cantar algumas cantigas da minha infncia tambm, mas me

    peguei chorando, com um n na garganta e no consegui nem danar nem cantar. Ao

    me desculpar com elas, notei que essa era a gratificao delas: emocionar pessoas.

    Posteriormente, conversando com o grupo sobre essa invaso que senti, eu brinquei

    dizendo a elas que isso falta de educao: invadir espaos emocionais das pessoas,

    sem pedir licena e a Clia (coordenadora do grupo e sobrinha da Valdete) deu uma boa

    gargalhada dizendo: por a que a gente agarra as pessoas. Fazendo uma anlise

    sobre esse fato, fao minhas as palavras de Dalcroze (1925), quando assinala que a

    vibrao sonora se comunica com a subjetividade de um sujeito agindo fisiologicamente

    e psicologicamente atravs do sistema auditivo, de percepo interna, ttil, visual, alm

    da relao do sistema nervoso com outros, como o endcrino. Alm disso, ela facilita a

    socializao e auxiliar o bem-estar. Foi exatamente isso o que as Meninas de Sinh, por

    meio da sua msica, foram capazes de fazer comigo: mobilizar meu organismo, me

    acolher, me incluir no grupo. Confesso que sa de l com um grande bem-estar.

    Essa experincia foi decisiva para o andamento da pesquisa. Eu pensei: por mais

    armada que a gente esteja, a arte, a msica, a expresso, o sensvel nos atinge! Nesse

    momento, tive certeza de que as Meninas de Sinh seriam os sujeitos da minha

    pesquisa. Desde ento eu uso a expresso: as Meninas de Sinh me en-cantaram.

    Mas, voltando ao local de ensaio do grupo, o grupo se rene sempre l para fazer

    expresso corporal e para os encontros com pessoas que realizam algum dilogo com o

    grupo (esses dilogos referem-se a pesquisas realizadas com o grupo, entrevistas e at

    26Atualmente, ela a presidente da Associao Comunitria do Alto Vera Cruz.

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    mesmo ajudas que o grupo pede a alguns profissionais como percussionistas e

    professores). Trata-se de um espao cedido pela Associao da comunidade. Ele fica em

    um ponto central da vila, prximo s casas das integrantes. um lugar de fcil acesso

    para quem vai de carro ou nibus. um galpo de 360m2 onde antigamente foi um

    Centro de Sade. Possui 200 cadeiras de plstico, que ficam empilhadas no canto do

    galpo e so usadas pelo grupo quando fazem reunies ou quando tm aulas. tambm

    nesse espao que o grupo recebe visitantes, pesquisadores e a imprensa. O espao

    possui um banheiro e uma cozinha, mas elas s a usam para tomar gua. Geralmente

    levam lanches prontos de casa para os intervalos dos ensaios e aulas. L possui tambm

    um computador que o grupo pode usar, possui fogo, geladeira e duas salas:

    Figura 6: Foto das Meninas de Sinh no ensaio, daesquerda para direita: Geraldinha, Diva, Isabel e

    Seninha.

    Quando se renem, elas fazem um intervalo para tomar um caf. Nos dias de

    encontros, elas revezam entre elas (combinando na ltima hora) quem levar o caf no

    prximo encontro. Geralmente, levam uma garrafa de caf e copos descartveis.

    Algumas vezes, levam biscoitos. As paredes do galpo so usadas para colar avisos e

    lembretes escritos por Clia, sobrinha de Valete ( ela quem marca os shows, quando

    no passam por uma agncia de produo cultural). Segundo Clia27, alm dos

    telefonemas para cada uma das Meninas do grupo, usar o cartaz na Associao a

    27Dado relatado em entrevista semi-estruturada. Aps os ensaios, eu ia sempre para a casa da Valdete. A Cliamora l. Ela considerada a coordenadora do grupo, mas ela mesma acha isso engraado devido informalidade da situao. Clia foi praticamente criada por Valdete e a tem como me. ela quem organiza acasa enquanto os outros moradores saem para trabalhar. Lava, passa, arruma, cozinha, cuida das crianas esendo o nico adulto em casa, atende aos telefonemas para contrato dos shows. Sendo assim, foi eleita acoordenadora do grupo. Ressalto, aqui, que no minha inteno nesta pesquisa abordar questes relacionadasa pagamentos, a valores que o grupo recebe, repassa, etc, mas a Clia atualmente recebe uma porcentagem do

    que contrata para o grupo. Nessas visitas casa da Valdete, eu sentava-me mesa da sala com a Clia econversvamos sobre a rotina do grupo, sobre a histria e sobre as alternativas que ela usava para comunicarcom o grupo, sendo a maioria analfabetas.

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    melhor forma de lembrar os compromissos. As Meninas que no sabem ler recebem

    ajuda das outras e isso no um problema para elas nesse espao.

    Para aprofundar o meu problema de pesquisa, repito: como as componentes do

    grupo Meninas de Sinh reinventaram um novo modo de vida nas tramas do discurso

    musical?, precisei entender a trajetria do grupo na construo desse novo sujeito

    coletivo.

    Falar de um grupo falar sobre sua identidade e cultura? Sim. S que a cultura,

    assim como a identidade no so fixas. Trata-se de um processo sempre em construo

    e em transformao. Os encontros fazem com que as identidades se tornam mltiplas

    (HALL, 2006, p.27). Dessa forma, no pretendo caracterizar o grupo Meninas de Sinh.

    Ele no homogneo. Est em movimento. J houve momento que existiram 50

    componentes. Hoje h 34.

    A formao de um grupo um processo inconcluso, pois pessoas novas passam

    a fazer parte dele e antigos integrantes o deixam. Alm disso, suas prprias integrantes

    se transformam, mudam seu modo de ser, mudam seu modo at de falar de si prprias.

    Assim, algumas Meninas falavam de si como pessoas tristes e caladas e, depois do

    ingresso no grupo como alegres, faladeiras. Na verdade, elas reinventaram novas formas

    de viver. Tambm surgiram novas msicas no grupo (alm de cantigas e versos, hoje

    elas esto compondo) e outras cantigas se transformaram tambm ao longo do tempo.

    Tudo isso me lembra Rushdie (1990), quando se refere ao hibridismo, mistura,

    impureza, transformao por meio dos encontros. Segundo ele, as combinaes

    inusitadas entre as pessoas, idias, culturas, canes constituem a melhor forma de uma

    novidade penetrar no mundo. E foi assim que as Meninas de Sinh entraram no mundo,

    reinventando-se por meio dos encontros e transformando no apenas as vidas de suas

    companheiras, mas tambm a vida de suas famlias e at mesmo a minha prpria, como

    pesquisadora28.

    Entretanto, refletir sobre o discurso do grupo quanto sua origem e composio,

    de fundamental importncia. Os sujeitos sociais no so causas, no so origem do

    discurso, mas so efeitos discursivos (PINTO, 1989, p.25). As prticas discursivas do

    grupo influenciam diretamente as identidades de suas integrantes, mesmo que elas no

    sejam fixas. Elas cantam sobre o grupo e contam sua histria por meio do discurso

    musical. Quando esto em grupo, aparecem unidades em seus discursos. Quando esto

    28Este dado ser analisado nas consideraes finais.

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    ss, aparecem algumas disperses quando falam do coletivo do grupo. No somente em

    suas falas observei isso, mas tambm nas msicas. Algumas de suas msicas possuem

    um discurso diferente daquele que cantado para falar do grupo. Entretanto, existem

    regularidades que unem esses dois discursos. Mesmo no havendo fixidez em suas

    identidades, o grupo Meninas de Sinh possui elementos comuns que aparecem

    refletidos em suas msicas e esto relacionados com as histrias de vida de cada

    componente.

    Posto isso, apresentarei primeiramente a leitura do grupo feita pelo prprio

    grupo e depois a leitura do discurso musical incluindo a melodia, o timbre, a harmonia,

    o ritmo, o estilo, a letra, o contexto, o aspecto social, focalizando sua origem e

    composio atual. Depois mostrarei as unidades, disperses e regularidades que

    aparecem. Para isso, analisei algumas msicas cantadas pelo grupo para identificar,

    como prope Foucault (1986), as unidades, dispersese regularidadescantadas pelas

    Meninas de Sinh que dizem sobre sua origem e composio. Considerei a origem do

    grupo os fatos iniciais que permitiram seus encontros. Quanto sua formao, houve

    um processo de sistematizao desses encontros que deu origem ao grupo musical. Vale

    lembrar que a formao um processo constante, em movimento, inconcluso.

    Assim sendo, fiquei atenta a todos os movimentos do grupo: sempre que havia

    alguma apresentao, o grupo falava sobre sua experincia e eu procurava fazer a minha

    prpria leitura, como pesquisadora. Elas falavam como um sujeito coletivo, em nome do

    grupo como um todo. Geralmente a Valdete tomava voz e contava a histria do grupo

    que se resume na seguinte frase:

    Eu vi essas mulheres sarem de um posto de sade com remdiosantidepressivos e pensei: tenho de fazer algo por elas. Da

    fizemos reunies para podermos conversar e o grupo foi surgindo.Deu no que deu. Se vocs me perguntarem como chegamos at

    aqui eu no sei.

    Esse discurso foi colhido em entrevista, em palestras, em vrios encontros que

    participei e ouvi o relato sobre o grupo. Est tambm presente no CD e ser mais

    explorado a seguir. Por ora, quero destacar que est posto no discurso do grupo que as

    Meninas de Sinh eram mulheres deprimidas e que foram salvas pela msica. Tambm,

    curiosamente, esse discurso era repetido sempre com as mesmas palavras.

    Entretanto, eu pensava: ser que todas elas eram deprimidas? Todas? Ser que o

    processo de se tornar um grupo musical realmente foi algo que fluiu, sem problemas,

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    pela coincidncia, at chegar ao que hoje? Diante desses questionamentos decidi ouvir

    o grupo. Para tal, eu perguntava sobre a vida de suas integrantes, sobre a formao do

    grupo e a influncia dele em suas vivncias.

    Atenta sempre s atuaes do grupo, perguntei s presentes em um ensaio29

    sobre a experincia no grupo e como ela afetara suas vidas. O dilogo foi livre, mas elas

    mesmas criaram uma ordem. Uma falava, todas aplaudiam; da a palavra era passada

    para a outra e assim foi feita uma roda de depoimentos. Diante do discurso que eu j

    conhecia da Valdete, eu esperava histrias muito tristes e grandes transformaes aps o

    ingresso para o grupo. Claro que esses depoimentos apareceram. Alguns mais

    surpreendentes do que eu imaginava, mas para minha surpresa, apareceram tambm

    histrias contrrias, de busca do grupo para compartilhar suas alegrias.

    Nos relatos, percebi que algumas das integrantes do grupo se sentiam

    anestesiadas para a vida antes de entrarem para o grupo e atribuam a ele a volta de um

    viver sensvel. Atribuem a ele at o fato de estarem vivas, como o caso da

    Romancina:

    Eu j melhorei bastante depois que meu menino morreu, mas agente no esquece (emocionada). Vai fazer dois anos agora. A

    Dona Maria, mora perto l de casa. Ela do grupo. Ela falou queia falar com a Valdete. A Valdete disse: vamos, a senhora

    acompanha a gente para onde a gente for, olha os instrumentos dagente tudo. Eu comecei a andar a falei assim: ah! Vou participar.Ela me deu a roupa. Com aquela histria de eu ajudar a carregaros instrumentos eu aprendi as msicas. Eu sempre falo: se eu notivesse no grupo acho que nem estava viva.

    Isabel e Doralice tambm contaram como o grupo transformara a vida delas,

    fazendo-as reagir timidez e falta de vontade de sair de casa passando a cuidar de si.

    Comentam tambm sobre as msicas.

    A propsito, vejamos o relato de Isabel que venceu a dificuldade de sair de casa:

    Eu tinha dificuldade de sair da minha casa. Eu no saia. Era spor necessidade. Eu nem ligava para a minha sade. Eu cuidava sdos meus filhos. E eu sou eu, n? Eu mereo ser algum. O grupome fez muito bem, muito bem mesmo. Eu comecei a lembrar que eu

    29Este ensaio foi realizado no dia 14 de novembro, quarta-feira. J havia combinado com o grupo que eu iriatodas as segundas, quartas e sextas-feiras para assistir a seus encontros. Eu havia combinado anteriormente comelas que nesse dia eu conversaria com elas aps o intervalo. Primeiramente perguntei Clia se haveria essapossibilidade. No houve discordncia. Dessa forma, neste dia, coloquei as cadeiras em roda e pedi a cadacomponente que me falasse sobre a experincia no grupo e como ela havia afetado sua vida pessoal. Filmei

    esses relatos com o consentimento do grupo e os transcrevi. Ressalto que esse filme ser entregue ao grupoaps esse trabalho, pois ele tem a inteno de registrar sua histria em um ambiente prprio que pretendemfuturamente comprar.

  • 5/24/2018 Meninas de Sinh

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    sou gente tambm, indiferente de ser me, de ter marido, eutambm cuido de mim... As cantigas so uma volta a, alegria. Agente t avanando na idade e buscar memria mais infantil d umequilbrio na gente.

    J Doralice comentou sobre sua transformao. No gostava de conversar comas pessoas e hoje cheia de amigas no grupo:

    Eu gosto demais de t nesse grupo. Ele mudou muito a minhavida. Hoje sou alegre, mas eu era muito triste, nem saa de casa,vivia aborrecida, chorava toa, ficava pelos cantos sem conversarcom ningum. Depois que entrei para o grupo a ser uma pessoaassim mais alegre, pelo menos quando estou l no grupo, juntocom elas. Eu entrava pra dentro de casa para no conversar comas pessoas que iam l. Imagina s: eu canto hoje e queria que ogrupo enchesse bastante de gente, fosse unido. A minha

    participao no grupo mudou muito a minha vida. Quando pensocoisa ruim e estou l eu distraio e esqueo... Olha, eu nunca tiveamiga para brincar. Agora tenho, para brincar de roda. A msicame fez muito bem.

    Com efeito, o grupo possibilitou um viver pblico para essas senhoras cuja vida

    era limitada a espaos familiares. Tirou-as de um viver limitado ao espao familiar.

    Alm disso mobilizou suas formas de ser, trouxe lembranas infantis que tocam o sentir.

    Como sabemos, tudo aquilo que toca o sentir chamado de Esttica, do gregoAisthesis.

    Esse termo significa estesia, sentimento, sensibilidade, cuja perda total ou parcial

    conhecida como anestesia (ainaisthsia).Aps a formao do grupo, observamos que

    muitas mulheres passaram a viver a estesia, o belo, o sensvel, a esttica, o sentir que

    recupera o olhar para si, o se sentir. Um sentir estimulado pela msica.

    Por outro lado, os relatos de Geraldinha e Mercs me apontaram a existncia de

    senhoras que buscaram o grupo porque eram muito alegres e queriam compartilhar e