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MEMÓRIAS DO BELO HORIZONTE: DIGITALIZAÇÃO DAS CADERNETAS DE CAMPO DE AARÃO REIS
DOS SANTOS, ROBERTO E. (1); FIALHO, THIAGO A. (2)
1. Escola de Arquitetura da UFMG. Departamento de Projetos
Rua Coronel Pacheco, 180 - Belo Horizonte 30.315-200 [email protected]
2. Escola de Arquitetura da UFMG. Grupo MOM (Morar de Outras Maneiras)
Rua Cosme e Damião, 437 - Belo Horizonte 31.255-320 [email protected]
RESUMO
O Museu Histórico Abílio Barreto abriga em seu acervo as Cadernetas de Campo dos levantamentos realizados pela Divisão de Estudos e Preparo do Solo da Comissão Construtora de Belo Horizonte (CCNC). Nesses documentos, produzidos entre 1894 e 1898, estão registrados dados topográficos e cadastrais. Os primeiros incluem tabelas, estacas, distâncias, ângulos, azimutes, alinhamentos e nivelamentos. Para além do cadastro da população, os segundos compreendem terrenos públicos e particulares, posição das edificações e suas divisões interiores, estado de conservação, natureza dos materiais empregados em sua construção e notas detalhadas das benfeitorias existentes nos terrenos adjacentes. Em suma, as cadernetas trazem registrados em código numérico muitos dos aspectos físicos do sítio natural sobre o qual se implantou o plano urbano para a nova capital de Minas Gerais, traçado pelo engenheiro Aarão Reis. Tais dados são passíveis de reconstituição em ambiente computacional por meio de Sistemas de Informação Geográfica (SIG) e de softwares gráficos, dando margem a novas expressões e análises para fontes primárias, como no caso em questão, referenciando novas investigações no âmbito da História Urbana. A inclusão do tempo como variável cartográfica e as diversas possibilidades de visualização de dados ao longo do tempo, para além de ampliar a capacidade de compreensão dos fenômenos urbanos, oportuniza a democratização do acesso a eles, especialmente, no que se refere às transformações impostas ao sítio natural pela urbanização e seus impactos na vida urbana, hoje. Este artigo descreve a metodologia empregada na preservação digital dessas cadernetas e aponta horizontes da pesquisa em que ela se insere, cujo foco principal está na investigação das obras públicas realizadas pelos governos municipais ao longo do século XX. A exemplo do trabalho realizado pelo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte na preservação e divulgação dos Relatórios Anuais da Prefeitura de Belo Horizonte - 1899-2005, hoje encontrados no Portal da PBH, um dos objetivos deste trabalho é facilitar a consulta das cadernetas por meio da disponibilização de fac-similes autênticos pelo MHAB e, ao mesmo tempo, garantir a integridade dos objetos físicos originais. O trabalho foi desenvolvido em duas etapas. A primeira delas consistiu no registro fotográfico, página a página, das 671 cadernetas, totalizando cerca de 27.000 fotografias, realizadas nas dependências da Biblioteca do Museu Histórico Abílio Barreto, de Outubro a Dezembro de 2014. A segunda etapa, realizada até agora em cerca de 30% do total de fotografias, dedicou-se ao processo de produção de fac-similes em formatos do tipo PDF, precedida do tratamento de imagens e de formatação de slides com inserção das marcas de procedência. Como desdobramento do trabalho, está prevista a modelagem dos dados do levantamento topográfico em
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ambiente computacional. Um primeiro momento será dedicado à leitura crítica dos memoriais descritivos dos trabalhos de levantamento da Comissão Construtora da Nova Capital e à interpretação dos métodos e instrumentos aí aplicados, bem como da notação técnica de seus dados numéricos. Num segundo momento, será procedida a transposição de tais dados para softwares de modelagem, a partir dos quais serão realizados testes e simulações da topografia original do sítio de implantação da cidade de Belo Horizonte.
Palavras-chave: Preservação Digital, Cadernetas de Campo da Comissão Construtora de Belo Horizonte, História das Obras Públicas.
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Introdução
Este trabalho descreve o processo de digitalização das cadernetas de campo dos
levantamentos técnicos que fundamentaram os estudos do traçado urbano de Belo
Horizonte, realizado pela equipe do engenheiro Aarão Reis no final do século XIX entre
1894 e 1898. Trata-se da primeira etapa da preservação digital dessa parte do acervo da
Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC)1, hoje sob a guarda do Museu Histórico
Abílio Barreto (MHAB). Recentemente esse material foi selecionado pela UNESCO para
integrar o Programa Memória do Mundo (Memory of the World – MOW), passando a ser
considerado Patrimônio da Humanidade, na categoria arquivística”2. Ainda que um tal
reconhecimento, por si só, já demonstre de antemão a relevância e a riqueza dos conteúdos
dessa documentação e justifique qualquer esforço para sua preservação, a importância
maior de transpor as cadernetas para o meio digital está na ampliação e na democratização
do acesso aos seus dados. Todas elas estão sendo transformadas em fac-similes, folha a
folha, e futuramente serão disponibilizadas ao público pelo MHAB. Este trabalho também
apresenta um estudo analítico-descritivo preliminar dos textos, dos métodos e instrumentos
empregados nos levantamentos geodésico-topográfico e cadastral do sítio de implantação
de Belo Horizonte, incluindo o arraial do Curral del Rei. A decifração desses procedimentos
visa reproduzir em ambiente computacional o sítio natural sobre qual se implantou o plano
urbano de Aarão Reis, que dentre outras coisas servirá de base para um estudo histórico do
tamponamento dos cursos d’água da área urbana de Belo Horizonte ao longo do século XX.
Os dados dos levantamentos anotados nas cadernetas constituem o registro, talvez o mais
próximo possível, das condições físicas anteriores ao processo de urbanização. Tanto o
trabalho de captura digital quanto o de análise fazem parte de uma pesquisa com foco na
História das Obras Públicas em Belo Horizonte, sediada no Grupo MOM, Departamento de
Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, com financiamento do CNPQ e da PRPq-
UFMG3, em colaboração com o MHAB.
1 “A CCNC foi criada por decreto em 14 de fevereiro de 1894. Chefiada pelo engenheiro civil Aarão Leal de
Carvalho Reis, a CCNC se instalou no arraial de Belo Horizonte em 1o de março do mesmo ano e iniciou imediatamente os trabalhos de levantamento dos dados técnicos necessários para levar adiante duas tarefas básicas: projetar a nova cidade e construir, até dezembro de 1897, as partes necessárias e suficientes para a instalação do governo mineiro”. Cf. AGUIAR, 2012, pp.5-6.
2 A reportagem “DOCUMENTOS QUE DERAM ORIGEM A BH SÃO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE: Acervo
da Comissão Construtora da Nova Capital é selecionado pela Unesco para integrar o Programa Memória do Mundo” foi publicada no Diário Oficial do Município – DOU em 8 de outubro de 2015.
3 Até o momento a pesquisa vem sendo conduzida a partir de cinco projetos: Bases Quantitativas para uma
História das Obras Públicas em Belo Horizonte (2013); Referenciais para uma História das Obras Públicas em Belo Horizonte: cronologia, periodização e tipologia (2013); Um Século de Obras Públicas: Análise dos Relatórios dos Prefeitos de Belo Horizonte /1898-2005 (2014); Tamponamento dos Córregos da Área Central de Belo Horizonte (2015); e Cadernetas de Campo da Comissão Construtora de Belo Horizonte: registro e sistematização (2015).
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Fac-similes
A primeira etapa do processo de digitalização ocorreu entre outubro e dezembro de 2014 e
teve lugar nas dependências da Biblioteca do MHAB, de modo a evitar qualquer
possibilidade de danos, roubos ou extravios dos originais. Além disso, foram tomados todos
os cuidados necessários ao seu manuseio seguro, posto que alguns dos exemplares das
cadernetas apresentam pequenos sinais de deterioração.
A captura digital das cerca de cerca de 27.000 imagens seguiu o tratamento arquivístico
previamente definido pelo MHAB, mantendo a mesma codificação já estipulada para cada
uma das 641 cadernetas catalogadas. Isso quer dizer que a caderneta constituiu a unidade
organizadora dos arquivos. Todas as imagens foram registradas com uma máquina
fotográfica NIKON D3100 que gerou arquivos digitais do tipo JPEG, com resolução
compatível com as recomendações do Conselho Nacional de Arquivos para digitalização de
manuscritos com presença de cor (300 dpi), de modo a garantir a fidelidade ao documento
original, isto é, a identificação de todos os seus caracteres – linhas, traços, pontos, manchas
de impressão etc. Os arquivos gerados são da ordem de 6 megabytes e estão armazenados
no servidor do Grupo MOM/UFMG, com cópia de segurança em seu sistema de backup.
FIGURA 1: EXEMPLO DE REPRESENTANTE DIGITAL
Fonte: Caderneta CCDT02098 - Acervo MOM / PRJ / EAUFMG / MHAB, fotos de Thiago Alfenas Fialho.
Num segundo momento dessa primeira etapa, em Janeiro de 2015, demos início ao
processo de edição das imagens em fac-similes. Esse processo consiste no enquadramento
e formatação das imagens e inserção da marca de procedência por meio do software Adobe
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Photoshop. À medida que se completa o tratamento de todas as imagens de uma unidade
organizadora, isto é, de uma determinada caderneta, é gerado um arquivo do tipo PDF,
configurando assim o chamado representante digital4 (Figura 1), que guarda autêntica
similitude com o original em termos de dimensão física e cores.
Até o momento foram tratadas cerca de 30% das imagens. As questões relacionadas aos
procedimentos de acesso, navegação, visualização e gerenciamento (armazenamento e
segurança) do banco de imagens, e que complementam o projeto de preservação digital,
serão desenvolvidos numa segunda etapa.
Levantamentos
Paralelamente ao trabalho de digitalização, vem sendo desenvolvido um estudo descritivo e
analítico de seus conteúdos cujos resultados parciais são apresentados a seguir.
O primeiro dos três volumes da Revista Geral dos Trabalhos traz um texto assinado por
Aarão Reis, engenheiro politécnico responsável pela Administração Central da CCNC5, que
esclarece que os levantamentos eram atribuição da 4a Divisão de Estudo e Preparo do Solo,
chefiada pelo engenheiro Samuel Gomes Pereira. Os trabalhos geodésicos, de
responsabilidade da 1a Seção, foram conduzidos por Ludgero Dollabella; e os trabalhos
topográficos, de responsabilidade da 2a Seção, por Américo de Macedo. A finalidade desses
levantamentos era produzir uma planta topográfica e uma planta cadastral.
A distinção entre geodesia e topografia, tal como nos explica o texto Conhecer o arraial de
Belo Horizonte para projetar a cidade de Minas: a Planta Topográfica e Cadastral da área
destinada à Cidade de Minas e o trabalho da Comissão Construtora da Nova Capital,
explica-se a partir da escala dos levantamentos:
[...] o das grandes extensões, acima de 55 km2, propiciado pela geodesia, e o das pequenas e médias extensões, abaixo dos 55 km
2, dado pela topografia. No
estudo dos 51 km2 da área destinada à nova cidade, a CCNC combinou geodesia
e topografia. [AGUIAR, 2012, pp. 6-7].
O mesmo autor esclarece o significado dessas representações para a época em que foram
realizadas:
4 O representante digital é a representação digital de um documento originalmente não digital. Cf. CONSELHO
NACIONAL DE ARQUIVOS. Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2010, p.4.
5 A organização básica da CCNC comportava três esferas claramente delimitadas: administrativa, financeira e
técnica. Entre março de 1894 e maio de 1895, sob a direção de Aarão Reis, a CCNC chegou a ter 147 integrantes, sendo 57 funcionários administrativos e 90 técnicos (48 engenheiros, 11 desenhistas e 31 condutores4). Cf. AGUIAR, pp.5-6.
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Conhecer o terreno era conhecer o mundo sobre o qual atuaria o engenheiro para modificá-lo e torná-lo adequado ao homem. Para tanto, era preciso medir e definir com precisão a forma de todo o terreno a ser transformado pelo trabalho humano [...] Era, também, registro da ocupação humana, do uso e da propriedade das terras existentes em um sítio, no caso do arraial que desapareceria para dar lugar à Cidade de Minas. Grande parte dos terrenos sobre os quais a nova capital seria erguida pertencia a particulares. Tomar controle dessas propriedades era condição essencial para que o Estado pudesse construir livre e rapidamente a nova cidade. Para tanto, as propriedades deveriam ser forçosamente vendidas ao Estado, em troca de indenizações em dinheiro ou em lotes na nova capital. Era preciso, então, determinar características de todos os terrenos e edifícios existentes no arraial, para estabelecer seus preços e fazer desapropriações. Ou seja, fazer um registro detalhado desses edifícios e terrenos, fazer um cadastro, fazer uma planta cadastral. [AGUIAR, 2012, pp.6-7]
AGUIAR também apresenta uma descrição dos métodos empregados:
[...] triangulação do sítio, com implantação de marcos geodésicos de pedra, configurando no terreno os vértices de 27 triângulos geodésicos; planimetria, com medição de ângulos e distâncias horizontais, tomando como referência os marcos
geodésicos; nivelamento, com a determinação, ao longo da estrada que ligava o arraial à Sabará, de alturas em relação ao nível do mar, tomadas a partir da linha da Estrada de Ferro Central do Brasil, às margens do Rio das Velhas, e com a fixação de uma referência de nível no arraial, no Largo da Matriz. [AGUIAR, 2012, p.7]
O já citado primeiro volume da Revista Geral dos Trabalhos também traz um minucioso
relatório dos trabalhos até então realizados pela CCNC. O item Estudo e Preparo do Solo,
Geodesia e Topografia descreve os procedimentos técnicos para a instalação da linha de
base, cujo alinhamento geral foi determinado por estacas de 30 em 30m, para a medição
dos ângulos da rede de triângulos utilizados para os estudos geodésicos que
fundamentariam a produção da planta cadastral da parte edificada do arraial de Belo
Horizonte (Curral Del-Rei) e dos terrenos adjacentes [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS,
1895, p.40-41].
Com base no Ofício n. 131 de Samuel Gomes Pereira, Chefe da 4a Divisão, datado de 5 de
outubro de 1894, AGUIAR relaciona os equipamentos utilizados:
[...] os instrumentos utilizados nos levantamentos foram os disponíveis no comércio do Rio de Janeiro: teodolitos produzidos pela firma inglesa Louis Casella e trânsitos e níveis
6 fabricados nos Estados Unidos por W & L. E. Gurley,
utilizados em trabalhos de construção ferroviária. Na avaliação desse engenheiro, esses eram instrumentos confiáveis, mas não necessariamente os mais aperfeiçoados. A importação de aparelhos mais avançados foi inviabilizada pelo bloqueio do porto do Rio de Janeiro em decorrência da Revolta da Armada, que coincidiu com o período de organização da CCNC, e pelo exíguo prazo disponível para os levantamentos, que tornava impossível esperar pela chegada de instrumentos importados. [AGUIAR, 2012, p.8. Grifos nossos]
A memória descritiva dos trabalhos, assinada por Samuel Gomes Pereira, confirma a
afirmação: 6 Em nota AGUIAR nos explica: “Teodolitos eram utilizados para medir ângulos horizontais e verticais, enquanto
trânsitos permitiam medir apenas ângulos horizontais. A medida de alturas em relação a determinado ponto de referência era feita com os níveis. Cf. AGUIAR, 2012, p.8.
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[...] empregando-se, como goniômetro, o trânsito de Gurley, e, como diastímetro, as fitas de aço. [...] Estas foram aferidas, servindo de padrão para uma outra fita, também de aço, dos fabricantes Chesterman, de Sheffield, aferida na Casa da Moeda do Rio de Janeiro. [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.47]
Ele menciona também a utilização da mira de Casella nos nivelamentos [REVISTA GERAL
DOS TRABALHOS, 1985, p.51]. No mesmo documento, o chefe da 4a Divisão descreve os
procedimentos de medição:
Para medir, estendia-se a fita sobre cavaletes de madeira espaçados de 5 metros e esticava-se, com dinamômetro, até sujeitá-la a uma tensão de 10 quilogramas; nesta posição, a fita era sensivelmente paralela à inclinação do terreno e marcavam-se, então os seus extremos sobre o solo, projetando-os, por meio de prumos, sobre as cabeças das estacas, que se enterravam até ficarem rentes ao chão. [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.47-48]
Como uma curiosidade, cabe destacar que anotações na caderneta CCDT02038 também
fazem referência à utilização das chamadas Linhas de Siphon, similares às atuais
mangueiras de nível, indicando que foram empregadas técnicas mais rudimentares de
levantamento topográfico, para além do uso dos aparelhos mencionados.
Cadernetas
Até o momento, foram identificados, a partir de seus títulos, cerca de 11 tipos diferentes de
cadernetas, a saber: de Caminhamento; de Nivelamento; de Linhas Auxiliares, de Seções
Transversais; de Alinhamento; de Detalhes Interiores, de Detalhes Exteriores, de Redução
ao Horizonte; e, também, de levantamentos de casos específicos de terrenos, de Medição
de Águas e de Dados Demográficos. Entretanto, a já citada Revista Geral dos Trabalhos
detalha apenas dois tipos – as de Caminhamentos e as de Nivelamentos. Os primeiros
foram classificados em três categorias – linhas de perímetro, linhas auxiliares e seções
transversais – assim descritos por Samuel Gomes Pereira:
Chamamos linhas auxiliares as que, partindo de um ponto do perímetro, vão se ligar a um outro ponto do mesmo perímetro e que têm por fim auxiliar, servindo de base, o levantamento dos detalhes. As seções transversais são linhas que partem de pontos do perímetro, ou das linhas auxiliares, tendo por fim assinalar minuciosamente todos os detalhes que não convenha levantar pelas auxiliares por causa de obstáculos (casas, muros etc., etc.) ou por ficarem a uma distância inconveniente daquelas primeiras linhas [...] os caminhamentos foram estaqueados de 10 em 10 metros e, nos triângulos, de 20 em 20 metros; empregando-se, como goniômetro, o trânsito de Gurley, e, como diastímetro, as fitas de aço [...] Todas as linhas de perímetro, auxiliares e de seções transversais foram estaqueadas pelo mesmo processo. [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.47]
QUADRO 1: COMPARAÇÃO ENTRE MODELOS DESCRITOS NO MEMORIAL DESCRITIVO E CADERNETAS REAIS
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Fonte: Elaborado pelos autores.
Registro de caminhamentos: perímetros e linhas auxiliares Fonte: Revista Geral dos Trabalhos, volume 1, 1895, 1, p.49
Exemplo de caderneta de Alinhamento Fonte: CCDT02035
Registro de caminhamentos: seções transversais Fonte: Revista Geral dos Trabalhos, volume 1, 1895, 1, p.49.
Exemplo de caderneta de Seções Transversais Fonte: CCDT02014
Quando comparados os modelos com os exemplares reais, pode-se perceber alterações na
terminologia empregada na denominação dos serviços e das próprias cadernetas. As
cadernetas de caminhamentos, em que estão registrados estacas, deflexões, azimutes e
desenhos de observação, coincidem exatamente com o modelo do memorial descritivo,
porém são chamadas Cadernetas de Alinhamento. Por outro lado, as cadernetas de
caminhamento de seções transversais estão registradas num modelo distinto daquele que
aparece no memorial descritivo, tal como indica o Quadro 1.
As cadernetas de alinhamento, para além de demarcar as linhas que seriam posteriormente
niveladas, parecem ter também a função de reconhecimento de terreno. Os dados
numéricos são acompanhados de minuciosos croquis que, decerto, devem ter ajudado no
planejamento das operações de nivelamento e facilitado os desenhos definitivos em escala.
A Figura 3 é um exemplo significativo do foi dito acima. Ela traz uma montagem da
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caderneta de alinhamento CCDT02311, que registra uma parcela do curso do córrego do
Leitão, num trecho de divisa das fazendas de Ilídio Ferreira da Luz e de Cândido Lúcio.
FIGURA 3: MONTAGEM DE TRECHO DO CÓRREGO DO LEITÃO A PARTIR DE CROQUIS DE CADERNETA DE ALINHAMENTO
Fonte: Montagem elaborada pelos autores a partir da Caderneta CCDT02311.
O memorial descritivo de Samuel Gomes Pereira assim descreve o modelo de caderneta
adotado para o nivelamento das linhas:
Na primeira coluna registram-se os números das estacas dos alinhamentos; na 2a,
as visadas à ré; na 3a, a altura do instrumento; na 4
a, as visadas avante sobre as
estacas de mudança, ou auxiliares; na 5a, as visadas avante sobre as estacas dos
alinhamentos; e, finalmente, na 6a, as altitudes dos diversos pontos do terreno.
A separação das visadas avante em duas colunas tem a grande vantagem de facilitar o cálculo da caderneta feito no campo pelo observador. [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.51]
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Tal como indica o Quadro 2, o modelo de caderneta de nivelamento coincide com o das
cadernetas reais.
QUADRO 2: COMPARAÇÃO ENTRE MODELO DESCRITO NO MEMORIAL DESCRITIVO E CADERNETAS DE NIVELAMENTO REAIS
Fonte: Elaborado pelos autores.
Modelo para caderneta de Nivelamento Fonte: Revista Geral dos Trabalhos, volume 1, 1895, 1, p.51.
Exemplo de caderneta real de Nivelamento Fonte: Caderneta CCDTO2029
De modo geral, a notação técnica dos registros é bastante irregular, tanto no modo como
são tituladas quanto no modo como são organizadas as informações registradas. Por
exemplo, algumas apresentam índices de conteúdos e numeração de páginas, outras não.
Percebe-se que algumas delas foram passadas a limpo. A parcela das cadernetas
investigadas mais detalhadamente, entre a CCDT02001 e a CCDT02055, trazem a
assinatura – Samuel Pereira, Chefe de Seção – com visto de Américo de Macedo, ambos da
4a. Divisão, de Estudos e Preparo do Solo.
Além dos levantamentos propriamente ditos, várias outras informações e dados podem
ajudar a compreender os procedimentos utilizados nas operações de campo e na
organização dos trabalhos. Um exemplo é o dado da Caderneta CCDT02040, que traz uma
lista de nomes associados a funções e ferramentas utilizadas nos levantamentos (Quadro
3), a partir da qual podemos inferir, pelo menos em parte, a composição de uma equipe de
campo.
Outro exemplo é o da caderneta CCDT020033 que, tal como se observa no Quadro 4,
revela que a forma de comunicação entre os membros das equipes de campo se fazia por
meio de sinais sonoros.
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QUADRO 3: LISTA DE NOMES ASSOCIADOS A FUNÇÕES E FERRAMENTAS UTILIZADOS NOS LEVANTAMENTOS
Fonte: Caderneta CCDT02040 Acervo MOM / PRJ / EAUFMG / MHAB, fotos de Thiago Alfenas Fialho.
Foi mantida a grafia original.
1
2
3
4
5
6
8
7
11
9
10
12
Antônio Avelino
Damas
Modesto dos Reis
Gabriel Lucio
José Victorino
Tito Reis
José Eloy Sacramento
José Mathias
José Custódio
Arthur Ferreira
Elias de Sousa
Luiz Gonçalo
Benedito
Raymundo Guedes
1
1
1
1
1
1f234
4
4
4
5
4
4
123/4
6
1a balisa
1a balisa
foice
“
“
2a balisa
2a balisa
mano[?]
foice
estoqueiro
fileira
nível
despedido
-
QUADRO 4: LISTA DE COMANDOS SONOROS PARA COMUNICAÇÃO À DISTÂNCIA ENTRE OS MEMBROS DAS EQUIPES DE CAMPO
Fonte: Caderneta CCDT02033 Acervo MOM / PRJ / EAUFMG / MHAB, fotos de Thiago Alfenas Fialho.
Toque dobrado
1 apito longo
2 “ “
3 “ “
4 “ “
5 “ “
6 “ “
7 “ “
Toque e três apitos
Toque e dois apitos
Attenção!
Suba!
Desça!
Suba o signal
Desça o signal
Repita a última operação
Prompto Adiante!
Prompto
Concluído tudo!
Espere ordem
Conforme já foi dito, as cadernetas trazem ainda detalhes de dados cadastrais, tais como
desenhos de ruas e propriedades privadas, e também dados demográficos, tal como está
registrado na caderneta CCDT02368, intitulada “Proprietários e Casas de Inquilinos do
Arraial”, que serão alvo de estudos futuros.
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Decifração das Cadernetas do Triângulo VI
A seguir, apresentamos um estudo das cadernetas correspondentes ao Triângulo VI. Essa
escolha se deve ao fato de esse triângulo cobrir grande parte da bacia elementar do córrego
do Leitão, objeto do suprareferido projeto Tamponamento dos Córregos da Área Central de
Belo Horizonte.
Inicialmente, foi feita uma linha do tempo das cadernetas que trazem o Triângulo VI em seu
título, tal como ilustra a Figura 4.
FIGURA 4: LINHA DO TEMPO DOS TRABALHOS DE LEVANTAMENTO DO TRIÂNGULO VI, BASEADA NAS DATAS DE PRODUÇÃO DAS CADERNETAS
Fonte: Elaboração dos autores, a partir das cadernetas mencionadas abaixo.
Como se pode notar, a maior parte das cadernetas foi levantada no segundo semestre de
1894, com trabalhos mais intensos no mês de novembro, provavelmente com a finalidade de
evitar os transtornos do período chuvoso. Pode-se também inferir que os trabalhos se
iniciam com as cadernetas de Caminhamento, seguidas pelas cadernetas de Alinhamento,
Linhas Auxiliares e Nivelamento. Para além das cadernetas com dados de natureza
numérica, tratamos de identificar na Planta Geodésica, Topográfica e Cadastral da Zona
Estudada as demais informações referentes à posição desse triângulo na rede geodésica
definida pela CCNC.
Num segundo momento, passamos à decifração dos dados das cadernetas na tentativa de
transpor seus dados para um software de modelagem tridimensional. Para isso, retomamos
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o esquema geral (Figura 5) descrito no memorial descritivo dos trabalhos topográficos, já
citado, de autoria de Samuel Gomes Pereira, que assim definia os procedimentos de
Nivelamento:
[...] Todas as linhas mencionadas anteriormente foram cotadas tomando para plano de comparação o nível médio do mar. Partiu-se, com o primeiro nivelamento, da soleira da ponta da E. F. Central do Brasil sobre o ribeirão do Arrudas, cuja altitude é de 692m.346; e subindo pela estrada de rodagem de Sabará até Belo Horizonte, firmou-se o primeiro marco de referência, no Largo da Matriz, na cota 859m.953 [...] Em seguida, damos um croquis representativo das linhas que se estaquearam em cada triângulo para a representação do terreno na planta geral por meio das curvas de nível. [pp.50-51. Grifos do original]
FIGURA 5: ESQUEMAS GERAL DAS LINHAS DE ESTAQUEAMENTO E DO ESTAQUEAMENTO DO TRIÂNGULO VI
Fonte: Montagem dos autores a partir de imagem da Revista Geral dos Trabalhos, volume 1, 1895, 1, p.51
O esquema acima serviu de referência para a intepretação dos procedimentos de
levantamento do Triângulo VI. Partimos da remontagem da rede de triangulação, que foi
justaposta ao traçado da cidade, de modo a facilitar o georreferenciamento aproximado de
seus vértices (Figura 6).
Seguindo os procedimentos definidos no esquema geral, com referência nos dados das
cadernetas CCDT02220, CCDT02245, CCDT02283, CCDT02286 e CCDT02317, chegamos
ao esquema de estaqueamento do triângulo VI, tal como ilustra a Figura 5.
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FIGURA 6: JUSTAPOSIÇÃO DA PLANTA GEODÉSICA, TOPOGRÁFICA E CADASTRAL (COM
DESTAQUE PARA O TRIÂNGULO VI) COM MAPA DE OCUPAÇÃO ATUAL DE BELO HORIZONTE
Fonte: Elaborada pelos autores a partir da sobreposição da base cadastral PRODABEL-2010 à Planta Geodésica, Topográfica e Cadastral da Zona Estudada.
Com base nessa interpretação, iniciamos a transposição dos dados das cadernetas de
nivelamento supracitadas para o software AutoCAD. Sobre as linhas definidas pela rede de
triângulos foram lançados os pontos de cada uma das estacas e o seu nivelamento. Com
base nessa constelação de pontos o software é capaz de gerar uma superfície e definir
curvas de nível. Embora essa operação esteja sendo testada no pequeno trecho
representado pelo Triângulo VI, a ideia é de que com essa reconstituição possamos gerar
uma maquete virtual de toda a área coberta pelos levantamentos registrados nas
cadernetas. A Figura7 traz em primeiro plano o perfil topográfico da linha que parte do Morro
do Cruzeiro, correspondente ao trecho onde hoje se encontra a Praça Milton Campos e o
Morro Redondo, onde hoje supostamente estão situados reservatórios da COPASA, entre
as Avenidas Nossa Senhora do Carmo e Presidente Eurico Dutra.
FIGURA 7: PERFIL DA LINHA QUE PARTE DO MORRO DO CRUZEIRO AO MORRO REDONDO E SIMULAÇÃO DA TOPOGRAFIA DO TRIÂNGULO VI
Fonte: Elaborado pelos autores a partir da transposição dos dados das cadernetas CCDT02220 e de fragmento da Planta Geodésica, Topográfica e Cadastral.
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Ainda que esta abordagem tenha caráter preliminar e apresente resultados parciais e
incompletos, é possível dela inferir o potencial das cadernetas como material historiográfico
primário.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
Referências Bibliográficas
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SALGUEIRO, Heliana Angotti. Engenheiro Aarão Reis: o progresso como missão. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1997.
Agradecimentos
Este trabalho não teria sido possível sem o apoio do Museu Histórico Abílio Barreto, nas
pessoas da historiadora Célia Regina Araújo Alves; dos bibliotecários Christiano Marcos
Ribeiro Quadros, Danielle Bacelete de Souza e Maria Célia Pessoa Ayres Dias; e da
restauradora Ivete Ferreira Dutra. Contamos também com as preciosas colaborações do
arquiteto e fotógrafo Rodrigo Santos Marcandier Gonçalves e do estudante de arquitetura
Vinicius Fortes de Morais Carvalho.