memory palaces theoretical section

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Palácios da Memória II a revelação da arquitectura Volume I - Secção Teórica O Processo de Leitura do Monumento por PEDRO MARQUES DE ABREU ORIENTADORES ISABEL ABRANCHES MENEZES SEQUEIRA E SILVA Professora Catedrática jubilada (FAUTL) MARIA ANTONIETTA CRIPPA Professore Ordinario (FAS Politecnico di Milano) JÚRI PRESIDENTE REITOR DA UNIVERSIDADE TÉCNICA DE LISBOA VOGAIS JORGE DE NOVAIS TELLES DE FARIA CORRÊA Professor Catedrático (FAUTL) MARIA JOÃO QUINTAS LOPES BAPTISTA NETO Professora Associada (FLUL) MÁRIO JORGE DE CARVALHO Professor Associado (FCSHUNL) FRANCISCO JOSÉ GENTIL BERGER Professor Associado (FAUTL) JOSÉ DUARTE CENTENO GORJÃO JORGE Professor Associado (FAUTL) Doutora Doutora Doutor Doutora Doutor Doutor Doutor Faculdade de Arquitectura UNIVERSIDADE TÉCNICA DE LISBOA 2007 Tese para a obtenção do grau de Doutor em Arquitectura

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Memória

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  • Palcios da Memria IIa revelao da arquitectura

    Volume I - Seco TericaO Processo de Leitura do Monumento

    por PEDRO MARQUES DE ABREU

    ORIENTADORES

    ISABEL ABRANCHES MENEZES SEQUEIRA E SILVAProfessora Catedrtica jubilada (FAUTL)MARIA ANTONIETTA CRIPPAProfessore Ordinario (FAS Politecnico di Milano)

    JRI

    PRESIDENTE

    REITOR DA UNIVERSIDADE TCNICA DE LISBOAVOGAIS

    JORGE DE NOVAIS TELLES DE FARIA CORRAProfessor Catedrtico (FAUTL)MARIA JOO QUINTAS LOPES BAPTISTA NETOProfessora Associada (FLUL)MRIO JORGE DE CARVALHOProfessor Associado (FCSHUNL)FRANCISCO JOS GENTIL BERGERProfessor Associado (FAUTL)JOS DUARTE CENTENO GORJO JORGEProfessor Associado (FAUTL)

    Doutora

    Doutora

    Doutor

    Doutora

    Doutor

    Doutor

    Doutor

    Faculdade de ArquitecturaUNIVERSIDADE TCNICA DE LISBOA

    2007

    Tese para a obteno do grau de Doutor em Arquitectura

  • , se opera

    Em memria de D. Giussani

  • NDICE

    Prefcio 15 Agradecimentos 17

    Introduo 19

    1. Objectivos da dissertao. 22 2. Antecedentes da dissertao. 22

    3. Mtodo da dissertao 23

    4. Apresentao da dissertao 24 4.1. Seco Prtica 24 4.2. Seco Terica 25

    Primeira Parte 29

    O Problema do Monumento e do Restauro 29

    I. Problemata* 31

    II. Sntese do Problema 35

    1. O que restaurar? 35 1.1. mbito da Pergunta 36 1.2. Aspectos a valorizar no juzo de preservao 36 1.3. Problematizao da pergunta 39 1.4. Resoluo da pergunta 39 1.5. Risco da no-resposta 41 1.6. Nexo com a teoria da arquitectura 41

    2. Como restaurar? 43 2.1. mbito da pergunta 43 2.2. Problematizao da pergunta 44

  • 6

    2.2.1. Necessria artisticidade do restauro 44 2.2.2. O restauro no deve ser aco inventiva. 47 2.2.3. Essncia tica da pergunta como restaurar? 50

    2.3. Risco da no-resposta 52 2.4. Resoluo da pergunta 53 2.5. Nexo com a teoria da arquitectura 54

    3. Porqu restaurar? 56 3.1. Problematizao da pergunta 56 3.2. Nexo com a teoria da arquitectura 59 3.3. Risco da no-resposta 63 3.4. mbito da pergunta 66 3.5. Resoluo da pergunta 68

    III. Concluses intermdias 71

    1. Resoluo metodolgica das trs perguntas 71

    2. Outras concluses intermdias 72 2.1. Aspectos comunicantes entre a leitura e a definio da arquitectura 72 2.2. Necessidade lgica de um arqutipo de habitao 72 2.3. Importncia da problemtica do Restauro para a Arquitectura 74

    Segunda Parte 77

    Primeiro Captulo 79

    DA NECESSIDADE DE UM PROCESSO DE LEITURA 79

    I. O Lugar do Sentimento 81

    II. A Necessidade da Experincia 85

    1. Casos que solicitam a experincia 88 1.1. As Pessoas 88 1.2. Os Objectos Tcnicos Sofisticados 89 1.3. As Antiguidades 89 1.4. A Obra de Arte 92

    2. A experincia da obra de arte. 93 2.1. Aspectos da Experincia da obra de arte 93 2.2. Nveis de Experincia da obra de arte 107

  • 7

    2.2.1. Nvel prtico 113 2.2.2. Nvel conceptual 113 2.2.3. Nvel metafsico 115 2.2.4. Nvel histrico 117

    2.3. Deficincia da modalidade de conhecimento estsica ou sentimental da obra de arte 120

    3. Experincia da arquitectura 122 3.1. Constituio da arquitectura pela Experincia 122 3.2. Resistncias da arquitectura experincia 124 3.3. Necessidade da constituio da construo como arquitectura 125 3.4. Obrigao tica da Experincia 126 3.5. Insuficincia da Experincia 127

    III. A Necessidade da Leitura 129

    IV. A Necessidade do Processo de Leitura. 134

    V. Advertncias a um Processo de Leitura 138

    Segundo Captulo 142

    O PROCESSO DE LEITURA 142

    I. Antecedentes 143

    O Processo di Lettura Storico-Critico de Sandro Benedetti. 143

    1. O Processo di Lettura Storico-Critico. 143

    2. Aspectos do pensamento de Benedetti complementares ao Processo de Leitura 147

    3. Sentido do desenvolvimento dado por ns ao Processo de Leitura de Sandro Benedetti 151

    II. Objectivos. 153 1. Primeiro Objectivo Participao da obra de arquitectura no

    Eu 154 1.1. O mbito ontolgico da arquitectura 155

  • 8

    1.1.1. Qualidades acidentais da arquitectura 155 1.1.2. mbito potico da natureza da arquitectura 156

    1.2. Como que a arquitectura participa no eu? 160 1.2.1. Diversos Ambientes na Msica e na Arquitectura 162 1.2.2. A ideia de arquitectura 165 1.2.3. O genius da Arquitectura 167

    1.3. Anlise dos modos de participao da arquitectura no Eu 168 1.3.1. A arquitectura como Obra de Arte. 168

    1.3.1.1. Tema 169 1.3.1.2. Especificidade do poetar em Arquitectura 176

    1.3.2. A arquitectura como Morada. 179 1.3.3. A arquitectura como Monumento. 192 1.3.4. Nexo entre as trs espcies da arquitectura. 205

    1.4. A forma do contedo de participao da arquitectura no Eu 207 2. Segundo objectivo 212

    2.1. Convergncia do primeiro com o segundo objectivo da Leitura 212 2.1.1. Fases crtica e formativa da Leitura 213

    2.2. Reproduo da experincia monumental pela forma restaurada 215

    III. Produtos 220

    1. Produtos do primeiro objectivo o sentido e o gesto 220 1.1. Especificao do produto da participao da obra no Eu 221

    1.1.1. A noo de Sentido 221 1.1.2. O Sentido como condio para a Participao da obra no Eu 222

    1.2. O Gesto 224 1.2.1. O Tom e o Ritmo 224 1.2.2. A Melodia 226 1.2.3. O Gesto 227

    1.3. O Sentido 228 1.3.1. Mtodos para a aquisio do Sentido da obra 229 1.3.2. As Formas de Sentido da obra. 229

    1.4. Afinidades do conceito de gesto o padro de acontecimentos 231 1.5. Produtos da Leitura: gesto e sentido 236

    2. Produto do segundo objectivo reprodutibilidade 237 2.1. A reproduo da experincia da arquitectura e a cpia 237

    2.2. Simulao da reproduo 239

    IV. Dados e Materiais 243 1. Noo de material 244 2. Dados do Processo de Leitura 244

  • 9

    3. Materiais do Processo de Leitura 248

    V. Dimenses 253

    1. Premissas 253 1.1. Necessidade e finalidade das dimenses do Processo de Leitura 253 1.2. Forma como mbito de investigao da obra 255 1.3. Especificao das Dimenses do Processo de Leitura 258

    2. A Dimenso Estsica do Processo de Leitura 263 2.1. Determinao da Dimenso Estsica do Processo de Leitura. 263 2.2. Contedos da Dimenso Estsica do Processo de Leitura. 263

    2.2.1. Gesto 264 2.2.2. Tom e Ritmo 266 2.2.3. Dados dos Sistemas Perceptivos 267

    2.2.3.1. Sistema Hptico 267 2.2.3.2. Sistema Paladar-olfacto 268 2.2.3.3. Sistema Auditivo 269 2.2.3.4. Sistema ptico 270 2.2.3.5. Sistema de Orientao Bsico 273 2.2.3.6. Interactividade dos sistemas perceptivos 274

    2.2.4. Qualidades da arquitectura 274 2.2.4.1. Escala 277 2.2.4.2. Proporo 277

    2.2.5. Organizao dos Dados recolhidos e dos Materiais. 279 2.3. Insuficincias da Dimenso Estsica do Processo de Leitura 279

    3. A Dimenso Histrica do Processo de Leitura 281 3.1. Determinaes da Dimenso Histrica do Processo de Leitura 281 3.2. A Dimenso Histrica do Processo de Leitura aplicada Reproduo 282 3.3. A Dimenso Histrica do Processo de Leitura aplicada ao Gesto e ao

    Sentido. 283 3.3.1. Experincias da obra 283 3.3.2. Dados biogrficos dos protagonistas e leitores da obra 286 3.3.3. O processo formativo da obra. 288 3.3.4. A cultura da poca. 290 3.3.5. Estrutura e Desenvolvimento da Dimenso Histrica do Processo de

    Leitura aplicada ao Gesto e ao Sentido 292 3.4. O monumento como documento 293

    4. A Dimenso Temtica do Processo de Leitura 295 4.1. Objectivos da Dimenso Temtica da Leitura 295 4.2. Operatividade da Dimenso Temtica da Leitura 296 4.3. Execuo da investigao do Tema 298

  • 10

    VI. Do Processo de Leitura Leitura 301

    1. Inconsequncia da Leitura ao Processo de Leitura 301 1.1. Acronicidade do Processo de Leitura 302 1.2. Adaptao do Processo ao objecto de Leitura 304 1.3. Atitude do leitor 305 1.4. Discrepncia de substncias entre o Processo e a Leitura. 306

    2. Tu, ou da Leitura da arquitectura 308 2.1. Uma alegoria 308 2.2. Modalidades de relao com a obra 309

    2.2.1. Modalidades de considerao do objecto na relao com o sujeito. 309 2.2.2. Gradientes entre tu e ele 312 2.2.3. Consequncias para o sujeito das diferentes modalidades de tratamento

    do objecto. 314 2.2.3.1. O espao e o tempo. 314 2.2.3.2. Tu vitalidade do Eu 316

    2.3. A obra, o leitor e a leitura. 318

    Anexos 321

    Anexo I 323

    O Processo de Leitura Histrico-Crtico 323

    ANEXO II 331

    Donato 331

    ANEXO III 333

    A Balada de Mastro Manole 333

    Monastirea Argesului 336

    Concluso 341

    1. Reviso da exposio da tese 342

    2. Tu, ou do conhecimento em Arquitectura 347

    Memria e Arquitectura 349

  • 11

    1. Patologias e processos teraputicos da Memria. 349 1.1. Primeiro ensaio: Remmoration, rptition, perlaboration 350 1.2. Segundo ensaio: Deuil et Mlancolie 350 1.3. Sntese dos dois ensaios de Freud 352 1.4. Aplicao memria colectiva. 352

    2. A experincia do Monumento 354 2.1. O Processo de Leitura 355 2.2. O Restauro crtico 356

    3. A Tradio e a arquitectura ex-novo 361 3.1. Patologias da arquitectura ex-novo 361 3.2. A competncia teraputica da Tradio. 364 3.3. Operatividade da Tradio na Arquitectura 368 3.4. Uma derradeira objeco... 372

    4. Memria e Tradio o porqu e o como da Arquitectura 375

    Bibliografia 377

    Bibliografia Activa 379

    Bibliografia Passiva 390

    Musicografia 415

  • Naqueles momentos Iuri Andreievitch sentia que no

    era ele que fazia o essencial do seu trabalho mas qualquer coisa de mais alto que o dominava e dirigia: o estado da poesia e do pensamento universais, o seu futuro, o passo que devia completar o seu desenvolvimento histrico. E sentia que no era mais do que o pretexto e o ponto de apoio desse movimento.

    Afastava todas as censuras que poderia dirigir a si mesmo, o descontentamento ntimo e o sentimento da prpria insignificncia abandonavam-no por algum tempo. Voltava a cabea e olhava volta.

    Via as cabeas de Lara e Katenka adormecidas sobre as almofadas brancas como a neve. O asseio da roupa, a limpeza da casa, a pureza das suas feies, fundindo-se com a limpidez da noite, da neve, das estrelas e da lua numa mesma vaga que o penetrava at ao corao, faziam-no jubilar e chorar, penetravam-no da pureza triunfante da existncia.

    Senhor! Senhor! Murmurava ele quase em alta voz E tudo isto para mim! Porque me concedeis tanto? Como deixaste que me aproximasse de Vs, como permitistes que passasse por esta terra incomparvel, sob as Vossas estrelas, aos ps desta beleza temerria, resignada, infeliz, que no posso deixar de contemplar?

    Eram trs horas da manh quando Iuri Andreievitch ergueu os olhos da mesa e da folha de papel. A tenso do seu esprito diminua e ele voltava a si, realidade, feliz, forte, tranquilo.

    Boris Pasternak O Doutor Jivago: De volta

    a Varykino (Dcima quarta parte), VIII.

  • 15

    Prefcio

    Uma vez numa aula, ainda estudante de arquitectura, um dos meus professores recordou uma expresso de um seu velho mestre1:

    A arquitectura a ltima das profisses verdadeiramente humanistas.

    A arquitectura a ltima das actividades em que o artstico e o cientfico, o material e o metafsico, o psicolgico e o social, permanecem ainda inscindivelmente ligados. E em que continua a ser necessrio ao fazedor da arquitectura o domnio operativo de todas estas dimenses da vida, o conhecimento da realidade inteira. A arquitectura o modo de agir e pensar em que continua a ser necessria aquela sntese activa de saber como tenso entre o real e o pessoal que s se realiza numa verdadeira humanidade.

    Eu nunca esqueci essa frase e, no tempo, ela tornou-se o motor do meu trabalho de investigao.

    Esta dissertao , outra vez, uma tentativa para verificar essa frase: para dela adquirir mais aguda conscincia e para lhe conferir mais carne.

    1 Foi o meu antigo professor, o arquitecto Lus Afonso que no ano lectivo

    1988/1989 me transmitiu esta frase, cuja autoria atribua ao Professor Antero Ferreira.

  • 17

    Agradecimentos

    Os meus agradecimentos vo em primeiro lugar para quem me orientou neste trabalho: a Professora Isabel Abranches de Meneses (catedrtica jubilada da Faculdade de Arquitectura da U.T.L) e a Professora Maria Antonietta Crippa (professora associada da Faculdade de Arquitectura do Politcnico de Milo). A ambas sou devedor dum atento acompanhamento e duma correco efectiva, que nunca deixou de respeitar a minha liberdade, nem de reclamar minha maturidade intelectual.

    Devo depois agradecer ao Professor Jos Duarte Gorjo Jorge, responsvel pela Seco a que perteno na Faculdade de Arquitectura, e com quem confrontei, longa e frequentemente, as descobertas que ia fazendo ao longo da minha investigao. Grato lhe fico pela disponibilidade, pelo apoio, e pelas perspicazes chamadas de ateno, que sempre teve para comigo, muito para alm do que a sua responsabilidade institucional determinava.

    So ainda devedores de um especial agradecimento os professores de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa Mrio Jorge de Carvalho, Nuno Ferro, Filomena Molder e Pedro Paixo, de quem fui aluno, e que sempre se disponibilizaram para me orientar por entre alguns aspectos conceptuais, afins ao territrio da arquitectura, que senti necessidade de conhecer. (Especial agradecimento me merece o primeiro destes professores pela penosa tarefa, a que gentilmente acedeu e que cumpriu com mincia, de rever e discutir comigo alguns dos captulos desta dissertao.)

  • 18

    Agradeo depois aos meus amigos pelo apoio prestado e pelo encorajamento especialmente Dra. Maria Teresa Marques (que realizou a atenta reviso do texto), ao Dr. Filipe Fernandes (pelo apoio no arranjo grfico), aos Drs. Lus Rosrio e Mafalda Oliveira (que me auxiliaram na recolha de material relativo doena de Alzheimer), Professora Dra. Maria do Rosrio Lupi Bello e Dra. Ins Tom pelo esclarecimento de vrias questes semnticas.

    Agradeo encarecidamente minha mulher e aos meus filhos pelo apoio inabalvel e pela pacincia inesgotvel que tiveram para com as minhas longas ausncias e a pouca disponibilidade afectiva o seu sacrifcio e abnegao ultrapassa qualquer possibilidade de ressarcimento futuro. Agradeo ao meu pai a tarefa da organizao grfica do texto. Agradeo aos meus irmos o apoio prestado: minha irm, a Dra. Maria Abreu, a reviso das provas; ao meu irmo, o Dr. Tiago Abreu, o auxlio nas tarefas informticas.

    Agradeo aos muitos que de algum modo prestaram a sua colaborao minha investigao (de tantos que foram no os poderei recordar a todos que me perdoem os que no so nomeados): ao Professor Alexandre Alves Costa (da Faculdade de Arquitectura do Porto), ao Professor Antnio Mendes Pedro e Dra. Olga Branco (do ISPA), ao Professor Lus Soczka, ao Professor Virgolino Jorge; aos professores da Faculdade de Arquitectura com quem mais directamente discuti os assuntos da tese, especialmente os meus colegas de Departamento e Seco (particularmente professora Marieta D Mesquita, que frequentemente me orientou em pesquisas de teor histrico). No posso esquecer o apoio prestado pelos funcionrios da Faculdade de Arquitectura, nomeadamente ao Sr. Jos Gonalves e ao restante pessoal do Centro Editorial, que trataram da impresso e encadernao dos exemplares da dissertao.

    Quero tambm agradecer, e fao-o reconhecidamente, aos meus alunos, com quem, no dilogo das aulas e atendimentos, ao longo de vrios anos, foi emergindo o contedo desta dissertao.

    Finalmente uma palavra de agradecimento instituio onde me acolho a Faculdade de Arquitectura da Universidade Tcnica de Lisboa aos seus dirigentes e funcionrios: pela compreenso que sempre manifestaram pelas exigncias das minhas tarefas de investigao.

    A todos, um sentido obrigado.

  • 19

    INTRODUO

    Os arquitectos que procuraram adquirir destreza manual sem estudo terico no puderam alcanar o lugar e a autoridade que correspondem ao seu trabalho, enquanto os que s dominam a teoria [] perseguem uma sombra e no uma obra. Mas os que conhecem ambas as coisas, como armados de todas as armas, realizam o seu objectivo [].

    Vitrvio: De Architettura. Liv. I, 1, 2.

    Imaginemos que, num futuro mais ou menos remoto, algum se

    propunha comprar os Jernimos e a Torre de Belm... Consideremos, antes de descartarmos liminar e patrioticamente esta

    hiptese, que a soma proposta era substancial de tal modo substancial que, pelos actuais valores de mercado, os Jernimos seriam uma simblica contrapartida. Era, de facto, uma tal quantidade de dinheiro que, nas mos de uma entidade pblica, poderia resolver a maior parte dos problemas da cidade, da regio, eventualmente, at do pas: os bairros de lata, os problemas de trnsito, o desemprego, os ordenados (que aumentariam, para se colocarem ao nvel dos da Unio Europeia), etc. Poder-se-ia inclusivamente considerar que quem fazia essa oferta era um benemrito, um filantropo afeioado a Lisboa e aos portugueses, e que, cheio de boas intenes, lhes queria dar, finalmente, aquela condio de que os achava merecedores, por direito histrico e qualidades de carcter: os Jernimos e a Torre de Belm seriam apenas um pequeno token que este filantropo queria guardar para si e estimar sua maneira era sua inteno a morar.

    Queria este filantropo dar queles monumentos a dignidade formal que ele achava ser-lhes devida. Ele apreciava especialmente aquela zona de Belm as qualidades paisagsticas daquele delicioso namoro com o Tejo e queria guard-la para si, fech-la ao pblico, viver nela como num jardim secreto e idlico; iria modificar o territrio e os seus monumentos conforme melhor o sentisse, para neles mais intensamente habitar: porventura transformando estes em runas verdadeiras, porque se sabia que as apreciava profundamente, seguramente adaptando-os s mais modernas funes culturais e confortos domsticos (de qualquer dos modos, no estava descartada a hiptese de alteraes substanciais, que mudariam consideravelmente a face que ento ostentavam a

  • 20

    paisagem e os monumentos era este um no pequeno bice ao negcio).

    Consideremos que, entretanto, a mentalidade dos portugueses tinha evoludo (no mesmo sentido que se experimenta hoje, mas mais amplamente) e que alguma remanescente considerao pela histria, pela cultura que unifica um povo, se tinha desvanecido quase por completo. A sociedade tinha-se multiculturizado, as pessoas tinham-se tornado por um lado mais prticas e por outro mais espirituais, mas a relao com o patrimnio, quando dele se no auferiam contrapartidas directas boas pousadas, receitas de turismo, etc. tinha-se, aparentemente, elidido quase em absoluto, sobrevivendo apenas, em alguns pequenos nichos de populao, episdicos gestos de admirao e contemplao dos monumentos.

    Suponho que para a maioria dos que hoje consideram a hiptese aqui descrita de venda dos Jernimos e da Torre de Belm ela se apresentar com as cores de um pesadelo gtico. Mas, havendo destitudo o problema de qualquer objeco prtica evidente, que pudesse salvar estes monumentos desse aniquilamento programado porquanto o dinheiro a todas compensaria sobre-abundantemente , que razes socialmente consistentes se poderiam invocar para os salvar? Esta situao levantar-nos-ia profundos problemas de conscincia e colocar-nos-ia em srios trabalhos para tomar uma deciso informada. Ainda que alguns se inclinassem para a preservao do monumento a todo o custo, faltar-lhes-iam argumentos slidos com que pudessem advogar a sua posio junto dos mais cpticos. Ainda que nos outros todas as razes objectivas impusessem a venda como resposta apropriada, permanecia um sentimento de desconforto, perante a perspectiva de no mais poderem eles e os seus filhos calcorrear as vetustas lajes de Santa Maria de Belm, de no mais poderem levar os amigos estrangeiros a maravilharem-se perante as antigas glrias de um povo que era o seu; de, num episdico (ainda que improvvel!) momento de melancolia pessoal, no poderem recompor-se sombra daquelas misteriosas emanaes de acolhedora metafsica.

    A questo prendia-se portanto com a determinao do valor do objecto, mas do seu valor existencial, da sua utilidade vida: sero os Jernimos dispensveis se todos os problemas prticos da vida (dinheiro, sade...) estiverem resolvidos?; ou tero eles um tal papel na minha existncia pessoal, uma tal repercusso humana, que torne prefervel o sacrifcio de arcar com todos esses problemas prticos, a ver sacrificada a minha possibilidade de convivncia com os monumentos...?!

    A nossa dissertao enfrenta-se com este problema problema em que os Jernimos e a Torre de Belm figuram evidentemente por antonomsia, querendo com eles representar todas as arquitecturas com

  • 21

    valor monumental (e mais frente explicaremos o motivo da preferncia por este termo, em vez de patrimnio).

    Hoje a argumentao determinante face aos monumentos tem um carcter eminentemente economicista e, apenas se, na balana de trocas, o saldo for favorvel salvaguarda do monumento, se aceita a sua preservao. Mas, em contradio com esta mentalidade, emerge progressiva e consolidadamente um importante e descomprometido interesse pelos monumentos a que o crescente nmero de iniciativas e intervenes de preservao do patrimnio pretende desajeitadamente corresponder; uma tendncia de que no se consegue determinar com preciso as causas reais, mas que se constata em abundncia (o florescente fenmeno do turismo de habitao porquanto demonstra uma indefectvel preferncia pela arquitectura antiga ou tradicional, em si mesma , um ndice sensvel deste interesse).

    Estamos pois colocados perante a dificuldade de no nos acharmos apetrechados para lidar com uma situao socialmente muito expressiva. Nenhuma contrariedade maior adviria da, caso essa insuficincia de razes (ou a aparente suficincia de razes economicistas) no contaminasse perniciosamente as intervenes de recuperao do patrimnio2: amplo hoje o espectro de intervenes em que se procura fazer coincidir modernas funcionalidades de recreio e lazer com arquitecturas de valor monumental; como as origens dos lucros das modernas funcionalidades so evidentes e as do monumento no, a pr-existncia sofre formidveis atropelos, resultando num travestimento de si prpria que rapidamente sucumbe ao devir das modas estticas. Aquele surdo e potente impulso, dos indivduos e das sociedades o desejo de uma relao mais prxima e mais ntima com as arquitecturas do passado assim, insidiosamente, amordaado.

    esta uma dificuldade que, sublinhe-se bem, no pretendemos aqui resolver cabalmente (sugeriremos uma resposta para o enigma que apresentamos, apenas nas ltimas linhas da Concluso, num contexto que adventcio de futuras investigaes e portanto j exterior tese defendida). Parece-nos, no entanto, importante suscitar este problema, nos seus tons mais negros, para depois comear pacientemente, humildemente, mas com persistncia e tenacidade a tentar encontrar para ele respostas substantivas. nesta perspectiva de princpio de

    2 Veja-se o que diz a este respeito o professor Virgolino Jorge: Importa sublinhar

    que o recente fenmeno das pousadas revelou-se, de modo genrico, e em termos de perda da integridade arquitectnica, muto mais depradador de substncia histrica e deformador do equilbrio tipolgico-construtivo dos monumentos, do que estas reutilizaes [refere-se s reutilizaes como casernas, hospitais, escolas, museus, reparties pblicas ou... fbricas] (Virgolino Ferreira Jorge Conservao do Patrimnio e Igreja in Separata do Boletim Cultural da Assembleia distrital de Lisboa, srie IV, n 94, 1 tomo 2000/02; Lisboa: 2000; p. 16.

  • 22

    tentativa de uma resposta, para um problema que culturalmente fundamental e premente que se inscreve a nossa dissertao.

    1. Objectivos da dissertao.

    A dissertao que aqui apresentamos tem por objectivo o fornecimento do instrumental necessrio averiguao do contedo mnemnico de uma pr-existncia arquitectnica, de tal modo que os conhecimentos reunidos mediante a aplicao deste instrumental sejam teis, quer fruio do monumento pelos seus habitantes e visitantes, quer a uma interveno arquitectnica que saiba preservar a identidade e valor do monumento. Pretendemos to-somente indicar um processo que, em situaes configuradas por uma relao vivencial ou formativa com uma pr-existncia arquitectnica, nos proporcione determinantes quanto ao destino a dar-lhe e estratgias quanto ao modo de a preservar; uma metodologia que possa averiguar a repercusso humana do monumento, caracterizando o seu valor existencial, indicando, por um lado, a necessidade que o Homem tem dele e, por outro, os aspectos da forma fsica da arquitectura onde se deposita esse valor (aqueles aspectos que devem merecer maior ateno e respeito durante a interveno arquitectnica).

    Estas so as preocupaes que norteiam esta dissertao, mas ela comea um passo atrs.

    2. Antecedentes da dissertao.

    A actual dissertao vem na sequncia da nossa Tese de Mestrado Os Palcios da Memria - percurso crtico sobre o Restauro da Arquitectura defendida em 1997. Nela examinmos o processo de formao de uma Teoria da Arquitectura sobre pr-existncias arquitectnicas, desde a Antiguidade at ao sculo XIX, inclusivamente. Nela, mediante um processo histrico de investigao, procurmos descobrir a trama que fundamenta o pensamento contemporneo acerca das operaes de arquitectura sobre pr-existncias arquitectnicas. Ela configura, portanto, o mbito terico de onde parte a actual dissertao (conquanto esta tenda, depois, a extravas-lo).

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    3. Mtodo da dissertao

    Pareceu-nos relevante reexaminar o mesmo problema que abordmos na Tese de Mestrado, agora j no segundo um mtodo histrico mas segundo um mtodo lgico ou racional essa a tarefa que encetamos com esta dissertao.

    O mtodo histrico (no sentido original do termo) colecciona sries de dados sem necessariamente explicitar as razes dos factos que se sucedem diacronicamente. Caso se no execute uma operao crtica sobre essas sries de dados, que evidencie o nexo entre eles, ficar por perceber a lgica da sua sucesso. O conhecimento assim reunido no nos permitir prever os acontecimentos futuros e no ser operativo na aco sobre a realidade.

    O mtodo lgico ou racional tende a considerar o problema de modo sincrnico e procura determinar as razes que esto por detrs de um acontecimento ou de uma sequncia de acontecimentos. Percebendo a regra desses acontecimentos ou da sua sucesso, o mtodo lgico-racional pode antecip-los, permitindo que nos inscrevamos conscientemente na sua sucesso e que a favoreamos ou contrariemos eficazmente, caso assim o julguemos humanamente necessrio.

    Outra das caractersticas decisivas do mtodo que seguimos o seu (tendencial) realismo. Se os produtos do mtodo histrico carecem por vezes de lgica interna, os produtos do mtodo lgico-racional sofrem pelo contrrio da tendncia para se afastarem da realidade. frequente o produto do mtodo lgico-racional ser uma construo de tal modo abstracta que a sua operatividade na aco real e prtica muito escassa. O realismo do mtodo que seguimos manifesta-se na constante verificao da compatibilidade entre as interpretaes tericas que so propostas, como explicativas dos acontecimentos analisados, e a aco prtica sobre o real. (Algumas vezes as razes fornecidas podero sofrer de menos lgica ou de menor evidncia racional, porque as explicaes racionais que foram encontradas e que satisfaziam o desejo intelectual de lgica apodctica, no correspondiam aos fenmenos que se constatavam na realidade; nessas circunstncias preferimos trocar essa apodicticidade inexequvel pelas determinaes da experincia que reconhece a reiterao de uma mesma ocorrncia em condies semelhantes, com a conscincia da sua incapacidade de dar para esse fenmeno uma explicao suficiente.)

    Das anteriores consideraes metodolgicas resulta uma estrutura de dissertao peculiar. No fosse pela desproporo mental entre os autores correlacionados, poder-se-ia dizer que a nossa dissertao se desenvolve segundo uma metodologia kierkegaardiana. No podendo esta dissertao aspirar formulao de qualquer sistema, ela escuda-se atrs da metodologia quase anrquica do autor de Temor e Tremor: ela

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    procura progredir atravs da realizao3 de problemas da tomada de conscincia aguda de obstculos vida real , s descansando na verificao da pertinncia das solues encontradas a essa mesma realidade da vida. A nossa tese no se constri ao ar livre a partir de uma estrutura clara. A sua construo subterrnea: ela perfura, segundo um caminho que se quer linear e com um destino preciso, conquanto, por vezes, a inconsistncia do terreno requeira substanciais injeces de matria, antes da constituio da superfcie do caminho, e, de outras vezes, a dureza do terreno seja tal, que obriga a desvios importantes.

    Este portanto o mtodo desta dissertao. Quanto ao seu desenvolvimento...

    4. Apresentao da dissertao

    A dissertao que aqui se oferece composta por duas seces, distribudas por dois volumes: a Seco Terica, correspondente ao primeiro volume, e a Seco Prtica, correspondente ao segundo volume.

    4.1. Seco Prtica

    A Seco Prtica constituda pelas leituras de arquitectura4, por ns realizadas, e divide-se em trs partes, correspondentes s trs obras estudadas: a primeira parte trata a Torre de Belm, a segunda, o

    3 Usamos a palavra realizao no duplo sentido de reificao e tomada de

    conscincia. 4 Leitura um termo cunhado por Renato Bonelli, que o preferia quando se

    tratava de definir o contedo e/ou o processo de compreenso de uma obra de arquitectura. Este termo depois extensamente aplicado por Sandro Benedetti, que foi assistente de Bonelli. (Vejam-se quanto aplicao do termo, os textos de Benedetti referenciados no subcaptulo, Antecedentes; quanto genealogia do termo veja-se Sandro Benedetti La compreensione dellarchitettura in Larchitettura dellArcadia nel Setecento Romano. Strumenti 16 S.S.S.R.M. (Scuola di Specializzazione per lo Studio ed il Restauro dei Monumenti), Universit degli studi di Roma La Sapienza, Roma: Bonsignori Editore, 1997; pp. 105-109. (Primeira publicao em AA.VV Linsegnamento della storia della architettura, Atti del Seminario (Roma, 1993), Cento di Studi per la Storia della architettura, Roma 1994, pp. 62-67 e 201, com o ttulo La Storia dellarchitettura nelle scuole di specializzazione.), p. 106.

    Com leitura pretendemos significar algo mais do que um complexo de sensaes desencadeada pela obra de arquitectura, ou do que a interpretao positivista desta. O conceito de leitura pressupe uma articulao densa entre o pessoal e o objectivo, realizada de uma forma que seja intersubjectivamente acessvel.

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    Convento e Baslica da Estrela, e a terceira, o Mosteiro de Santa Maria do Bouro.

    Os exerccios de leitura da arquitectura apresentados na Seco Prtica pem a manifesto a metodologia que descrita na Seco Terica. Apesar da Seco Prtica ocupar agora um lugar complementar na economia da dissertao como manancial de onde so retirados os exemplos que ilustram as consideraes feitas na Seco Terica ela foi contudo a primeira a ser realizada; e foi a partir dos casos estudados que se abstraiu aquilo que denominmos depois Processo de Leitura da arquitectura (cuja descrio constitui o corpo da Seco Terica).

    O primeiro caso de estudo a Torre de Belm concentra-se na questo do sentido (aquilo que definimos como a participao da obra no Eu). A procurmos demonstrar como, mesmo uma obra j muito investigada de um ponto de vista documental e filolgico est muitas vezes carente de um olhar que lhe revele o significado e lhe desoculte a utilidade existencial.

    O segundo caso O Convento e Baslica da Estrela o mais extenso e detalhado: aquele onde o Processo de Leitura foi mais finamente seguido e portanto aquele que melhor o demonstra.

    O terceiro caso Santa Maria do Bouro ilustra a aplicao do Processo de Leitura a uma obra de arquitectura sobre pr-existncias. Manifesta tambm a capacidade, que esta metodologia tem, de fornecer indicaes seguras para uma operao de arquitectura sobre pr-existncias (ou para a crtica a uma operao j realizada).

    Qualquer destas trs leituras est dividida em quatro captulos que espelham a estrutura do Processo: um captulo em que se analisa a forma, outro em que se analisa a histria, o terceiro sobre o sentido ou significado da obra (que constitui o vrtice da Leitura), e um quarto captulo, sobre as dedues que se podem realizar a respeito de uma eventual (ou j executada) interveno arquitectnica sobre a pr-existncia.

    Embora na Seco Terica tivssemos tentado demonstrar a razoabilidade da metodologia do Processo de Leitura, os resultados obtidos pelos exerccios de leitura, que informam a Seco Prtica, constituem o penhor mais seguro da validade dessa metodologia.

    4.2. Seco Terica

    A Seco Terica desta dissertao composta por duas partes. Na primeira realiza-se uma problematizao (enquanto considerao atenta de incongruncias, na sua forma aguda) do mbito cultural constitudo pelas obras de arquitectura dignas de salvaguarda (ou monumentos) e pelos processos arquitectnicos que se executam sobre essas obras (ou

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    restauro). Dessa problematizao ser deduzida uma hiptese metodolgica de soluo para os problemas encontrados. Essa hiptese configurada por dois processos heursticos. Na segunda parte realiza-se a descrio e articulao do primeiro desses processos heursticos.

    Parte-se, na Primeira Parte, de uma considerao avulsa dos problemas da arquitectura sobre pr-existncias, que se sintetiza progressivamente (segundo uma metodologia que tnhamos j aplicado na nossa Tese de Mestrado) em torno de trs perguntas nucleares: porqu, o qu e como restaurar. Uma vez que essas perguntas so consideradas na sua ocorrncia particular, relativa a uma obra concreta, mais importante que responder-lhes globalmente (caso fosse possvel) definir a estratgia para a sua resoluo. Conclumos que uma estratgia composta por duas linhas metodolgicas poder responder quelas perguntas. A primeira linha metodolgica a estruturao de um processo de leitura da obra de arquitectura, que evidencie os valores existenciais desta e no-la permita identificar na sua natureza, individualidade e insubstituibilidade. Um tal processo de leitura permite congregar uma srie de conhecimentos, relativos obra em anlise, onde campeiam os factores determinantes para a sua conservao. A segunda linha metodolgica, para a resposta s trs perguntas, uma criteriologia das qualidades essenciais da arquitectura, que nos permita apontar ou reconhecer os objectos que so e os que no so arquitectura, e discernir os aspectos de um objecto arquitectnico nos quais est deposta essa arquitecturalidade.

    A Segunda Parte da Seco Terica desta dissertao desenvolve a primeira linha metodolgica de resoluo das questes nucleares da problemtica do monumento e do restauro: o Processo de Leitura da arquitectura. Anote-se contudo que o processo de problematizao, desenvolvido na Primeira Parte, tinha demonstrado que muitas das questes pertencentes ao mbito estrito da conservao e do restauro dos monumentos tero a sua resposta em nveis essenciais da arquitectura e da cultura em geral. Ficara por isso definido que o territrio de anlise (e, por consequncia, provavelmente tambm o territrio de validade das solues encontradas) extravasaria a circunscrio disciplinar da teoria do restauro arquitectnico.

    O Primeiro Captulo da Segunda Parte da Seco Terica procura responder circunstanciadamente questo da necessidade de um Processo de Leitura, no confronto com uma obra de arquitectura. Antes, na Primeira Parte, fora demonstrada a necessidade do Processo de Leitura em funo da actividade do restauro; aqui procura provar-se a necessidade da leitura do ponto de vista da correspondncia natureza do prprio objecto. Este captulo analisa, portanto, diversas modalidades de relao de uma pessoa com uma obra de arquitectura, tentando

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    identificar aquela que melhor corresponde, simultaneamente, natureza do objecto e do sujeito. Este captulo conclui pela exigncia da leitura, para que haja efectiva compreenso da obra de arquitectura.

    O Segundo Captulo da Segunda Parte da Seco Terica aquele em que apresentado o Processo de Leitura, nos seus princpios, nos seus fins e nos seus meios (o mesmo Processo que teve a sua aplicao nos casos tratados na Seco Prtica). O Processo de Leitura definido para duas populaes de utilizadores: o indivduo comum que aborda a obra de arquitectura procurando to-somente que ela manifeste a correspondncia que promete e que a torna til vida real; e o profissional do restauro, que requer um instrumento que lhe permita determinar quais os objectos e quais os aspectos de um objecto que devem ser conservados. Para cada uma destas populaes so indicados os objectivos que se pretendem atingir, e que orientam as fases iniciais da leitura; e os produtos, cuja presena nos indica sensivelmente que a leitura foi completada. So, depois, tambm indicados os mbitos de recolha de material, os mecanismos do seu processamento e as prprias caractersticas que esses materiais devem apresentar. Acabamos com a indicao da atitude que deve presidir totalidade da tarefa da leitura, que, por seu turno, define o tipo de relao entre a pessoa e o monumento onde efectivamente se cumpre a leitura: no reconhecimento de que a obra largamente diferente-de-mim e profundamente para-mim.

    No realizmos a Terceira Parte da Seco Terica da dissertao (que corresponderia ao desenvolvimento da segunda linha metodolgica de resoluo das questes nucleares da problemtica do monumento e do restauro), em que se trataria de definir a ontologia da obra arquitectnica, procurando critrios que permitissem identific-la. Embora nos parea ser esta tarefa absolutamente impretervel e no tendo ns conhecimento de que ela tenha sido sistematicamente realizada, seria uma tarefa cuja complexidade ultrapassaria as possibilidades de que dispnhamos para a realizao desta dissertao e que estenderia a nossa dissertao para alm de uma dimenso aceitvel. (Um esboo dessa criteriologia teve contudo que ser desenhado, de modo a determinar, com um mnimo de preciso, os Objectivos da leitura. Nesse captulo so definidas as modalidades de correspondncia que a obra oferece ao sujeito, que tornam possvel o seu reconhecimento como arquitectura e monumento, o que, por agora, nos parece coincidir com a ontologia da arquitectura.)

    No existem propriamente concluses nesta dissertao, salvo as que se retiram da Primeira Parte quando conclumos acerca da resoluo metodolgica do problema do restauro arquitectnico e no Primeiro Captulo da Segunda Parte onde se indica a modalidade de

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    relao adequada ao objecto arquitectnico. Mais do que um percurso de investigao ou de demonstrao, esta dissertao , no seu corpo central (como atrs dissemos), um processo descritivo, ilustrativo e justificativo de uma metodologia de relao com os monumentos, que se verifica corresponder solidamente s exigncias dos que nela participam conforme temos vindo a constatar pela sua aplicao, em trabalhos prprios e de alunos, h j algum tempo. O que se tenta realizar no corpo central desta dissertao a consolidao racional das perspectivas empricas a que vnhamos dando uso na leitura da obra arquitectnica. Assim, aquilo que principalmente buscamos nas concluses da tese a demonstrao da latitude de aplicao do Processo de Leitura, no campo da disciplina da Arquitectura (de modo a garantir uma mais ampla base de sustentao terica). Em ltima anlise pela compreenso dos aspectos constitutivos do monumento que a leitura desoculta a nossa dissertao pretende contribuir para a tomada de conscincia do valor da arquitectura do passado: para a pessoa, para a sociedade e para a Arquitectura contempornea.

  • Primeira Parte

    O PROBLEMA DO MONUMENTO E DO RESTAURO

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    I. PROBLEMATA*i Preocupaes e problemas do restauro5 da arquitectura

    Devem-se defender as obras de arquitectura do passado? Se sim, quais, de que modo e porqu?

    PORQU?

    Porque que devemos preservar a arquitectura do passado, que falta nos faz, que necessidade temos dela; que princpio tico determina a sua preservao?

    Que valor tm as arquitecturas existentes para mim, o que que me dizem consigo perceb-lo, consigo explicit-lo? Sentiria alguma mgoa, perderia alguma coisa, algo de mim dolorosamente se arrancaria se esta ou aquela arquitectura desaparecessem: as casas da rua da minha infncia, o monumento que sobrepuja a cidade...?! Como me afectaria psicologicamente a sua ausncia? Que efeito teria nas inter-relaes dos membros dos vrios grupos sociais que com ela contactavam, a falta dessa arquitectura desaparecida? Um mundo de arquitectura sempre

    5 Chamamos a ateno para a variao da ortografia de alguns vocbulos

    recorrentes Arquitectura, Restauro, etc. , escrevendo neste texto esses vocbulos com maisculas ou minsculas, conforme as situaes. A regra usada a regra comum da ortografia da lngua portuguesa: quando usamos a palavra como substantivo prprio escrevemos com maiscula, quando a usamos como substantivo comum escrevemos com minscula. Importa, contudo, notar os significados diferentes que damos a estas palavras quando as consideramos como substantivos prprios ou substantivos comuns. Em geral consideramos substantivo comum quando nos referimos s aces ou aos objectos que so produtos dessas aces; e consideramos substantivo prprio quando nos referimos ao corpo de cultura e/ou de conhecimento que sustenta essas aces e a leitura dos objectos seus produtos. Assim, no que concerne, por exemplo, arquitectura, quando escrevemos essa palavra com minscula, referimo-nos ao acto de fazer arquitectura ou ao objecto ou objectos resultantes desse acto (neste sentido usamos por vezes arquitecturas, com minscula e no plural); quando escrevemos essa palavra com maiscula, referimo-nos basicamente disciplina arquitectnica, ao seu corpo de conhecimento, ao seu domnio cultural. O mesmo no que diz respeito ao termo restauro: por restauro entendemos o acto praticado sobre um objecto ou o produto desse acto, e poderemos usar esse termo no plural (restauros) referindo quer um nmero plural de aces realizadas, quer os produtos dessas aces; por Restauro queremos significar a disciplina ou o corpo de conhecimento correlativo s aces e aos objectos. Poderemos eventualmente usar desta mesma variao ortogrfica, com o mesmo sentido, para outros vocbulos.

  • 32

    nova, um mundo s de arquitectura moderna, seria, de algum modo, prejudicial?

    O QU?

    Mas ainda que consideremos ser correcto defender a sobrevivncia da arquitectura antiga, como discernir quais os objectos a que garantir a subsistncia e quais aqueles a deixar cair no olvido, na runa e aqueles para que se aceita o completo desaparecimento, ao serem integralmente substitudos? No evidentemente possvel preservar toda a arquitectura. E, ainda que o fosse, seria isso um bem?

    Porqu preferir uma arquitectura a outra sabendo alis que isso condena inexoravelmente a segunda? Por razes de antiguidade? E se a mais recente for mais bonita?! Por razes de beleza? E se a mais feia for mais rica em histria?! Por razes de economia? E se aquela que implicar maiores custos directos de conservao e manuteno for aquela cujo desaparecimento mais repercusses negativas tem, social e culturalmente?! Por razes culturais? Mas temos a certeza de que os factores que hoje justificam a preferncia por uma arquitectura em desfavor de outra sero aprovados pelos nossos descendentes?!

    E, ainda antes de escolher os objectos dignos de preservao claro o mbito de onde os devo recolher, aonde os devo procurar? O conjunto de elementos a partir dos quais realizar a seleco dos objectos a que garantir a sobrevivncia fcil de circunscrever ou seja (e considerando que esta anlise se circunscreve ao mbito da Arquitectura), evidente o discernimento entre o que e o que no arquitectura, simples fixar os parmetros objectivos (prescindindo para j de abordar as questes de valor) do que ou no arquitectura?! Ser uma questo de escala: um pelourinho ou uma estrada no so arquitectura?! Ser uma questo de material: um jardim no arquitectura?! Ser uma questo de espao interno: um menir, numa charneca, no arquitectura?! Ser uma questo de espao urbano: uma paisagem agricultada (as encostas de socalcos do Douro), no arquitectura?! uma questo de arquitecto: as construes populares, sem autor, ou com vrios autores, no so arquitectura?! uma questo de perenidade: os abrigos sazonais efmeros, no so arquitectura?! Ento, tudo arquitectura?! Se assim fosse, de que nos serviria essa categoria, e como destrinar a funo e a necessidade social e cultural dos seus operadores perante outros operadores sociais?

    COMO?

    Depois tendo sido determinados os objectos que necessrio que sobrevivam , ser indiferente a modalidade da conservao?

    O que que significa conservar: s garantir a subsistncia da matria, ou s garantir a subsistncia da forma? Ser mais do que garantir a subsistncia de ambas? E ser necessria a subsistncia total e completa desses dois aspectos? Ser necessrio um uso; ser irrelevante esse uso?

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    Em caso de conflito que nos parece inevitvel entre a forma e a matria da obra antiga e o uso contemporneo, como agir, como determinar as partes a conservar e aquelas que devero ser substitudas? Ser necessrio haver uma compatibilidade entre as partes novas e as antigas com que critrios se verifica essa compatibilidade? Em funo de qu que podemos determinar a compatibilidade do uso; e a compatibilidade da forma nova com a antiga? preciso que haja unidade entre os materiais e formas antigos e os materiais e formas novos? Sob que gide se realizaria a introduo dos materiais e formas novos nos seus homlogos antigos: sob a gide da obra antiga ou sob a gide de uma inteno moderna? Se se prefere a primeira instncia, como se faz para determinar o esprito da obra antiga? Mas, se se realiza a operao de reabilitao segundo o esprito da obra antiga, qual o lugar do autor contemporneo e o espao para o seu talento pessoal; e onde se situam a cultura e sociedade contemporneas? Ou seja, para se respeitar a obra antiga ser necessrio fazer um pastiche, desrespeitador do esprito contemporneo? Mas, se se prefere valorizar a contemporaneidade e o acto criativo do autor moderno, ser possvel a sobrevivncia integral do esprito da obra antiga? E se a obra antiga deixa de algum modo de ser o que , em si mesma, pela aco da operao contempornea, no ter sido usurpado o princpio que determinou a sua preservao, no foi desrespeitada a vontade democrtica dos que decidiram pela necessidade da subsistncia daquela arquitectura, pela sua no-substituio por outra moderna?!

    RISCO DA NO-RESPOSTA AOS PROBLEMAS TERICOS DO RESTAURO

    Estes e muitos outros problemas povoam o mundo que se convencionou chamar da Conservao e do Restauro. Para singrar neste mundo, contribuindo favoravelmente, ainda que com humildade, para o cumprimento dos objectivos que requereram a sua prpria constituio, imperativo enfrentar e responder a estes problemas.

    verdade que assim colocados, em magote, muito complicado responder-lhes e que nas circunstncias concretas, caso a caso, todos estes ns se parecem desatar com maior facilidade. Mas tambm verdade que a ausncia de pensamento terico sobre este problema a ausncia de razes imanentes ao tema da conservao e restauro vulnerabiliza e enevoa as tomadas de deciso concretas em favor do patrimnio perante razes que no so mais importantes mas que, porque so aparentemente mais objectivas e esto mais divulgadas, recolhem maiores consensos na mentalidade dominante: razes de custo (ou invectivas da avareza e estreiteza de vistas dos proprietrios), razes de eficincia de construo (ou invectivas da preguia e tecnocracia dos construtores), razes de sinceridade, liberdade e contemporaneidade

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    expressivas (ou invectivas da soberba e dos maneirismos do arquitecto); razes de resposta s exigncias do mercado (ou invectivas de seduo sensual e superficial dos clientes).

    Prescindir de responder a estes problemas implica decidir por vaguear s cegas, sem rumo e sem destino confiando eventualmente na enigmtica boa estrela do talento pessoal , sofrendo, sem ncora, os sucessivos contra-sensos e aporias desta intricada problemtica, que anulam qualquer hiptese de uma aco arquitectnica culturalmente responsvel e historicamente profcua; implica, de facto, abandonar a arquitectura do passado s investidas torpes de uma mundaneidade burguesa e filisteia, que a toma pelo seu lucro mais imediato, mas no por aquilo que ela e em que efectivamente poderia ser til; que a manipula e usurpa egoistamente, prescindindo do seu potencial essencial, privando-a do seu real valor, significado e utilidade psicolgicos, sociais, culturais, em suma, da sua ampla e profunda convenincia humana: empobrecendo assim a sua prpria vida.

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    II. SNTESE DO PROBLEMA

    Cremos ser possvel ordenar toda esta problemtica segundo trs categorias. Consideradas do ponto de vista da aco arquitectnica sobre pr-existncias a que convencionmos chamar restauro6 estas trs categorias surgiriam como resposta a trs perguntas que poderamos formular do seguinte modo: o que restaurar?, como restaurar?, porqu restaurar?7.

    1. O que restaurar?

    A resposta primeira pergunta o que restaurar? define o conjunto das coisas merecedoras de preservao, o colectivo a que vulgarmente se chama patrimnio, os elementos por vezes identificados como monumentos ou bens culturais. (Preferiremos quase sempre nesta dissertao o termo monumento porque nos parece ser o mais prprio para os objectos por ele referidos trata-se de facto de objectos da memria, arquitecturas destinadas a preservar a Memria. Os outros termos Patrimnio e Bem Cultural contm uma conotao economicista que os torna permeveis a aplicaes demaggicas, em que o contedo de valor dos objectos assim nomeados, tende a ser reduzido possibilidade do lucro monetrio que deles se pode auferir.8)

    6 Foi Guglielmo de Angelis dOssat que props esta compreenso abrangente do

    termo restauro, traduo que liberta este termo de determinaes conceptuais a priori razo pela qual o adoptmos (j desde 1996, em que usmos este termo com esta significao na nossa tese de mestrado). Ver Guglielmo de Angelis d'Ossat Restauro: Architettura sulle preesistenze diversamente valutate nel tempo. In Palladio n2. Roma: Luca Editore, 1978, pp. 53 e ss. e Pedro Marques de Abreu Palcios da Memria. (tese de mestrado F.A.U.T.L., 1997), pp. 75-76.

    7 Estas perguntas foram por ns utilizadas pela primeira vez como instrumento de sistematizao da problemtica do restauro em Os Palcios da Memria, op. cit.

    8 A questo da propriedade dos termos dos objectos e das aces do restauro foi por ns desenvolvida em Os Palcios da Memria. Op. cit.: Lxico da memria, pp. 73-87.

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    1.1. mbito da Pergunta

    A resposta a esta pergunta compreende duas dimenses. Uma, preliminar aco arquitectnica (em sentido estrito), concerne a eleio dos objectos arquitectnicos que compe o conjunto do Patrimnio e que viro posteriormente a ser intervencionados, no sentido de garantir a sua sobrevivncia.

    A segunda dimenso que constitui a primeira fase de uma aco de restauro diz respeito ao reconhecimento dos aspectos do objecto (para o qual se determinou a necessidade de sobrevivncia) nos quais reside principalmente a qualidade (ou qualidades) pelas quais o objecto foi achado digno de preservao. No caso da Torre de Belm, por exemplo, a sua analogia formal com uma caravela requer a preservao de uma circunscrio de mar, e a analogia com uma torre de menagem requer a sua dominncia sobre a paisagem envolvente e portanto a limitao da construo em altura na vizinhana (ver anlise do caso da Torre de Belm, Seco Prtica, I Parte). No caso da Baslica da Estrela o aspecto flamejante e pulsante do exterior e o ambiente ternamente tpido do interior que espelha a figurao do seu orago: o Corao de Jesus (ver anlise do caso do Convento e Baslica da Estrela, Seco Prtica, II Parte). So esses aspectos que devem absolutamente ser defendidos durante a operao de conservao. So esses aspectos que a operao de restauro deve desvelar, iluminar e projectar para a cultura contempornea.

    1.2. Aspectos a valorizar no juzo de preservao

    Os aspectos que tornam a obra passvel de um juzo de preservao so de dois tipos. Serve-nos como introduo a aluso que a eles faz Borges, que com esses aspectos insistentemente se debate, no comentrio a um clebre fragmento de Heraclito9:

    Somos o tempo. Somos a famosa parbola de Heraclito, o Obscuro. Somos a gua, no diamante duro, a que se perde, no a que repousa. [...] Somos o rio vo, predestinado rumo ao seu mar. De sombra est cercado. Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa. A memria no cunha moeda lesta. E no entanto h algo que ainda resta

    9 Heraclito de feso, fragmento 12: Nous nous baignons et nous ne nous

    baignons pas dans le mme fleuve. In Penseurs grecs avant Socrate (traduo, introduo e notas de Jean Voilquin). Paris: Flammarion, 1964. p. 75.

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    e no entanto h algo que se queixa.10

    E ainda, num poema de paradoxal ttulo O fazedor:

    Somos o rio que invocaste, Heraclito. Somos o tempo. O seu curso intangvel Arrasta consigo lees, montanhas, Chorado amor, a cinza do prazer, Insidiosa esperana interminvel, Grandes nomes de imprios que so p, [...] Auroras e poentes e crepsculos, Ecos, ressaca, areia lquen, sonhos. Eu no sou mais que essas vs imagens Que o acaso baralha, o tdio diz. Com elas, mesmo cego e alquebrado, Hei-de talhar o verso incorruptvel E ( meu dever) salvar-me.11

    Ou nestoutro Correr ou ser , cuja vibrao quase ansiosa to bem exprime a insuportabilidade da absoluta transitoriedade do Eu e das coisas:

    [...] Serei eu s tambm aquela srie De brancos dias e de negras noites Que amaram, que cantaram ou que leram, Que passaram plo medo ou pela esperana Ou haver um outro, um eu secreto Cuja ilusria imagem j desfeita, Interroguei no ansioso espelho? Do outro lado da morte talvez saiba Se fui uma palavra ou fui algum.12

    O rio a gua que passa e nunca a mesma gua passa duas vezes. Como pode ser ento o mesmo rio? O aforismo de Heraclito e as dramatizaes existenciais que dele nos d Borges, salientam essa confrontao to central no Restauro entre a permanncia e a transitoriedade, entre a identidade e a metamorfose.

    Nos monumentos existem aqueles aspectos que definem a identidade da obra, que determinam o seu carcter, a sua essncia e, portanto, a sua qualidade imutvel (eterna) dentro do devir do tempo. E aqueles que, pelo contrrio, na sua sucesso descrevem os factos relevantes da vida daquela arquitectura. Se os primeiros lhe concedem aquela apresentao pela qual o monumento pode ser reconhecido como

    10 Jorge Lus Borges So os rios in Os Conjurados (in Obras Completas III. Lisboa:

    Crculo de Leitores, 1989, p. 488) 11 Jorge Lus Borges O fazedor in A Cifra (in Obras Completas III. Lisboa:

    Crculo de Leitores, 1989, p. 325) 12 Jorge Lus Borges Correr ou ser in A Cifra (in Obras Completas III. Lisboa:

    Crculo de Leitores, 1989, p. 338)

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    o mesmo ao longo do tempo contribuindo assim para a concesso de estabilidade ao mundo, to necessria estabilidade psicolgica das pessoas13 dos segundos, com frequncia, no obstante as alteraes que introduzem na forma original, podemos auferir a experincia de um enriquecimento, porque por eles os aspectos essenciais se vo desenrolando gradualmente, desvelando; porque esses aspectos como que constroem uma srie de pontes pelas quais veiculada, com acrescentada intensidade, o significado essencial.

    A carncia de determinao dos primeiros aspectos leva a que a obra antiga venha, durante a interveno nova, a perder a sua identidade e, por consequncia, sucessivamente, a sua unidade e qualidade artstica, tornando-se (na melhor hiptese) um agregado de partes com valor documental mas desprovido da qualidade apelativa inerente artisticidade da obra de arquitectura.

    A carncia da determinao dos segundos aspectos, no sendo um obstculo sobrevivncia do carcter da obra, priva-a da sua histria e por consequncia da sua vida, colocando a obra num momento fora do tempo e por isso numa situao de muito difcil acesso pela pessoa que dela tenta fazer experincia.

    por esta razo que experimentamos diante de uma reproduo uma certa insuficincia alguma incorrespondncia. No porque nela pressupondo a perfeio da cpia haja alguma falha formal que ofenda o seu valor artstico, mas porque nela no transparece a vida e o tempo que, dando obra de arte uma origem e uma histria, a enriquecem, inclusivamente ao nvel da percepo14 (ver frente, pgina 44 uma anlise mais detalhada da questo da reproduo).

    Qualquer destes dois tipos de aspectos objectivado nas caractersticas fsicas da arquitectura: texturas, materiais, cores, luz, proporo, escala, etc.

    13 Hannah Arendt A Condio Humana. Lisboa: Relgio dgua, 2001; pp. 31,

    120, 191, 207-208, 210. 14 Sobre a questo da riqueza perceptiva introduzida num monumento pelo passar

    do tempo, pela maneira como os sinais do tempo estimulam a apreenso e a compreenso de um monumento, pertinente considerar aquilo a que Riegl chamou valor de antiguidade, a saber, la idea de tiempo transcurrido desde su surgimiento [do objecto com valor de antiguidade], que se revela palpablemente en las huellas que ste ha dejado. Veja-se Alos Riegl El culto moderno a los monumentos (Der moderne Denkmalkultus. Sein Wesen und seine Entstehung. Viena Leipzig: Braumller, 1903). Madrid: Visor, 1987; especialmente pginas 29-32 e 49 a 56, mas passim.

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    1.3. Problematizao da pergunta INSUFICINCIA DA TAXONOMIZAO PARA A CLASSIFICAO COMO MONUMENTO

    O problema da execuo da resposta pergunta o que restaurar? decorre de esta resposta no poder ser satisfatoriamente dada por categorias, em grandes grupos: pois ainda que o denominador desses grupos fosse definido com preciso e rigor por exemplo pelourinhos, castelos ou casas alentejanas tradicionais , o valor dentro desses mesmos grupos ou seja, as qualidades pelas quais uma arquitectura merece ser preservada poderiam ser muito heterogneos. Ou poderia tambm acontecer que essas categorias no fossem determinantes de valor patrimonial, apesar de muitos dos seus elementos, por razes que no dependam da sua pertena a essa categoria, serem possuidores desse valor. Por exemplo: provvel que num castelo o seu valor provenha mais da sua situao na paisagem e dos acontecimentos histricos que ele testemunhou do que do facto de ser uma pea de arquitectura militar medieval (que o que a categoria de castelo indica). Alargando esta categoria a fortificaes medievais, por extenso da anterior, poder-se-iam vir a classificar objectos sem relevncia paisagstica nem densidade histrica que o justificassem. Assim, para realizar a eleio dos elementos dignos de pertencer ao conjunto dos monumentos, necessrio conhecer bem e particularmente os candidatos e estar na posse de critrios slidos que permitam discernir, de entre o amplo grupo da totalidade das construes, aquelas que necessrio que subsistam.

    1.4. Resoluo da pergunta INSTRUMENTOS REQUERIDOS PARA A RESPOSTA PERGUNTA O QUE RESTAURAR?

    A execuo da resposta pergunta o que restaurar? requer ento, em qualquer das suas dimenses, dois tipos de instrumentos efectivamente operativos: um mtodo de leitura da arquitectura e um corpo de critrios para a seleco.

    O mtodo de leitura serve para nos adentrarmos para alm da aparncia da obra e das primeiras impresses por ela suscitadas, de modo a recolher, identificar e explicitar as qualidades desta passo necessariamente prvio a um juzo que se quer intersubjectivo. O mtodo de leitura deve conseguir produzir observaes precisas quanto identidade da obra: quanto sua especificidade essencial por confronto com outras, quanto s suas mltiplas qualidades ou caractersticas (formais e de contedo) e quanto estrutura que ordena as caractersticas em funo da essncia num todo uno. Se no se satisfizerem estes requisitos no se poder dizer da obra que foi compreendida (no que isso implica de reconhecimento de uma identidade que a define e individualiza relativamente a outras), nem

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    apreendida (no que isso implica de reconhecimento da multido das suas caractersticas prprias), o que inviabiliza qualquer justa aco para com ela, porquanto no foi devidamente identificada.

    O corpo de critrios serve de padro no processo de determinao do valor da obra, e das razes, ou carncia delas, para a sua preservao. Esse corpo de critrios comparado com as especificidades e caracteres da obra, averiguados pelo mtodo de leitura, de modo a que dessa comparao possa brotar um juzo sobre a necessidade social, cultural, humana, de subsistncia dessa obra. Este corpo de critrios, previamente estabelecido, deve ter uma validade tendencialmente universal: deve ser tendencialmente activo sobre a totalidade das arquitecturas, do tempo presente, do passado e tambm do futuro, de modo a que se cumpra a necessria justia que uma operao como esta, de seleco e eleio, exige.

    CARCTER CRTICO DA RESPOSTA PERGUNTA O QUE RESTAURAR?

    A execuo da resposta pergunta o que restaurar? assim operao de eminente carcter crtico, na medida em que nada a priori est objectivamente determinado tudo est por descobrir. (O prprio corpo de critrios, que deve estar definido a priori, no pode incluir categorias objectuais, porque, como vimos, estas podem no ser directamente pertinentes experincia de valor monumental; esse corpo de critrios tender a ser composto por superlativos da experincia de correspondncia do meio-fsico s exigncias humanas globais ver, mais frente porqu restaurar?,.) A operao de compreender e avaliar uma qualquer arquitectura no nunca uma operao de resultado exacto, matemtico. Sendo uma operao objectiva enquanto toda ela propende e depende do objecto em anlise tambm uma operao subjectiva enquanto no pode prescindir de procurar verificar uma correspondncia do objecto em anlise ao sujeito que analisa (ainda que se procure que a definio desta correspondncia seja o mais universal possvel), correspondncia sem a qual no existiria a possibilidade, pelas prprias qualidades intrnsecas do que arquitectura, de um juzo de valor sobre a arquitectura.

    Uma perspectiva dogmtica e pr-conceptual do problema da leitura e seleco das arquitecturas ditas de valor patrimonial, deixaria de fora muitos elementos e incluiria inutilmente muitos outros, uma vez que o que se procura determinar, quando se pretende aferir o valor de uma obra de arquitectura, a sua correspondncia ao ser humano, a sua capacidade de satisfazer e no apenas num enquadramento tcnico. H sempre, assim, no momento preliminar de anlise de qualquer arquitectura, uma total indeterminao quanto ao sucesso da operao crtica, que nenhum factor objectivo seja ele a qualidade a que nos habituou o autor, a dimenso ou a idade pode, de facto, subverter. S quando aceitamos submeter-nos exigncia de identificao profunda da

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    e com a arquitectura em anlise, poderemos aspirar a determinar, com rigor e segurana, o valor dessa arquitectura e o seu direito ou no subsistncia.

    1.5. Risco da no-resposta

    O risco de prescindir de responder teoricamente pergunta o que restaurar? em qualquer dos seus dois mbitos o da arbitrariedade que leva perda: arbitrariedade na preferncia de uma arquitectura em vez de outra, arbitrariedade na preferncia de uma das partes ou caractersticas de uma arquitectura em vez de outras. Essa arbitrariedade leva perda de aspectos culturais essenciais. Em Santa Maria do Bouro, por exemplo, a preferncia pela qualidade tectnica da runa, escolhendo valorizar sensualmente os materiais, resultou no menosprezo pela ordem, pela euritmia e pela contraposio natureza que caracteriza os mosteiros cistercienses. Ganhou-se um extraordinrio museu de texturas, mas a memria, activa e osmtica, daquele edifcio cisterciense, to estreitamente relacionado com a histria poltica e cultural de Portugal, perdeu-se quase completamente (ver anlise do caso de Santa Maria do Bouro, Seco Prtica, III Parte). O risco de no responder teoricamente pergunta o que restaurar? acaba por ser, ento, o risco do desperdcio, o risco de ser perdulrio.

    Se o exerccio da preferncia que evidentemente inevitvel numa operao arquitectnica, porquanto esta pressupe sempre um juzo no for devidamente informado por razes intersubjectivas, a proposta cultural que est subjacente ao acto de reconhecimento do papel relevante do objecto e da consignao ao ambiente social para a execuo do seu potencial no ser entendida. Ento ter-se- votado uma parte da identidade cultural de uma sociedade ou civilizao ao ostracismo (aquela parte que aquele objecto encarna), ao prescindir dos objectos nos quais este contedo cultural residia, preferindo outros, culturalmente inactivos; ou ter-se- votado o prprio objecto ao esquecimento, ao prescindir das caractersticas que efectivamente veiculavam o seu potencial cultural, preferindo outras, culturalmente inactivas.

    1.6. Nexo com a teoria da arquitectura

    A pergunta o que restaurar? resolve-se pois, de um ponto de vista metodolgico, mas no categoricamente, em dois vectores de aco: a estruturao de um mtodo para a leitura e valorao dos objectos

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    arquitectnicos, e a aquisio de um conjunto de critrios que estabelea as exigncias (sobretudo as do foro antropolgico e/ou existencial) a que o objecto deve corresponder para se poder admitir que d um contributo, ou que tem uma funo, patrimonial e que, portanto, deve ser preservado.

    PRESUNO DE COINCIDNCIA ENTRE ARQUITECTURA E PATRIMNIO

    Podemos supor que o conjunto de exigncias existenciais a que um objecto deve corresponder para se poder admitir que tem funo patrimonial, seja aquilo a que se chama qualidade arquitectnica, fazendo coincidir a categoria de Patrimnio com a categoria de arquitectura no seu mais elevado expoente. Esta presuno de coincidncia encontra-se hoje alis relativamente generalizada no discurso da Arquitectura sobre o patrimnio. No pretendemos no entanto que, assim equacionado, o problema se considere resolvido, uma vez que assim no se determina a soluo, to-somente se a transporta de mbito. Contudo, deste modo, o caminho para determinar o que restaurar? fica claramente apontado: o caminho para determinar o que restaurar? e aquilo de que legtimo psicolgica, social e culturalmente falando prescindir, o do conhecimento, por um lado, das arquitecturas (dos prprios objectos arquitectnicos) e, por outro, da arquitectura enquanto tal, enquanto categoria o conhecimento terico da Arquitectura. (Que exista de facto uma correlao de semelhana entre qualidade arquitectnica e funo patrimonial algo que carece de demonstrao; abordaremos este assunto mais frente, pgina 59 e seguintes.)

    CENTRALIDADE PRTICA DA PERGUNTA O QUE RESTAURAR?

    A resposta pergunta o que restaurar? parece-nos ser o ponto nodal de toda a problemtica do restauro, quando este se considera a partir do campo da praxis arquitectnica, porquanto esta no comparece nunca como uma operao tcnica, determinada por regras, mas sempre como uma operao potica, determinada pela identidade e valor do objecto a restaurar15. Reconhecer essa identidade e valor , portanto, prioritrio em qualquer aco sobre pr-existncias.

    As repercusses e a densidade desta pergunta, nos dois vectores em que se subsume (o do mtodo de leitura e o do conjunto de critrios), requerem que estes sejam mais detalhadamente analisados futuramente. (Desenvolveremos o mtodo de leitura na segunda parte desta seco do nosso trabalho. Embora a anlise sobre o conjunto de critrios seja igualmente importante, no poderemos agora trat-la sistematicamente, pelas razes invocadas anteriormente.)

    15 Para a diferenciao entre operao tcnica e operao potica veja-se, mais

    frente (nota 57 e pgina 156)

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    2. Como restaurar?

    2.1. mbito da pergunta

    A resposta pergunta como restaurar? trata das modalidades de aco sobre as pr-existncias. a pergunta que mais directamente trata a dimenso formativa do restauro o seu gesto arquitectnico concreto muito embora esta dimenso no possa desprezar aqueloutra, crtica (cujo ncleo, como vimos, se situa na resposta pergunta o que restaurar?).

    DENOMINAO DAS ACES ARQUITECTNICAS SOBRE PR-EXISTNCIAS ARQUITECTNICAS

    As modalidades de aco sobre as pr-existncias so denominadas (ainda que impropriamente) segundo uma grande parafernlia de termos, entre os quais se contam restauro, reabilitao, recuperao, conservao, para lembrar apenas os mais comuns. Usamos, neste texto, o termo restauro com o significado de toda e qualquer aco arquitectnica sobre uma pr-existncia arquitectnica (ver nota 6). A aco que habitualmente em portugus se designa impropriamente por restauro e que determina a reedificao de uma arquitectura de acordo com a sua presumida forma original (tambm impropriamente chamado restauro estilstico ou restauro Violet-le-Duc) apropriadamente designada por repristino: este termo que indica precisamente a reposio em vigor de algo cuja eficcia primeira se havia degradado. Os outros termos, que tambm definem aces arquitectnicas sobre pr-existncias, no so completamente sinnimos, possuindo cada um deles determinaes processuais particulares. Por renovao entende-se uma aco normalmente escala urbana e que consente a demolio extensiva e a reconstruo ex-novo. Conservao, por seu turno, determina sobretudo uma aco puramente tcnica sobre os materiais, visando a defesa da sua sobrevivncia, mas sem preocupao quanto identidade do sistema arquitectnico sobre o qual esses materiais esto montados. Os termos recuperao e reabilitao so aqueles que em Portugal tm uso mais frequente e so normalmente considerados como sinnimos. Tm por referente preferencial edifcios (a no ser quando se fala de recuperao ou reabilitao urbanas). Estes termos no consignam contudo nenhuma preocupao cultural: quando so aplicados a um objecto, o significado subjacente o da preservao dos materiais (eventualmente tambm da forma) na mxima extenso possvel, conquanto esta consinta a adaptao a um uso conspicuamente contemporneo e tendencialmente lucrativo, sem que haja preocupaes de maior quanto aos contedos histricos ou monumentais de que essa arquitectura pudesse ser veculo16.

    16 Este assunto foi j por ns analisado, mais detalhadamente, em Os Palcios da

    Memria, op. cit., pp. 73-87.

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    A denominao das aces sobre pr-existncias no inocente. Ela determinar, s vezes subliminarmente, s vezes conscientemente, uma atitude mais ou menos cordial, uma finalidade sobretudo cultural ou sobretudo econmica... Importa notar o risco da determinao da aco sobre a pr-existncia a priori do conhecimento do objecto sobre o qual essa aco ser executada.

    Seria ridculo determinar que a Torre de Belm fosse renovada embora a manuteno da Torre de Belm seja custosa e a operao que maiores lucros gera ser, em princpio, a renovao pois isso implicaria uma substancial alterao desse monumento (seno mesmo a sua demolio) e a sua reutilizao de uma maneira mais intensiva (e agressiva) que a actual. Esta hiptese evidentemente inaceitvel, porque as qualidades e especificidades do monumento em questo so sumamente conhecidas e imediatamente se verifica a inadequao de uma aco como a renovao a um objecto deste tipo. Lamentavelmente, contudo frequente o tipo de aco sobre uma pr-existncia ser determinado antes do conhecimento circunstanciado da arquitectura dessa pr-existncia

    Se a atitude a tomar relativamente ao objecto for indicada antes do conhecimento detalhado deste (no tendo sido ainda cabalmente respondida a pergunta o que restaurar?), camos no domnio do preconceito e a aco especificada arrisca-se a ser inapropriada ao objecto, invalidando, logo a princpio, a possibilidade de comunicao do contedo pelo qual o objecto foi achado digno de ser preservado. O tipo de aco deve ser determinado concretamente pelo objecto especfico a conscincia deste princpio importante, quer para os promotores econmicos, quer para os arquitectos.

    2.2. Problematizao da pergunta LIBERDADE AUTORAL VS. OBEDINCIA PR-EXISTNCIA

    O problema levantado pela pergunta como restaurar? concentra-se na dialctica entre a liberdade artstica do autor do restauro que emana, por inerncia, da necessria artisticidade do acto, enquanto acto arquitectnico e o respeito e obedincia devido pr-existncia sem os quais esta perder o carcter pelo qual foi indigitada para ser conservada.

    2.2.1. Necessria artisticidade do restauro IMPOSSIBILIDADE DA REPRODUO

    O acto do restauro no um acto meramente tcnico porque a sua finalidade no meramente material e objectiva: a finalidade do acto de

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    restauro no a mera conservao da matria e da forma de um determinado artefacto.

    Se assim fosse, uma simples reproduo da matria, da tcnica construtiva, e da forma corresponderia, provavelmente com maior economia, s exigncias antropolgicas que determinaram a preservao desse artefacto17. Sob essa iluso foram no passado (mas tambm hoje, infelizmente) executados muitos pseudo-restauros destruindo-se o original, ou partindo da sua absoluta runa, e construindo-se uma rplica (quase) perfeita. Estes pseudo-restauros manifestaram em si mesmos a sua incapacidade de substiturem os originais: lembremos o acontecido em Varsvia18, ou mais proximamente a S de Lisboa19, casos em que a impertinncia da inteno reprodutiva patente na actual experincia de frialdade.

    Esta incapacidade fundamenta-se em dois tipos de razes. Em primeiro lugar, a reproduo do monumento impossvel porque o valor monumental do objecto no decorre s do gesto artstico primeiro com que foi concebido o objecto gesto primeiro que, no que concerne arquitectura ps-medieval, se imagina concentrado no projecto e, portanto, desprovido de matria, abstracto e, por isso reprodutvel, como uma ideia. O valor patrimonial depende tambm dos traos das sucessivas vicissitudes que o objecto sofreu e testemunhou.

    Em segundo lugar, a reproduo de um monumento impossvel porque a prpria artisticidade reside em aspectos minuciosos, que muitas vezes permanecem inapreendidos conscientemente, ou inexplicados (embora subliminarmente actuantes). Ora se a leitura no consegue aprender a totalidade dos aspectos em aco aspectos como a tonalidade e a textura da pedra, que s vezes so fruto mais da eroso do tempo do que da mo do artfice como que os poder repetir?! Estes aspectos permanecero, inevitavelmente, sem reproduo. ( por isso mais do que sbia a prudncia por parte do restaurador, que evita o mais possvel tocar no objecto sujeito interveno, que reduz a interveno ao mnimo necessrio, pois o mais pequeno gesto incauto pode deitar a perder a impresso global do todo.)

    17 Acerca do mesmo assunto (reproduo dos monumentos) ver a meno feita

    neste texto na pgina 38. 18 Stanislaw Lorentz Il castello reale di Varsavia. Lopera e il contributo di artisti e

    architetti italiani nella sua storia. Roma, Accademia Polacca delle scienze. Biblioteca e centro di studi a Roma, Fascicolo 52, 1972.

    19 Maria Joo Baptista Neto A Direco Geral de Edifcios e Monumentos Nacionais e a Interveno no Patrimnio Arquitectnico em Portugal (1929-1960) Dissertao de Doutoramento em Histria da Arte. Lisboa, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 1995 (especialmente pp. 505-591). Veja-se tambm, da mesma autora: O Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitria de 1840 a 1900 Dissertao de Mestrado em Histria da Arte. Lisboa, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 1990.

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    FINALIDADE DO RESTAURO

    O restauro tem por finalidade a propagao, na maior amplitude social possvel, no presente e no futuro, do valor que foi reconhecido a um determinado objecto. O mbito de execuo dessa finalidade , portanto, subjectivo no reside no objecto , embora essa finalidade se execute atravs de um meio objectual mediante as repercusses sensoriais, sentimentais e racionais que o objecto provoca no sujeito. A dimenso formativa do restauro no pode, por isso, ser determinada segundo condicionantes meramente tcnicas, sem a participao do Eu que l, experimenta e, assim fazendo, d real existncia arquitectura. A parte fsica, construda, da arquitectura, antes dessa leitura pelo Eu que a assimila a si, no seno possibilidade de arquitectura, no ainda realmente arquitectura (ou s-lo- eventualmente para outros, mas ainda no para este Eu), porque no ainda relao: diante do friso do Partenon como exemplificava Guardini um burro passa e zurra20. S na relao objecto-sujeito se pode verificar se a correspondncia que o objecto suscita no sujeito permite chamar a esse objecto arquitectura, e no apenas construo (ver a este respeito mais frente, pgina 57 e seguintes).

    SEMELHANA COM A ARTE

    O restauro no , por isso, muito diferente do vetusto gesto artstico de Czanne, pintando a montanha de Sainte-Victoire, ou do de Caravaggio, interpretando a Fuga para o Egipto: quando o objecto ou o tema so extrados da mole amorfa do j sabido mas irrelevante, e dispostos em lugar de destaque, enquanto participantes activos na existncia dos que com eles co-habitam, projectados para o ntimo desses seres humanos, nos quais passam a constituir parte substancial. A diferena para o restauro est em que, nos vetustos gestos artsticos de Cezanne e Caravaggio, o modelo subsiste aqum e alm da obra (ainda que de forma mais hipottica que real, pois no foi apreendido por nenhum sujeito) e, pelo contrrio, no restauro, a obra artstica recente

    20 A citao completa a seguinte: Il fregio del Partenone, per esempio, rappresenta la

    processione che durante la festa delle Panatenee conduceva allAcropoli dove, nell tempio di Atena, se sarebbe offerto il solenne sacrificio. Che cosa c di reale in esso? La pietra in cui scolpito, ma non le figure in s. Queste non si trovano nello stesso ambito e spazio di quella, ossia nel museo, in questo o quel luogo, sotto una certa illuminazione; in verit esse erano un tempo nellimmaginazione delluomo che vi si accosta. Se ci si chiede dove siano state dopo la morte dellartista e dove rimangano quando il visitatore non pensa pi a esse, si pu solo rispondere: in tal caso esse non ci sono assolutamente pi, ma sussiste solo la loro possibilit. Ci suona strano, ma cos. Le figure che lopera dellartista ha inteso rappresentare [...] sono in effetti tutte vive, respirano, si muovano l, sono piene di attivit e cariche di destino, mentre ci che si trova dinanzi in modo tangibile, reale, sono solo pietre la cui superficie stata modellata in un certo modo. Queste sono sempre qui; anche un animale che passa per la via le pu urtare. Le figure invece si levano solo nello spirito dello spettatore che le contempla. Romano Guardini Lopera darte. Brescia: Morcelliana, 1998. (Primeira edio Tbingen, 1965.) Pginas 42-43.

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    sobrepe-se, desvelando ou velando conforme o sucesso ou insucesso da operao , inapelavelmente, o prprio modelo. O gesto artstico do restauro requer, assim, uma iniciativa artstica e um sujeito artstico que a execute.

    Por aqui se determina tambm o duplo quadro de finalidades (que poderamos chamar tpicas, devido sua formulao concentrada) do restauro. Se funo decisiva do restauro enquanto operao artstica sobre uma obra de arte revelar artisticamente esse anterior contedo artstico, tambm sua funo, (uma vez que se executa sobre a prpria matria cujo contedo quer revelar) conservar: ao executar-se sobre a prpria matria e forma da arquitectura cujo contedo deseja comunicar cultura contempornea, o restauro requer para si mesmo a prudncia de alterar o menos possvel o veculo da mensagem que pretende transmitir, alm de pretender garantir a sobrevivncia desse mesmo veculo. Por isso, a sntese que atribui ao restauro a dupla finalidade do conservar e do revelar nos parece muito apropriada21.

    2.2.2. O restauro no deve ser aco inventiva. O RESTAURO DEVE SER ACO ARTSTICA

    A pergunta como restaurar? pois uma pergunta sensvel, porque a resposta a essa pergunta no pode ousar determinar a especificidade formativa de um restauro, o que, dada a sua condio de gesto necessariamente artstico que dificilmente convive com limitaes formativas, seria moralmente inadmissvel e factualmente inibidor, reduzindo o horizonte predestinado do gesto e no cumprindo a sua finalidade prpria.

    Mas o restauro tambm no pode ficar entregue iniciativa indeterminada do restaurador-artista, como se este operasse sobre um territrio deserto de sentido, no qual pudesse projectar, sem receio de ofender, a sua individualidade pessoal. O entendimento do restauro como aco arquitectnica indistinta e indefinida, no qual o esprito de formatividade procede exclusivamente da intimidade do artista, manifestamente nefasto, porquanto essa intimidade, que alctone em relao pr-existncia, se arrisca a sobrepor-se a esta, ocultando-a e agindo de maneira contraproducente prpria finalidade do restauro.

    Enquanto gesto artstico, o restauro pode e, neste caso, deve, ser orientado no que concerne ao contedo. O artista no ,

    21 Deve-se ao professor Sandro Benedetti a sntese nestes dois termos conservar

    e revelar das finalidades do restauro. Foi em conversa que esta teoria do restauro nos foi apresentada. No podendo ns dela apresentar qualquer referncia bibliogrfica, no queramos deixar de reconhecer o seu autor. (Ver tambm Pedro Abreu Palcios da Memria op. cit. pp. 476-478.)

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    necessariamente e, neste caso, no o , forosamente , ponto germinal da inteno artstica. O artista interpreta, tornando acessvel, um determinado contedo cultural ou social, contribuindo deste modo para a sua compreenso e para que os seus contemporneos e os vindouros tenham efectivo e existencial acesso a esse contedo.

    Na tomada de conhecimento do objecto a figurar que no na sua figurao o artista pode ser ajudado; e vantajoso que o seja, porque, se a ajuda for vlida, a possibilidade de penetrao na compreenso do objecto aumenta e, concomitantemente, aumenta a potencialidade da sua comunicao cultural: como aconteceu na arte sacra aps o Conclio de Trento22.

    Um claro exemplo da postura a que atrs aludimos a interveno de Borromini em So Joo de Latro. So Joo de Latro uma das quatro baslicas mais importantes de Roma, importncia que lhe advm quer da sua dimenso e magnificncia, quer da sua fundao constantina. Aquando da interveno borrominiana, motivada pelo jubileu de 1650, emergem duas correntes de opinio antitticas quanto ao futuro da pr-existncia: uma pretende um edifcio novo que glorifique o pontificado vigente, a outra defende a preservao da estrutura primitiva.

    O ambiente ps-conciliar, de que o papa Inocncio X era empenhado arauto, ter um peso decisivo na opo pela atitude conservativa: as velhas estruturas adquirem, ao tempo, o valor de relquias23 e devem ser preservadas; a interveno dever ser conduzida de modo que [...] si mantenessero quellantichi sacrati cementi nel suo essere [...], illuminando e assecondando il tutto con esattissima regola di perfetta architettura24.

    Borromini parece inicialmente contrafeito com esta deciso que aparentemente no permite a expresso total da sua criatividade, mas rapidamente haveria ultrapassado esse sentimento (assim o atesta o cuidadoso trabalho preliminar de levantamento desenhado da baslica antes da interveno). No prazo de quatro anos de entrega sofrida25,

    22 Veja-se Sandro Benedetti Larchitettura religiosa: i momenti del tridentino e

    del Vaticano II in Architettura Sacra Oggi Roma: Gangemi Editore, 1995; pp. 47-53. E, do mesmo autor, Fuori del Classicismo. Roma: Bonsignori Editore, 1993, (especialmente o captulo relativo ao tratado de Carlos Borromeo, pp. 105-131).

    23 P. Portoghesi (1984), cit. in Nullo Pirazzoli Teorie e Storia del Restauro. Ravenna, Edizioni Essegi, 1994; p. 87.

    24 F. Martinelli Primo Trofeo della S.S. Croce eretto in Roma nella Via Lata da S. Pietro Apostolo. Roma: 1655, pp. 131 e ss (Cit in Augusto Roca De Amicis Lopera di Borromini in San Giovanni in Laterano: Gli anni della Fabbrica (1646-1650). Universit degli studi di Roma La Sapienza. Dipartamento di Storia dellArchitettura, Restauro e Conservazione dei Beni Architettonici. Roma: Edizioni Librerie Dedalo, 1995, p. 37.)

    25 Virgilio Spada, o representante do Papa no empreendimento de S. Joo de Latro (contemporneo do empreendimento portanto) diz alegoricamente que Borromini teria suado sangue (cit. in Sandro Benedetti Saggio introduttivo a Augusto Roca De Amicis: Lopera di Borromini in San Giovanni in Lateran. op. cit. p. 9.)

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    Borromini dar realizao a uma das suas mais extraordinrias e aplaudidas obras: no s pela qualidade expressiva do resultado em si, mas pelo incremento que tal expressividade recebe da comunicao de uma experincia de continuidade de tradio viva desde os mais remotos tempos da cristandade; experincia que a obra recente consente aos seus usufruidores mediante a revificao de antigas estruturas num organismo novo. Da obra iniciada em 1647 resulta um espao que parafraseia26 a antiga arquitectura medieval ao modo contra-reformista: mantm a tipologia e alguns elementos como o tecto e o ciborio, altera o ritmo e a decorao de toda a caixa muraria dando nave principal o carcter de aula (mais adequado s novas orientaes litrgicas) e reintroduz alguns elementos medievais na nova construo (por exemplo a imagem de Srgio IV) como citaes27. H, em suma, uma considerao sria da pr-existncia, interpretada com liberdade e responsabilidade.

    Contudo, os mritos de tal sucesso no se podem atribuir exclusivamente ao talento do arquitecto. Muita da repercusso existencial da obra se ficou a dever sbia orientao do comitente (o Papa) e ao prximo e esclarecido acompanhamento do seu representante, Spada: Il Papa Pamphilj [(Inocncio X)] avrebbe mostrato in San Giovanni come le esigenze della restauratione potessero essere compatibili con la pietas per le antiche memorie, [...]28.

    FORMATIVIDADE DO RESTAURO VS. FORMATIVIDADE ARTSTICA

    Quando se trata de uma operao arquitectnica sobre uma pr-existncia a que se reconheceu um valor tal que este determinou a deciso de ser conservado e preservado para o futuro, o contedo da aco formativa da operao arquitectnica est j definido, embora no esteja ainda explicitado. Ele reside naquele ante-facto e ter sido indicado, ainda que muitas vezes de forma incompleta ou simplesmente tcita, pelo desejo da sua propagao para o futuro. Ao arquitecto-restaurador compete to-somente descobrir esses contedos, descobrir aonde que eles se objectivam naquela forma arquitectnica, e clarific-los, tornando-os legveis pela sociedade sua contempornea uma aco basicamente didctica, educativa, no uma aco criativa, no sentido vulgarizado pelo nosso tempo. uma aco artstica no como o msico que compe, mas como o msico que interpreta: no como Mozart que comps o Requiem, mas como Karajan que dela nos deu uma das mais belas interpretaes (s vezes mesmo como Rachmaninoff,

    26 A. R. De Amicis Lopera di Borromini in San Giovanni in Laterano... op. cit., p. 41. 27 G. C. Argan (1955), cit. in N. Pirazzoli Teorie e Storia... op. cit., p. 87. 28 Augusto Roca De Amicis Lopera di Borromini in San Giovanni in Laterano: Gli

    anni della Fabbrica (1646-1650). Saggio introduttivo di Sandro Benedetti. Universit degli studi di Roma La Sapienza. Dipartamento di Storia dellArchitettura, Restauro e Conservazione dei Beni Architettonici. Edizioni Librerie Dedalo, Roma, 1995, p. 17.

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    quando apreendeu e figurou as belssimas vsperas que a tradio russa comps)29.

    2.2.3. Essncia tica da pergunta como restaurar?

    Assim, uma vez determinados, num certo objecto arquitectnico, os contedos a preservar (veiculados por aspectos particulares da forma) mediante a execuo da leitura arquitectnica (consequncia da re