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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. MEMÓRIA E HISTÓRIA NOS TEXTOS ANGLO-NORMANDOS DE TRISTAN (SÉC. XII-XIII) As complexas relações entre Memória e História na Idade Média já foram objeto de inúmeras reflexões de autores consagrados, e continuam a ser problematizadas no presente, o que se pode atestar inclusive por este Seminário Temático. Nosso objetivo é contribuir para o debate através da consideração das relações História e Memória nos textos sobre Tristan, escritos no ambiente anglo-normando entre a segunda metade do século XII e princípios do XIII. Os cinco textos do ciclo, escritos em língua vernácula nascente, permitem colocar vários tipos de problemas: como pensar textos dessa natureza e as narrativas neles contidas como fontes históricas? Que informações sobre o cotidiano da produção e circulação das obras eles podem conter, como representam a organização social e política do período, como o escritor – na maior parte das vezes apenas um nome reivindica autoridade, ou um desconhecido – e seus públicos estão inscritos no texto? Pela natureza dos textos, como essas informações estão articuladas à tradição de relatos orais? Como se estabelecem, nos textos, as relações entre o presente da elaboração e os elementos ou dimensões do(s) passado(s) presentificadas pela memória? Como dados de imaginários de diferentes temporalidades são representados e recriados pelo presente? Como esses dados são apreendidos em diferentes contextos no presente da produção da obra, e a que imperativos respondem? Matéria de Tristan e escritura: reelaborações, intertextualidades e relatos orais Os mais antigos textos que constituem a legenda medieval de Tristan que conhecemos foram escritos em duas regiões da Europa na segunda metade do século XII. No ambiente anglo-normando, Roman Tristan de Béroul, o Tristan de Thomas d’Angleterre, os poemas Folie de Berne e Folie d’ Oxford, e o lai Chèvrefeuille de Marie de France; na Germânia, Tristrant de Eilhart von Oberg 1 . Os textos anglo- normandos sobre Tristan – como inúmeros outros textos medievais escritos nas 1 Tristrant traduzido, apresentado e anotado por René Pérennec, consta da coletânea dos textos editados por Christiane Marchello-Nizia, Tristan et Yseut – Les premières versions européennes, Bibliothéque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 1995, pp. 263-388. É o primeiro texto completo da “biografia” do herói, que permite a localização de passagens e episódios

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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

MEMÓRIA E HISTÓRIA NOS TEXTOS ANGLO-NORMANDOS

DE TRISTAN (SÉC. XII-XIII)

As complexas relações entre Memória e História na Idade Média já foram objeto

de inúmeras reflexões de autores consagrados, e continuam a ser problematizadas no

presente, o que se pode atestar inclusive por este Seminário Temático. Nosso objetivo é

contribuir para o debate através da consideração das relações História e Memória nos

textos sobre Tristan, escritos no ambiente anglo-normando entre a segunda metade do

século XII e princípios do XIII.

Os cinco textos do ciclo, escritos em língua vernácula nascente, permitem

colocar vários tipos de problemas: como pensar textos dessa natureza e as narrativas

neles contidas como fontes históricas? Que informações sobre o cotidiano da produção e

circulação das obras eles podem conter, como representam a organização social e

política do período, como o escritor – na maior parte das vezes apenas um nome

reivindica autoridade, ou um desconhecido – e seus públicos estão inscritos no texto?

Pela natureza dos textos, como essas informações estão articuladas à tradição de relatos

orais? Como se estabelecem, nos textos, as relações entre o presente da elaboração e os

elementos ou dimensões do(s) passado(s) presentificadas pela memória? Como dados

de imaginários de diferentes temporalidades são representados e recriados pelo

presente? Como esses dados são apreendidos em diferentes contextos no presente da

produção da obra, e a que imperativos respondem?

Matéria de Tristan e escritura: reelaborações, intertextualidades e relatos orais

Os mais antigos textos que constituem a legenda medieval de Tristan que

conhecemos foram escritos em duas regiões da Europa na segunda metade do século

XII. No ambiente anglo-normando, Roman Tristan de Béroul, o Tristan de Thomas

d’Angleterre, os poemas Folie de Berne e Folie d’ Oxford, e o lai Chèvrefeuille de

Marie de France; na Germânia, Tristrant de Eilhart von Oberg1. Os textos anglo-

normandos sobre Tristan – como inúmeros outros textos medievais escritos nas

1 Tristrant traduzido, apresentado e anotado por René Pérennec, consta da coletânea dos textos editados por Christiane Marchello-Nizia, Tristan et Yseut – Les premières versions européennes, Bibliothéque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 1995, pp. 263-388. É o primeiro texto completo da “biografia” do herói, que permite a localização de passagens e episódios

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

nascentes línguas vernáculas2 – são fragmentários, têm passagens ilegíveis, são

anônimos3, e as datas e os locais específicos da produção de cada um permanecem

objeto de discussão entre os estudiosos contemporâneos. Para estabelecer esses textos a

partir de cópias manuscritas, e reconstituir a história legendária completa de Tristan,

filólogos do século XIX buscaram determinar suas origens, compararam os conteúdos

formais e significativos das “versões”4, e utilizaram a obra germânica da mesma época

como uma das referências5.

Os elementos que compõem os textos e as narrativas dos séculos XII e XIII – a

ambientação das ações dos protagonistas, as relações que mantém com as demais

personagens, as caracterizações de cada personagem e do conjunto delas, as tramas das

quais participam, os temas colocados e discutidos através dos episódios selecionados e

de seu encadeamento, as perspectivas e comentários dos narradores – variam de texto

para texto; mas o conjunto está fortemente relacionado ao período e ao universo cultural

anglo-normando no qual os textos foram forjados e circularam inicialmente. Nos

cenários construídos, bem como na caracterização das personagens, misturam-se as

molduras históricas das cortes desse período – espaço-tempo das obras encomendadas –

e os espaços-tempos imaginários de múltiplas temporalidades. E, segundo os “gêneros”

em que foram escritos, há variações significativas na forma de participação dos relatos

orais e da memória.

2 A história das línguas vernáculas faladas e escritas, e de seus dialetos, é complexa, e não será desenvolvida aqui. No entanto, no contexto da cultura anglo-normanda onde foram escritos os textos sobre Tristan abordados neste trabalho, algumas referências e esclarecimentos são necessários. Segundo Michel Zink, “Sur le territoire de la Gaule, deux langues apparaissent, désignées traditionnellement

depuis Dante par la façon de dire oui dans chacune: la langue d’oïl au Nord et la langue d’oc au Sud.

Ces langues elles-mêmes se divisent en nombreux dialectes, au point que les contemporains semblent

avoir eu longtemps le sentiment qu’il n’y avait qu’une seule langue romane et que toutes les variations

étaient dialectales.” E, segundo Anita Guerreau-Jalabert, as caracterizações e classificações dialetais estabelecidas pela filologia do século XIX devem ser consideradas com cuidado. De fato, sabemos muito pouco sobre as línguas faladas, sobre a forma de constituição das línguas escritas, os usos sociais de diferentes níveis dessas línguas. Dois grandes grupos de dialetos são, no entanto, reconhecidos hoje: ao norte da atual França, aquele da langue d’oïl; e ao sul, a partir de uma linha que vai da Gironda aos Alpes do sul, englobando o Limosin, aquele da langue d’oc. E nestes grupos, sobretudo por diferenças fonéticas observadas nos documentos escritos, reconhecemos, no norte, o picardo, o champanhês, o anglo-normando – este utilizado na corte dos reis ingleses – o francês, dialeto da Île de France. 3 Embora existam referências mais ou menos precisas sobre “autores” de três textos – Béroul, Thomas,

Marie de France – a natureza da “autoria” desses e dos demais textos medievais permanece em discussão. Por isso, justifica-se afirmar que são anônimos, sobretudo porque a elaboração da matéria é fundamentalmente oral e coletiva. 4 A palavra versão, no contexto dos estudos sobre a matéria de Tristan, é correntemente utilizada para designar uma interpretação, um tipo de tradução ou adaptação de uma história arquetípica. Neste trabalho, optamos por considerar cada texto e a narrativa que apresenta como parte de uma obra específica. Por isso, a palavra aparecerá entre aspas. 5 Joseph Bédier reconstituiu a história de Tristan e Yseut em 1900 (há uma tradução brasileira dessa obra, BÉDIER, J. Tristan e Yseut, São Paulo: Martins Fontes, 1988), sobre a qual há uma discussão adiante.

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O roman é uma grande novidade no contexto cultural do século XII, um

“gênero”, um tipo de relato considerado hoje, pelos especialistas, fortemente

intelectualizado e com construções eruditas6. De fato, o contexto amplo em que os

primeiros textos sobre Tristan se inserem é o do desenvolvimento de uma produção de

obras escritas – e especificamente de romans – a partir das chamadas “Matéria Antiga”7

e “Matéria da Bretanha”. No séc. XII, as obras singulares escritas sobre o rei Arthur,

seus cavaleiros e a Távola Redonda, a busca do Graal, e o romance de Tristan e Yseut,

reelaboraram esse amplo repertório de temas e motivos da “Matéria da Bretanha” que

exerceram na época, e exercem hoje, interesse e fascínio. Esses escritores interferiram

no movimento da matéria oral – que já existia no período anterior ao século XI – e

participaram da modificação seus conteúdos, formas e funções das narrativas. Essas

“versões” escritas passaram a fazer parte da movência8 da matéria, constituindo-se como

variantes que, na reelaboração de cada texto escrito, promovia mudanças levando para a

matéria oral conteúdos do contexto da elaboração, alimentando o núcleo tradicional de

relatos com dados desses contextos (seleções, valorizações específicas de temas,

motivos e episódios, valores sociais na lógica da narrativa etc.).

Os romans – pela extensão e temáticas desenvolvidas – foram compostos a partir

de seleções e recombinações de episódios da matéria de Tristan, produzindo

amplificações e variações da história ao desenvolver as tramas em que o casal amoroso

esteve envolvido. Os poemas curtos do século XII anglo-normando – Folie de Berne,

Folie d’Oxford e lai du Chevrefoil – resultam de um processo diferente: tendo como

base as especificidades da recitação oral – essencialmente episódica, concentrada nas

ações mais imediatas das personagens – e, também, as particularidades da recepção do

relato mais curto, apresentam um único episódio. Através dos percursos realizados pelos

amantes, construídos por uma sucessão de cenas, diálogos, monólogos e interferências

do narrador, os poemas focalizam aspectos específicos do amor, e visam a tornar

perene, pela narrativa, o momento do encontro. Seus escritores escolheram um episódio

da tradição compartilhada (oral e escrita) e, a partir dele, renarraram a história de

6 GUERREAU-JALABERT, A. Le temps des créations (Xie-XIIIe. Siècle). In : SOT, M.; BOUDET, J-P; GUERREAU-JALABERT, A. Le Moyen Âge. Histoire Culturelle de la France – 1. Paris : Ed. Du Seuil, 2005, p.221. 7 A designação refere-se aos temas e motivos provenientes da Antiguidade, ressignificados na produção escrita da Idade Média Central, a partir da releitura de mitos e autores clássicos. Constituem-se como relatos propriamente medievais, de caráter erudito e clerical, transmitidos a partir de fontes latinas. Idem, ibidem, p.221. 8 Entendida aqui como a propriedade de relatos e temas serem recriados e transformados, pelos rearranjos de um escritor, e pelas leituras realizadas em diferentes meios culturais e sociais nos quais circulava.

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Tristan. O foco num encontro dos amantes permitiu a eles tratar de temas variados

relacionados à matéria e ao presente histórico da produção, cada qual à sua maneira, por

vezes numa articulação sutil. Todos e cada um dos poemas problematizaram questões

de sua época, como obras abertas ao diálogo com a tradição e a inovação. Assim,

desenvolveram temas tristânicos, e agregaram outros à matéria, alimentando a sua

movência.

Assim, as pequenas diferenças entre as obras escritas testemunham as misturas

de diversos materiais, provenientes das culturas célticas, com aqueles das matrizes

clássicas e judaico-cristãs. A matéria de Tristan desenvolveu-se nesse cruzamento, e

num contexto feudal, monárquico e cristão: por isso, encontramos, nos textos do ciclo,

temas e motivos, tais como o herói órfão, realizador de façanhas; magia, provas físicas,

feridas e curas; disfarces, dissimulação e travestimento, armadilhas, delação,

esconderijos, reconhecimento, recompensa; guerra, lutas pelo poder; traição, descoberta,

exílio; paixão/amor, casal amoroso, casamento, serviço, fuga, mergulho na natureza,

solidão, morte, forma de viver, união/separação, sono/despertamento, pecado, salvação,

provação, remorso, arrependimento, confissão, oposição corpo/alma, essência/aparência

etc. E esses “materiais”, num contexto de forte intertextualidade, deram bases à

produção de textos em que aparecem combinados entre si, e também com outros tipos

de narrativa.

Matrizes escritas de uma memória: romans

Os escritores medievais utilizaram-se do passado para tratar do presente, sem

preocupação com o que se entende como fidelidade histórica. Dessa forma, não se

coloca para o historiador a questão das origens: de fato, os relatos célticos e o universo

feérico ganham sentidos diversos no contexto mental e social dos séculos XII e XIII nos

textos que combinam de forma peculiar esses elementos. É nessa perspectiva que

buscamos ler os textos sobre Tristan do século XII.

O único manuscrito conhecido da obra de Béroul é uma cópia feita na segunda

metade do século XIII. Cheia de lacunas, versos ilegíveis, com passagens

incompreensíveis, a referida cópia não nos permite saber como o escritor concebeu o

início e o final da relação entre Tristan e Yseut, ou se essa relação fazia parte de uma

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história mais longa e detalhada do protagonista narrada nesse texto. Isso explica em

parte o grande número de estudos que a obra inspirou9.

É discutível também o fato de ser esse texto o mais antigo da legenda medieval,

embora alguns autores argumentem que a forma de tratar a matéria – utilização de

elementos do universo mágico, como l’arc-qui-ne-faut, e a aparente falta de lógica na

sucessão de episódios – podem indicar uma clara aproximação entre o texto e os relatos

orais10.

A aparente falta de lógica – resultante da quebra da linearidade de sucessão dos

eventos da narrativa – é, de fato, expressão de outro padrão de logicidade, que expressa

uma concepção de mundo em que tudo ocorre ao mesmo tempo. Segundo R.C. West11,

essa estrutura de entrelaçamento revela uma visão panorâmica do mundo em

movimento e turbilhão, no qual as personagens transitam, agem, constroem-se e

revelam suas características em diferentes níveis. Na construção de seu perfil social e

psicológico interfere diretamente o narrador, que joga com o conjunto dos elementos da

narrativa para construir o sentido da trajetória e das relações mantidas entre as

personagens. Dessa forma, o ponto de vista do narrador aparece em dois níveis: na

seleção dos episódios e sua sequência, e nas interferências diretas que este faz através

dos comentários sobre a ação das personagens e seus significados.

Essa estrutura digressiva possui também uma função objetiva: o escritor-

narrador – que escreve um roman para ser recitado, falado – traz constantemente à

memória dos leitores/ouvintes eventos que explicam determinadas passagens separadas

pelo tempo cronológico da narrativa, mas ligadas pela significação. A solicitação do

narrador funciona como um chamado integrador dos níveis de temporalidade,

presentificados a cada performance12. Os ouvintes vivem e revivem a história dos

amantes, participam da trama, são solicitados a seguir pela memória, pela emoção e

pelos sentidos (olhar, ouvir) as personagens e o narrador/recitador. A obra demanda sua

9 É possível observar na listagem bibliográfica os variados aspectos do texto que são objetos de estudos e controvérsias: hipóteses sobre datação, “autoria” e fontes, estudos sobre influências filosóficas e “literárias” do período de elaboração, sobre personagens, episódios, passagens específicas, etc. 10 BAUMGARTNER,op.cit., p. 38. 11 WEST, R.C. The interlace structure of the Lord of the Rings. A Talkien Compass, Jaud Lodbel, La Salle: Open Court, 1975. 12 Fazemos referência aqui ao conceito de Paul Zumthor, que entende performance como a forma pela qual uma mensagem poética é transmitida e recebida, no momento mesmo em que ocorre: “A

performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, e circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios lingüísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis.” Introdução à Poesia Oral, São Paulo: HUCITEC/EDUSC, 1997, p. 33.

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participação ativa, o que implica várias possibilidades de realizações da mensagem ou

de seu conjunto a cada leitura. O escritor-narrador, que, como mencionamos, interfere

direta e indiretamente no texto, indicando uma possibilidade (intencional ou não) de

interpretação, não pode ter o controle sobre o processo de difusão das mensagens. Mais

que isso, a estrutura da narrativa implica várias possibilidades de leitura da história,

relativas às perspectivas de observação dos movimentos e das relações entre

personagens.

O ambiente social de leitura e performance é fundamentalmente cortesão; no

espaço de teatralização da história – as cortes normandas e anglo-normandas da

Inglaterra e do norte da França – as performances podem ter enfatizado variados

aspectos da narrativa e problematizações colocadas pelas tramas que a compõem. É

possível e provável, por exemplo, que as questões relativas ao poder tenham sido

enfatizadas na leitura cortesã da obra. A literarização realizada por Béroul ocorreu

provavelmente no reinado de Henrique II Plantageneta e Eleonor de Aquitânia,

momento de intensas lutas feudais, de afirmação do poder real e das intrigas palacianas

que envolveram o rei, a rainha, seus parentes e vassalos. O texto apresenta um rei

instável emocionalmente, influenciável por seus conselheiros, inclusive no que se refere

a questões afetivas e familiares, incapaz de realizar e manter o equilíbrio do reino,

barões poderosos que agem no sentido de desagregar a ordem: em síntese, a versão se

constrói registrando dados das práticas políticas do momento e lançando sobre elas um

grande questionamento, ao articulá-las à problemática da vivência do amor. De fato,

pensamos que os eixos temáticos da estrutura profunda da obra são o amor e o poder:

não se trata de atribuir a um ou a outro, maior importância; Béroul registra uma forma

de perceber e viver essas dimensões, refletindo sobre as relações, influências, limites e

contradições entre elas.

Contemporâneo de Béroul, Thomas d’Angleterre deve ter escrito Tristan entre

1172 e 1173. Coincidem também a ambientação da produção dos textos – durante o

governo de Henrique II – e o provável perfil dos escritores: Thomas teria sido um

clérigo que viveu na Bretanha. Seu público-alvo deve ter sido composto inicialmente

pelas cortes anglo-normandas insulares. Do texto original, conseguiram-se recompor

3145 linhas, a partir de diferentes fragmentos manuscritos, cópias do século XIII. Essa

recomposição cobre o período da vida de Tristan que vai de seu exílio até a morte e,

nesse sentido, focaliza a história de amor do casal Tristan/Yseut. O fragmento de

Strasburg (I) abre-se com rápidos comentários e questionamentos do narrador sobre a

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necessidade de retomar episódios anteriores e relembrar seus sentidos, e focaliza Tristan

aguardando a passagem da comitiva real para rever a amada. Thomas indica a existência

dos vários relatos que circulavam na Bretanha, e cita Bréri, o escritor do texto fundador

da tradição escrita, que afirma ter lido. Comenta explicitamente que a matéria de Tristan

é muito diversa, e sugere que a sua obra foi escrita a partir da seleção que fez dos relatos

que ouviu, segundo sua proximidade da verdadeira história. Béroul, por sua vez, refere-

se à Yvain, ao conhecimento da história, e à sua própria memória. Thomas declara que

ouviu muitos, e apresenta a sua versão da história dos amantes, autorizada porque

escrita e verdadeira. Ambos afirmam que seus textos recontam uma história narrada em

outro texto.

Poemas do encontro, muitas memórias

A Folie d’Oxford faz referência implícita à narrativa de Thomas ao manter a

ordem dos episódios renarrados; no entanto, o poeta omite a referência, talvez para

afirmar a autonomia e a autoridade de sua própria obra, que narra, de forma singular,

uma história que naquele momento já se contava por si só. Da mesma forma, a Folie de

Berne – provavelmente derivada da tradição de Béroul, e considerada, em termos

poéticos, “inferior” à de Oxford – é um poema episódico que trata a matéria com um

tom peculiar, também pleno de renarrações da história de Tristan, e referências a outras

passagens da história.

As Folies Tristan sintetizam e recontam a história do casal amoroso através de

um episódio central emblemático, que corporifica fortemente o poder do simbolismo

físico, com a utilização de disfarces e sinais materiais da presença dos amantes e do

sentimento amoroso. Para rever a amada, e estar novamente com ela, Tristan enfrenta

vários tipos de perigo, os quais servem inicialmente como prova autoimposta que,

dialeticamente, satisfaz e realimenta o sentimento amoroso. Ao longo da realização da

aventura de buscar a amada, que se constitui como um tipo de provação/peregrinação

solitária, porém, Tristan encontra e reencontra outras personagens, para as quais sua

presença implica outros tipos de prova. Sobretudo, Tristan submete intencionalmente a

amada e os membros da corte a provas similares, complementares, e outras ainda

opostas às suas.

As cenas que compõem o desenvolvimento do episódio nos mostram as referidas

provas às quais as personagens são submetidas, que devem revelar, principalmente, suas

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capacidades para ler e interpretar sinais de identificação através dos disfarces, e do

reconhecimento a partir da memória. Em Berne, Yseut é incapaz de reconhecer seu

amante até que ele lhe mostre o anel de ouro com o qual ela o presenteou; na Folie

d’Oxford, nem mesmo o anel permite a Yseut reconhecer a identidade de Tristan, que só

é definitivamente revelada pela voz. Dessa forma, os poemas episódicos relacionam os

temas amor, encontro e reconhecimento através da construção, caracterização e

objetivos do disfarce, e a utilização de outros sinais, dentre os quais o disfarce é o

elemento catalisador. E o disfarce de louco escolhido e/ou utilizado por Tristan é um

sinal ambíguo que pode ser lido, dependendo da perspectiva, como expressão exterior

da experiência amorosa mais íntima. Máscara e sinal de presença nua do amante, que o

utiliza para apresentar-se e rememorar toda a verdadeira história dos amantes diante dos

algozes e da amada, com diferentes objetivos, o disfarce é elemento que sinaliza em

direções opostas, e a máscara da loucura a metáfora amorosa mais eloquente.

A realização plena do casal no encontro amoroso é o motivo central das

narrativas, nas quais também fazem eco, de formas diversas, os problemas relativos ao

exercício do poder. Momento fugidio para os amantes, o encontro recoloca todo o

sentido da história, como se fossem miniaturas e rubricas dela, valorizada pela memória.

Embora a loucura de amor, a aventura e o disfarce sejam comuns aos dois

poemas, as perspectivas, as memórias, a composição e as funções do disfarce da

personagem central variam. Significativamente. E o lai Chevrefoil, por sua vez, nos

conta também um único encontro – mais um, entre tantos, dos quais o amor de Tristan e

Yseut se alimentou, no imaginário do século XII anglo-normando –, episódio que

evidencia como uma história de amor e de morte é feita de momentos maravilhosos e

fugidios, para os amantes, escritores e públicos medievais, e para nós. Tristan e Yseut

continuam a viver a cada renarração de suas aventuras. Até mesmo hoje, quando nós o

fazemos.

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A memória nos textos e a produção de sentidos

“...o herói não existe senão no canto, mas não deixa de existir também na

memória coletiva, na qual participam os homens, poeta e público.”

Paul Zumthor13

Essas obras foram produzidas num momento da Idade Média em que se

multiplicavam os textos escritos, mas no qual essa “literatura” era marcada

essencialmente, como vimos, pela oralidade. Na “literatura” oral, a memória tem um

papel fundamental, dado que caracteriza esse tipo de produção. As marcas da memória

estão presentes de forma significativa no Tristan de Béroul: funciona como uma forma

de organizar a trama e cadenciar a narrativa, além de ser o fundamento da elaboração da

versão, e o meio através do qual o autor-narrador constrói o discurso que comunica aos

seus leitores - ouvintes.

A importância da memória nos textos medievais desse período pode ser avaliada

também pelo papel que ela desempenhava nos níveis clerical e laico da cultura.14

A oralidade continuou a ter um papel cultural importante ao lado da escrita. Isso

é particularmente verdadeiro para os séculos XI e XII. Além de ganharem força de

permanência com o registro escrito, essas canções e as histórias que narravam estavam

integradas à memória oral, coletiva e popular. Ocorria, portanto, o fenômeno

denominado circularidade entre as formas escrita e oral da cultura, movimento no qual

ambas eram transformadas.

A recorrência a discursos anteriores é própria do relato oral. É procedimento que

relembra ao ouvinte o que já foi narrado e, ao mesmo tempo, vincula esses eventos à

situação de momento da narrativa, ao presente da narração.

A presença da memória, típica da literatura oral, nos textos da “legenda de

Tristan” é também importante porque conservou elementos do folclore, de antigos

mitos, de crenças e valores tradicionais. Nos textos escritos, a memória passa a

desempenhar também papel de elemento constitutivo produtor de sentidos. Assim, deve

13 Apud J. Le Goff, “Memória”, Enciclopédia Einaudi, op. cit., p. 29. 14 Como sabemos, na tradição cristã, a memória ocupava um papel central. Para os monges medievais, como lembra Leclercq14, a lembrança está aliada à meditação, uma vez que promovia “um profundo mergulho nas palavras da Escritura.” A catequese cristã se baseava, como sabemos, em uma técnica de memorização e repetição. Os próprios estudos dos textos sagrados desenvolvidos nos mosteiros envolviam o treino da memória, articulando o oral e o escrito. O calendário litúrgico reforçava a memória dos santos, ligando a catequese, que tinha por base os escritos sagrados, com a memória oral popular. Como sabemos, um dos esforços da Igreja para cristianizar a sociedade medieval foi no sentido de se apropriar da memória popular.

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ser considerada como parte da estratégia do narrador e técnica narrativa por ele

utilizada.

A repetição como técnica narrativa pode ser exemplificada na versão de Béroul

pelo número de vezes que aparece o elogio às façanhas de Tristan: nada menos que oito.

Uma série de elogios relata as aventuras do herói na Irlanda, outra suas façanhas na

Cornualha. Ao mesmo tempo em que revelam a técnica de composição de base oral de

Béroul, essas repetições ajudam a compor a trama, na medida em que servem a

diferentes objetivos do narrador, conforme o momento e a situação em que são

introduzidas na narrativa.

Um dos sentidos dos elogios às façanhas de Tristan é o de evidenciar oposições:

o narrador e as personagens, em seus discursos, opõem o bem ao mal, a virtude ao vício,

o herói aos anti-heróis. As qualidades de Tristan, cavaleiro corajoso e vassalo fiel, são

apresentadas em oposição às características dos barões, intrigantes e conspiradores. Esse

sentido é claro em várias cenas, sobretudo naquelas em que os amantes percebem o rei

Marc oculto e simulam um diálogo que mascara o verdadeiro sentido do encontro.15 As

falas de Tristan visam diretamente à memória de Marc.

O apelo à memória do rei pela referência aos feitos de Tristan é um eficiente

expediente para evidenciar a inocência dos amantes em relação às acusações que lhes

são feitas pelos barões do reino. Os episódios rememorados mostram acusações do

presente, formuladas pelos barões, em oposição à memória dos feitos heroicos. Assim,

Tristan e Yseut apelam à memória do rei para provar inocência em relação às acusações.

Invocam fatos passados para que se tornem referências dos juízos forjados no presente.

Um outro momento da narrativa em que as façanhas do herói são lembradas é no

episódio da redação da carta que o eremita Ogrin escreve e envia ao rei Marc em nome

de Tristan. Antes de começar a escrever, Ogrin compõe a carta oralmente para que

Tristan a aprove, recordando cada um de seus feitos e aventuras na Cornualha até o

pronunciamento de sua sentença de morte feita por Marc. O primeiro dado interessante

é que Ogrin acrescenta às façanhas antigas a fuga da capela, vista de forma miraculosa.

Isso também é próprio das narrativas orais tradicionais, que repetem temas antigos

15 No conhecido episódio do “Encontro sob a árvore”, por exemplo. As proezas guerreiras, a conquista do direito ao casamento com a princesa da Irlanda e a consanguinidade são invocados para compor o quadro a ser julgado pelo rei, ao qual o herói opõe a infidelidade e a fraqueza dos barões. O discurso enfatiza a oposição entre as ações positivas do campeão e as negativas e desagregadoras dos barões. Tristan apresenta ao rei, como se não o estivesse fazendo, visto que finge ignorar sua presença, sua versão dos fatos. É sobre essas versões que o rei deverá refletir e optar.

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agregando novos elementos à história. Recordam o passado ao mesmo que atualizam a

memória.

Mas o importante é que aqui o relembrar das façanhas tem outra função

narrativa, e amplia seus significados na composição da trama. A carta serviu para o

autor - narrador passar de um episódio, o da vida dos amantes na floresta, para outro,

novamente desenrolado na corte. O discurso de Ogrin é direcionado para justificar o

amor dos protagonistas e para obter a reconciliação com o rei Marc.

Cheio de detalhes, o discurso de Ogrin é um ensaio do elogio final do roman,

quando da entrega da carta escrita a Marc. O rei convoca o seu conselho para que a

carta seja aberta e lida na presença dele. Só então o leitor - ouvinte conhece as palavras

escritas por Ogrin. A carta, rememorando as façanhas heroicas de Tristan, funciona

como um epílogo da história.

Em outro momento da narrativa, as façanhas de Tristan são relembradas pela

multidão de um novo ponto de vista. O discurso dessa multidão passa por três

dimensões de tempo: comemora o passado, apresenta os fatos da realidade e anuncia o

futuro. A recordação dos feitos é apresentada, então, como uma prova de que lado se

encontrava a justiça. A multidão desempenha o papel de um juiz, negando a justiça do

rei Marc e, quem sabe, reconhecendo em Tristan um rei mais legítimo e verdadeiro.

Como pudemos observar, a repetição, como um constante relembrar de fatos

passados e já narrados, é uma técnica narrativa na qual se tece uma trama sempre

agregando elementos novos a um determinado núcleo essencial. Dessa forma, a

sequencia de episódios, em torno de núcleos significativos, permitiu a Béroul apresentar

aos seus leitores – ouvintes uma variedade de materiais recolhidos de várias fontes, mas

em um arranjo novo no qual a matéria adquiriu novos sentidos.

Assim, na narrativa de Béroul cada palavra funciona como um gancho que

agarra uma ou várias outras formando uma cadeia e criando uma verdadeira

cumplicidade com os leitores – ouvintes. Isso porque a narrativa é composta de

fragmentos de um passado mítico reconhecível por esses leitores, reelabora conteúdos

da memória social e cultural. Uma frase do poema de Béroul funciona como um gancho

de memória, desenhando passagens anteriores do roman e de outras narrativas, que lhes

precederam e circularam também simultaneamente. Conforme as personagens vão

rememorando, a memória dos leitores-ouvintes também é convocada para esclarecer os

eventos no presente da narração. Esse processo de composição, a arte narrativa de

Béroul, incorpora pela memória a experiência dos ouvintes. São especialmente as

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rememorações que permitem ao poeta imprimir ritmo próprio à narrativa, e envolver os

leitores – ouvintes por meio da memória.

Diferentemente do tom de Béroul, obra caracterizada pelo peso da narração de

aventuras e da variação numérica e qualitativa dos diálogos, a obra de Thomas é

considerada uma leitura cortês da matéria, com ênfases em sentimentos das personagens

– sobretudo de Tristan – e reflexões do narrador. Por outro lado, tal como a narrativa de

Béroul, a de Thomas faz uso das lembranças, sobretudo do protagonista, mas também

das de outras personagens, para compor a memória de uma história completa; tal como

a de Béroul, apresenta Tristan disfarçado, trata de questões relativas às vivências do

amor por cada um dos amantes, como o casamento e o adultério, entre outras. Mas a

ênfase nas questões do exercício do poder, suas contradições e ambiguidades

explicitadas por Béroul, são aqui secundárias em relação ao amor.

A narrativa narra o casamento de Tristan com Yseut aux Blanches Mains

ocorreu, que não foi consumado pois cada vez que Tristan pronuncia seu nome, e vê o

anel com o qual a rainha Yseut (sua verdadeira amante) o presenteou, a memória lhe

impede de amar a outra, de cumprir suas obrigações como marido.

As tentativas de Tristan de impedir-se de amar não têm qualquer utilidade, mas

indicam um dos pressupostos do amor do século XII. Depois de sua primeira tentativa

(ovidiana) de administrar as emoções, isto é, seu casamento com a segunda Yseut,

Tristan buscou uma saída diferente, cujos contornos ele mesmo definiu: artista que era,

ele reproduziu Yseut na forma de uma estátua. Desde então, o herói atingiu uma espécie

de paz, que só era quebrada quando seu cunhado o forçava a voltar para o mundo “real”,

questionando-o sobre a manutenção da virgindade de Yseut aux Blanches Mains. Assim,

ele conseguiu encontrar uma solução bem-sucedida, ainda que efêmera, de re-presentar

– no sentido de tornar presente novamente – a amada, sem os problemas sociais,

políticos e morais que o casal tinha forçosamente que enfrentar.

A Sala das Imagens era um tipo de lugar de meditação. Tristan a visitava

sempre, como se revisitasse seu passado, pois ali estavam as imagens de seus feitos

heroicos, e uma imagem do amor. Assim, pode-se entender a atitude de Tristan em

relação às mulheres como a de quem sublima o desejo, substituindo a mulher material

pela ideal, inatingível senão pelo êxtase contemplativo. Metáfora eloquente de como o

amor-paixão pode sobreviver numa sociedade que o exila.

No entanto, é possível realizar uma outra leitura, fazer um percurso diferente

pela Sala das imagens, seguindo os passos de Tristan. Ao reproduzir com sua arte a

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imagem da amada, Tristan captou e representou a essência dela. Se lembrarmos que

Thomas era um clérigo do século XII, essa leitura pode fazer todo o sentido, já que

noção da imagem como uma entidade dual, consistindo basicamente num arquétipo

manifestado em matéria física, reveste a estátua de Yseut de uma aura diversa, que

indica a união de partes diversas, mas igualmente necessárias para a existência de um

todo. Além disso, as imagens são esculturas que corporificam a memória do enamorado

e as eterniza, para além dos limites morais e sociais do amor que viveram.

Segundo Tracy Adams, a visita de Tristan à Sala das Imagens era uma forma de

compreender, experienciando seu amor por Yseut através da analogia entre este amor

humano, que não se esgota no desejo sexual, e a relação com a realidade de Deus em

suas manifestações visíveis. Esta seria, portanto, a forma medieval e clerical de explorar

o paradoxo do amor – que, embora profundamente espiritual, demanda expressão física.

É tanto caritas (caridade) quanto cupiditas – (desejo). Os episódios cristalizados nas

estátuas são materializações de uma memória que concretiza aos nossos olhos a

concepção medieval em que o corpo humano, como também o espírito, estão

inevitavelmente implicados no amor.

É muito provável que Thomas tenha sido um clérigo, e como tal, sua visão do

amor-paixão resulte de experiências amorosas de outro tipo, a caritas ou o ágape.

Dizendo de outra forma, sua obra é fruto de uma construção/reflexão sobre o amor

humano, entre homem e mulher, sobre o casal amoroso, que o escritor realiza em

comparação às demais formas que ele conhece. Sua autoridade, tantas vezes afirmada,

pode referir-se a seus conhecimentos da verdadeira história do casal amoroso, cujo

modelo seria cristão e bíblico.16 O que nos importa neste momento é situar o papel da

memória na história “verdadeira” contada por Thomas. Pelo papel desempenhado na

obra, e pelo que pudemos perceber no conjunto de estudos sobre a “versão”, a Sala das

Imagens – criada por Tristan no exílio para lembrar-se de Yseut la Blonde, período em

que estava casado com a segunda Yseut (a de “Mãos Brancas”) para esquecer a primeira

– pode revelar alguns elementos para a compreensão do final da história – a morte de

amor – e o papel das duas mulheres na trajetória de Tristan. A memória de Tristan da

16 Embora não caiba aqui fazê-lo, uma possibilidade interessante para pesquisas futuras é comparar Tristan e Yseut e mesmo outros casais da obra de Thomas, aos muitos e diversos casais protagonistas das narrativas bíblicas, sobretudo do Antigo Testamento.

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rainha Yseut representa tão poderosamente a realidade do amor físico e espiritual, que o

jovem homem torna-se incapaz/inútil diante dela.17

Folies, lai : um episódio, múltiplas memórias

Um único verso, que funciona como prólogo, anuncia a narrativa da aventura de

Tristan na Folie de Berne. Para caracterizá-la, valorizar alguns de seus aspectos

fundamentais – e preparar a tensão da trama – o narrador focaliza diretamente o

protagonista nos versos seguintes (v. 1-18). Indisposto com a corte de Marc, Tristan não

sabe para onde ir. Vive receoso, pois soube que está sendo caçado pelo rei, seu tio, por

causa dos danos que causou à rainha. Exilado e ameaçado pela vingança do rei, e ainda

refém do desejo: embora tenha a seu lado uma Yseut, Tristan deseja a outra, a primeira.

Desde o início do poema (composto por 584 linhas), esboçam-se oposições e

enfatizam-se polarizações. Tristan, antes o preferido de Marc, é no momento objeto de

seu ódio; campeão, de um dos reinos da família, está proscrito em outro de seus

próprios domínios; herdeiro do rei Marc torna-se um traidor perseguido por ele; o

amante exemplar da rainha Yseut torna-se o marido impotente de Yseut aux Blanches

Mains. Marc, por sua vez, passa de um marido traído oscilante, e rei ofendido, para a

condição de senhor poderoso; os barões deixam a posição reativa de delatores para

assumirem a de caçadores em busca de recompensas. A percepção dessas polarizações

implica, para a plateia, a utilização da memória e das conexões operadas pelo escritor e

pelo narrador.

O poeta de Berna constrói as cenas iniciais utilizando o enfoque e os

comentários do narrador, inserindo as reminiscências significativas através das falas das

personagens. A plateia é assim chamada a observar uma aventura e um jogo: Tristan,

“inimigo público”, experimenta as dores do exílio amoroso, da privação do exercício de

17 Outro subtexto, ainda, da história de Thomas pode ser encontrado no milagre latino: “A respeito do jovem nobre que amou demais uma certa dama nobre”, a fonte de “Les 150 Ave du chevalier amoureux” (As 150 Ave Marias do cavaleiro amoroso?), de Gautier de Coinci. Nesta história/lenda, um jovem e belo cavaleiro apaixona-se perdidamente por uma mulher que não quer saber dele. Ele procura um padre, buscando conselho, e lhe é dito que reze à Virgem Maria se quer ganhar a linda dama. O cavaleiro conscientemente faz a novena que o padre lhe havia indicado, mas, ao final, a Virgem aparece a ele em uma capela nos bosques onde estava caçando e o convence de que ela é um objeto muito mais digno do seu amor do que a dama terrena a qual amava. O estudo supra citado de Tracy Adams nos apresenta uma bela análise das aproximações e entrecruzamentos entre tradições cristãs e clássicas, e sugere uma série de questões – inclusive a do papel dos amuletos e símbolos – que merecerão nossa atenção num estudo posteiros sobre esses elementos das narrativas anglo-normandas.

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sua identidade. Por outro lado, e ao mesmo tempo, Marc exerce sua autoridade

“pública” e pessoal numa assembleia de barões, vassalos a quem solicita conselho e

auxílio para uma vingança pessoal, que assume conotação “pública”, na medida em que

se trata de uma ordem real para a captura de um traidor.

Todas essas comparações são orquestradas pela memória, e o narrador é

explícito: a plateia observa a situação de Tristan e, para compreendê-la e avaliar

adequadamente seus desdobramentos na narrativa, deve lembrar-se de passagens

anteriores da história da personagem. Primeiramente, sua relação com Yseut, sugerida e

caracterizada indiretamente por adjetivações: a plateia pode identificar os referidos

“danos” causados a ela por Tristan com a conquista de sua mão para Marc, a ingestão

conjunta do filtro na travessia marítima da Irlanda para a Cornualha e a paixão dela

decorrente, a perda de sua virgindade, a necessidade de enganar o rei, os perigos da

manutenção de uma relação adúltera. As anacronias possuem funções significativas, e o

apelo à memória, indiretamente solicitado pela composição da trama, é condição de

intelecção dos sentidos da narrativa episódica.

Em seguida, focalizando o ponto de vista de Tristan, o escritor indica que a

memória sensível é fonte de inúmeras dores: se ele não pode sequer ousar voltar ao país

(de onde foi obrigado a fugir) para reencontrar a amada, a lembrança dos encontros

furtivos e dos prazeres físicos experienciados amplificam a ausência de Yseut no

presente, e torna a distância insuportável. Além disso, a presença de outra Yseut, a

esposa, só contribui para aumentar seu desespero: como a plateia pode se lembrar,

outros narradores contaram que Tristan não conseguiu consumar seu casamento, pois o

anel – que imediatamente invocou a associação com Yseut – não permitiu a Tristan

amar a outra, senão a rainha, representada naquele momento pelo signo material e pela

memória sensível. Da tensão entre emoção e razão, paixão e casamento, passado e

presente, emerge a loucura. E o disfarce de louco, ao mesmo tempo.

Numa mistura muito peculiar da matéria de Tristan com expressões, temas e

estilos dos fabliaux, o escritor nos apresentou a situação do amante em busca da

satisfação de seu desejo, tal como um amante cortês também faria. Enlouquecido pela

memória sensível dos prazeres vividos, o herói assume a condição de louco e a utiliza

como disfarce.

O disfarce de louco, portanto, liberta o louco de amor. Na grande sala, o disfarce

permite a Tristan lembrar e projetar, dizer publicamente coisas absurdas e/ou

verdadeiras, que podem ser levadas a sério (como um tipo de confissão) ou

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desconsideradas (por serem proferidas por um louco), dependendo da perspectiva dos

que o veem e ouvem. De fato, o que ele diz diante da corte é cheio de ambiguidade

porque, de um lado, seu discurso faz parte do disfarce, reforçando pelas palavras a

aparência do louco; por outro, deve dar a Yseut indícios para que reconheça o amante

sob o disfarce, para além das aparências.

Embora inicie com a narrativa do mesmo episódio, a Folie d’Oxford enfatiza

muito mais as condições emocionais de Tristan. Só, pensativo, melancólico,

dissimulando pensamentos e emoções. Doente de amor. Tristan, exilado em seu próprio

país, vive as dores da ausência de sua amada. É com esse retrato da personagem que o

narrador do poema de Oxford (998 linhas) principia a história, nos primeiros 75 versos

que emolduram a narrativa. Ele nos conta que Tristan, consumido pelas dores

lancinantes do desejo da amada, pressente e deseja a morte. A busca de algum conforto

impulsiona uma nova aventura, que está por vir. Arriscar a vida: morrendo aos poucos

pela falta de Yseut, teria conforto se a encontrasse novamente, ou morresse na busca. De

uma forma ou de outra, para Tristan, Yseut precisa saber que é por amor, e por ela, que

ele está mortificado, e pronto para morrer.18 A memória da personagem tem um tom

melancólico, que se manifesta como desconforto físico e psíquico: a razão fraqueja, o

desespero o apunhala. Transtornado pela ausência da amada, e temendo seu desprezo

(caso não fosse capaz de correr, por ela, todos os riscos) resolve revê-la em segredo, ou

disfarçado de louco melancólico.

No grande salão do palácio de Marc, o louco continuava sua performance

ambígua, procurando ao mesmo tempo, sob o disfarce, esconder-se dos cortesãos, e

denunciar sua presença para Yseut. O rei e os seus, segundo o narrador, divertiam-se

com o louco eloquente, que continua insistindo em declarar seu amor pela rainha. De

sua parte, ao ouvir suas palavras de amor eterno, Yseut suspira, perturbada e

empalidecida. O louco, que então se nomeia Tantris, dirige-se diretamente a ela, e

invoca sua memória. Pede que se lembre – como todos ali presentes conheciam a

história – que ele foi ferido ao enfrentar Morholt, a quem matou. Porém, a grave chaga

aberta em seu flanco pela espada envenenada atacou-lhe os ossos, que apodreceram

18 O que para os troubadours, e depois para os trouvères, é simplesmente uma figura de estilo (que a ausência da amada retira da vida qualquer significado e faz com que o amado deseje a morte) torna-se no universo mais tangível do romance uma descrição objetiva que apresenta, com respeito à realidade, um comportamento que é tanto anormal como trágico. Cf. PAYEN, Jean-Charles. The Glass Palace in the Folie d’Oxford: From Metaphorical to Literal Madness, or the Dream on the Desert Island at the Moment of Exile – Notes on the Erotic Dimension of the Tristans. In: GRIMBERT, Joan Tasker (Ed.). Tristan and Isolde – A Casebook. Routledge: New York and London, 2002, p. 111-124.

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provocando então um tal sofrimento que ninguém podia aliviar; acreditando que fosse

morrer, Tristan foi lançado ao mar com sua harpa, embora nem a música pudesse dar-

lhe conforto. Foi então que a tempestade arremessou a nave na direção da Irlanda, onde

o herói aportou, e foi levado – enfraquecido, e contra sua vontade – à corte, a pedido da

princesa, pois sabia tocar bem a harpa. Lá, a rainha – a quem o louco disse ser sempre

agradecido – curou suas feridas. E ele, então, fez-se nomear Tantris, e apresentou belos

lais bretões acompanhado pela harpa.

Tristan buscou utilizar a memória do passado heroico como sinal

simultaneamente de reconhecimento – para Yseut – e de disfarce, para os demais. Sua

insistência nos detalhes e declarações de amor, no entanto, soaram para Yseut como um

indício de que poderia estar sendo testada, como adiante argumentará para Brengain.

Como seria possível alguém conhecer tão bem detalhes íntimos de sua vida “pública e

privada”? E justamente alguém com a aparência absolutamente contrária ao que sua

memória lhe apresentava como traços de seu amado? De seu ponto de vista, o louco –

grosseiro, hediondo, disforme – era um trapaceiro que, pelas palavras, tentava passar

por seu belo e nobre amante. Segundo o poeta, o rei em nenhum momento protegeu a

rainha; muito pelo contrário, divertiu-se com seu desconforto, consentiu em sua

exposição pública. O que para os cortesãos e para Marc era motivo de riso e escárnio,

para Yseut era fonte de sofrimento.

Um novo conjunto de recordações de suas aventuras é renarrado pelo louco,

todas relacionadas à da conquista da mão de Yseut para Marc (vv. 416-484). Observe-se

que a lógica da rememoração não é essencialmente cronológica, mas responde aos

critérios da revelação da bravura do herói em comparação aos estratagemas do rei, da

memória individual à do casal de amantes, dos feitos políticos e dos correspondentes

perigos aos quais o grande cavaleiro esteve exposto. O jogo de palavras entre o narrador

da história e a personagem, que revive sua própria trajetória, funcionou, para Yseut,

como substituto/símbolo da bebida: a memória que elas invocaram teve ação inebriante,

suspendeu-lhe a razão. Ela realiza uma leitura necessária de todos os signos – visuais,

aurais, gestuais e verbais – para avaliar a identidade do louco. As evidências físicas da

loucura, manifestas em Tantris, são comparadas com as memórias que ela possui de

Tristan, enquanto o bufão renarrava as experiências de Yseut e seu amante no passado, e

solicitava que Yseut utilizasse sua memória. A conclusão de Yseut reflete as hierarquias

de faculdades de conhecimento, nas quais a crença ordena os resultados do intelecto, da

memória e da experiência sensorial (ou da percepção através dos sentidos). A crença

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alcança a totalidade do ser da pessoa, mas o disfarce de Tristan desintegrou essa

totalidade, e os fragmentos perceptíveis de Tristan Enamorado e do louco não podem

fazer Yseut reconstituir a totalidade. No diálogo que então se desenvolveu, Brengain pôs

o louco à prova e, mais uma vez, Tristan invocou a memória do episódio do embarque

da Irlanda para a Cornualha, com riqueza de detalhes, como índice de identificação. O

mais importante dentre todos foi o da entrega à Brengain, pela rainha da Irlanda, do

frasco que continha o filtro amoroso. Tristan aqui, diferentemente de outras narrativas e

mesmo da renarração feita diante da corte, atribui a um servidor qualquer a

responsabilidade pela ingestão do vinho ervoso e, consequentemente, pela paixão.

Brengain finge não se lembrar, mas o louco insiste que ela tem sido confidente e

cúmplice dos amantes desde tal momento.

Observe-se que Tristan lança a Yseut, através da memória, todos os indícios de

que ele é seu amado, vive como louco uma provação autoimposta, e que veio para obter

dela uma prova de amor. Os demais episódios rememorados no âmbito privado, que são

indicativos de sua identidade num sentido amplo, são referidos por ele fora da sequência

cronológica que, no salão do palácio, ainda constituía um dos critérios de narração. Por

livre associação, digamos assim. Tristan dá um sentido cada vez mais material e

simultaneamente mais significativo à rememoração. De fato, ele procura mostrar a Yseut

sua identidade através de todos os tipos de sinais dos quais o amor se alimentou, e a

partir dos quais sobreviveu às pressões da corte. A memória trabalha tanto através da

renarração do passado por Tristan, como de sua percepção do presente, restaurando a

crença de Tristan em Yseut e no amor dela. Assim que Tristan falou com sua própria

voz, ele pôs fim a uma rota falsa inexaurível de interpretação; ele parou de produzir

sinais ambíguos, e falou abertamente. Nas hierarquias das faculdades – crença,

intelecto, memória e percepção – estão os elementos que ordenam a parte interna

daquele processo, e que são representados nas ações e nas relações das personagens. Tal

como na Folie d’Oxford, o encontro e a união dependem da identificação do amante,

sendo condicionado pela memória. Yseut não reconhece Tristan no louco, e ele, com a

ajuda de Brengain, trata de referir-se aos seus feitos passados. No quarto real, a

memória visa a apresentar a Yseut o quanto ele a deseja, e quantos perigos tinham

enfrentado juntos para se amarem, apesar de todas as proibições. Tristan rememora as

vezes em que, no quarto da rainha, tocava harpa para alegrá-la quando estava triste,

havendo a rainha lhe curado, perfeitamente sozinha, as feridas abertas em batalhas e

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pelo veneno do cruel dragão. Lembra-lhe com detalhes de quando estava no banho, e

Yseut desembainha sua espada de aço, experimentando encaixar o entalhe.

O conteúdo dos discursos de Tristan e os temas tratados em seus monólogos ou

nos diálogos que mantém com outras personagens – memórias de atos heroicos, a

fidelidade ao rei, a relação amorosa, suas dores e delícias – são tratados em ambos os

ambientes do palácio de Marc, mas mudam de teor e função, e abordam perspectivas

diferentes em cada um desses espaços.

O problema colocado pela Folie de Berne é aquele da reminiscência e

reconstrução: os leitores são testemunhas e participam da trama através da memória,

assim como Tristan e Yseut, para reunir no presente os fragmentos espalhados do

passado. Uma vez que Tristan e Yseut de novo trocaram “cachorro e anel”, eles

relembram e juntam todos os elementos presentes naquele momento do passado quando

partiram da floresta de Morois. A memória completou seu trabalho na reunião do final.

Marie de France, escritora19 contemporânea de Henrique II, associa suas obras a

um nome próprio, o seu, e não ao do Rei a quem ela oferece a sua coleção. Citando a

auctoritas de outros, ela assegura implicitamente a sua própria, baseada no

conhecimento de tradições, orais e escritas, em latim e vernáculo.20 A forma de

apresentar o lai Chèvrefeuille e sua coleção como um todo, e de apresentar-se como

escritora, também faz referência aos processos culturais da época: reconhece a si mesma

como intermediária entre a aventura, o canto e o texto; e, por extensão, entre o tempo da

aventura, o da composição do lai por Tristan (com o objetivo de contar e conservar a

história), e o da renarração escrita, que é mais um meio de conservação que permite que

a história volte a circular através do canto, efetivando o propósito do primeiro

elaborador: manter viva a memória do evento. Como sabemos, lai é o nome dado a um

tipo de poema versificado, uma canção composta e executada para elogiar um evento

significativo, através de sua permanência na memória de quem a compusesse, e dos que

ouvissem a história e a canção, no presente de sua criação, e na posteridade. Uma de

19 Marie de France e sua obra – composta de lais e traduções – é figura importante no universo cultural do século XII. Sobre ela, ver principalmente BRUCKNER, M. T. Textual Identity and the Name of a Collection: Marie de France’s Lais. In: Shaping Romance – Interpretation, Truth, and Clousure in Twelfth-Century French Fictions. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1993.; BLOCH, R. Howard. The Anonymous Marie de France. Chicago: The University of Chicago Press, 2003. 20 Assim como Chrétien de Troyes afirma orgulhosamente seu nome nos Prólogos a Erec, Cligés e Charrete, para estabelecer a ligação entre o nome do escritor e a tradição textual (e transferindo a garantia de auctoritas do latim para a escrita em vernáculo), também Marie coloca seu nome no início de sua coleção, assegurando-nos de que todas as histórias que seguem foram moldadas por seu cuidado e sua arte.

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suas características é, portanto, a forte e decisiva presença da voz do narrador,

fundamental tanto em termos quantitativos como qualitativos, fosse ele ou não o

elemento intratextual que representa o escritor. A forma como o curto prólogo resume o

conteúdo da história dos amantes chama a atenção: um amor perfeito e que causou

muito sofrimento, antes de provocar a morte dos amantes no mesmo dia. 21

Um encontro, é o que o lai rememora e comemora: pela alegria que

experimentou ao rever sua amada amiga, graças ao bastão que tinha gravado, com um

chamado para ela, e para preservar as palavras do esquecimento, Tristan – que conhece

bem a harpa – compôs um novo lai. Marie o nomeia “sem demora”: Gotelef em inglês,

Chèvrefeuille, em francês.

Memória e voz são os agentes da transmissão oral; escrita e leitura são as

operações primárias da tradição textual. Entre o Lais de Marie, apenas Chaitivel e

Chievrefoil descrevem como a aventura dos personagens foi transformada em lai pelos

amantes que a vivenciaram. No entanto, reiteração da verdade feita por Marie, em todos

os lais, e os problemas que abordam, permite supor que seu relato das aventuras

corrobora fielmente a verdade da experiência humana vivida. Se essa verdade origina-se

de uma específica aventura do passado, então o dever de um narrador de histórias é ao

mesmo tempo, ativo e passivo, ao lembrá-la e passá-la adiante – ativamente,

emprestando sua voz para tornar vivos os personagens e suas histórias na presença do

público ouvinte; passivamente, preservando intacta, sem mudança, uma verdade original

que está embutida (engastada) na própria aventura.

De acordo com a suposição, a verdade foi estabelecida antes que a história fosse

recontada e precisa atravessar intocada através da translatio de Marie, como ocorreu

nas gerações de contadores orais de histórias que a precederam. A presença da obra de

Marie torna o passado presente, mais uma vez, e nos permite reconhecê-lo de um modo

que relembra as estratégias da Folie de Oxford. Marie, assim, enfatiza o caráter oral de

sua competência narrativa para levar a cabo e afirmar a sua continuação inquebrável da

tradição de contar histórias que comemora a aventure original. Ela não é, porém, com

certeza, Tristan, que fala de sua própria história ou de sua própria aventura. Marie

produziu seu próprio texto escrito. Embora sua afirmação explícita de fazer algo

21 No século XIX, uma primeira edição de seus trabalhos (1820-1832, com o título Poésies de Marie de France, poete Anglo-Normand du XIIIe Siècle ou Recueil de Lais, Fables et autres productions de cette femme célèbre, by J.-B.-B de Roquefort, in: F.-J._M. Raynouard’s review in the Journal des Savants of 1820); os grandes medievalistas pós-guerra Franco-Prussiana – Gaston Paris e Joseph Bédier – ampliam o corpus atribuído a ela (os Laís bretões anônimos Tydorel, Guingamor e Tyolet), e Paulin Paris incluiu Evangile des femmes.

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diferente, não romaunz, reforce a oralidade de seu projeto, Marie reconhece, ao mesmo

tempo, certas vantagens associadas à escrita, vantagens que precisam ser compensadas

pela mudança inevitável introduzida, quando uma verdade associada à experiência

humana e tradição oral é transposta para a escrita. Mesmo assim, de fato, a linguagem é

uma mudança reconhecida talvez tanto quanto é negada pela reiteração da verdade.

Como o amor.

Epílogo

Um dos filtros das perspectivas e hierarquias constitutivos das obras de Béroul,

Thomas, das Folies e do lai Chèvrefeuille é a memória. Como já afirmamos, os textos

da legenda resultam de uma seleção da tradição. Além do escritor, que a utiliza como

material para compor a obra, ouvintes e participantes das performances servem-se da

memória para compor e recompor a história de Tristan, participando ativamente de cada

renarração. Some-se, assim, à capacidade de retenção de dados da matéria –

conhecimento e lembranças de episódios, encadeamentos narrativos, motivos – as

competências criativas e formais de recitadores, escritores e seus públicos, em situação

de presença – vozes, gestos, expressões – das quais o texto é um indício. Na

composição e na leitura da narrativa, o jogo entre memória e esquecimento é criativo22.

No sentido medieval, a leitura é busca por decodificar, tirar o véu, apreender e

compreender os significados escondidos nos textos, nos gestos, nas imagens.

Cada personagem, envolvida direta ou indiretamente nos eventos apresentados,

nos fornece determinada perspectiva da história de amor, e referências para a

consideração de sua natureza; os comentários e ênfases dos narradores expressam

simultaneamente as suas visões e os seus expedientes para influenciar a perspectiva dos

ouvintes/leitores, tendo estes últimos leituras pautadas por associações intra e

extratextuais, expectativas conhecidas e, de certa forma, compartilhadas com o escritor,

22 Na poesia oral é impossível se distinguir os atos da composição e da récita, uma vez que ambos são sinônimos (e atos simultâneos). Na produção escrita, existe um intervalo entre o momento da composição e a ocasião da recitação ou da leitura, um intervalo que confere uma vantagem ao poeta letrado sobre sua audiência, vantagem negada ao seu colega de improvisação oral para quem composição e récita são dois aspectos do mesmo processo. Se cada desempenho oral – performance – é portanto único, e se o poema oral não existe (exceto na memória) separado de sua representação, não há nada como um original, ou uma variação e, igualmente, nenhum autor; mas, ao contrário, uma multiplicidade de recitadores/poetas, uma vez que cada recitação é um ato separado. Em razão disso, o poema oral é geralmente anônimo – não no sentido romântico de um ‘dichtender Volksgeist’, mas porque o poeta oral não pode conceber a si mesmo fora da tradição. Adaptado de GREEN, D.H. Irony of the narrator (cap. 7) In: Irony in the Medieval Romance, Cambridge: Cambridge University Press, 1979, pp. 213-249.

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responsável pela composição da trama. Além disso, essas obras permitem conhecer

eventos de uma história completa de Tristan graças aos procedimentos de invocação

retrospectiva, feitos diretamente pelos escritores e narradores nos textos – através de

seleções e focalizações – e, de forma indireta, através das referências e/ou das falas das

personagens, que apelam às memórias umas das outras, e também às dos ouvintes-

leitores. E, como a memória possui diferentes funções no presente da narração de cada

trama – justificar ações, reforçar ideias, elogiar características das personagens –

podemos inferir que os objetivos dos escritores eram outros: não se tratava apenas de

reproduzir a história completa de um herói, mas de recriá-la, com ênfases e perspectivas

diversas, que inserem o problema do amor na historicidade da vida e das relações entre

as personagens e o mundo em que se movimentam, dentro e fora dos textos.

De fato, essas características dos textos sobre Tristan – em particular os do

século XII – são expressão de sua forma de existência através do tempo. São textos

produzidos e reproduzidos “por muitas mãos”, e têm, assim, marcas de diferentes

sujeitos, práticas culturais, concepções e temporalidades: dos primeiros escritores que

selecionaram, combinaram e “puseram por escrito” os relatos orais, as muitas vozes de

cantadores e poetas sobre a personagem central do ciclo que, ao fazê-lo, inseriram em

suas “versões” elementos do contexto histórico amplo no qual escreveram; dos copistas

que, no século XIII, produziram um número variável de manuscritos de cada um dos

textos, com intervenções que desconhecemos (adaptações dialetais, mudança de

palavras ou até de versos inteiros, de tal forma que as cópias podem se tornar “versões”

diferentes de um manuscrito original), funções diversas e para públicos variados; dos

colecionadores eruditos que constituíram os corpora, tratando os textos como suas

propriedades, a ponto de inserir comentários e interferir na obra medieval; finalmente,

dos filólogos que trabalharam no estabelecimento e edições dos textos durante o século

XIX, e dos estudiosos que buscaram interpretar os textos de diversas perspectivas a

partir de então. Devemos, portanto, considerar que as fontes medievais estabelecidas no

século XIX são pontes importantes para nosso acesso à Idade Média, mas não podemos

confundir as diferentes temporalidades históricas que fazem parte delas. De fato, os

textos são rastros de obras poéticas e práticas medievais de “manuscritura”, isto é,

manuscritas (ou elaboradas em manuscritos), e também “modernas” – as “versões” das

cortes, e as obras “literárias” do século XIX, respectivamente – suas concepções de

texto e de “literarização”.

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

A memória, em suas dimensões social, cultural e individual, era elemento

fundamental em todos os textos medievais, nos momentos da composição de uma obra e

de sua leitura, fosse ela realizada individual e silenciosamente, ou coletivamente e em

voz alta. Dado essencial da cultura, a memória é, por isso mesmo, elemento que permite

diferenciar as versões de uma mesma matéria e problematizar essas diferenças,

referindo-as ao contexto, ao jogo23 entre tradição e inovação, ao próprio movimento

histórico.

Referências

Edições dos textos do século XII

MARCHELLO-NIZIA, C. (ed.) Tristan et Yseut – Les premières versions

européennes, Bibliothéque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 1995.

PAYEN, J.C. (ed.), Tristan et Yseut, Paris: Garnier, 1974.

Obras gerais consultadas

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Larousse, 1972.

BLAKESLEE, Merritt R. Love’s Masks – Identity, Intertextuality, and Meaning in the

Old French Tristan Poems. Cambridge: Brewer, D.S, 1989.

BRUCKNER, M. T. Truth and Disguise: The Voice of Renarration in the Folie Tristan

d’Oxford. In: BRUCKNER, M. T.. Shaping Romance – Interpretation, Truth, and

Clousure in Twelfth-Century French Fictions. Philadelphia: University of Pennsylvania

Press, 1993.

CARRUTHERS, M. The Book of Memory : A Study of Memory in Medieval Culture.

2ª Ed. Cambrigde: Cambridge University Press, 2008.

GREEN, D. H. Irony in the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press,

1979.

GRIMBERT, J. T. Tristan and Isolde – A Casebook. New York: Routledge, 2002.

YATES, F. A. A arte da memória. Campinas: Editora UNICAMP, 2007.

23 O conceito de jogo utilizado aqui tem como referência a definição apresentada por Hans Ulrich Gumbrecht, Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.., p. 38.

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

ZUMTHOR, P. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Educ, 2000.

_________. Introdução à poesia oral. Trad., São Paulo: Hucitec-Edusp, 1997.

_________. Tradição e esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1997.

ZUMTHOR, P.; ROY, B. (dir). Jeux de mémoire: Aspects de la mnémotechine

médiévale. Québec: Presses de L’Université de Montréal, 1985.