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MEMRIAS DO CRCERE EM LIBERDADE: O TEXTO DO LEITOR EMSILVIANO SANTIAGO
Maringela Borba Santos*
RESUMOA palavra interao, j existente em nosso vocabulrio e comum entre indivduos que a buscam sob o
propsito de se comunicarem, assume propores relevantes quando se fala em texto ficcional e/ouautobiogrfico, posto que, sob uma nova perspectiva, estes no se mostram apenas atravs do sujeitoque os produz, mas, tambm, atravs de uma complexa ao de recepo dando a falar osujeito/leitor que os consome. Sob estas consideraes, este artigo, respaldado na esttica darecepo e fundamentado nos pressupostos de Wolfgang Iser sobre a interao do texto com o leitor,busca entender o conflito da leitura vivenciado e dramatizado por Graciliano Ramos emMemrias do Crcere e Em Liberdade por Silviano Santiago, bem como o processo derelacionamento dos diferentes discursos entre estes textos memria e fico processo estelegitimado pela teoria da intertextualidade que referencia o caminho palimpsesto trilhado por Silvianoao se apropriar das memrias do outro transcendendo-a num texto ficcional, conjugando memriae imaginao.PALAVRAS-CHAVE: Fico. Imaginao. Interao. Leitor.
[...] como poder ento uma coisa apresentar-se verdadeiramentea ns, j que a sntese nunca se completa [...] Como posso ter aexperincia do mundo como de um indivduo existente em ao,quando nenhuma das perspectivas segundo as quais o vejoconsegue esgot-lo e quando os horizontes esto sempreabertos?[...].
(Merleau-Ponty).
Diz Santiago (1982, p. 165) que Barthes, ao perceber o equvoco que cometia com
a sua anlise estrutural da narrativa, descobre que toda leitura individual uma escrita.
Deixando de ser um produto padronizado, mero consumo, a leitura passa a requerer do
leitor(a) uma fora criativa to forte e intensa quanto a do criador.
Sem compreender a obra literria como um organismo fechado, mas, sim, enquanto
produo, recepo e comunicao numa relao dinmica entre autor, obra e pblico, a
esttica da recepo, discutida e fundamentada por estudiosos como Hans Robert Jauss,
Wolfgang Iser, Hans Ulrich Gumbrecht, Karlklinz Stierle, dentre outros, embora divirjam
em alguns princpios, convergem no ponto comum da discusso: o papel concedido ao leitor
no ato da leitura, ou melhor, a descoberta desse leitor como objeto da cincia da literatura.
Contudo, diz-nos Gumbrecht (1979, p. 191) que:
* Mestre em Histria da Educao pela Pontifcia Universidade Catlica (PUC/SP). Professora da UniversidadeEstadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected].
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[...] no somente a nfase do leitor comumente desconsiderado, que virviolentar os parmetros da crtica textual, mas seu interesse para ascondies de sentido dos textos, passando tambm a pertencer ao campode seu objeto o sentido textual intencionado por cada autor, no como osentido nico, mas considerado o primeiro de uma srie de constituiesdo sentido e de suas condies histricas.
Nas consideraes de Gumbrecht (1979, p. 191), o mrito da esttica da recepo
ultrapassa a viso imanentista doNew criticism, to em voga nos anos cinquenta e que visava
leitura correta de textos isolados desejando um leitor ideal. Para o autor,
[...] a verdadeira inovao da esttica da recepo consistiu em ter elaabandonado a classificao da quantidade das exegeses possveis ehistoricamente realizadas sobre um texto, em muitas interpretaes falsase uma correta. Seu interesse cognitivo se desloca da tentativa deconstituir uma significao procedente para o esforo de compreender adiferena das diversas exegeses de um texto.
Compreende-se, pois, que, para alm de uma histria da literatura do leitor
(JAUSS, 1974, p. 7-82), a esttica da recepo busca refletir sobre a constituio do sentido
enquanto ao reciprocamente relacionada entre a produo do texto, por parte do autor, e a
constituio do sentido, como compreenso do texto, por parte do leitor.
sob tais pressupostos que se busca empreender uma leitura em Memrias do
Crcere de Graciliano Ramos (1986)1 e Em liberdade de Silviano Santiago (1981), no
intuito de entender o conflito da leitura levado a cabo pelos autores, conflito este
problematizado e questionado por Wander Miranda em sua tese de doutorado Contra a
corrente a questo autobiogrfica em Graciliano Ramos e Silviano Santiago , no
captulo intitulado o Texto do leitor.
Ainda segundo Gumbrecht (1979, p. 192),
[...] quem deseja apreender as condies de diferentes constituies dosentido sobre um texto deve pesquisar as interaes entre um autor e seusleitores, pois a ao social do autor tanto condio para a compreensodo texto pelo leitor, como a ao social, provvel dos leitores, age comopremissa para a produo textual do autor.
1 O livro Memrias do Crcere, obra pstuma, foi publicado no mesmo ano da morte de Graciliano Ramos,em 1953. Neste artigo, utilizou-se a 21 edio, publicada pela Editora Record.
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aqui que a palavra interao, j existente em nosso vocabulrio e comum entre as
pessoas que a buscam sob o propsito de se comunicarem, assume propores relevantes
quando se fala em texto ficcional e texto autobiogrfico, posto que, sob uma nova
perspectiva, estes textos no se mostram apenas atravs do sujeito que os produz, mas,
tambm, atravs do sujeito que os consome, ou seja, numa complexa ao de recepo
compreendida no processo da interao texto/leitor, entendendo este, o leitor, como co-
emissor da mensagem interdita, velada, escondida nas entrelinhas a transgredir suas
projees habituais.
Estabelece-se, assim, uma identidade carente, legitimada pelas contingncias
tipificadas por estudiosos da psicologia social, assim como na indagao psicanaltica sobre a
comunicao.
Iser (1979, p. 83-132) formula seus argumentos quanto interao texto/leitor,
partindo de estudos feitos por socilogos e psiclogos na rea de comunicao que mostram
o processo didico entre os homens, cuja funo da linguagem demarcar, significar ecomunicar (KRISTEVA, 1969, p. 14-15).
a partir da indagao psicanaltica sobre a comunicao, realizada e
experimentalmente confirmada por estudiosos do assunto (LAING;PHILLIPSON;LEE, 1996,
p. 4), que Iser (1979, p. 86) aponta consequncias semelhantes e essenciais, como ele mesmo
afirma, para a avaliao sobre a interao do texto com o leitor. Na percepo interpessoal,
Laing (apud ISER, 1979, p. 85) esclarece que a identidade carente constitutiva da situao
interacional, motivada por nossas negaes enquanto expectativa do outro, quando nos diz
que tua experincia de mim invisvel a mim e minha experincia de ti invisvel a ti e
acrescenta, que cada homem invisvel para o outro. Esta inapreensibilidade, esta
reciprocidade da no experimentao alheia aciona nos parceiros da comunicao
emissor/texto, receptor/leitor um processo entendido como atividade de interpretao, na
tentativa de transpor a inapreensibilidade inicial situao dos atos pragmticos da fala e/ou
da leitura complexamente estruturada do texto.
sob tais estudos que podemos compreender a necessidade de interao, em todos
os seus nveis, na captao das diversas funes da linguagem, quer sejam cognitivas,
emotivas, fticas, metalingusticas e poticas.
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Embora Iser (1979) diferencie a finalidade e as condies da interao entre texto e
leitor dos pressupostos importantes da interao ditica,2 ele tambm afirma que a obra
literria no foge a este processo, at mesmo porque a literatura nunca sentido, a literatura
processo de produo de sentidos, isto , significao.3 Ela tem aspectos peculiares que
motivam seu destinatrio a manter esta interao. Isto porque o fenmeno comunicativo,
entendido por Iser (1979, p. 88) entre texto/leitor, foge situao face a face de uma
relao interacional comum entre os homens, mas mantm, como esta, uma relao de
assimetria, compreendida como condio fundamental para a interao, servindo de
estmulo ao leitor para ali adentrar e preencher os pontos de indeterminao, caractersticos
dos textos ficcionais, em busca de com ele manter uma situao definida, embora o leitor
nunca retire do texto a certeza explcita de que a sua compreenso a justa.
Esse hiato, essa indeterminao que se forma entre as partes comunicantes o
vazio explanado por Iser (1979, p.106), o vazio como condio para a comunicao, pois
ele aciona a interao entre texto/leitor e at certo nvel, a regula. sob estes vazios que os textos ficcionais, por sua prpria natureza, abrem um
nmero crescente de possibilidades de leitura, exigindo do leitor a deciso seletiva que lhe
oriente a possibilidade de combinao determinada pela lacuna inicial do processo da leitura,
em busca de formular as colocaes no explicitadas. Indicando os segmentos do texto a
serem conectados, os vazios sero, assim, o fio condutor no processo de significao
empreendido pelo leitor, que assumir, de sua parte, o papel de decodificador, impondo-lhe
atividades interpretativas que o levam a decidir a qual ou a quais cdigos dever referir o
significante.
Para Eco (1985, p. 168), as atividades interpretativas vo desde as expectativas
esperadas estereotipadas at a consciente aceitao de outras, contraditrias e
2 Nos modelos de interao desenvolvidos pela psicologia social e pela pesquisa psicanaltica a propsito dacomunicao, independente dos modos de contingncia encontrados ou originados das interaes humanas, ainterao ditica, nas relaes interpessoais, se impe a cada um posto a inapreensibilidade da experincia alheianos propulsionar para a ao, o que resulta na necessidade de julgamento interpretativo, que comanda e regulaa interao. A interao ditica no um dom da natureza, mas sempre um produto de uma atividadeinterpretativa. Contudo, na relao texto-leitor falta-lhe a situao face a face em que se originam todas asformas de interao social. Mas , tambm, sob esta carncia que se instaura um ele decisivo com a interaoditica texto/leitor, posto os vazios a se instaurarem. A propsito, cf. ISER, 1979, p. 83-87.3 Citao extrada do texto em que Leyla Perrone-Moiss apresenta a obra de Roland Barthes: Crtica e
Verdade. Leyla Perrone faz meno distino bsica da obra barthesiana entre sentido e significao. Para ocrtico francs, o sentido o contedo, o significado de um sistema significante, e significao o processosistemtico que une um sentido e uma forma, um significante e um significado.
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coexistentes, na tentativa no de constituir uma significao procedente, mas, sim, instaurar
sua leitura desautomatizada, motivada e potencializada pelos vazios, advindos da estrutura
polissmica do texto ficcional.
Sob essa perspectiva, o processo de comunicao se realizar no atravs de um
cdigo, mas atravs de uma relao dialtica, mantida entre texto/leitor, que compreende
uma recproca contradio de afirmao e negao, polos opostos que se completam por no
se entrosarem com a expectativa central da linguagem pragmtica. Neste percurso, o texto
ficcional libera-se s atividades projetivas do leitor, possibilitando-lhe individualizar mais
sentidos e/ou imagens em busca da compreenso da mensagem, o que lhe permite descobrir
outros horizontes que no estavam no plano de suas referncias habituais e nem diziam
respeito ao seu contexto familiar.
A ficcionalidade do texto, em seu jogo ambguo, instaura uma nova modalidade de
leitura que permite ao leitor ir alm de suas expectativas e, subjacente aos segmentos
desconectados, encontrar, atravs da imaginao, uma configurao que se integre ao dito,isto porque o que se cala impulsiona o ato de constituio, ao mesmo tempo em que este
estmulo para a produtividade controlado pelo que foi dito, que muda, de sua parte,
quando se revela o que fora calado (ISER, 1979, p. 90).
Entende-se, pois, essa prtica especfica de leitura como um mecanismo de
absoro das formas captadas e liberao de outras que reagem em consequncia das
circunstncias dadas, impedindo, assim, a degradao do conhecimento, pois este processo
no conclui, mas sim obriga ao leitor abandonar as imagens, advindas da primeira leitura, e
construir uma outra (ISER, 1979, p. 113).
O sentido dado pelo texto no ser, assim, o ltimo, o que requer do seu leitor a
capacidade de discernimento entre as imagens dadas, formadas e o conhecimento de outras.
sob esse embate que surgem as imagens de primeiro e segundo graus, 4
dificultando cada processo individual de constituio de sentido, o que dar ao texto o seu
carter plurissignificativo, posto que a cada leitura formas inovadoras de significao surgem.
Como afirma Eco (1985), em dilogo com as formulaes de Iser (1979), a estrutura ltima
4 A quebra dagood continuationpelos vazios, como informa Wolfgang Iser (1979, p. 111-112), provoca o reforoda atividade de composio do leitor. Quanto maior a quantidade de vazios, tanto maior ser o nmero deimagens construdas. Consequentemente surgem imagens de segundo grau, que so aquelas com as quaisreagimos s imagens formadas; e as imagens de primeiro grau com as quais criamos o objeto imaginriofazendo com que o conhecimento sofra modificaes considerveis provocando a coliso de imagens. Nesteprocesso o leitor obrigado a abandonar a imagem e construir uma outra.
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de um texto no definitiva e quando assim ocorre ela no ser a ltima. A ltima ser
aquela sempre oculta, inapreensvel e no estruturada, sempre a produzir novas
manifestaes.
Nesse conflito, nesse embate de experincias do imaginrio, no assimilar uma
experincia que se origina da transgresso do que somos, ao leitor dado o caminho para
que supere o horizonte de uma prxis cotidiana em benefcio de uma experincia efetiva de
conhecimento que lhe abra novos horizontes.
a partir dessas reflexes, levadas a cabo por Iser, que podemos entender a
estratgia do conflito da leitura instaurado nos textos de Silviano Santiago e Graciliano
Ramos, posto que, ao conflitarem a leitura de seus textos, numa intencionalidade aparente e
dramatizada, alertam o leitor para que este no busque nas obras de arte apenas o
documento e nem tampouco fazer delas mero pretexto para a satisfao do desejo de sonho
e fuga (MIRANDA, 1987, p. 76).
Ler pelo avesso. Eis uma proposta comum a Graciliano Ramos e Silviano Santiago.Este, enquanto transgressor do discurso memorialista do outro, escopa-se na ficcionalidade,
pois entende o conflito da leitura, vivenciado pelo leitor do texto ficcional, o caminho para
o conhecimento de uma outra realidade; aquele, por meio do seu testemunho autobiogrfico,
nega o leitor guardio de suas memrias, ao tempo em que lhe d as coordenadas para
uma leitura no mais pragmtica e unvoca, empecilho recepo, e o convida a uma leitura
plurvoca e participativa, em que se possam conjugar prazer e ateno crtica numa
interpretao reflexiva, bastando, para tanto, conjugar memria e imaginao.
Um texto memorialista, um texto ficcional. Uma Histria do passado, uma releitura
ao presente, no processo ao futuro o leitor. Para entender este tringulo amalgamado
pela funo do rompimento da linha de continuidade traada pela Histria, preciso
compreender o processo de relacionamento dos diferentes discursos entre Memrias do
Crcere e Em Liberdade. Processo este legitimado pela teoria da intertextualidade que
referencia o caminho palimpsesto trilhado por Silviano Santiago.
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Assim, no espao intertextual5 da Histria documentada, pragmtica, de
Memrias do Crcere, Silviano Santiago intenciona transcend-lo para faz-lo ressurgir em
um texto ficcional, auto-referencial, intencionalmente elaborado em busca de um novo leitor,
instaurando, para tanto, um contrato, no dizer de Iser (1979, p. 91) entre autor e leitor,
cuja regulamentao o texto comprova no como discurso, mas sim como discurso
encenado mediante a proliferao de vozes a falar atravs de mscaras e com a voz alheia,
permitindo uma multiplicidade de variaes histricas nas condies contratuais vigentes
entre autor e pblico.
A transgresso de limites entre texto/contexto, atos de seleo e combinao da
realidade, descrita como os atos de fingir na constituio do texto ficcional (ISER, 1979, p.
384-412), torna-se, agora, relevante, posto que a encenao, levada a efeito por Silviano
Santiago em seu livro Em Liberdade, no s existe como texto ficcional, visto as fices,
no dizer de Iser (1979, p. 384), desempenharem
[...] um papel importante tanto nas atividades do conhecimento, da ao edo comportamento quanto no estabelecimento de instituies, desociedades e de vises do mundo. [...]. A prpria indicao do quepretendem ser altera radicalmente sua funo face quelas fices que nose mostram como tais.
A fico, evidenciada por Santiago, no toma para si o atributo patente do texto
ficcional que se revela na literatura como algo diverso da realidade, o fingir que se d
conhecer pelo desnudamento (ISER, 1979, p. 397). Pois, no sentido de demonstrar a
ficcionalidade do seu texto ficcional, enquanto apropriao das memrias do outro, Silviano
intenciona desmistificar a Histria e, para tanto, o seu texto deve ser explicado e funda-
mentado, fugindo, assim, dissimulao do estatuto prprio dos textos ficcionais, no intuito
de que o mesmo se oferea como aparncia da realidade, realidade esta resgatada do
esquecimento e das manipulaes de uma Histria arquivada (MIRANDA, 1987, p. 19).
5 A teoria da intertextualidade, estudada por Julia Kisteva, Jacques Derrida e Roland Barthes, dentre outros,refere-se aos ndices, pistas, que, sistematizados, definem a permutao de textos. Para Kristeva (apud
TELLES, 1989, p. 47-48), o enunciado potico um subconjunto de um conjunto maior que o espao dostextos aplicados em nossos conjuntos. nesse espao, denominado de intertextual, que o processo derelacionamento dos diferentes discursos se d num movimento concomitante de absoro e negao dosoutros textos do espao intertextual. Aqui, o discurso ficcional de Silviano Santiago se entrecruza com odiscurso memorialstico de Garciliano Ramos. Nesse embate, a produo de um outro texto repete oprimeiro em diferena.
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assim que se pode, na leitura das memrias em liberdade, conjugar
memria/imaginao no escopo da ficcionalidade e, atravs desta, continuar a conjugao
no tempo presente, sem nunca o esgotar. Eis o texto do leitor, plural na conjugao dos
tempos, consequncia do seu conflito entre o dito e o no dito e da conscincia de saber-
se co-emissor desta mensagem velada.
No percalo destas descobertas, entende-se a responsabilidade do escritor perante
sua poca, perante a sociedade de que faz parte. Cnscio desta responsabilidade, o escritor
no faz uso da linguagem para encobrir uma realidade, aceitando-a e consagrando-a como
fixa e definitiva, mas, sim, para descobrir e revelar, assumindo a linguagem como uma
instncia valorativa, esttica e eticamente significativa.
Isto posto, pode-se concordar e, o que mais importante, entender a colocao de
Umberto Eco quando diz que escrever produzir um leitor novo e revel-lo a si mesmo,
pois o conflito da leitura parte deste processo de descoberta, de reformulao da realidade,
de tomada de conscincia de si mesmo, que se inicia no ato da escrita e se completa no da
leitura.
Eis aqui o projeto de Silviano Santiago: engajar-se na transcrio do pretenso dirio
que Graciliano Ramos teria escrito aps deixar o crcere em 1937. Para tanto, o texto
proposto ao leitor com uma caligrafia, cujo trabalho de decifrao reitera o prprio trabalho
textual, j que este dado, desde o incio, como leitura de um outro texto, um texto de
memrias, apropriado, agora, na forma de um dirio, e cujo narrador, distanciado da ao
narrada, convida-nos a l-lo. E nesse espao dramtico da leitura que se entrecruzam
verdades e falsificaes, onde os limites das convenes literrias e dos lugares comuns eideolgicos so excedidos (MIRANDA, 1987).
O que era de direito propriedade de um s indivduo deixa de s-lo em tempos
atuais, pois o estilo deixa de ser o homem e passa a ser o texto, a criture.Ele, o texto,como
diz Santiago (1982), a prpria fora que inaugura a possibilidade de um outro texto na
Biblioteca de Babel.
Instaurado no espao que John Barth chama de literatura da exausto,6 o texto de
Santiago tem como herana o esgotamento da experincia do eu singular e da prtica
6 O romancista norte-americano descreveu a estranha sensao que se apossou da produo ficcional dos anos60 sobre o que escrever depois que descobrimos que todas as narrativas esto encerradas em uma biblioteca,em artigo inaugural que leva essa expresso por ttulo (apud SANTIAGO, [198-?], p. 4).
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estilstica de expresso estritamente pessoal dessa mesma experincia. Ao apropriar-se das
memrias do outro, ele no s repete, como desvia, trai e ficcionaliza o que l, no intuito
deliberado de decepcionar o leitor fiel guardio da memria alheia.
Olhando de certa maneira, essa fico praticamente esgota e encerra um
ciclo de depoimentos, narrativas, relatos brasileiros de um tempo deprises e torturas, descritos j em liberdade, mas quase todos memrias docrcere.7
Querelas parte, concluir seria pretenso diante da verticalidade que tais
argumentos provocam em discusses e reflexes ainda emergentes sobre tal abordagem, no
que concerne ao texto ficcional, sua recepo e seus efeitos, como bem observa Lima (1979,
p. 28-31), ao comentar as crticas teoria iseriana da recepo por parte dos pesquisadores
integrados na mesma corrente como K. Stierle e H. U. Gumbrecht.
Quanto ao romance Em liberdade de Silviano Santiago, a depender do que se
toma a ler, a reluzncia ofusca e confunde [...] dirio pessoal; desabafo coletivo;
dilema de ontem; de anteontem; de hoje. dolorosa reflexo sobre a condio do intelectual
neste pas [...], como afirma Antonio Dimas, na orelhadeVale quanto pesa, ao referir-se
leitura caleidoscpica que esse romance impe.
Sim. Mas resta saber de quem o dirio? A quem pertence a memria? fico ou
realidade?
A j uma outra histria, sempre a nos estimular a suprir o que ali no se encontra.
No mais o que nos resta, tomando emprestadas as palavras de Silviano Santiago, vencer o
silncio e entrecruzar verdades e falsificaes para que histrias possam ainda ser contadas.
MEMORY IN LIBERTY: THE TEXT FROM THE READERINGRACILIANORAMOS AND SILVIANO SANTIAGO
ABSTRACTThe word interaction, which is already part of our vocabulary, and it is common between people whouse it with the purpose of communicating, takes relevant proportions when it comes to fictionaland/or autobiographic texts, under a new perspective, these texts do not show themselves onlythrough the individuals they produce, but, also, through a complex reception action showing theindividual/reader which they use. Under these conditions, this article, based on the aestheticreception and grounded in the premise of Wolfgang Iser about the interaction of the text and theauthor, tries to understand the reading conflict lived and dramatized by Graciliano Ramos in
7 Fragmento do comentrio de Nelson Motta no jornal O Globo, extrado do da orelha de Vale quantopesa.
[M1] Comentrio: Fazereferncia com uso do par
(MOTTA....)
[M2] Comentrio: Estareferncia no consta de su
relao ao final do texto)
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Memrias do Crcere and Em Liberdade by Silviano Santiago, as well as the process ofrelationship of the different speeches between these texts memory and fiction , such process islegitimated by the mutual textual theory which references the palimpsest path followed by Silvanoas he appropriates himself of the neighbors memory over passing it in a fictional text, conjoiningmemory and imagination.
KEYWORDS: Fiction. Imagination. Interaction. Reader.
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