memória ambiental na bacia do una: acervo fotográfico e ... · baseada em trabalho de campo...

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1 Memória ambiental na Bacia do Una: acervo fotográfico e experiências de habitantes com as transformações urbanas em Belém (PA) 1 Pedro Paulo de Miranda Araújo Soares Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Escola Superior da Amazônia (ESAMAZ) Resumo A cidade de Belém passou por um processo de transformação de suas paisagens durante a segunda metade do século XX, principalmente na relação de seus habitantes com a água. Contemporaneamente, este relacionamento é mediado por políticas públicas de urbanização e saneamento que visaram a resolução de problemas habitacionais e a incorporação dos igarapés e rios à paisagem urbana. Esta pesquisa é baseada em trabalho de campo etnográfico na Bacia do Una em Belém do Pará, especialmente em áreas sujeitas a inundações freqüentes na época das grandes chuvas. Utilizo o conceito de memória ambiental para compreender transformações da cidade sob o ponto de vista de seus habitantes no cotidiano. Neste trabalho dou destaque à produção imagética de habitantes da Bacia do Una como forma de documentação fotográfica de suas condições de vida. Palavras-chave: Memória; Acervo Fotográfico; Antropologia Urbana. 1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA

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Memória ambiental na Bacia do Una: acervo fotográfico e experiências de

habitantes com as transformações urbanas em Belém (PA)1

Pedro Paulo de Miranda Araújo Soares

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Escola Superior da Amazônia (ESAMAZ)

Resumo

A cidade de Belém passou por um processo de transformação de suas paisagens

durante a segunda metade do século XX, principalmente na relação de seus habitantes

com a água. Contemporaneamente, este relacionamento é mediado por políticas

públicas de urbanização e saneamento que visaram a resolução de problemas

habitacionais e a incorporação dos igarapés e rios à paisagem urbana. Esta pesquisa é

baseada em trabalho de campo etnográfico na Bacia do Una em Belém do Pará,

especialmente em áreas sujeitas a inundações freqüentes na época das grandes chuvas.

Utilizo o conceito de memória ambiental para compreender transformações da cidade

sob o ponto de vista de seus habitantes no cotidiano. Neste trabalho dou destaque à

produção imagética de habitantes da Bacia do Una como forma de documentação

fotográfica de suas condições de vida.

Palavras-chave: Memória; Acervo Fotográfico; Antropologia Urbana.

1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os

dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA

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Introdução

A cidade de Belém passou por um processo de transformação substancial de

suas paisagens durante a segunda metade do século XX, sobretudo no que diz respeito à

relação de seus habitantes com a água. Contemporaneamente, este relacionamento é

mediado por políticas públicas de urbanização e saneamento que visaram a resolução de

problemas habitacionais e a incorporação dos igarapés e rios à paisagem urbana. Estre

essas políticas está o Projeto de Vias, Esgotamento e Drenagem das Zonas Baixas de

Belém, também conhecido como Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una ou

simplesmente Projeto Una.

Realizado entre 1993 e 2004 – mas com uma fase de estudos e negociações para

financiamento que remete à década de 80 – este projeto aterrou zonas alagadas, abriu

ruas onde antes havia estivas de madeira e instalou equipamentos urbanos de

esgotamento e abastecimento de água. Porém, o aspecto principal do Projeto Una foi a

criação de um amplo sistema de drenagem para acúmulo e escoamento das águas das

chuvas com fins de evitar as inundações que historicamente ocorrem na região da Bacia

do Una. Nos dias de hoje, a mídia de massas continua reportando a incidência de

inundações e alagamentos na região, muito embora não se discuta os impactos e

resultados da política pública implementada no passado.

Esta pesquisa é baseada em trabalho de campo etnográfico na Bacia do Una em

Belém do Pará, especialmente em áreas sujeitas a inundações freqüentes na época das

grandes chuvas. Utilizo o conceito de memória ambiental (Devos et al, 2010) para

compreender transformações da cidade sob o ponto de vista de seus habitantes no

cotidiano. Neste trabalho dou destaque à produção imagética de habitantes da Bacia do

Una como forma de documentação fotográfica de suas condições de vida. O contexto de

produção dessas imagens aponta para processos de marginalização e de violação de

direitos humanos nas áreas baixas da cidade.

A memória, nesse caso, emerge como um fator decisivo no fortalecimento de

identidades coletivas e do sentimento de pertencer a um lugar. Além de seu conteúdo

evidentemente político, no sentido de reordenar experiências no tempo com vistas a

uma ação no mundo, este acervo de imagens também se apresenta como parte integrante

de um patrimônio etnológico da relação entre Belém e suas águas.

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1. A inclemência do inverno amazônico

As imagens presentes nesta seção não têm como propósito simplesmente ilustrar

as situações descritas pelos interlocutores no que diz respeito às suas experiências

constantes com alagamentos. Embora as imagens complementem ou até mesmo

excedam os significados comunicados pela escrita, elas apresentam suas realidades

próprias quando relacionadas a contextos e biografias dos sujeitos das narrativas. A

inteligibilidade dessas imagens não se dá sem a compreensão das temporalidades do

processo de sua produção e recepção (Kossoy, 2002). Ao fotografarem suas ruas, suas

casas e os canais transbordantes, interlocutores desta pesquisa tiveram que primeiro

identificar e elaborar o problema que compõe o registro fotográfico. Em seguida, a

criação do registro corresponde a uma representação, isto é, uma interpretação da

realidade que é percebida nas escolhas – conscientes ou não – de enquadramento,

ângulo, iluminação e etc. Finalizando este processo e ao mesmo tempo apontando para

um recomeço, observa-se o compartilhamento e circulação dessas imagens que são

reinterpretadas e enriquecidas com mais camadas de entendimento2.

As fotografias presentes neste paper foram tiradas em sua totalidade por

habitantes da Bacia do Una. Seu objetivo, antes de tudo, foi de documentação3 da

situação de vulnerabilidade em que se encontram no que diz respeito a alagamentos. As

imagens apresentam intencionalidade eminentemente política. Trata-se de instantes que

demonstram a subjetividade do fotógrafo, ao mesmo tempo em que denotam a função

fática das imagens em busca de engajamentos, sensibilização da sociedade civil ou

mobilização de autoridades públicas. Antes de integrarem este paper e minha tese de

doutorado, essas fotografias já estiveram presentes em documentos oficiais, assim como

em apresentações nas audiências públicas e eventos científicos protagonizados por

habitantes da Bacia do Una. Pode-se dizer que já constituem imagens de domínio

público e que em um sentido mais amplo são parte integrante de um patrimônio

etnológico (Rocha, 2008) de Belém e da relação dessa cidade com suas águas.

2 O processo descrito em muito se aproxima das mímeses conforme discutido por Ricouer (1992). Na

medida em que as fotografias são recortes espaço-temporais, elas também constituem formas de

subjetivação e internalização do tempo. Contar uma história através de uma única imagem ou de um

conjunto de fotografias implica o reconhecimento de um campo simbólico, das regras de expressão

desses símbolos, assim como a criação de novas intrigas narrativas por parte do receptor a partir do que

este vê nas fotos. 3 Sobre a imagem documental, Cf. Kossoy (2002) e Rocha e Eckert (2001).

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Canal do Galo na Travessa Antônio Baena entre as Avenidas Pedro Miranda e Marquês de

Herval, Bairro da Pedreira, Sub-bacia I do Projeto Una. 2011

Fonte: FMPBU, 2011.

Ao mesmo tempo, não se podem separar essas imagens de seu contexto de

produção. É necessário lembrar que elas fazem parte de um grande acervo montado por

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cidadãos da Bacia do Una em um processo visceral de documentação de suas próprias

condições de vida. As fotografias circulam no interior de uma rede e sua autoria nem

sempre é reconhecida ou reivindicada, embora pela convivência eu tenha conseguido

identificar algumas imagens a seus autores.

O trabalho de Rechenberg (2012; 2014) sobre álbuns de família e a prática do

retrato entre populações negras e de baixa renda em Porto Alegre, oferece reflexões

teóricas e metodológicas sobre como antropólogos devem proceder em relação às

imagens produzidas pelo Outro. A autora aponta para existência de certos “códigos de

visualidade” relativos ao ato de representar-se a si mesmo e que revelam projetos e

motivações, bem como as relações entre classe social, identidade étnica e poder

econômico e social (Recherberg, 2014, p. 21).

Assim como as imagens produzidas em campo pelo etnógrafo, as fotografias

produzidas pelos interlocutores ou parceiros de pesquisa não estão a documentar apenas

a realidade de um fato ou objeto. Na medida em que o ato fotográfico não é somente um

processo técnico, mas também de criação subjetiva, o que se registra na fotografia é,

antes de tudo, uma relação entre o fotógrafo e o assunto que é registrado. No caso das

populações belemenses afetadas por inundações e alagamentos, o evento documentado

mostra uma relação com o espaço de pertencimento e, num sentido mais amplo, a

relação entre essas pessoas e o saneamento básico ou a experiência cotidiana com o

Estado em suas margens (Das e Poole, 2004).

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Avenida Pedro Miranda nº 215, Vila Maria de Fátima entre Travessas Curuzu e Antônio Baena,

Bairro da Pedreira, Sub-bacia IV do Projeto Una. Área de influência do Canal do Galo. 2013

Fonte: FMPBU, 2013.

Utilizar os registros da própria população sobre alagamentos – em vez dos

enquadramentos da mídia impressa, digital ou televisiva – permite o contato com

formas distintas de expressão sobre o público e o privado nas situações de alagamento.

Não se trata da perspectiva de um observador externo que vem de seu bairro para

registrar o alagamento na periferia. Ao invés disso, as pessoas que me cederam suas

imagens estão fotografando sua própria casa, sua rua, seus vizinhos. O que aparece no

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ato de registrar seu testemunho é a sua subjetividade e, sobretudo, a sua corporalidade

na captura da imagem. O exame das perspectivas empregadas nas fotos muitas vezes

revela uma parte do corpo do fotógrafo já submersa, quando não o desespero e a

impotência de alguém que observa, da janela de sua casa, o canal a transbordar e o nível

das águas a se elevar.

Casa nº 5, Vila Freitas, Travessa Antônio Baena entre Avenidas Pedro Miranda e Marquês de

Herval no bairro da Pedreira, Sub-bacia I do Projeto Una. Transbordamento do Canal do Galo.

2005

Fonte: FMPBU, 2005.

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Fora de ordem cronológica, as fotografias expostas nesta seção buscam

expressar a continuidade entre as experiências vividas em pontos diferentes da Bacia e

não a continuidade temporal dos eventos em si. Entretanto, em nível documental as

imagens são acompanhadas de legendas que indicam a sua localização e o ano do

registro. A observação das datas e dos locais dos alagamentos indica a repetição

indefinida desses eventos na vida cotidiana nas áreas baixas da cidade.

Meus sinceros agradecimentos aos autores das fotografias: Ana do Socorro

Sousa Fonte, Antônio Carlos Pantoja Soares, Elias Nonato Cunha da Silva, Erivan

Oliveira, Eugênia Vitória Pereira Furtado, Gianhy Gomes Dias, José Alexandre de Jesus

Costa, Luis Claudio Matheus Lima, Maria de Lourdes Lima de Abreu, Michel Costa,

Paulo Machado, Ronaldo Borges e Lucineide de Oliveira Souza.

Casa nº 402, Travessa Antônio Baena entre Avenidas Pedro Miranda e Marquês de Herval no

Bairro da Pedreira, Sub-bacia I do Projeto Una. Transbordamento do Canal do Galo. 2013

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Fonte: FMPBU, 2013.

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2. O olhar vigilante de Dona Lourdes

Nesta seção nos voltamos à experiência específica de uma personagem da

pesquisa que deu origem à minha tese de doutoramento. Trata-se de Dona Lourdes, uma

senhora de 75 anos. Dona Lourdes é moradora da comunidade Mena Barreto às margens

do Canal do Galo, no bairro do Telégrafo há quase meio século. Durante este período

Dona Lourdes trabalhou ativamente à frente do Centro Comunitário de Auxílio às

Crianças, entidade que ela ajudou a fundar e sustentar. Em virtude de problemas de

saúde ela não pode mais se locomover como antes, o que limitou sua atuação na

comunidade e a mantém na maior parte do tempo em sua casa. Bem articulada e bem

relacionada fora da comunidade, Dona Lourdes participou de campanhas eleitorais,

cursos na universidade e viagens para eventos políticos.

Assim como para os interlocutores do tópico anterior, as fotografias também

tinham grande importância para Dona Lourdes. Um pouco empoeirados, guardados em

uma caixa de sapatos, seus álbuns de fotografia documentavam sua vida familiar, suas

atividades como líder comunitária e, consequentemente, as transformações sofridas pela

Mena Barreto ao longo do tempo. Dona Lourdes narrou com a ajuda de fotografias. A

dinâmica da sua voz trazia as marcas do fluxo com que seus álbuns de fotografia eram

folheados e seguia a ordem das fotografias que iam aparecendo e chamando-lhe a

atenção. De imagens da casa de madeira e da rua de piçarra passávamos rapidamente

para registros de aniversários de 15 anos. Mas esses eventos aparentemente desconexos

se integravam na temporalidade de Dona Lourdes, uma temporalidade que se baseava

em grande parte na sua experiência com o saneamento na Mena Barreto.

Muito gentil, Dona Lourdes emprestou-me seus álbuns de fotografias. A rica

semântica de suas imagens mostrava a busca pelo registro da transfiguração do espaço

na Mena Barreto. Para Dona Lourdes, este registro mais tarde se torna documento

histórico da trajetória do saneamento em sua rua, bem como do seu engajamento como

agente neste processo. As suas fotos fazem durar no tempo um fragmento da

experiência do viver na Bacia do Una e, quando se tornam narrativas expressando

sentidos que excedem a intencionalidade do fotógrafo no instante da captura, passam a

compor uma parcela da memória ambiental (Devos et al., 2009) da cidade de Belém.

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Antes do asfalto

Fonte: Acervo pessoal de Dona Lourdes.

Para um estudo sobre memória, o álbum de fotografias corresponde ao esforço

criativo de imaginar a continuidade do tempo por meio da sequenciação dos momentos

descontínuos em que as imagens foram capturadas pela câmera. A construção do álbum

se apoia, portanto, na dialética da duração proposta por Gaston Bachelard (1988).

Através do álbum de fotos, Dona Lourdes constitui a si mesma como sujeito em uma

temporalidade e dá sentido à sua experiência como moradora da Mena Barreto e líder

comunitária consolidando esta experiência pessoal no tempo do mundo.

Ao jogar com as imagens de Dona Lourdes procurando agrupá-las em torno de

núcleos semânticos ou sequenciá-las de maneiras distintas da sua disposição original no

álbum, é possível perceber múltiplas narrativas e significados nos conjuntos de imagens

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formados. Foi então que as fotografias mostraram um processo subjacente àquele que

ocorria nas ruas da Mena Barreto, mostrando além das escavações para instalação da

rede de esgoto. Tratava-se do processo de construção de conhecimento por parte de

Dona Lourdes sobre o que significava o Projeto de Macrodrenagem, o que nas fotos

parece ter resultado em um progressivo engajamento da líder comunitária junto à

ambiência das obras que ocorriam em frente à sua casa.

O olhar vigilante

Fonte: Acervo Pessoal de Dona Lourdes.

As imagens narram a aproximação de Dona Lourdes das pessoas que

trabalhavam nas obras que aconteciam bem próximas à sua residência. Em um primeiro

momento destaca-se o olhar vigilante de Dona Lourdes. Da janela de sua casa ela

observa os trabalhadores instalarem os equipamentos de saneamento. Dos altos de sua

casa ela apresenta a perspectiva do panóptico (Foucault, 1987), fazendo jus à sua tarefa

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de fiscalizar e se comunicar com as autoridades do projeto. Mas o olhar panóptico

também significa a possibilidade do controle sobre as ações do outro, sendo também

uma forma de exercer poder dentro de uma relação. Percebe-se que os trabalhadores não

sabem que estão sendo fotografados. Os trabalhadores são observados, têm seu produto

do seu trabalho avaliado e sua presença causa estranhamento, uma vez que são vistos

como falanges da mão estatal que, depois de muito tempo ausente, se estendeu sobre as

baixadas da Bacia do Una. O olhar vigilante de Dona Lourdes representa a inversão de

papéis sociais entre os habitantes da Mena Barreto e aqueles que agem em nome do

Estado.

O jogo da proxemia entre Dona Lourdes e os agentes do Estado se reflete na

corporalidade do fotógrafo do momento do ato de fotografar. Aos poucos as distâncias

entre moradores e trabalhadores do Projeto Una vão sendo suavizadas pelo contato

cotidiano. Com o tempo, Dona Lourdes sai de trás da câmera e passa a ser alvo da lente

de seus amigos e familiares que registraram seu envolvimento com o Projeto Una. O

desfecho da narrativa fotográfica mostra o reconhecimento do outro senão como igual,

mas como alguém com quem é possível identificar-se a tal ponto que este convívio

cotidiano ultrapassa as barreiras da rua e tome lugar na casa de Dona Lourdes:

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Isso aqui foi um almoço que eu ofereci a eles. Porque eu fiz uma

promessa, que se o projeto viesse acontecer na minha área eu daria um

almoço pra eles.

Caldeirada de peixe na casa de Dona Lourdes

Fonte: Acervo pessoal de Dona Lourdes

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Considerações finais

Os conjuntos de imagens dispostos em cada seção deste paper apontam para

experiências específicas com o saneamento nas zonas baixas da cidade de Belém. No

primeiro caso, é dramatizado o colapso de um sistema de drenagem que deixou

habitantes da Bacia do Una novamente vulneráveis a alagamentos e inundações mesmo

após a conclusão de um grande projeto que representava a solução para estes problemas

históricos. No segundo caso, a experiência de Dona Lourdes valoriza a perspectiva

êmica e local sobre processos como a ocupação do solo e a urbanização em Belém.

Nesse caso, uma abordagem que focalize a memória contribui para que personagens a

princípio periféricos como Dona Lourdes e seus vizinhos inscrevam sua história na

cidade e sobre a cidade, distanciando-se das narrativas oficiais e de abordagens

excessivamente estruturais.

Nos dois casos, as escolhas fotográficas expressam subjetividades, visões de

mundo e, sobretudo, desejos e aspirações sobre uma cidade possível. A memória em

imagens, em ambos os tópicos, se orienta para ações no mundo. As vítimas de

alagamentos constroem a plataforma de uma luta política que já chegou ao Poder

Judiciário na forma de uma Ação Civil Pública pela manutenção e revitalização das

obras do Projeto Una. Dona Lourdes, por sua vez, tenta intervir e exercer algum tipo de

controle sobre a política pública implementada na comunidade onde mora, o que resulta

na aproximação com os operários do Projeto Una, muitos deles também moradores da

Bacia do Una ou de outras áreas baixas.

Em outro plano de análise, as experiências expressas em imagens mostram as

descontinuidades na implementação do Projeto Una em uma área de aproximadamente

36 km2. Enquanto que algumas áreas ainda sofrem com inundações pelo

transbordamento de canais, outras como a Mena Barreto encontram-se relativamente

livres deste problema, na medida em que estes eventos não são tão recorrentes quanto

nas outras áreas. Existe a necessidade de pensar a Bacia do Una enquanto um sistema

interdependente e de pensar a relação entre inundações e a má execução de políticas

públicas. Nesse sentido, as experiências de seus habitantes são fundamentais não apenas

para mostrar a sua relação de longa duração com seus locais de pertencimento, mas

também podem servir como alicerce para as discussões sobre futuros projetos na Bacia

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do Una e nas demais bacias hidrográficas de Belém que inevitavelmente sofrerão

intervenções.

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