memória · este coração. nada pode o olvido contra o sem sentdo ... mais vasto é meu coração....

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Memória Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentdo apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão Mas as coisas fndas muito mais que lindas, essas fcarão Carlos Drumond de Andrade

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  • Memria

    Amar o perdidodeixa confundidoeste corao.

    Nada pode o olvidocontra o sem sentdoapelo do No.

    As coisas tangveistornam-se insensveis palma da mo

    Mas as coisas fndasmuito mais que lindas,essas fcaro

    Carlos Drumond de Andrade

  • Poema de Sete FacesCarlos Drumond de Andrade - Alguma poesia,1930

    Quando nasci um anjo torto desses que vive na sombradisse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.

    As casas espiam os homensQue corresm atrs de mulheres.A tarde talvez fosse azul,No houvesse tantos desejos.

    O bonde passa cheio de peras:Pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu corao.

    Porm meus olhos nao perguntam nada.O homem atrs do bigode srio, simples e forte.Quase no conversa.Tem poucos, raros amigoso homem atrs dos culos e do bigode.

    Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu no era Deusse sabias que eu era fraco.

    Mundo mundo vasto mundo,se eu me chamasse Raimundoseria uma rima, no seria uma soluo.

    Mundo mundo vasto mundo,mais vasto meu corao.Eu no devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.

  • Confidncia do itabirano Carlos Drummond de Andrade (Sentmento do mundo,1940)

    Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.Noventa por cento de ferro nas caladas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida porosidade e comunicao.

    A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hbito de sofrer, que tanto me diverte, doce herana itabirana.

    De Itabira trouxe prendas que ora te ofereo: este So Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sof da sala de visitas;este orgulho, esta cabea baixa...

    Tive ouro, tve gado, tve fazendas. Hoje sou funcionrio pblico. Itabira apenas uma fotografa na parede. Mas como di!

  • Viagem Na Famlia (do livro Jos,1942)

    No deserto de Itabiraa sombra de meu paitomou-me pela mo.Tanto tempo perdido.Porm nada dizia.

    No era dia nem noite.Suspiro? Voo de pssaro?Porm nada dizia.

    Longamente caminhamos.Aqui havia uma casa.A montanha era maior.Tantos mortos amontoados,o tempo roendo os mortos.E nas casas em runa,desprezo frio, humildade.Porm nada dizia.

    A rua que atravessavaa cavalo, de galope.Seu relgio. Sua roupa.Seus papis de circunstncia.Suas histrias de amor.H um abrir de base de lembranas violentas.Porm nada dizia.

    No deserto de Itabiraas coisas voltam a existr,irrespirveis e sbitas.O mercado de desejosexpe seus tristes tesouros;meu anseio de fugir;mulheres nuas; remorso.Porm nada dizia.

  • Pisando livros e cartas,viajamos na famlia.Casamentos; hipotecas;os primos tuberculosos;a ta louca; minha avtrada com as escravas,rangendo sedas na alcova.Porm nada dizia.

    Que cruel, obscuro instntomovia sua mo plidasubtlmente nos empurrandopelo tempo e pelos lugaresdefendidos?Olhei-o nos olhos brancos.Gritei-lhe: Fala! Minha vozvibrou no ar um momento,bateu nas pedras. A sombraprosseguia devagaraquela viagem pattcaatravs do reino perdido.Porm nada dizia.

    Vi mgoa, incompreensoe mais de uma velha revoltaa dividir-nos no escuro.A mo que eu no quis beijar,o prato que me negaram,recusa em pedir perdo.Orgulho. Terror noturno.Porm nada dizia.

    Fala fala fala fala.Puxava pelo casacoque se desfazia em barro.Pelas mos, pelas botnasprendia a sombra severae a sombra se desprendiasem fuga nem reao.Porm fcava calada.

  • E eram distntos silnciosque se entranhavam no seu.Era meu av j surdoquerendo escutar as avespintadas no cu da igreja;a minha falta de amigos;a sua falta de beijos;eram nossas difceis vidase uma grande separaona pequena rea do quarto.

    A pequena rea da vidame aperta contra o seu vulto,e nesse abrao difano como se eu me queimassetodo, de pungente amor.S hoje nos conhecermos!culos, memrias, retratosfluem no rio do sangue.As guas j no permitemdistnguir seu rosto longe,para l de setenta anos...

    Sent que me perdoavaporm nada dizia.

    As guas cobrem o bigode,a famlia, Itabira, tudo.

  • Para sempre

    Por que Deus permiteque as mes vo-se embora?Me no tem limite, tempo sem hora,luz que no apagaquando sopra o ventoe chuva desaba,veludo escondidona pele enrugada,gua pura, ar puro,puro pensamento.Morrer acontececom o que breve e passasem deixar vestgio.

    Me, na sua graa, eternidade.

    Por que Deus se lembra- mistrio profundo -de tr-la um dia?Fosse eu Rei do Mundo,baixava uma lei:Me no morre nunca,me fcar semprejunto de seu flhoe ele, velho embora,ser pequeninofeito gro de milho.

    Carlos Drumond de Andrade

  • Procura da Poesia Carlos Drumond de Andrade A rosa do povo (1945)

    No faas versos sobre acontecimentos.No h criao nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida um sol esttco,no aquece nem ilumina.As afnidades, os aniversrios, os incidentes pessoais no contam.No faas poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortvel corpo, to infenso efuso lrica.

    Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuroso indiferentes.Nem me reveles teus sentmentos,que se prevalecem do equvoco e tentam a longa viagem.O que pensas e sentes, isso ainda no poesia.

    No cantes tua cidade, deixa-a em paz.O canto no o movimento das mquinas nem o segredo das casas.No msica ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto linha de espuma.

    O canto no a naturezanem os homens em sociedade.Para ele, chuva e noite, fadiga e esperana nada signifcam.A poesia (no tres poesia das coisas)elide sujeito e objeto.

    No dramatzes, no invoques,no indagues. No percas tempo em mentr.No te aborreas.Teu iate de marfm, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abuses, vossos esqueletos de famliadesaparecem na curva do tempo, algo imprestvel.

    No recomponhastua sepultada e merencria infncia.

    No osciles entre o espelho e amemria em dissipao.Que se dissipou, no era poesia.Que se partu, cristal no era.

  • Penetra surdamente no reino das palavras.L esto os poemas que esperam ser escritos.Esto paralisados, mas no h desespero,h calma e frescura na superfcie intata.Ei-los ss e mudos, em estado de dicionrio.Convive com teus poemas, antes de escrev-los.Tem pacincia se obscuros. Calma, se te provocam.Espera que cada um se realize e consumecom seu poder de palavrae seu poder de silncio.No forces o poema a desprender-se do limbo.No colhas no cho o poema que se perdeu.No adules o poema. Aceita-ocomo ele aceitar sua forma defnitva e concentradano espao.Chega mais perto e contempla as palavras.Cada umatem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,pobre ou terrvel, que lhe deres:Trouxeste a chave?Repara:ermas de melodia e conceitoelas se refugiaram na noite, as palavras.Ainda midas e impregnadas de sono,rolam num rio difcil e se transformam em desprezo.

    Mos dadasCarlos Drummond de Andrade

    No serei o poeta de um mundo caduco.Tambm no cantarei o mundo futuro.Estou preso vida e olho meus companheiros.Esto tacirturnos mas nutrem grandes esperanasEntre eles, considero a enorme realidade.O presente to grande, no nos afastemos.No nos afastemos muito, vamos de mos dadas.No serei o cantor de uma mulher, de uma histria,no direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,no distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, no fugirei para as ilhas nem serei raptado porserafns.O tempo a minha materia, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

  • O Mundo grande

    O mundo grande e cabeNesta janela sobre o mar.O mar grande e cabena cama e no colcho de amar.O amor grande e cabeno breve espao de beijar.

    Carlos Drumond de Andrade O amor natural (Editora Record, 1992)

  • Mundo grande

    Nao, meu corao no maior que o mundo. muito menor.Nele no cabem nem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar.Por isso me dispo.Por isso me grito,por isso freqento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:preciso de todos.

    Sim, meu corao muito pequeno.S agora vejo que nele no cabem os homens.Os homens esto c fora, esto na rua.A rua enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.Mas tambm a rua no cabe todos os homens.A rua menor que o mundo.O mundo grande.

    Tu sabes como grande o mundo.Conheces os navios que levam petrleo e livros, carne e algodo. Viste as diferentes cores dos homens.as diferentes dores dos homens.sabes como difcil sofrer tudo isso, amontoartudo isso num s peito de homem... sem que elo estale.Fecha os olhos e esquece. Escuta a gua nos vidros, to calma. No anuncia nada.Entretanto escorre nas mos, to calma! vai inundando tudo... Renascero as cidades submersas?

    Os homens submersos voltaro? Meu corao no sabe. Estpido, ridculo e frgil meu corao. S agora descubrocomo triste ignorar certas coisas. (Na solido de invidduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.)

    Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confsses pattcas.Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre.

    Outrora viajeipases imaginrios, fceis de habitar.ilhas sem problemas, no obstante exaustvas e convocando ao suicdioMeus amigos foram s ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notciade que o mundo, o grande mundo est crescendo todos os dias,entre o fogo e o amor.

    Ento, meu corao tambm pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu corao cresce dez metros e explode. vida futura! ns te criaremos

    Carlos Drummond de Andrade(Sentmento do mundo)

  • A flor e a nusea

    Preso minha classe e a algumas roupas,vou de branco pela rua cinzenta.Melancolias, mercadorias espreitam-me.Devo seguir at o enjoo?Posso, sem armas, revoltar-me?

    Olhos sujos no relgio da torre:No, o tempo no chegou de completa justa.O tempo ainda de fezes, maus poemas, alucinaes e espera.

    O tempo pobre, o poeta pobrefundem-se no mesmo impasse.Em vo me tento explicar, os muros so surdos.Sob a pele das palavras h cifras e cdigos.O sol consola os doentes e no os renova.As coisas. Que tristes so as coisas, consideradas sem nfase.

    Vomitar esse tdio sobre a cidade.Quarenta anos e nenhum problemaresolvido, sequer colocado.Nenhuma carta escrita nem recebida.Todos os homens voltam para casa.Esto menos livres mas levam jornaise soletram o mundo, sabendo que o perdem.

    Crimes da terra, como perdo-los?Tomei parte em muitos, outros escondi.Alguns achei belos, foram publicados.Crimes suaves, que ajudam a viver.Rao diria de erro, distribuda em casa.Os ferozes padeiros do mal.Os ferozes leiteiros do mal.

    Pr fogo em tudo, inclusive em mim.Ao menino de 1918 chamavam anarquista.Porm meu dio o melhor de mim.Com ele me salvoe dou a poucos uma esperana mnima.

    Uma flor nasceu na rua!Passem de longe, bondes, nibus, rio de ao do trfego.Uma flor ainda desbotadailude a polcia, rompe o asfalto.Faam completo silncio, paralisem os negcios,garanto que uma flor nasceu.

    Sua cor no se percebe.Suas ptalas no se abrem.Seu nome no est nos livros. feia. Mas realmente uma flor.

    Sento-me no cho da capital do pas s cinco horas da tardee lentamente passo a mo nessa forma insegura.Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pnico. feia. Mas uma flor. Furou o asfalto, o tdio,o nojo e o dio.

    Carlos Drumond de Andrade A rosa do povo (1945)

  • LegadoCarlos Drummond de Andrade

    Que lembrana darei ao pas que me deu tudo que lembro e sei, tudo quanto sent? Na noite do sem-fm, breve o tempo esqueceu minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

    E mereo esperar mais do que os outros, eu? Tu no me enganas, mundo, e no te engano a t. Esses monstros atuais, no os catva Orfeu, a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

    No deixarei de mim nenhum canto radioso, uma voz matnal palpitando na bruma e que arranque de algum seu mais secreto espinho.

    De tudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restar, pois o resto se esfuma, uma pedra que havia em meio do caminho.

    Um boi v os homens [Claro enigma,1951]

    Carlos Drummond de Andrade

    To delicados (mais que um arbusto) e correme correm de um para outro lado, sempre esquecidosde alguma coisa. Certamente, falta-lhesno sei que atributo essencial, posto se apresentem nobrese graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,at sinistros. Coitados, dir-se-ia no escutamnem o canto do ar nem os segredos do feno,como tambm parecem no enxergar o que visvele comum a cada um de ns, no espao. E fcam tristese no rasto da tristeza chegam crueldade.Toda a expresso deles mora nos olhos e perde-sea um simples baixar de clios, a uma sombra.

    Nada nos pelos, nos extremos de inconcebvel fragilidade,e como neles h pouca montanha,e que secura e que reentrncias e queimpossibilidade de se organizarem em formas calmas,permanentes e necessrias. Tm, talvez,certa graa melanclica (um minuto) e com isto se fazemperdoar a agitao incmoda e o translcidovazio interior que os torna to pobres e carecidosde emitr sons absurdos e agnicos: desejo, amor, cime(que sabemos ns?), sons que se despedaam e tombam no campocomo pedras aflitas e queimam a erva e a gua,

  • e difcil, depois disto, ruminarmos nossa verdade

    A mquina do mundo

  • A tela contemplada

    Pintor da soledade nos vestbulos de mrmore e losango, onde as colunas se deploram silentes, sem que as pombas venham trazer um pouco do seu ruflo;

    traa das fnas torres consumidas no vazio mais branco e na insolvncia de arquiteturas no arquitetadas, porque a plstca v, se no comove,

    criador de mitos que sufocam, desperdiando a terra, e j recuam para a noite, e no charco se constelam,

    por teus condutos flui um sangue vago, e nas tuas pupilas, sob o tdio, a vida um suspiro sem paixo.

  • Ingaia Cincia

    A madureza, essa terrvel prendaque algum nos d, raptando-nos, com ela,todo sabor gratuito de oferendasob a glacialidade de uma estela,

    a madureza v, posto que a vendainterrompa a surpresa da janela,o crculo vazio, onde se estenda,e que o mundo converte numa cela.

    A madureza sabe o preo exato dos amores, dos cios, dos quebrantos,e nada pode contra sua cincia

    e nem contra si mesma. O agudo olfato,o agudo olhar, a mo, livre de encantos,se destroem no sonho da existncia.

    Carlos Drummond de Andrade

    Oficina irritada

    Eu quero compor um soneto durocomo poeta algum ousara escrever.Eu quero pintar um soneto escuro,seco, abafado, difcil de ler.

    Quero que meu soneto, no futuro,no desperte em ningum nenhum prazer.E que, no seu maligno ar imaturo,ao mesmo tempo saiba ser, no ser.

    Esse meu verbo antptco e impuroh de pungir, h de fazer sofrer,tendo de Vnus sob o pedicuro.

    Ningum o lembrar: tro no muro,co mijando no caos, enquanto Arcturo,claro enigma, se deixa surpreender.

    Carlos Drummond de Andrade

    CLARO ENIGMA Entre lobo e co 1951

  • Para melhor compreenso do prximo poema Os bens e o sangue anoto aqui os signifcados das seguintes palavras :Itabira-,Joanesia e Cocais: so 3 municpios do estado de Minas GeraisCapo: descampado, vegetao prpria do local -Capo em tupi-guarani pode signifcar:

    1-mato redondo(ou alto) ( ca+pu)2-ilha de matoou moita de mato(ca+pai)3-onde o mato acaba ( ca+paua(paba))

    Ferros Guanhes : Mineiradora e tambm municpios de MGEsmeril: pedra de polir- Esmeril em Mineralogia uma pedra dura, ferruginosa e es-cura usada para polir os metais, as pedras preciosas, os cristais e os vidros de tca, etc.. Pessoa sem cuidado com as coisas; que destri, quebra, racha ou trinca tudo o que toca.Pissaro: cascalho, pissarra: terra vermelha misturada com pedrasCandonga: contrabando - Contrabando de gneros alimentcios- IntrigaConceio : moeda portuguesa Nos tempos passados, era a moeda portuguesa do imprio de Dom Joo IV (1604-1656). Ato de conceber alguma coisa. Aquilo que formador de ideias.Lavrinha de Cubas municipio de Minas Gerais Itabiruu Lago em itabiraDulciamara- remcio homeoptco, flores roxas txicasLux- vomica- remdio para quem tem ncia de vmito, para quem teimoso.

    O poema "Os bens e o sangue", de Drummond - foi publicado pela revista Anhembi, de S.Paulo (n. 2, fevereiro de 1951), precedido da seguinte nota:"Embora persuadido de que no cabe explicao para um poema, alm.da que ele mesmo traz consigo, o autor julga conveniente informar quanto gnese desta composio.Resultou ela da leitura de um mao de documentos de compra e venda de datas de ouro no nordeste de Minas Gerais, operaes essas realizadas ,em meados do sculo XIX. Simultaneamente, certo nmero de proprietrios, integrantes da mesma famlia, resolveudispor de tais bens, havidos por meio de herana ou de casamento. At ento, permaneciam sob domnio do mesmo grupo familial os terrenos aurferos descobertos em1781, na serra de Itabira, pelo capito Joo Francisco de Andrade, que os transmitira a um seu sobrinho e scio, o major Lage. Diz Eschwege que as lavras de Joo Francisco, em1814, produziam mais de 3 mil oitavas de ouro. A explorao declinou com o tempo, e por volta de 1850 vemos os donos se des-fazerem de jazidas e benfeitorias.No se procure em dicionrio o signifcado de lajos e andridos, palavras existentes no contexto, e que so meras variaes de nomes de famlias da regio.O nome Belisa, dado a animais, consta de inventrio da poca."(No texto existem vrias vezes a letra q isolada, alm de outras grafas no usuais. Estava assim no original impresso)

  • Os bens e o SangueI "s duas horas da tarde deste nove de agosto de 1847

    nesta fazenda do Tanque e em dez outras casas de rei, q no de valete,em Itabira Ferros Guanhes Cocais Joanesia Capodiante do estrume em q se movem nossos escravos, e da viraoperfumada dos cafezais q trana na palma dos coqueirosfis servidores de nossa paisagem e de nossos fns primeiros,deliberam os vender, como de fato vendemos, cedendo posse jus e domnioe abrangendo desde os engenhos de secar areia at o ouro mais fno,nossas lavras mto nossas por herana de nossos pais e sogros bem amadosq dormem na paz de Deus entre santas e santos martrizados.Por isso neste papel azul Bath escrevemos com a nossa melhor letraestes nomes em qualquer tempo desafaro tramia trapaa e treta:

    Esmeril PissaroCandonga Conceio

    E tudo damos por vendido ao compadre e nosso amigo o snr Raimundo Procpioe a d. Maria Narcisa sua mulher, e o q no fr vendido, por alborquede nossa mo passar, e trocaremos lavras por matas,lavras por ttulos, lavras por mulas, lavras por mulatas e arriatas,que trocar nosso fraco e lucrar nosso forte. Mas fque esclarecido:somos levados menos por gosto do sempre negcio q no sentdode nossa remota descendncia ainda mal debuxada no longe dos serros.De nossa mente lavamos o ouro como de nossa alma um dia os errosse lavaro na pia da penitncia. E flhos netos bisnetostataranetos despojados dos bens mais slidos e rutlantes portanto os mais completosiro tomando a pouco e pouco desapego de toda fortunae concentrando seu fervor numa riqueza s, abstrata e una.

    Lavra da PacinciaLavrinha de Cubas Itabiruu

    II Mais que todos deserdamosdeste nosso oblquo modoum menino inda no nado(e melhor no fora nado)que de nada lhe daremossua parte de nonadae que nada, porm nadao h de ter desenganado.E nossa rica fazendaj presto se desfazendovai-se em sal cristalizandona porta de sua casa

  • ou at na ponta da asade seu nariz fno e frgil,de sua alma fna e frgil,de sua certeza frgilfrgil frgil frgil frgilmas que por frgil gil,e na sua mala-sortese rir le da morte.

    III Este fgura em nossopensamento secreto.Num magoado alvorooo queremos marcadoa nos negar; depoisde sua negaonos buscar. Em tudoser pelo contrrioseu fado extra-ordinrio.Vergonha da famliaque de nobre se humilhana sua malincnicatristura meio cmica,dulciamara nux-vomica.

    IV Este hemos por bemreduzir simplescondio ningum.No lavrar campo.Tirar sustentode algum mel nojento.H de ser violentosem ter movimento.Sofrer tormentano melhor momento.No se sujeitandoa um poder celesteei-lo seno quandode nudez se veste,roga escuridoabrir-se em claro.Este ser tontoe amar no vinhoum novo equilbrioe seu passo tbiosair na colade nenhum caminho.

  • V No judie com o meninocompadre. No tora tanto o pepino,major. Assim vai crescer mofno,sinh! Pedimos pelo menino porque pedir nosso destno.Pedimos pelo menino porque vamos acalent-lo.Pedimos pelo menino porque j se ouve planger o sinodo tombo que le levar quando monte a cavalo. Vai cair do cavalode cabea no valo.Vai ter cataporaamarelo e glicovai errar o caminhovai quebrar o pescoovai deitar-se no espinhofazer tanta besteirae dar tanto desgostoque nem a vida inteiradava para contar.E vai muito chorar.(A praga que te rogopara teu bem ser.)

    VI Os urubus no telhado:E vir a companhia inglesa e por sua vez comprar tudoe por sua vez perder tudo e tudo volver a nadae secado o ouro escorrer ferro, e secos morros de ferrotaparo o vale sinistro onde no mais haver privilgios,e se iro os ltmos escravos, e viro os primeiros camaradas;e a besta Belisa render os arrogantes corcis da monarquia,e a vaca Belisa dar leite no curral vazio para o menino doento,e o menino crescer sombrio, e os antepassados no cemitriose riro se riro porque os mortos no choram.

    VII monstros lajos e andridos que me perseguis com vossas barganhassobre meu bero imaturo e de minhas minas me expulsais.Os parentes que eu amo expiraram solteiros.Os parentes que eu tenho no circulam em mim.Meu sangue dos que no negociaram, minha alma dos pretos,minha carne dos palhaos, minha fome das nuvens,e no tenho outro amor a no ser o dos doidos.Onde ests, capito, onde ests, Joo Francisco,do alto de tua serra eu te sinto sozinhoe sem flhos e netos interrompes a linhaque veio dar a mim neste cho esgotado.

  • Salva-me, capito, de um passado voraz.Livra-me, capito, da conjura dos mortos.Inclui-me entre os que no so, sendo flhos de t.E no fundo da mina, capito, me esconde.

    VIII meu, nosso flho de cem anos depois,que no sabes viver nem conheces os boispelos seus nomes tradicionais. .. nem suas coresmarcadas em padres eternos desde o Egito. flho pobre, e descoroado, e fnito, inapto para as cavalhadas e os trabalhos brutaiscom a faca, o formo, o couro... tal como quisramospara tristeza nossa e consumao das eras,para o fm de tudo que foi grande! desejado, poeta de uma poesia que se furta e se expande maneira de um lado de pez e resduos letais...s nosso fm natural e somos teu adubo,tua explicao e tua mais singela virtude. . .Pois carecia que um de ns nos recusassepara melhor servir-nos. Face a facete contemplamos, e teu esse primeiroe mido beijo em nossa boca de barro e de sarro".

    (Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma-1951)

  • O Cho Cama (O amor natural , 1992)

    O cho cama para o amor urgente, amor que no espera ir para a cama. Sobre tapete ou duro piso, a gente compe de corpo e corpo a mida trama. E para reposar do amor, vamos cama.

    A lngua lambe

    A lngua lambe as ptalas vermelhasda rosa pluriaberta; a lngua lavracerto oculto boto, e vai tecendolpidas variaes de leves ritmos.

    E lambe, lambilonga, lambilenta,a licorina gruta cabeluda,e, quanto mais lambente, mais atva,atnge o cu do cu, entre gemidos,

    entre gritos, balidos e rugidosde lees na floresta, enfurecida

    Futebol

    Futebol se joga no estdio?Futebol se joga na praia,futebol se joga na rua,futebol se joga na alma.A bola a mesma: forma sacrapara craques e pernas de pau.Mesma a volpia de chutarna delirante copa-mundoou no rido espao do morro.So voos de esttuas sbitas,desenhos fericos, bailadosde ps e troncos entranados.Instantes ldicos: flutuao jogador, gravado no ar afnal, o corpo triunfanteda triste lei da gravidade.

    (IN POESIA ERRANTE) Carlos Drummond de Andrade

    MemriaPoema de Sete FacesConfidncia do itabiranoPara sempreMos dadasO Mundo grande

    Mundo grandeA flor e a nuseaLegadoA tela contempladaIngaia CinciaOficina irritada

    Os bens e o SangueA lngua lambeFutebol