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    Giovana Cordeiro Campos de Mello

    Assimi lação e resistência sob uma perspec tivadiscursiva: o caso de Monteiro Lobato

    Tese de Doutorado

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    Giovana Cordeiro Campos de Mello

    Assimi lação e resistência sob uma perspec tivadiscurs iva: o caso de Monteiro Lobato

    Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do graude Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras doDepartamento de Letras do Centro de Teologia e CiênciasHumanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadoraabaixo assinada.

    Profa. Maria Paula FrotaOrientadora

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    Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, da autora eda orientadora.

    Giovana Cordeiro Campos de Mello

    Giovana Cordeiro Campos de Mello é licenciada em Português esuas Literaturas e em Inglês e suas Literaturas pela UniversidadeFederal de Juiz de Fora (UFJF); Bacharel em Letras – Ênfase emTradução/Inglês, pela Universidade de Juiz de Fora (UFJF);Especialista em Tradução/Inglês, pela Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG); Mestre em Letras – Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Mestre emLetras – Literatura Brasileira, pelo Centro de Ensino Superior deJuiz de Fora (CES/JF). Atualmente, é Tradutora e Intérpreteconcursada do Setor de Convênios e Relações Internacionais –

    SCRI, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atuacomo professora de Tradução e de Língua Inglesa em cursos dePós-Graduação. É autora de diversas publicações no Brasil e noexterior, as quais incluem artigos em revistas especializadas,resenhas e capítulos de livros. Tem como principais interesses de pesquisa tradução, história, literatura, lingüística, língua inglesa,análise do discurso francesa e relações internacionais.

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    A Flávio Luis de Mello, meu amor, esposo, amigo, companheiro e o maissurpreendente, inesperado e maravilhoso “resultado” deste doutorado...Obrigada pela paciência, solidariedade e carinho com que me tratou nessesanos difíceis e extraordinários. Com você, os significantes amor e tolerânciaganharam sentidos nunca antes imaginados por mim. Te amo!

    A Malto Campos, pela minha constituição no/pelo discurso de que o estudo é um

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    Agradec imentos

    A Deus, pelas grandes mudanças dos últimos anos, boas e ruins, quepermearam a realização desta tese e colaboraram para meu crescimentoprofissional e humano.

    À Profa. Maria Paula Frota, por todo o aprendizado que me proporcionou, pornão desistir de mim quando até mesmo eu duvidei diante dos obstáculos, por meinstigar a refletir incessantemente sobre meu objeto de estudo, por me auxiliarem questões que extrapolaram o ambiente acadêmico, confortando-me nummomento de grande dificuldade pessoal. Nada que eu diga será capaz de darconta da minha gratidão... Sentirei saudades da convivência, mas guardarei comorgulho a felicidade de ter sido sua primeira orientanda de doutorado.

    À Professora Bethania Mariani, por me apresentar a Análise do Discursofrancesa de Michel Pêcheux. Embora não tenha participado diretamente daconstrução deste texto, é sua voz que se encontra materializada na dispersãodiscursiva desta tese, daí me permitir dizer: obrigada pela co-orientação destetrabalho. Agradeço também por ter me aceitado no “grupinho” da AD da UFF –momentos de enriquecimento intelectual e humano. Hoje, graças a você, aquela“alienígena” de outrora se coloca à sua frente a pedir licença para fazer da ADtambém sua morada...

    À P f M i d A l P i M i l lhid i h d dlN º 0 6 1 0 6 8 6 / C A

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    Ao Gabinete do Reitor – UFRJ, em especial a Vitor Alevato do Amaral e MariaJosé Bastos, grandes amigos e colegas de trabalho no Setor de Convênios e

    Relações Internacionais da UFRJ, pela colaboração fundamental para afinalização deste trabalho.

    Aos colegas e amigos da Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio, em especial aMarcelle Castro, Annie Nielsen, Clarissa Santos, Sabrina Martinez, CristinaAmorin Machado, Virpi Turunen, Martha, Ana Paula El-Jaick e Mara Fabiano,profissionais com quem tive o orgulho de conviver acadêmica e pessoalmente,pelas tardes (e noites) de estudo e diversão. Mais do que colegas de classe e

    profissão, vocês são queridas e admiráveis amigas.Aos professores da Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio, pela troca deconhecimento e profissionalismo.

    À secretaria da Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio, em especial àChiquinha, que sempre me tratou com eficiência e carinho.

    À Profa. Dra. Norma de Siqueira Freitas, companheira das alegrias e sacrifíciosdo processo de realização de uma tese. Agradeço tudo o que fez e faz por mim,tanto na vida pessoal quanto na acadêmica.

    A Fabiano de Siqueira Freitas, pelos bons e saudosos anos de convivência no“cafofo” e no Catete. Obrigada pelo apoio durante a realização do projeto dedoutorado e pela amizade de infância.

    Aos sogrinhos, Carmen e Luiz, e aos cunhadinhos, Ana e Daniel, pelal b ã ã d l i h ã l i hlN

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    Resumo

    Mello, Giovana Cordeiro Campos de; Frota, Maria Paula (Orientadora).Assimilação e resistência sob uma perspectiva discursiva: o caso de MonteiroLobato . Rio de Janeiro, 2010. 402p. Tese de Doutorado – Departamento deLetras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

    Concebida a tradução como um processo discursivo que envolve formaçõesideológicas e singulares do sujeito que traduz, esta tese propõe refletir sobre a formacomo o sujeito-tradutor responde ao seu assujeitamento ideológico, aqui tomado comoum ritual que admite o equívoco. O trabalho se realiza na confluência dos Estudos daTradução― mais especificamente os trabalhos de Venuti e Frota― com a Análise doDiscurso francesa tal como concebida por Michel Pêcheux (AD) e desenvolvida no Brasil por Orlandi, Mariani, Ferreira, Indursky e Mittmann, entre outros. No que tange àfundamentação teórica, dentre os vários conceitos da AD destacam-se os desujeito,discurso, língua, formação discursiva heterogênea, identificação, contra-identificação edesidentificação, sendo os três últimos os mais diretamente relacionados ao processo derepetição de discursos sedimentados (nesta tese proposto comoassimilação) e aos

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    Abstract

    Campos, Giovana Cordeiro de Mello; Frota, Maria Paula (Advisor).Assimilationand resistance under a discursive perspective: the case of Monteiro Lobato .Rio de Janeiro, 2010. 402p. PhD – Departamento de Letras, PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro.

    Based on the assumption that translation is a discursive practice involvingideological and singular formations of the subject who translates, this thesis proposes areflection on the way that the translator as a subject responds to his/her constitution asideological subjects, in a process considered as a ritual that admits equivocalness. Thework is developed at the point where Translation Studies — more specifically works byVenuti and Frota — meet the theoretical view, known as French Discourse Analysis,

    conceived by Michel Pêcheux, later developed in Brazil by Orlandi, Mariani, Ferreira,Indursky and Mittmann, among others. Some concepts were chosen among several othersin the theoretical background:subject , discourse, language, heterogeneous discursive formation, identification, counter-identification and dis-identification. The three latterconcepts are more closely related to the repetition of well established discourses(denominated assimilation in this thesis), and to the processes of settling and

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    Sumário

    1. Apresentação 11

    2. Os sujeitos nos estudos da tradução: revisão de conceitos-chave 222.1. O assujeitamento do tradutor às esferas sócio-ideológicas 23

    2.1.1. A teoria dos polissistemas: a macroestrutura da tradução éInvestigada 252.1.2. Os conceitos demanipulação, reescrita e patronagem: os

    agentes da tradução entram em cena 272.1.3. Aescrita de resistência: “a intervenção crucial do tradutor” é

    Destacada 332.2. O assujeitamento ao desejo inconsciente: asingularidade entra em

    Discussão 47

    3. A tradução e o sujeito sob uma perspectiva discursiva 533.1. O quadro epistemológico da Análise do Discurso francesa 563.2. A tradução como processo discursivo 733.3. Assimilação e resistência: uma proposta de análise 80

    4. O pensamento e a prática tradutórios de Monteiro Lobato 894.1. A práxis tradutória e política no Brasil 92

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    Apresentação

    [Procuramos] superar tanto o enfoqueidealista que autonomiza e prioriza o pensamento, quanto a concepçãomecanicista do psiquismo como meroreflexo de alguma coisa que não é por eleafetada. [Propomos] uma forma de escritaque, singular, mistura sistema e desejo; que,em outros termos, enlaça o real ao simbólicoe ao imaginário.

    FROTA (2000a)

    Desde que os estudos da tradução se estabeleceram como disciplina,sobretudo ao longo das décadas de 1970 e 1980, os teóricos têm concentradoforças no sentido de alcançarem prestígio e visibilidade para a atividadetradutória. Para tanto, foi preciso superar a visão da tradução como mero atomecânico de substituição de palavras e passar a compreendê-la como atividadetransformadora. Nesse percurso, marcado pelo que se tem denominado de “virada

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    concepção subjetivista de sujeito. Com isso, os Estudos da Tradução conseguiramcompreender melhor a atividade tradutória e dar-lhe maior visibilidade. Noentanto, deixaram de criar uma moldura teórico-conceitual para o sujeito-tradutortomado em sua particularidade.

    Dada essa lacuna, fêz-se necessário dar prosseguimento a tais estudos nosentido de melhor compreender teoricamente como se constitui a intervenção dotradutor no processo transformativo da tradução. Para tanto, foram realizadosalguns estudos no campo da tradução que visam sustentar a ideia da traduçãocomo atividade ideológica, mas também considerar o sujeito que traduz emtermos de particularidades suas sem, no entanto, recaírem na concepção desubjetividade como consciência de si.

    A partir desses estudos e seguindo o percurso da tradução como atividadehumana realizada não só nos âmbitos linguístico-cultural, sócio-histórico e político-ideológico, como também na dimensão do inconsciente, defendemosnesta tese que três pontos merecem ser discutidos de forma mais minuciosa. O primeiro, investigar mais profundamente de que maneira se dá a ligação entrelíngua e fatores sócio-históricos e político-ideológicos. O segundo ponto, entender

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    escrita. Há décadas vem se tentando desconstruir essa concepção de sujeitoqualificado como cartesiano, liberal, egóico etc. Entretanto, no momento atual dosestudos da tradução, torna-se incompleta uma abordagem de sujeito social,histórico e ideológico destituído de sua dimensão singular, uma vez que tal posição desconsidera a possibilidade de atuação da singularidade no movimentode sedimentação e transformação de sentidos.

    Este trabalho, portanto, filia-se tanto à crítica ao subjetivismo quanto àcrítica a um determinismo mecanicista que concebe o sujeito como mero reflexodas estruturas que o condicionam. Nesse sentido, visamos contribuir para ummelhor entendimento do processo extremamente complexo da tradução, no qualentram em jogo tanto as esferas de caráter coletivo (história, ideologia, língua)quanto a de caráter singular (inconsciente). É preciso dizer que a separação queaqui fazemos entre as esferas coletivas e particular é um recurso usado apenascom fins operacionais, uma vez que entendemos ser impossível delimitar seufuncionamento em separado, pois, a rigor, estão imbricados. Assim, nossoobjetivo mais específico é investigar de que formaum sujeito-tradutor responde aoassujeitamento ideológico, seja na forma da assimilação ou da subversão de

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    orientação de William Valentine Redmond, no Centro de Ensino Superior de Juizde Fora, trabalho no qual, por meio do conceito de autoria retirado de estudos dacrítica literária, consideramos a tradução como uma atividade criadora, uma vezque seria mediada por um sujeito-intérprete, o tradutor, sendo o produtotradutório, portanto, o resultado de, no mínimo, uma dupla autoria, a do autor e ado tradutor. De acordo com Maria Clara Castellões de Oliveira, um dos membrosda banca examinadora, um caminho para que nova luz fosse lançada sobre aquestão ali discutida poderia ser o percurso trilhado por Maria Paula Frota em Asingularidade da escrita tradutora : linguagem e subjetividade nos estudos datradução, na lingüística e na psicanálise (2000a). Começaria ali nossoenvolvimento com a singularidade do sujeito, com a psicanálise, com a PUC-Rio,com o discurso, com a historicidade do dizer e, posteriormente, com a ProfessoraBethania Mariani (UFF) e, por meio dos dizeres desta, com a Análise do Discursofrancesa de Michel Pêcheux, o principal arcabouço teórico-metodológico queorienta nossa investigação.

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    Além disso, aescrita de resistência (resistance writing ) como forma desubverter a prática tradutória dominante no contexto anglo-americano é proposta por Venuti com mais ênfase em uma ação consciente do tradutor. Embora o autornão ignore o fato de que a escrita de resistência, bem como aescrita daassimilação (assimilation ), que opõe àquela, pode ocorrer sem a percepção dosujeito, deixa de lado as motivações vinculadas à história particular deste. Emalguns momentos, Venuti chega a tocar na possível falta de percepção do tradutor,mas o teórico não considera a singularidade do sujeito-tradutor como raiz daresposta deste às próprias condicionantes sociais que o assujeitam.

    Assim, por mais que os argumentos de Venuti continuem a gerar pesquisasrelevantes para o desenvolvimento do campo de estudos da tradução, a nosso ver éimportante articular língua e ideologia de forma mais minuciosa, ou seja, levando para análise uma discussão a respeito do sujeito também em sua singularidade.Reiteramos aqui uma lacuna importante nos estudos da tradução, a qual temoscomo objetivo discutir e superar parcialmente, aprofundando a relação entrelíngua e ideologia sem perder de vista um sujeito também afetado peloinconsciente.

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    inconsciente. Não há aqui nem uma substancialização da língua (do discurso, oumesmo da história) que reduz os atos subjetivos a meros reflexos, incapazes de

    afetá-la; tampouco sua reificação, base da crença na possibilidade de amanipularmos livremente. O desejo pode acontecer como uma ruptura que seefetua de língua na língua, dando-se como uma diferença que, sem sersubjetivista, está articulada à história do sujeito. (2000b, p. 27, grifos nossos)

    A psicanálise abre espaço para que se considere a existência de algo que, em parte, escapa a uma cadeia interpretativa socialmente compartilhada (Frota,2000a, p.26) e, portanto, para que os processos deassimilaçã o e/ou deresistência às condicionantes hegemônicas sejam compreendidos como um movimentocoletivo e particular ao mesmo tempo. É por essa reflexão que pretendemos pautarnossas discussões.

    Como resposta teórica a nosso questionamento a respeito da imbricaçãoentre ideologia, língua e sujeito, propomos o arcabouço teórico-metodológico daAnálise do Discurso francesa de Michel Pêcheux (AD). Como demonstrouSolange Mittmann (2003), a AD e os Estudos da Tradução apresentam caminhosteórico-epistemológicos que podem ser aproximados com bastante produtividade para as duas áreas. Acreditamos, como Frota (2007), que noções como as de

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    funcionamento da linguagem, sob um viés discursivo, as relações sociais e as de poder. Isso equivale a dizer que os sentidos são vistos como tendo relação com oconfronto de forças presente na sociedade, em sua dimensão ideológica, ou seja, aluta de classes está inscrita na linguagem.

    Além de trazer para o campo dos estudos da linguagem uma sofisticadareflexão acerca do funcionamento da língua em sua relação com a ideologia, a ADconsegue aliar um sujeito político-ideológico a um sujeito singular, uma vez que àlinguística e ao materialismo histórico estão também articuladas as descobertas docampo da psicanálise. É pelo viés da psicanálise que Pêcheux ([1975]1988)constrói sua categoria de sujeito, sujeito dividido pelo desejo inconsciente. Essarelação entre AD e psicanálise ficaria mais evidente em dois dos últimos trabalhosde Pêcheux: “Só há causa daquilo que falha” ([1978]1988) eO discurso : estruturaou acontecimento ([1983]2006).

    Para a AD, o ideológico e o inconsciente são constitutivos de todo sujeito.A AD, então, mostra-se como uma teoria não-subjetivista da subjetividade e deviés psicanalítico, isto é, o sujeito é pensado como submetido tanto àscircunstâncias sócio-históricas quanto ao inconsciente, sendo o ritual da sujeição –

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    estudantes de tradução. Mais recentemente, em 2009, foi defendida a tese dedoutorado de Beatriz Caldas intitulada Discurso sobre a tradução no Brasil :segunda metade do século XX . Por fim, há dois trabalhos de Maria Paula Frota,uma pequena comunicação intitulada “Tradução e análise de discurso”, de 1991, eum artigo intitulado “A interpretação na análise de discurso e nos estudos datradução”, de 2005.

    O trabalho de Mittmann, por pensar a tradução em termos de um processoamplo de relações de sentido entre discursos, será o nosso ponto de partida pararelacionar tradução e AD. No referido livro, Mittmann começa sua reflexãosustentando que, em teoria, haveria nos estudos da tradução duas correntesantagônicas, as quais denominou de “concepção tradicional” e “concepçãocontestadora”.

    Como bem apresenta Mittmann na primeira parte de seu livro (2003, p. 15-34), a concepção tradicional pressupõe a idealização do autor original, a crença naestabilidade de sentidos, a visão da tradução como cópia e do tradutor como meroinstrumento de transporte, a defesa de conceitos como fidelidade, precisão etc. Aconcepção contestadora, por sua vez, critica a concepção tradicional, propondo, º 0

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    característica específica partir da leitura de um texto anterior dado, o texto-fonte.Para dar suporte às suas considerações teóricas, Mittmann elege as notas dotradutor como unidade de análise, vendo-as como o lugar onde o tradutor dialogacom o leitor, apresentando, entre outras coisas, suas dúvidas e os caminhos percorridos durante a tradução. Tanto em sua análise final, quanto em suasespeculações sobre o que podem implicar conceitos da AD no entendimento do processo tradutório, a autora toma como objeto de análise notas de diferentestradutores, contribuindo, dessa forma, para uma compreensão mais ampla daatividade tradutória.

    Embora o trabalho de Mittmann seja bastante abrangente e minucioso, nãofoi objetivo da autora estudar os movimentos de assimilação e de resistência dotradutor tal como propomos, nem estudar tais movimentos a partir do dizer/fazer atradução deum tradutor, nosso objetivo neste trabalho. Além disso, há noções daAD que são abordadas pela autora mas que não constituíram seu objetivo centralde análise. Entre essas noções, consideramos serem centrais ao entendimento domovimento deassimilação e resistência do sujeito-tradutor os processos deidentificação , contra-identificação e desidentificaçã o do sujeito com a forma- º 0

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    forma, fortalecendo um discurso dissidente, não havendo uma alteração na formade organização da FD. A segunda abarca o movimento de tomada de posição dosujeito em favor de um discurso dissidente, mas de modo a transformar aorganização da FD na medida em que, neste caso, há o deslocamento de uma posição-sujeito dissidente a ponto desta substituir a posição-sujeito dominante daFD, tendo como resultado uma FD de “tipo novo” (Pêcheux, [1975]1988). Com ointuito de procurar entender de que maneira a ideologia e a história particularconstituem um sujeito empírico em sujeito-tradutor, seja na forma daassimilação (identificação) ou na daresistência (contra-identificação e desidentificação), sob oolhar da AD como dispositivo analítico, propomos investigar o pensamento e a prática tradutórios de Monteiro Lobato, importante escritor, empreendedor, editor, jornalista e também tradutor no cenário brasileiro.

    O material discursivo de nossa pesquisa é composto não somente de textosescritos por Lobato, como prefácios, posfácios, artigos, entrevistas, conferências ecartas retirados dasObras completas de Monteiro Lobato ([1948]1950, 1955,1959, 2007), mais precisamente dos volumesCartas escolhidas (1o. e 2º. tomos),

    A barca de Gleyre (1º. e 2º. tomos),Prefácios e entrevistas ; Conferências, artigos º 0 6 1 0 6 8 6 / C A

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    tem como objetivo mostrar como vem sendo abordada a relação entre o tradutor eas contingências ideológicas que permeiam a tradução. Também nesse capítuloapresentamos o conceito desingularidade , proposto por Maria Paula Frota(2002a), o qual representa um importante passo no sentido de levar em conta a particularidade do sujeito-tradutor.

    O terceiro capítulo apresenta o arcabouço teórico da Análise do Discursofrancesa de Michel Pêcheux (AD), base para a nossa proposta do estudo da

    assimilação e da resistência do tradutor. Começamos o capítulo abordando oquadro epistemológico da AD, procurando salientar a construção de umdispositivo teórico que desenvolve profundamente a relação entre sujeito, língua eideologia levando em conta mecanismos históricos bem como de natureza particular, relacionados ao funcionamento do inconsciente. Posteriormente,tratamos da pesquisa de Solange Mittmann (2003), considerada por nós o primeirotrabalho que realiza em profundidade a articulação entre a AD e os Estudos daTradução. Por fim, com base nas reflexões de Freda Indursky (2000), propomosnosso estudo daassimilação e da resistência.

    No quarto capítulo, desenvolvemos as análises que constituíram a nossa º 0 6 1 0 6 8 6 / C A

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    A tradução e o sujeito sob uma perspectiva discursiva

    Sob o nome de Análise do Discurso (AD) encontram-se diferentes estudos,cujas abordagens teóricas e metodológicas chegam a ser distintas. A variedade de

    estudos acompanha a diversidade de conceituações para o que seja “discurso”.Uma primeira distinção possível entre as diferentes Análises do Discurso é a quese faz entre a corrente de estudos européia da AD, mais precisamente a francesa, ea anglo-americana. Entretanto, mesmo a AD francesa tem suas diferenças, sendoque a que nos interessa é a AD francesa desenvolvida por Michel Pêcheux, que

    toma o discurso em termos das dimensões sócio-históricas e político-ideológicasde sua constituição. Por sua vez, a AD anglo-americana apresenta uma perspectivasócio-interacionista, tomando o discurso em termos das situações de comunicação. No caso da AD francesa em questão, há a predominância de uma abordagemmaterialista e histórica, sob a qual são levadas em consideração não apenas a

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    realizados no Brasil, onde há um campo disciplinar já estabelecido a partir dacorrente francesa, com uma produção bastante significativa (ver, por exemplo,trabalhos e linhas de pesquisa desenvolvidos na Unicamp, UFRGS, UFF e UERJ).

    No que diz respeito à abordagem anglo-americana, destaca-se a AnáliseCrítica do Discurso (ACD), de Norman Fairclough (1989, 1995).32 Como o nomesugere, esta corrente se propõe crítica por articular em seu desenvolvimento tantoas teorias sobre a ideologia quanto as perspectivas da linguística crítica.33 O“discurso” para Fairclough é uma prática social, estando diretamente relacionadocom questões de ideologia e também de dominação. Na perspectiva da ACD, alíngua é um meio de dominação, capaz de legitimar as relações de poderestabelecidas institucionalmente. Se por um lado a ACD tem fortes ligações como pensamento de Michel Foucault, Dominique Maingueneau, Jacqueline Authier-Revuz, entre outros, por outro se baseia também nos parâmetros da linguísticasistêmica e funcional de Halliday. No que se refere à nossa pesquisa, a AD deorigem francesa é a que nos interessa exatamente por ser capaz de construir umaparato teórico que alia o lingüístico ao sócio-histórico, porém, de forma a proporum conceito de sujeito que é também atravessado pelo inconsciente; característica º 0

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    Discurso, porém é considerada apenas a corrente anglo-americana baseada nomodelo de Halliday.

    De acordo com Munday, foi a partir de 1990 que a análise do discursotomou força no campo dos estudos da tradução. Entre os estudos realizados,Munday destaca os desenvolvidos por Juliane House (1977,1997), Mona Baker(1992) e Hatim e Mason (1990,1997), todos de base sistêmico-funcional. NoBrasil, a ACD teve forte acolhida na Universidade Federal de Minas Gerais, comtrabalhos de pós-graduação, disciplinas, linhas e projetos de pesquisa deestudiosas como Adriana Silvina Pagano e Célia Maria Magalhães.34

    O modelo de House (1997) visa à criação de uma metodologia paraavaliação da qualidade das traduções. Em seus primeiros trabalhos, House (1977)criticou as traduções orientadas pelas normas do contexto-meta. (Munday, 2001, p.92) Após sofrer críticas, House revisou seu modelo e se apoiou mais firmementenas categorias de modo, conteúdo e campo, de Halliday. De maneira geral, omodelo de House toma como base a relação entre o texto-fonte e o meta no intuitode desenvolver um modelo funcionalista para a avaliação de traduções, vindo a propor uma tipologia de traduções. Para House, existiria a tradução manifesta º 0

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    Para nossos propósitos de pesquisa, como já abordado no segundocapítulo, interessa um aporte teórico que conceba o sujeito afetado pela ideologiae pelo inconsciente, logo, é a Análise do Discurso francesa formulada por MichelPêcheux (1975) e desenvolvida por estudiosos da área a abordagem capaz defornecer subsídios para se pensar o tradutor como sujeito social e particular. Estecapítulo, portanto, tem por objetivo apresentar o quadro epistemológico daAnálise do Discurso francesa (que doravante denominaremos AD nesta tese), maisespecificamente a AD tal como proposta por Michel Pêcheux (1975), e trabalhada por estudiosos brasileiros, tais como Eni Orlandi (1994, 1996, 2005a, 2005b),Bethânia Mariani (1998, 2003), Freda Indursky (1997, 2000, 2007), MariaCristina Leandro Ferreira (2000, 2005), Solange Mittmann (2003), entre outros,salientando os conceitos mais relevantes para nossa proposta de estudo, qual sejaentender os processos deassimilação e resistência do sujeito que traduz. Nessesentido, os trabalhos de duas pesquisadoras nortearão nossa discussão: o deSolange Mittmann (2003), por ter sido primeiro trabalho no Brasil a propor aarticulação entre a AD e os Estudos da Tradução de forma profunda; e o de FredaIndursky (2000), por abordar a fragmentação do sujeito a partir da fragmentação

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    O quadro epistemológico da AD, tal como foi construído por MichelPêcheux a partir da década de 1960, articula-se no espaço entre o materialismohistórico, observando as formações sociais e suas transformações; a linguística,levando em conta os processos de enunciação,35 porém, com a reelaboração dosconceitos aí envolvidos; e a teoria do discurso,36 reconhecendo a determinaçãohistórica dos processos semânticos. Nesse sentido, a AD é chamada de umadisciplina de entremeio, uma vez que se situa no espaço das contradições dasciências sociais (Orlandi, 1996, p.24), procurando reinvestigar “os fundamentosde seu campo de conhecimento: as relações entre a linguagem, a história, asociedade e a ideologia, a produção de sentidos e a noção de sujeito” (Mariani,1998, p.23), esta última de fundamental relevância dentro de nossa proposta nestetrabalho. Não seria incorreto afirmar que a AD questiona a transparência dosentido, pela AD pensada como efeito da ideologia.

    Interessa à AD a língua fazendo sentido, logo, a língua não é tomada comoum sistema abstrato, mas como mediação necessária entre o homem e suarealidade social. Nas palavras de Orlandi:

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    Para a AD, não existe uma atividade estanque de codificação edecodificação; trata-se de um processo de significação no qual há uma relação desujeitos afetados pela história e pela língua e, nessa relação, os sentidos e os

    próprios sujeitos se constituem . Entendemos que a AD consegue abordar acomplexidade da língua enquanto fato social e histórico, atribuindo à língua um

    status privilegiado de espaço de manifestação ideológica. Ao mesmo tempo, sob o ponto de vista da AD, o sujeito não é afetado pela língua e pela história comocampos que a ele são exteriores apenas; o sujeito da AD é constituído pela e na

    relação língua-história-ideologia — não há uma separação entre sujeito, língua eideologia, há imbricação. A noção de discurso da AD não separa linguagem esociedade, ou seja, a suposta realidade “exterior ao sujeito” é vista em AD comoalgo construído, ou seja,

    a realidade, portanto, não é algo dado, um mundo externo, mas, sim, algo queresulta da necessária significação com que o homem, ser simbólico, investe suas práticas sociais e linguageiras [...] ao dizer, o sujeito está sempre significando (ouinterpretando a ‘realidade’), retomando e renovando os processos de significaçãoconstitutivos de sua historicidade. (Mariani, 1998, p.27)

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    Segundo Pêcheux (1975), é um grande erro considerar as ideologias comoideias, pois isso equivale a dizer que elas “têm origemnos sujeitos ”, quando, emverdade elas “constituem os indivíduos em sujeitos ” (Pêcheux [1975]1988, p.129).Pêcheux está se remetendo aqui a outro filósofo, Althusser (1970), o qual sustentaque a ideologia interpela indivíduos concretos em sujeito:

    Sugerimos, então, que a ideologia “age” ou “funciona” de tal forma que ela“recruta” sujeitos dentre os indivíduos (ela os recruta a todos), ou “transforma” osindivíduos em sujeitos (ela os transforma a todos) através dessa operação muito precisa que chamamosinterpelação , que pode ser entendida como o tipo mais banal de interpelação policial (ou não) cotidiana: “ei, você aí”. (Althusser,[1970]1985, p.96)

    O sujeito é, então, assujeitado à ideologia, sendo importante salientar que a

    sujeição existe no plano material de existência, ou seja, no conjunto de práticas,rituais, costumes, localizados em instituições concretas, as quais possuem umaunidade por meio do funcionamento de uma ideologia dominante. Pêcheuxtrabalha a constituição althusseriana do sujeito acrescentando a dimensãolinguística:

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    É por meio da figura da interpelação ideológica que Pêcheux esboça suateoria não subjetivista da subjetividade. Para o filósofo, o processo de interpelaçãoé ignorado pelo sujeito, constituindo um processo de “imposição/dissimulação”,uma vez que o situa — fornecendo ao sujeito o que ele é — ao mesmo tempo emque disfarça o processo de assujeitamento — dando ao sujeito a ilusão de que eleé origem de seu dizer. Sob essa visão, a concepção de um sujeito que tudo sabe e écapaz de escolher o que vai dizer cai por terra.

    De acordo com Pêcheux, “um discurso é sempre pronunciado a partir de

    condições de produção dadas” ([1975]1988, p.77). Por condições de produção dodiscurso (CP) a AD entende, em sentido estrito, as circunstâncias de enunciação(o contexto imediato), e, em sentido mais amplo, o espaço sócio-histórico eideológico. A necessidade de abordar as CP no segundo sentido aqui expostoremete a outra noção relevante na AD, a qual atua em relação ao discurso: a“memória discursiva”. A noção de memória discursiva se relaciona, de modogenérico, com a de “interdiscurso”, um saber discursivo que torna possível àsnossas palavras fazerem sentido, fornecendo-nos a “evidência do sentido”. Essesaber corresponde a palavras, expressões, enunciados etc., já ditos e esquecidos,

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    Assim, em AD não existe um sentido já lá, ou melhor, a transparência do sentido éum efeito ideológico, o que remete à questão de que os sentidos variam de acordocom as diferentes ideologias em questão. O sentido de uma palavra ou expressão é“determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é,reproduzidas). ( Ibidem , p.160) Pêcheux coloca a observação “reproduzidas” parasalientar o processo de repetição dos dizeres, uma vez que se sustentam no já-ditodo interdiscurso. Às diferentes posições ideológicas, Pêcheux denomina de“formações ideológicas” – FIs (ibidem , p.160).

    Para melhor entendermos a diferença entre as circunstâncias da enunciação(condições de produção estritas) e o interdiscurso (condições de produção maisamplas), vamos nos valer de um exemplo: o caso exemplar fornecido por Orlandide uma eleição a ser realizada em umcampus universitário. Na entrada docampus se encontrava uma faixa preta com os dizeres “vote sem medo”, pintadas em branco. Na sequência, era esclarecido que os votos não seriam identificados ehavia o nome das entidades de representação dos professores e funcionários(2005a, p.29). Nesse exemplo, as circunstâncias de enunciação englobam o local,

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    ponto interessante a ser destacado é que não temos, necessariamente, consciênciadessas forças que atuam no nosso dizer.

    A conclusão a que se pode chegar é que o dizer não se resume a uma propriedade particular. Há em cada fala, texto, enunciação, discurso, algo que nãonos pede licença, mas que vem pela história, pela filiação a sentidos jáconstituídos e que é marcado pela ideologia e pelas questões de poder:

    As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. O que édito em outro lugar também significa nas “nossas” palavras. O sujeito diz, pensaque sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual ossentidos se constituem nele. Por isso, é inútil, do ponto de vista discursivo, perguntar para o sujeito o que ele quis dizer quando disse “x” (ilusão daentrevistain loco ). O que ele sabe não é suficiente para compreendermos queefeitos de sentidos estão ali presentificados. (Orlandi, [1999]2005a, p.30)

    Assim, entendemos quando se afirma em AD que o sujeito não é a origem de seudizer. Ao mesmo tempo, percebemos que ao analista de discurso cabe questionaro que a mobilização de determinadas palavras, em detrimento de outras, podemostrar além das evidências. O que emerge novamente é a questão das relações desentido, o que envolve outros discursos, ou seja, um discurso sempre remete a

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    série [...] de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação.([1983]2006, p.53)

    Para melhor compreendermos, tomemos a expressão “Deus nos honrou com suaglória”. Ela terá efeitos de sentido bem diversos se inserida na homilia de um padre durante uma missa ou na resposta de um jogador de futebol a um repórterdepois de uma partida em que o seu time tenha saído vencedor (Dias, 2007).

    Com essa perspectiva, Pêcheux recorre ao termo “formação discursiva”(FD), proposto inicialmente por Foucault em A Arqueologia do Saber (1969), e oredimensiona, chamando de FD “aquilo que, numa formação ideológica dada, istoé, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado daluta de classes, determina o que pode e deve ser dito” (Pêcheux, [1975]1988,

    p.160). Os discursos são modelados por formações ideológicas, podendo a FD serentendida como a forma pela qual uma formação ideológica ou mais semanifesta(m) em um dado processo de enunciação. Os indivíduos são interpeladosem sujeitos pelas FDs que “representam ‘na linguagem’ as formações ideológicasque lhes são correspondentes” (ibidem , p.161). Para Pêcheux, a FD é “o lugar de

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    dominante” (Pêcheux, [1975]1988, p.162), ao qual o filósofo propõe chamar de“interdiscurso”. O interdiscurso é algo que fala “sempre antes, em outro lugar eindependentemente” (ibidem , p.162). É por meio do interdiscurso que o sujeitoconcebe a sua “realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas — aceitas, experimentadas”(ibidem , p.162).

    Ainda no âmbito da discussão sobre as FDs, Pêcheux toma de Althusser otermo “forma-sujeito”, o qual se referia à forma de existência histórica dequalquer indivíduo, apresentando-o como o “sujeito universal” de uma FD, com aqual o sujeito irá se identificar (ou não). O processo deidentificação do sujeitocom uma formação discursiva fica assim resumido:

    Já observamos que o sujeito se constitui pelo “esquecimento” daquilo que odetermina. Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito deseu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursivaque o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação,fundadora da unidade (imaginária) do sujeito apóia-se no fato de que oselementos do interdiscurso [...] que constituem, no discurso do sujeito,os traçosdaquilo que o determina , são re-inscritos no discurso próprio do sujeito.(Pêcheux, [1975], 1988, p.163)

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    “posições-sujeito”, as quais estão relacionadas às FIs por meio das FDs. Nas palavras de Indursky:

    o sujeito, ao produzir seu discurso, o faz a partir de determinadas posições desujeito, igualmente ideológicas. Tais posições, contudo, não transformam essesujeito em uma figura que decide livremente seu discurso, pois se trata de umsujeito socialmente constituído. No entanto, por não ter consciência de seuassujeitamento, mantém fortemente arraigada a ilusão de ser plenamenteresponsável por seu discurso e suas posições. (1997, p.27-28)

    O sujeito, então, representa a forma-sujeito a partir de uma posição-sujeito, ouseja, ele é efeito da forma-sujeito, sendo que o funcionamento de diferentes FDsvai representar diferentes posições, possíveis exatamente porque o discurso éheterogêneo. O sujeito da AD é, portanto, uma posição material linguístico-

    histórica (Mariani, 2003, p.61), produzida no jogo das tensões sócio-históricas e político-ideológicas.

    Pêcheux continua sua reflexão dizendo haver três modalidades de relaçãoentre o sujeito da enunciação e o sujeito universal da FD (ou, a forma-sujeito daFD), as quais são por ele chamadas de processos deidentificação , contra-

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    Ora, o que, justamente, nosso desvio permite compreender é que esse‘antagonismo’ [...] se manifesta, em realidade,no interior da forma-sujeito , namedida em que o efeito daquilo que definimos como o interdiscurso continua adeterminar a identificação ou a contra-identificação do sujeito com uma formaçãodiscursiva, na qual a evidência do sentido lhe é fornecida, para que ele se ligue aele ou que a rejeite. (Pêcheux, [1975]1988, p.216)

    Isso quer dizer que, ainda que o sujeito faça o movimento de rejeitar algo de umaFD (ou toda ela, como veremos a seguir), esse movimento do sujeito ainda estarácircunscrito ao espaço da ideologia, da língua, da história, sendo-lhe impossívelsair da rede da linguagem (ou seja, não é possível uma visão de sobrevôo).

    A desidentificação refere-se ao movimento de ruptura do sujeito daenunciação com a forma-sujeito da FD que o domina, gerando o deslocamento dosujeito da enunciação para a identificação com outra FD. Esta modalidade échamada por Pêcheux de “tomada de posição não-subjetiva”, uma vez que não háa superposição do sujeito com o sujeito universal. Cabe ressaltar que, mais umavez, a forma-sujeito não é anulada, o “efeito de desidentificação se realiza paradoxalmente por um processo subjetivo [...] de identificação com asorganizações políticas ‘de tipo novo’ ” (Pêcheux, [1975]1988, p.217). A

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    De tudo o que foi exposto, entendemos, assim como Althusser (1970) e Pêcheux(1975), que não há sujeito sem ideologia e que, por outro lado, não há ideologiasem sujeito; em outros termos, é pela relação entre língua e ideologia que se podecompreender como o sentido é produzido por e para os sujeitos. E, desse modo, aAD advoga que a materialidade da ideologia é exatamente o discurso, cujamaterialidade, por sua vez, é a língua.39 Nas palavras de Pêcheux, reverberandoem seu discurso a voz de Althusser (1970), “a ideologia interpela os indivíduosem sujeitos” ([1975]1988, p.133). Sobressai, portanto, uma visão de sujeito sócio-histórico, isto é, do homem como animal ideológico.

    Por outro lado, a AD conforme concebida por Pêcheux abre espaço paraum sujeito com uma história também particular ao inserir em suas reflexões ateoria psicanalítica. Desde a década de 1960 a psicanálise vem sendo invocadanesse campo de estudo. Atualmente, as considerações teóricas acerca doinconsciente se fazem cada vez mais presentes no Brasil, como, por exemplo, em pesquisas de importantes pesquisadores AD, como Bethânia Mariani, MariaCristina Ferreira e Pedro de Souza, para citar alguns. O já-sabido do interdiscurso,

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    muito claramente” (2003, p.43). Pêcheux propõe dois esquecimentos paraentender o funcionamento da ideologia e da linguagem. De maneira resumida, oesquecimento número 1 refere-se à ilusão do sujeito ser a origem do sentidoenquanto o esquecimento número 2 refere-se à ilusão de que o sujeito tem odomínio do que diz. As zonas dos dois esquecimentos e as oposições que elessugerem são da zona do pré-consciente para o esquecimento número 2 e a doinconsciente para o esquecimento número 1 (Pêcheux, [1975]1988, p.173). Essadistinção já aponta a ligação da AD com a psicanálise, uma vez que talterminologia – pré-consciente e inconsciente – é tomada a partir de Freud(Pêcheux e Fuchs, [1969]1997, p.177).

    O “esquecimento número 2” tem relação com a dimensão enunciativa dosujeito, sendo o esquecimento pelo qual

    todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da FD que o domina, isto é, no sistemade enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase40 – um enunciado, forma ou seqüência, e não um outro, que, noentanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na formação discursivaconsiderada. (Pêcheux, [1975]1988, p.173)

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    com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que – como vimos –esse exterior determina a formação discursiva em questão” (Pêcheux, [1975]1988, p.173). Desse modo, o sujeito-falante tem pelo esquecimento número 1 a ilusão deque é origem do sentido e pelo esquecimento número 2 a ilusão de que temdomínio sobre o que diz. Vale ressaltar, ainda, que os esquecimentos não sãodefeitos, mas estruturantes, uma vez que são necessários para que a linguagemfuncione nos sujeitos e na produção de sentidos (Orlandi, [1999]2005a, p.36). O“esquecimento número 1” é inacessível ao sujeito, tendo relação direta com oinconsciente.

    Na continuação de sua discussão sobre os esquecimentos, Pêcheux salientaa ligação existente entre a AD e a psicanálise ao advogar que havia na linguísticade seu tempo uma “ausência teórica de umcorrespondente lingüístico doimaginário e do ego freudianos ” ([1975]1988, p.176), sendo esta, portanto, umadas lacunas que seu trabalho pretendia preencher. Nesse sentido, Pêcheux explicao funcionamento dos dois esquecimentos (o esquecimento número 2 encobrindo ofuncionamento do esquecimento número 1) como a retomada de umarepresentação verbal (consciente) pelo processo primário (inconsciente),

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    Outro, referindo-se à forma-sujeito da FD, que para o filósofo seria o Sujeito, comletra maiúscula:

    Se acrescentarmos, de um lado, que esse sujeito, com um S maiúsculo – sujeitoabsoluto e universal – é precisamente o que J. Lacan designa como o Outro(Autre, com A maiúsculo), e, de outro lado, que, sempre de acordo com aformulação de Lacan ‘o inconsciente é o discurso do Outro’, podemos discernirde que modo o recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estãomaterialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que se poderiadesignar como o processo do Significante nainterpelação e na identificação , processo pelo qual se realiza o que chamamos as condições ideológicas dareprodução/transformação das relações de produção. ([1975]1988, p.133-134)

    Como aborda Mariani, o “Outro” em Lacan refere-se ao simbólico enquanto o“Outro” em Pêcheux aponta para o interdiscurso (2003, p.62). Desse modo, tanto

    a psicanálise quanto a AD apontam para a constituição do sujeito pela linguagem,sendo que o sujeito de modo algum existe a priori. Essas reflexões foram muito bem desenvolvidas por Mariani:

    O sujeito quando diz ‘eu’ (‘ego’), o faz a partir de sua inscrição no simbólico einserido em uma relação imaginária com a ‘realidade’ do que lhe é dado a ser,agir, pensar. Tal relação estabelecida com a ‘realidade’ é da ordem do imaginário, N º

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    processos de significação. Estamos considerando, como o fez Frota com base nasreflexões de Lacan, que há pelo menos duas estruturas de linguagem: aquela dosdiscursos que circulam e a escrita psíquica, entendida pela psicanálise no sentidode um aparelho psíquico “concebido como uma estrutura de traços, traços pulsionais e traços que representam restos” (Frota, 2000a, p.198). Desse modo,entramos em sintonia com Lacan quando este diz que “o inconsciente não deixanenhuma de nossas ações fora de seu campo” (apud Frota, 2000a, p.209). Logo,não seria incorreta nossa suposição de que a história particular do sujeito atua,ainda que não deixe marcas evidentes, no processo de interpelação-identificaçãodo sujeito. Vale ressaltar que história e inconsciente não são imutáveis, daítambém advir uma mobilidade dos sentidos.

    Em “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início deuma retificação” (1978), Pêcheux realiza uma autocrítica ao mesmo tempo em que procura retificar alguns de seus argumentos. O foco de sua crítica é exatamente a proposição dos esquecimentos. O filósofo tenta se desvencilhar de supostos“erros” do passado, e é por meio da psicanálise que ele tenta reestruturar seu pensamento, o que já se evidencia no título, referência direta e explícita a J.

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    desse modo, um entendimento de que os indivíduos não são interpeladosideologicamente de modo homogêneo, entre outras coisas, pela atuação doinconsciente. Talvez aí tenhamos um caminho para uma compreensão mais profunda acerca do processo decontra-identificação e desidentificação .

    A possibilidade de os sujeitos assujeitados resistirem já está em Pêcheux,exatamente no cruzamento entre ideologia e inconsciente “e se [...] a revolta écontemporânea à linguagem, é porque sua própria possibilidade se sustenta naexistência de uma divisão do sujeito, inscrita no simbólico” (Pêcheux,[1975]1988, p.302). Todavia, esse caminho teórico-conceitual ainda se encontraem desenvolvimento, cabendo aos seguidores e críticos de Pêcheux realizá-lo commais profundidade. O entrecruzamento entre linguagem, ideologia e inconscientefoi bem resumido nas palavras de Ferreira: “o sujeito constituído pela linguagemmanifesta-se como efeito de linguagem; ao ser interpelado pela ideologia comosujeito, comparece como assujeitado; e, ao ser atravessado por uma teoria nãosubjetiva da subjetividade, marca-se como desejante” (2005a, p.69). O ideológicoe o inconsciente são pensados, a partir da intervenção de Pêcheux, comoelementos constitutivos de qualquer discurso e de qualquer sujeito; daí nossa

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    que chamou de “perspectiva tradicional” e a que denominou de “perspectivacontestadora” A partir daí, ela teceu toda uma discussão sobre tópicos de grandeimportância no campo dos estudos da tradução, tais como interpretação e texto, procurando demonstrar a proximidade entre a perspectiva contestadora nosestudos da tradução e a proposta da Análise do Discurso francesa, ao mesmotempo em que salientava o afastamento desse campo teórico (AD francesa) da perspectiva tradicional. A autora, então, passou a abordar os conceitos da Análisedo Discurso francesa dediscurso , sujeito e sentido , bem como aqueles a elesrelacionados (texto , condições de produção , língua, assujeitamento ,

    esquecimento , entre outros), demonstrando suas implicações para o processotradutório. Dentre esses conceitos vários, discutiremos apenas os que são de particular interesse para o desenvolvimento desta tese.

    Segundo a autora, um conceito-chave para o entendimento do processotradutório é o detexto (peça não fechada onde encontramos a materialidade dodiscurso), uma vez que é na leitura do texto-fonte que o processo discursivo propriamente dito da tradução tem início. O que a AD pode fornecer àcompreensão da tradução nesse sentido é a consideração de que é na língua que o

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    vínculo direto com a concepção de língua a que o teórico/estudioso da tradução sefilia, implícita ou explicitamente. Segundo Mittmann, a língua não é tomada pelaAD como lugar de univocidade, transparência e regularidade; ao contrário, a ADadmite a falha, a falta e o equívoco como constitutivos da própria estrutura dalíngua. De acordo com a autora, a partir da AD é possível considerar que aslínguas têm materialidade histórica particular, o que tem efeitos no entendimentodo processo tradutório. Nas palavras de Orlandi, as línguas “se marcam por sehistoricizarem de maneiras distintas. [Por essa razão, elas] produzem discursosdistintos [e] significam diferentemente” (1994, p.31). Desse modo, ahistoricidade43 constitui a língua e os sentidos. Nessa direção, ao correlacionar oconceito de língua da AD com as concepções tradicional e contestadora detradução, Mittmann afirma, mais uma vez, que não apenas a argumentação teóricada AD está em conformidade com as teorias contestadoras da tradução, masdefende uma concepção de língua que admite a falha, o equívoco não comodesvio; a consideração da irregularidade e da heterogeneidade conduz a uma visãode tradução na qual a historicidade da língua torna-se fundamental. Assim, tudo oque constitui os processos discursivos (sistema de valores, carga afetiva, aquilo

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    específicas” (Orlandi, 1996, p.65). Lembrando que, “para que uma palavra façasentido, é preciso que ela já tenha sentido” (ibidem , p.71); ou seja, os sentidosderivam do interdiscurso da(s) FD(s), da memória do dizer que se faz presente noque se “fala”: “toda fala [e podemos acrescentar, leitura] resulta assim de umefeito de sustentação no já dito [do interdiscurso]” (ibidem , p.71). SegundoMittmann, o efeito de sujeito como efeito de responsabilidade é fundamental parase entender a noção de autoria no campo da AD francesa. Nas palavras deOrlandi, a autoria tem relação com um gesto de interpretação que faz com que osujeito seja “responsável pelo sentido que diz, em outras palavras, ele éresponsável por uma formulação que faz sentido” (1996, p.97). A implicação do(des)conhecimento do sujeito de seu processo de assujeitamento para a tradução éque se tem a ilusão de que o tradutor realiza a tradução em total liberdade. Nas palavras de Mittmann:

    Essa ilusão oculta o fato de que sua interpretação, isto é, os sentidos que [otradutor] produz são resultado da posição-sujeito que ele assume, que, por suavez, resulta da forma singular como ele é interpelado pela FD que o domina e pelo interdiscurso que exerce uma determinação sobre essa FD [...] o sujeito nãoé fonte do seu dizer, mas é o suporte e o efeito de determinações ideológicas. O

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    tradutor, que tal tradução tornou-se passível de ser discutida, sendo que parte dosleitores considerou adequada a tradução e outros condenaram fortemente. Não setrata aqui de apontar um defeito no trabalho de Mittmann, mas sim de mostrar queos interesses são diversos.

    Acreditamos que um exame mais minucioso dos processos decontra-identificação e desidentificação , aliado à consideração do inconsciente enquantoestrutura, seja o caminho para que singularidade seja também considerada.Cremos que os movimentos deassimilação e de resistência se dão também pelaatuação do inconsciente, o qual seria, concomitantemente à ideologia, responsável pela identificação (ou não) do sujeito com o Sujeito de uma FD. Se o sujeito não pode se furtar à interpelação ideológica, também não o pode fazer com o desejo,outra mola propulsora de seus atos. Cabe problematizarmos como o sujeito seidentifica, se contra-identifica e se desidentifica. Pensamos que a resposta estejana consideração desejo inconsciente, que também constitui a “escolha” de uma oumais posições-sujeito. Esse é um dos pontos que diferencia este trabalho da pesquisa elaborada e desenvolvida por Mittmann.

    Além disso, a unidade de análise da referida autora são as notas do N º 0 6 1 0 6 8 6 / C A

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    Assimi lação e resistência : uma proposta de análise

    A resistência é a batalha do sujeito pelodireito de se colocar, de não aceitar acoerção, é a batalha por um lugar no qualo sujeito se encontre um poder de dizer,com ou sem o respaldo da hierarquia.

    (Lagazzi, 1988)

    Esta seção tem por objetivo investigar os processos deassimilação e de

    resistência do tradutor por meio da proposta da AD francesa de Michel Pêcheuxdas modalidades de tomada de posição do sujeito denominadas por ele deidentificação , contra-identificação e desidentificação . Para tanto, começaremosabordando o conceito de formação discursiva e suas reelaborações para, então, propormos a o termoassimilação como o movimento daidentificação e o termo

    resistência como o processo decontra-identificação do sujeito com a forma-sujeito dominante que pode chegar à a promoção de um deslocamento capaz degerar a substituição da forma-sujeito hegemônica por outra, anteriormentesecundária, correspondendo, nesse último caso, ao movimento da

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    regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formaçãodiscursiva. (ibidem , p.43)

    Portanto, de acordo com Foucault, a formação discursiva (FD) relaciona umsistema de dispersão onde se percebe certa regularidade. Haveria regras deformação, ou seja, condições de existência, coexistência, manutenção,modificação e desaparecimento. São essas regras de formação que permitem adeterminação dos elementos que compõem uma FD, sendo necessário, na visão doautor, compreender a repartição das FDs e a dispersão dos seus saberes. SegundoFoucault, a regularidade dos enunciados é definida pela FD, e o conjunto deenunciados que se apóiam em uma FD constituem o discurso.

    Indursky (2007) observa que essas regularidades tais como foram propostas por Foucault determinam uma FD homogênea e fechada, uma vez quehaveria um sistema vertical de dependências, ou seja, as posições-sujeito e acoexistência entre os enunciados são possíveis somente quando autorizadas pelosníveis anteriores (Foucault [1969]2005, p.90). A transformação é cogitada, massomente se submetida à regra principal da regularidade (Indursky, 2007, p.164).

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    materializam nas diferentes FDs, as quais representam, na ordem do discurso, asFIs que lhes são correspondentes (Pêcheux, [1975]1988, p.161).

    O sujeito da abordagem de Pêcheux, como apontou Indursky,

    além de social é histórico, por conseguinte, ideológico, e dotado de inconsciente[...] a constituição do sujeito da Análise do Discurso articula fortemente o social(a relação com a História) e o inconsciente (a relação com o dizer do outro). Emoutras palavras, o sujeito da Análise do Discurso é duplamente afetado: em seufuncionamento psíquico, pelo inconsciente, e em seu funcionamento social, pelaideologia. (2000, p.71)

    Desse modo, a relação do sujeito com a língua passa também pela consideração daesfera do inconsciente, possibilitando fazermos uma relação entre a proposta dasingularidade, de Frota (2000a), e os movimentos de tomada de posição do sujeito

    de Pêcheux (1975). Na AD, é pela relação entre o sujeito e as FDs que se consegue entender

    o funcionamento do sujeito no discurso. Mais especificamente, o sujeito éinterpelado por meio de sua identificação “com a formação discursiva que odomina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito)” (Pêcheux, [1975]1988,

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    imbricação entre ideologia e inconsciente que se pode melhor entender os processo de tomada de posição do sujeito nas diferentes modalidades propostas por Pêcheux. Portanto, as “escolhas” do sujeito (o que inclui as escolhas dosujeito-tradutor) não estão no nível do totalmente percebido; elas estão no âmbitodo que é consentido (ou proibido) no escopo da FD de onde ele fala, sendo queesse movimento de sobreposição ou não do sujeito com o Sujeito da FD tambémtem relação com a maneira que o sujeito tomou os sentidos para os eventos particulares de sua existência física.

    Como já explicado, a modalidade da identificação consiste naidentificação plena do sujeito com a forma-sujeito da FD que o domina. Essamodalidade produz o que Pêcheux denominou de “bom sujeito”: “ ‘a tomada de posição’ do sujeito realiza o seu assujeitamento sob a forma do ‘livrementeconsentido’, [tem-se] o discurso do ‘bom sujeito’ que reflete espontaneamente oSujeito” (Pêcheux, [1975]1988, p.215). Pela identificação, os elementos dointerdiscurso, que constituem no discurso do sujeitoos traços daquilo que odetermina , são reescritos no discurso do próprio sujeito (Pêcheux, [1975]1988, p.163). Em outros termos: “o interdiscurso determina a formação discursiva com a

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    desdobramentos. Vemos nesse processo, um movimento deresistência , uma vezque o sujeito se aproxima do que “não pode” e “não deve ser dito” da FD que odomina, mas a força não é suficiente para alterar a posição sujeito dominante quemarca o “Sujeito”. Mesmo assim, ainda que não haja uma total desestabilizaçãodo Sujeito da FD em questão, há pelo menos um gesto que instaura/fortalece adissidência, abrindo caminho para uma possível subversão dos valores/dizeresestabelecidos. Em outras palavras, ainda que não haja a transformação, tem-sereforçada a heterogeneidade da FD pelo fortalecimento do contra-discurso, daí a pertinência do termoresistência para nomear a segunda modalidade de tomada de posição do sujeito proposta por Pêcheux.

    A desidentificação , por sua vez, representa o funcionamento “às avessas”da ideologia, o que também tomamos porresistência . Nessa modalidade, o sujeitose desidentifica com a forma-sujeito da FD a ponto de promover a transformaçãodo “Sujeito” da FD em questão. A essa terceira modalidade, Pêcheux denomina de posição não-subjetiva, contudo, ressalta que a ideologia não desaparece([1975]1988, p.271); ocorre um ‘desarranjo/rearranjo’ do complexo das FIs comas respectivas FDs ( Ibidem , p.218). Segundo o filósofo, “o sentido não “morre”, o

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    (Pêcheux, [1975]1988, p.162). Logo, no complexo das FDs há uma que édominante, havendo, portanto, uma correspondente forma-sujeito dominante.Sendo assim, as diferentes modalidades se referem à relação do sujeito com aforma-sujeito dominante e, portanto, adesidentificação conduz à operação deidentificação com uma outra forma-sujeito que não é dominante. Por analogia,Indursky conclui que

    Se há um complexo de formações discursivas ligadas entre si, há igualmente umcomplexo de formas-sujeito também ligadas entre si e a desidentificação conduzà identificação com alguma destas outras formas-sujeito, que podemos entendercomo secundárias. (2000, p.74)

    Segundo Courtine (1982), a FD “não é só um discurso para todos, não étambém a cada um seu discurso, mas deve ser pensada como dois (ou mais)discursos em um só” (apud Indursky, 2000, p.75). Assim, a FD passa serconcebida como heterogênea, sendo essa heterogeneidade uma propriedadetambém da forma-sujeito; isto é, “a forma-sujeito abriga a diferença eambigüidade em seu interior” (ibidem , p.75). O resultado dessa reflexão é que osujeito da AD é visto como dividido entre as diversas posições de sujeito que sua N º

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    Para que possamos entender essas questões na prática, tomemos a análise proposta por Indursky a propósito do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem-terra, MST, mais precisamente as dissidências ocorridas no interior dessemovimento. Dentre as várias posições-sujeito da FD dos Sem-Terra, a autoradestaca duas para sua análise, a do MST e a dissidente do MST. Para dar suporte àsua argumentação, Indursky apresenta uma sequência discursiva retirada de umaentrevista dada por Cícero Ferreira Neto, líder do movimento dissidente Topa-Tudo, à Folha de São Paulo em setembro de 1995:

    o confronto de Corumbiara virou uma nova referência do Movimento sem-terra.A luta pela terra não é só do MST... O MST precisa entender que há lutas que omovimento não está abarcando.... O MST não abarca todos os sem-terra...Enquanto tiver uma família sem terra em Rondônia, estaremos na luta. Com ousem MST, que deveria representar os sem-terra. (Indursky, 2000, p.78, grifos

    nossos)

    Podemos observar, sobretudo a partir das sequências discursivas de referência(SDRs), que há uma voz que “entra em colisão” com a do MST, em ummovimento de contra-identificação com os princípios da instituição. Nas palavras

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    ressaltar que foi aberto o espaço da luta que, em algum momento, pode fazer comque haja uma inversão e a posição-sujeito dissidente passe a ser a hegemônica.Embora apresentemos nossas análises somente no próximo capítulo, cabe colocarque o mesmo caminho será por nós tomado ao propormos uma FD da/sobre atradução no Brasil; exatamente por defendermos a heterogeneidade da FD e,conseqüentemente, da forma-sujeito.

    Indursky salienta, ainda, que o movimento dissidente apresentado nãoconfigura um movimento dedesidentificação , uma vez que tal somente ocorreriase fosse criado um novo domínio de saber, sob o qual o processo da interpelaçãose diferenciasse. Dito de outra maneira, permanece um denominador comum – aluta pela terra –, o “saber primordial dessa formação discursiva heterogênea”, oqual une todos os sem-terra, embora o modo de lutar seja diverso (2000, p.81).

    De acordo com Indursky, o próprio Pêcheux, no trabalho “Remontémonosde Foucault a Spinoza” ([1977]1980) havia revisto sua definição de ideologia propondo que ela não é igual a si mesma: “só existe sob a modalidade da divisão,e não se realiza a não ser na contradição que com ela organiza a unidade e a lutados contrários” (apud Indursky, 2000, p.75), ou seja, a ideologia é heterogênea,

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    considerada um movimento bem mais amplo, que envolve ideologia einconsciente no movimento do sujeito no complexo de formações discursivas, asquais representam formações ideológicas distintas.

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    literatura no Brasil, a qual abarca os modos de dizer/fazer literatura (nacional eestrangeira) no Brasil; a FD da/sobre política no Brasil, a qual comporta osdizeres/ideologias sobre a política governamental no Brasil; e a FD da/sobrelíngua no Brasil, que abrange os dizeres/ideologias a respeito da noção de línguanacional no país.

    O material empírico que compõe ocorpus para análise nesta pesquisa sãotextos escritos por Monteiro Lobato, tais como prefácios, posfácios, artigos,entrevistas, conferências e cartas, retirados dasObras completas de Monteiro Lobato ([1948]1950, 1955, 1959, 2007), – principalmente dos volumesCartasescolhidas (1o. e 2º. tomos); A barca de Gleyre (1º. e 2º. tomos), onde se encontraa correspondência de Lobato com Godofredo Rangel;45 Prefácios e entrevistas; Mundo da lua e miscelânea; Críticas e outras notas46 – além de partes de

    traduções realizadas por Lobato (Caninos brancos, de Jack London, em 1933;Porquem os sinos dobram e Adeus às armas, de Ernest Hemingway, em 1941 e 1942respectivamente). A partir da leitura dos volumes dasObras completas de Monteiro Lobato citados, efetuamos recortes discursivos, recolhendo sequênciasdiscursivas (SDs) nas quais Lobato expressou o seu pensamento sobre a atividade

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    à língua e à literatura no Brasil. A SDs foram recortadas após a identificação detodas as referências aos assuntos acima citados. A outra parte docorpusdiscursivo é composta por SDs recortadas das traduções mencionadas.

    Por meio da análise das SDs em questão, procuramos compreender ofuncionamento discursivo e, com ele, a constituição da posição-sujeito tradutor,observando a construção de discursos consoantes e dissidentes que constituem aforma lobatiana de pensar/fazer a tradução. Apresentaremos nos anexos apenastextos completos de onde foram recortadas as SDs referentes ao pensamentotradutório de Monteiro Lobato abordadas no corpo desta tese.

    Optamos por estudar a prática e o pensamento tradutórios de MonteiroLobato não apenas como forma de dar destaque a uma figura extremamenteimportante no cenário político, ideológico e cultural brasileiro, mas também para

    dar continuidade ao trabalho desenvolvido no mestrado, já citado, e em artigos publicados,47 nos quais abordamos a prática de Lobato sob um viés cultural, procurando mostrar o quanto a postura de Lobato como tradutor, apesar dascríticas que a ele são feitas (ver, por exemplo, as considerações de Agenor Soaresem À Margem das Traduções, 2007), foi coerente com as posturas político-

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    princípio, servia basicamente para facilitar o processo de exploração da novaterra: extração da madeira e, posteriormente, lavoura de exportação. O queimportava para os colonizadores era adquirir conhecimento sobre a nova terra paramelhor explorá-la.

    O modo como a tradução era praticada, contudo, veio a se transformarenormemente a partir de 1549, ano da chegada dos jesuítas, cujo objetivo erareligioso – converter os índios em cristãos – e político – tornar os índios súditos

    da monarquia portuguesa. Com o intuito de doutrinar os índios, os jesuítasaprenderam algumas das línguas usadas no Brasil, não mais precisando daintermediação dos línguas. O missionário jesuíta João de Azpilcueta Navarro foi orealizador da primeira tradução escrita na colônia, A suma da doutrina cristã nalíngua tupi, alterando a condição do português de língua-meta para língua-fonte.

    Alguns anos depois, José de Anchieta escreveu a Arte da gramática na línguamais usada na costa do Brasil, abordando o nheengatu, uma das mais faladaslínguas da colônia. O trabalho dos jesuítas colaborou para a disseminação donheengatu, que chegou a ser a língua mais usada no Brasil naquele período.

    Também a partir de meados do século XVI, aos dos dois grandes gruposl

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    cotidiano; o português chegou a desaparecer em algumas regiões (ver Wyler, 200, p.55 e 62).

    Até a chegada da família real em 1808, era expressamente proibida aimpressão de livros na colônia, o que levava à circulação clandestina demanuscritos. No caso dos jesuítas, estes copiavam a mão todo o material deensino, contudo, aos poucos foram conseguindo importar livros, alguns atéilegalmente, vindo a formar bibliotecas. Eram rigorosamente controlados todos os

    textos usados na evangelização e no ensino nas escolas, fossem manuscritos oulivros, originais ou traduções. Como nada podia ser impresso na colônia,quaisquer obras deveriam ser enviadas para publicação na metrópole, onde eramsubmetidas à rigorosa censura.

    Além de começar a ser praticada no universo da escrita e não mais por

    náufragos e degredados, mas por padres, com objetivos religiosos e políticos, a prática da tradução, com a chegada dos jesuítas, também passou a ser utilizadacomo método de aprendizagem das grandes obras, as quais tinham sidooriginalmente escritas em latim ou traduzidas para essa língua.

    Até o século XVI, as poucas traduções realizadas no Brasil mantiveram-sel

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    português e, por seu intermédio, o francês, o qual viria a se tornar predominanteno Brasil até a primeira metade do século XX. Se culturalmente a Françadominava a colônia, em termos econômicos era a Inglaterra que exercia seu podersobre Portugal, condição que se reproduziu no Brasil, sobretudo a partir da vindada família real em 1808.

    Importante destacar que, mesmo na metrópole, a língua portuguesa sórecebeu uma padronização em 1534. Além disso, não havia ali se estabelecido

    como língua nacional até 1779 – antes disso, era o latim a língua da religião e dasmensagens diplomáticas; as traduções do latim para o português eram feitas emsua maioria para fins religiosos; e os textos profanos eram lidos nas línguas deorigem. Consequentemente, foi só quase trezentos anos depois do achamento doBrasil, que o ensino do português tornou-se obrigatório nas escolas de Portugal.

    Esse movimento de fortalecimento da língua nacional na metrópole portuguesaacompanhava as transformações políticas operadas na França, as quais incluíamuma luta entre o poder real e o poder religioso. Como reflexo dessa luta, os jesuítas portugueses se prenderam ao respeito à palavra de Deus, usando aslínguas presentes na colônia (tupi, língua geral, nheengatu, português etc.) como

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    línguas e sujeitos, “provavelmente muito ficou [dos ensinamentos dos jesuítas], daambiguidade que sempre geraram no trato com o gentio, cujas almas desejavamardentemente salvar, mas cuja cultura nem por isso deixaram de destruir” (2009, p.68-69). Seguindo esse raciocínio, é provável que o modo de traduzir dos jesuítas – com a fidelidade à palavra divina, preservando-a, e o objetivo de secomunicarem com os nativos, transmitindo-a, tenha se mantido na colônia.

    Cabe ressaltar que as bibliotecas no Brasil colônia, inclusive as que foram

    formadas pelos jesuítas, já na época da partida dos mesmos, apresentavam umnúmero bastante superior de obras francesas ou de traduções indiretas, cuja baseera a língua francesa (Wyler, 2003, p.56). Nas palavras Joaquim Nabuco, em finsdo século XIX: “o Brasileiro [...] lê o que a França produz. Ele é, pela inteligênciae pelo espírito, cidadão francês [...] vê tudo como pode ver um parisiense

    desterrado de Paris” (apud Paes, 1990, p.10).Um ponto marcante para o desenvolvimento da atividade tradutória no

    Brasil foi a vinda da família real portuguesa em 1808. Como se sabe, o rei dePortugal, D. João VI, estava pressionado de um lado pelas ameaças napoleônicase, de outro, pelos interesses econômicos da Inglaterra, o maior inimigo de

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    também foram nomeados os primeiros censores na colônia. Cabe dizer quesomente em 1821 teria fim a censura prévia no país (Frota, 2006, p.102). Dequalquer forma, pela primeira vez teve-se a permissão para imprimir, divulgar efazer circular livros, fossem originalmente escritos em língua portuguesa ou paraela traduzidos. Porém, isso se deu de forma limitada: se por um lado deu-segrande impulso ao desenvolvimento urbano e comercial, o mesmo não aconteceucom o setor de livros. A função primordial da Imprensa Régia era publicar os atos

    do governo; além disso, havia a censura e o alto custo do papel – que perdurariaaté a década de 1930 – levando a indústria editorial de língua portuguesa a seestabelecer em Londres e Paris.

    No limitado espaço para a publicação de livros, foram traduzidosromances célebres ou sentimentais de origem francesa ou inglesa (os últimos por

    meio da tradução indireta do francês ou do espanhol) e compêndios didáticos e paradidáticos para uso nas recém criadas instituições de ciência e de ensinosuperior. Em 1811, na Bahia, foi inaugurada a primeira concorrente da ImprensaRégia e, na década seguinte, já se via um aumento de títulos, bem como davariedade das obras (Frota, 2006, p.105). Todavia, a França confirmava sua força

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    Reinado. A independência política, entretanto, não significou uma alteração naestrutura social e econômica do Brasil; esta continuava escravista e tinha como principal atividade econômica a agricultura, sendo o café o principal produto deexportação naquele momento.

    Em 1821, termina a censura imposta à importação de livros e à publicaçãode traduções e obras originais, o que gerou um aumento no número de tipografiasaté 1890. A França continuava a manter seu domínio cultural: era o país que mais

    exportava livros para o Brasil, bem como o que mais abria livrarias (entre elas aGarnier Fréres e a B.L. Garnier, ambas em 1844). Nesse período, teve início a profissionalização dos tradutores, mas os livros nacionais continuavam carosdevido ao alto custo do papel. Eram os livros importados, portanto, que maiscirculavam no Brasil, sendo as traduções feitas para o português de Portugal,

    ainda muitas vezes a partir de traduções francesas. Além disso, livros, jornais erevistas franceses passaram, com a invenção dos barcos a vapor, a chegar aoBrasil cerca de quinze a vinte dias após seu lançamento na Europa.

    Por todo o século XIX até a primeira metade do século XX, houve umgrande número de missões artísticas, científicas e literárias francesas que

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    língua francesa chegou a concorrer com a língua portuguesa e o tupi para aescolha da língua nacional do Brasil, o que demonstra a forte presença da língua e,com ela, da ideologia francesa no Brasil em 1823.

    O Brasil também importou da França seu modo de traduzir. Nos séculosXVI e XVII, predominava na França o anseio de dominação das outras culturas daEuropa, o que teve seus efeitos na prática tradutória realizada naquele país – acultura e a língua francesas deveriam ser reverenciadas e preservadas por

    possuírem qualidades próprias (Milton, 1993, p.56). Assim, a tradução deveria tercomo objetivo proporcionar ao leitor francês o “mesmo” efeito do original, porémde modo que prevalecessem os valores franceses. Assim, as estratégias utilizadaseram as omissões, acréscimos, modernizações, adequações, enfim, alterações notexto de acordo com o gosto francês.50 Era o tempo das chamadasbelles infidèles,

    as quais eram orientadas para a produção de textos que agradassem aos leitores docontexto receptor. Desse modo, tanto a tradução palavra-por-palavra (word-for-word ) quanto a tradução sentido-por-sentido(sense-for -sense) deveriam serevitadas em prol de uma tradução em que os costumes greco-latinos fossemadaptados à alta sociedade francesa, com a devida adequação dos comportamentos

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    jornais brasileiros já em 1839 e logo conquistou o público. Vários periódicos –como o Diário do Rio, o Jornal do Comércio e o Correio da Tarde, para citaralguns – publicavam folhetins franceses traduzidos para a língua portuguesa.Como afirma Pina Coco, no artigo “Traduttore, traditore: as traduções brasileirasdos romances-folhetins na imprensa carioca do século XIX” (2005), “Paris ainda éo centro cultural da Europa, lançador das modas, e o chique definitivo é parisiense. O jornal, veículo do momento, permite à distante província viver o

    burburinho francês, e em 1867 suspiram por Rocambole,51 unificadas moçoilas parisienses e cariocas...” (p.84).

    O gênero teve tanto sucesso que escritores nacionais, muitos de renome, sededicaram à tradução dessas obras, tendo alguns deles inclusive tentado implantaro gênero na literatura nacional, como José de Alencar e Machado de Assis. Ainda

    que predominasse um analfabetismo em massa, a publicação dos folhetins nos jornais representou, ainda que pequena, uma ampliação do número de leitores e ainclusão de novos segmentos, como as mulheres e as crianças.

    Como nos mostra Lenita Esteves, no artigo “A tradução do romance-folhetim no século XIX brasileiro” (2003), os romances-folhetins eram

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