medo e duvida

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Corpo & Politica http://corpoepolitica.blogspot.com Osmundo Pinho Austin, abril de 2014 1 Medo e Dúvida 1 15 de maio, 1967 Huey P. Newton 2 O negro dos estratos socioeconômicos inferiores é um homem de confusão. Ele enfrenta um meio ambiente violento e não tem certeza se não são os seus próprios pecados que atraem a hostilidade da sociedade. Por toda a sua vida lhe ensinaram (explícita ou implicitamente) que ele é uma aproximação inferior de humanidade. Como um homem, ele se encontra vazio daquelas coisas que trazem respeito e senso de merecimento. Ele olha, em volta buscando algo em que por a culpa por essa situação, mas porque ele não tem compreensão sofisticada das condições socioeconômicas, e por causa do negativismo que as instituições e seus pais lhe ensinaram, no final das contas ele culpa a si mesmo. Quando era uma criança seus pais lhe disseram que não ricos porque “não tivemos a oportunidade de frequentar a escola” ou porque “não soubemos aproveitar as oportunidades educacionais que nos ofereceram”. Eles dizem a seus filhos que as coisas seriam diferentes se eles tivessem boa educação e qualificações, mas muito 1 Traduzido a partir de “Fear and Doubt – May 15, 1967” In. ___ . To Die for the People. Edited by MORRISON, Toni. City Light Books. San Francisco. 2009. Pp. 77 79. 2 Newton nasceu em Monroe, Louisiana, em 1942. Foi criado em Oakland, Califórnia, onde fundou com Bob Seale em 1966 o Partido dos Panteras Negras, quando ainda eram militantes estudantis no Merrit College. Newton concluiu o Ensino Médio sem ler ou escrever, alfabetizandose sozinho posteriormente. Durante a adolescência foi preso diversos vezes por crimes menores. Na faculdade leu Karl Marx, Frantz Fanon, Malcon X e outros autores revolucionários. Em 1967 envolveuse em um incidente no qual morreu o policial John Frey, Newton foi preso e condenado em primeira instância, sendo posteriormente absolvido Em 1980 obteve PhD em “History of Consciousness” pela Universidade da Califórnia em Santa Cruz. Em 1989 foi morto a tiros por um membro da “Black Guerrilla Family”. É considerado o principal formulador teórico dos Panteras Negras e criador da doutrina do “Intercomunalismo Revolucionário”, fusão do anticolonialismo, do marxismo e da crítica, antecipada, à globalização. Huey P. Newton

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           Osmundo  Pinho  Austin,  abril  de  2014  

1  

 

Medo  e  Dúvida1  15  de  maio,  1967  

Huey  P.  Newton2  

 

O   negro   dos   estratos  

socioeconômicos  inferiores  

é  um  homem  de  confusão.    

Ele   enfrenta   um   meio-­‐

ambiente   violento   e   não  

tem   certeza   se   não   são   os  

seus  próprios  pecados  que  

atraem   a   hostilidade   da  

sociedade.   Por   toda   a   sua  

vida   lhe   ensinaram  

(explícita   ou   implicitamente)  

que   ele   é   uma   aproximação   inferior     de   humanidade.   Como   um   homem,   ele   se  

encontra   vazio   daquelas   coisas   que   trazem   respeito   e   senso   de  merecimento.   Ele  

olha,  em  volta  buscando  algo  em  que  por  a  culpa  por  essa  situação,  mas  porque  ele  

não   tem  compreensão  sofisticada    das  condições   socioeconômicas,  e  por  causa  do  

negativismo   que   as   instituições   e   seus   pais   lhe   ensinaram,   no   final   das   contas   ele  

culpa  a  si  mesmo.    

 Quando  era  uma  criança  seus  pais  lhe  disseram  que  não  ricos  porque  “não  tivemos  a  

oportunidade   de   frequentar   a   escola”   ou   porque   “não   soubemos   aproveitar   as  

oportunidades   educacionais   que   nos   ofereceram”.   Eles   dizem   a   seus   filhos   que   as  

coisas  seriam  diferentes  se  eles   tivessem  boa  educação  e  qualificações,  mas  muito                                                                                                                  1  Traduzido  a  partir  de  “Fear  and  Doubt  –  May  15,  1967”  In.  ___  .  To  Die  for  the  People.  Edited  by  MORRISON,  Toni.  City  Light  Books.  San  Francisco.  2009.  Pp.  77-­‐  79.  2  Newton  nasceu  em  Monroe,  Louisiana,    em  1942.  Foi  criado  em  Oakland,  Califórnia,  onde  fundou  com  Bob  Seale  em  1966  o  Partido  dos  Panteras  Negras,  quando  ainda  eram  militantes  estudantis  no  Merrit  College.  Newton  concluiu  o  Ensino  Médio  sem  ler  ou  escrever,  alfabetizando-­‐se  sozinho  posteriormente.  Durante  a  adolescência  foi  preso  diversos  vezes  por  crimes  menores.  Na  faculdade  leu  Karl  Marx,  Frantz  Fanon,  Malcon  X  e  outros  autores  revolucionários.  Em  1967  envolveu-­‐se  em  um  incidente  no  qual  morreu  o  policial  John  Frey,  Newton  foi  preso  e  condenado  em  primeira  instância,  sendo  posteriormente  absolvido  Em  1980  obteve  PhD  em  “History  of  Consciousness”  pela  Universidade  da  Califórnia  em  Santa  Cruz.  Em  1989  foi  morto  a  tiros  por  um   membro   da   “Black   Guerrilla   Family”.     É   considerado   o   principal   formulador   teórico   dos   Panteras   Negras   e   criador   da  doutrina   do   “Intercomunalismo   Revolucionário”,   fusão   do   anticolonialismo,   do   marxismo   e   da   crítica,   antecipada,   à  globalização.    

Huey  P.  Newton  

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mais  não  existe  que  esses  lembretes  ocasionais  (e  frequentemente  nem  mesmo  isso)  

para  estimular  o   interesse  na  educação.  O  povo  negro  é  um  grande  admirador  da  

educação,  mesmo  pessoas  negras  dos  extratos    socioeconômicos  inferiores,  mas  ao  

mesmo   tempo,   eles   temem   expor-­‐se   a   ela.   Eles   tem   medo   porque   se   sentem  

vulneráveis  em  ter  os  seus  medos  atestados;  talvez  eles  descubram  que  não  podem  

competir   com  estudantes  brancos.  A  pessoa  negra  diz  a   si  mesmo  que  poderia   ter  

feito   muito   mais   se   realmente   quisesse.   O   fato   é,   obviamente,   que   as   supostas  

oportunidades   educacionais   nunca   estiveram   disponíveis   para   a   pessoa   negra   de  

baixo  estrato  socioeconômico,  em  virtude  da  singular  posição  que  lhe  foi  designada  

na  vida.    

 Greve   dos   trabalhadores   nos   serviços   de   saneamento   em   Memphis,  Tennesse,  1968.  

Um  monstro  de  duas  cabeças  assombra  esse  homem.  Primeiro,   sua  atitude  é  a  de  

que  ele  não  tem  as  habilidades  inatas  para  lidar  com  os  problemas  socioeconômicos  

que   o   estão   confrontando.   Em   segundo   lugar,   ele   diz   a   si   mesmo   que   tem   a  

habilidade,   mas   que   simplesmente   não   se   sente   forte   o   bastante     para   buscar  

adquirir   as   habilidades   necessárias   para   manipular   o   seu   meio.   Em   um   esforço  

desesperado  para  ganhar  auto-­‐respeito,  racionaliza  que  é  letárgico;  dessa  forma  ele  

nega   uma   ausência   de   habilidade   inata.   Se   ele   tentar   descobrir   suas   habilidades  

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abertamente,  ele,  e  outros,  poderão  vê-­‐lo  como  ele  é  –  ou  como  ele  não  é  –  e  esse  é  

o  seu  real  medo.  Ele  então  se  retira  para  o  reino  da  invisibilidade,  mas  não  sem  luta.  

Ele  pode  tentar  se  tornar  invisível  alisando  o  seu  cabelo,  adquirindo  um  “boss  mop”,  

ou  dirigindo  um  carrão,  mesmo  que  ele  não  tenha  como  pagar  por  isso.  Ele  torna-­‐se  

pai   de   diversas   crianças   “ilegítimas”,   de   diversas   mulheres   diferentes,   para   fazer  

exibição  de  sua  masculinidade.  Mas,  ao  final,  ele  compreende  que  seus  esforços  não  

tem  nenhum  efeito.    

 

A   sociedade   responde   como   se   ele   fosse   uma   coisa,   uma   animal,   uma   nulidade  

(nonentity),   algo  que  deve   ser   ignorado  ou  pisado.  É  exigido  dele  que   respeite   leis  

que  não  o  respeitam.  É  exigido  dele  que  engula  um  código  de  ética  que  age  sobre  

ele,   mas   não   para   ele.   Ele   está   confuso,   e   em   constante   estado   de   raiva,   de  

vergonha,   de   dúvida.   Esse   estado   psicológico   permeia   todas   as   suas   relações  

interpessoais.   O   que   determina   sua   visão   sobre   o   sistema   social.   O   seu  

desenvolvimento   psicológico   é   prematuramente   reprimido.   Essa   dúvida   começa  

muito  cedo  e  continua  através  de  toda  a  sua  vida.  Os  pais  passam  isso  para  a  criança  

e   o   sistema   social   reforça   o  medo,   a   vergonha   e   a   dúvida.     Na   terceira   ou   quarta  

série  ele  pode   se  encontrar  dividindo  a   sala  de  aula   com  estudantes  brancos,  mas  

quando   a   turma   se   separa   para   exercícios   de   leitura,   ele   vê   a   si   mesmo   em   um  

grupo,  na  mesa   reservada  aos  estudantes  de  baixo   rendimento.   Esse  pode   ser  um  

esforço   completamente   inocente   do   sistema   escolar.   A   professora   pode   não  

perceber  que  os  estudantes  negros  temem  (de  fato  têm  certeza)  que  negro  significa  

“burro”   e   branco   “inteligente”.   As   crianças   não  percebem  que   a   vantagem  que   as    

crianças  brancas  tem    em  casa,  é  o  que  conta  para  a  situação.  É  geralmente  aceito  

que  a  criança  é  o  pai  do  homem;  isso  é    bem  verdade  para  pessoas  negras  de  baixo  

extrato  socioeconômico.    

 

Com  quem,  com  o  que,  pode  ele,  um  homem,  identificar-­‐se?    Enquanto  criança  ele  

não   tinha   nenhuma   figura   masculina   permanente   com   quem   identificar-­‐se;   como  

homem  ele  não  vê  nada  na  sociedade  como  que  ele  possa  identificar-­‐se,  como  uma  

extensão  de  si  mesmo.  Sua  vida  é  construída  sobre  desconfiança,  vergonha,  dúvida,  

culpa,  inferioridade,  confusão  de  papéis,  isolamento  e  desespero.  Ele  sente  que  ele  é  

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algo  menos  que  um  homem;  e  isso  é  evidente  em  sua  conversa:  “O  homem  branco  é  

“O  HOMEM”,  ele  tem  tudo,  e  ele  sabe  tudo,  e  o  preto  (nigger)  não  é  nada”.3  Em  uma  

sociedade   em   que   um   homem   é   avaliado   de   acordo   com   sua   ocupação   e   posses  

materiais,   ele   não   tem  propriedades.   Ele   é   desqualificado,   e  mais   frequentemente  

que  o   inverso,  está   subempregado  ou  desempregado.  Sua  mulher   (que  é  capaz  de  

garantir   um   trabalho   como   empregada   doméstica,   limpando   a   casa   para   pessoas  

brancas)  é   frequentemente  a  provedora  do   lar.  Ele  é,  dessa   forma,  visto  como  um  

completo   inútil   pela   sua   mulher   e   pelos   seus   filhos4.   Ele   é   um   fracassado   tanto  

dentro  como  fora  de  casa.  Ele  não  consegue  prover  ou  proteger  a  sua  família.  Ele  é  

invisível,   uma  nulidade.  A   sociedade  não  o   reconhece   como  um  homem.  Ele  é  um  

consumidor  e  não  um  produtor.5  Ele  depende  do  homem  branco  (“O  HOMEM”)  para  

alimentar   a   sua   família,   para   lhe   dar   um   emprego,   educar   seus   filhos,   para   servir  

como  um  modelo  que  ele  tenta  imitar.  Ele  é  dependente  e  odeia    “O  HOMEM”  e  a  si  

mesmo.  Quem  é  ele?  Ele  é  o  mesmo  velho  adolescente  ou  ele  é  o  escravo  que  ele  

costumava  ser?    

 

O  que  ele  fez,  para  ser  tão  negro  e  triste  (black  and  blue)?6  

 

 

 

 

Tradução:  Osmundo  Pinho    

Universidade  Federal  do  Recôncavo  da  Bahia  (Cachoeira)/University  of  Texas  (Austin).  

                                                                                                               3  Na  cultura  brasileira,  como  sabemos,    uma  pessoa  poderosa  –  como  um  político  ou  uma  autoridade  –  é  chamada  o  “homem”  ou  “home”.    4  Joao  Vargas  descreve  com  precisão  o  enraizamento  histórico  desse  círculo  vicioso  para  a  região  de  Los  Angeles  em  “  Catching  Hell  in  the  City  of  Angels”  (2006).  5  Aqui  o  marxismo  de  Newton  se  estende  como  uma  categoria  da  subjetividade.    6  O  autor  se  refere  a  canção  gravada  por    Louis  Armstrong  “(What  Did  I  Do  to  Be  So)Black  and  Blue?”  em  1955,  e  originalmente  composta  por  Thomas  "Fats"  Waller  em  1929.  A  canção  diz:  “I’m  white,   inside  but  that  dont  help  my  case/'Cause   I  cant  hide  what  is  in  my  face/How  will  it  end,  aint  got  a  friend/My  only  sin  is  in  my  skin/What  did  I  do  to  be  so  black  and  blue?”  (Eu  sou  Branca  por  dentro  mas  isso  não  ajuda  em  meu  caso/Porque  não  posso  esconder  o  que  tenho  na  face/Como  isso  vai  acabar,  eu  não  tenho  um  amigo/Meu  único  pecado  está  em  minha  pele/O  que  foi  que  eu  fiz  para  ser  tão  negra  e  triste?).