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O artigo tem por objetivo analisar os relatórios elaborados pelos médicos que participaram da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), ou Comissão Rondon, que percorreu estes estados brasileiros entre 1907 e 1915. A comissão tinha como meta a expansão do telégrafo até as fronteiras do Brasil com a Bolívia e o Peru. A atividade construtora foi acompanhada, ainda, por estudos científicos para a ‘ocupação produtiva’ da região e por levantamentos médicos das localidades percorridas. Esses últimos produziram uma interpretação dos então chamados ‘sertões do noroeste’, na qual se destacava a onipresença das doenças, como a malária. A intenção é compreender o impacto provocado por esta doença nos trabalhos da CLTEMTA. Nossa hipótese é a de que um dos seus principais efeitos foi a elaboração de estudos médicos cada vez mais detalhados sobre as possíveis causas das doenças naquelas regiões.

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  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 5, n. 2, p. 363-377, maio-ago. 2010

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    Mdicos, doenas e ocupao do territrio na Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915)

    Physicians, diseases, and territory occupation at the Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915)

    Arthur Torres CaserI

    Dominichi Miranda de SII

    Resumo: O artigo tem por objetivo analisar os relatrios elaborados pelos mdicos que participaram da Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas do Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), ou Comisso Rondon, que percorreu estes estados brasileiros entre 1907 e 1915. A comisso tinha como meta a expanso do telgrafo at as fronteiras do Brasil com a Bolvia e o Peru. A atividade construtora foi acompanhada, ainda, por estudos cientficos para a ocupao produtiva da regio e por levantamentos mdicos das localidades percorridas. Esses ltimos produziram uma interpretao dos ento chamados sertes do noroeste, na qual se destacava a onipresena das doenas, como a malria. A inteno compreender o impacto provocado por esta doena nos trabalhos da CLTEMTA. Nossa hiptese a de que um dos seus principais efeitos foi a elaborao de estudos mdicos cada vez mais detalhados sobre as possveis causas das doenas naquelas regies.

    Palavras-chave: Comisso Rondon. Telgrafo. Serto. Doenas. Territrio. Relatrios mdicos.

    Abstract: The article analyzes the reports generated by physicians participating in the Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), or Rondon Commission, that labored in these states between 1907 and 1915. The commission had as its objective the construction of telegraph lines to the borders of Brazil with Bolivia and Peru. The construction activity was also accompanied by scientific studies for the productive occupation of the region and by the writing of medical assessments of the region. These assessments of the so called northwest hinterlands (sertes) highlighted the regions unhealthy climate and the debilitating impact of malaria. The purpose is to analyze the impact of this disease in the works of the CLTEMTA. Our hypothesis is that one of its main effects was the elaboration of medical studies more and more detailed about the possible causes of diseases in that region.

    Keywords: Rondon Commission. Telegraph. Serto. Diseases. Territory. Medical reports.

    I Fundao Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil ([email protected]).II Fundao Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil ([email protected]).

  • Mdicos, doenas e ocupao do territrio na Comisso de Linhas Telegrficas...

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    InTRoduoMuitos autores j apontaram o desejo de modernizao que acompanhou a proclamao da Repblica brasileira (Carvalho, 1987; Needell, 1993; Lima, 1999; Neves, 2003). Seus alvos eram tanto as mais importantes cidades do pas quanto os sertes, ou o interior do territrio, para onde foram enviadas misses destinadas construo de linhas frreas e telegrficas (Lima, 1998, 1999). O que se pretendia na ocasio que essas linhas possibilitassem a integrao e a ocupao do territrio por meio da interiorizao da presena do Estado, num movimento de expanso para dentro (Maciel, 1998). Enquanto as ferrovias poderiam permitir a circulao de pessoas e mercadorias, presumia-se que as linhas telegrficas garantiriam a comunicao rpida entre as mais longnquas regies do pas na ocasio, suas reas centrais e fronteiras oeste e norte e a capital federal.

    No que se refere particularmente ao telgrafo, a primeira grande comisso criada pela Repblica foi a Comisso Construtora de Linhas Telegrficas do Rio de Janeiro ao Mato Grosso, que, sob a chefia do Major Gomes Carneiro, esteve em funcionamento entre os anos de 1890 e 1898, alcanando a regio do rio Araguaia. No ano de 1900, foi criada outra importante comisso. Colocada sob a chefia do ento jovem oficial Cndido Rondon, a Comisso Construtora de Linhas Telegrficas de Mato Grosso a Gois concluiu, em 1906, a ligao telegrfica entre Cuiab e Corumb, na fronteira brasileira com o Paraguai e a Bolvia (Maciel, 2001, 1998).

    O trabalho das duas Comisses ligou malha telegrfica nacional dois estados brasileiros: Gois e Mato Grosso. No entanto, no ano de 1906 havia uma grande rea situada entre o noroeste do estado do Mato Grosso e o sudoeste do estado do Amazonas1, prxima s fronteiras brasileiras com a Bolvia e o Peru, que ainda no podia comunicar-se com o restante do pas via telgrafo. Com o intuito de finalmente integrar todo o pas atravs das linhas telegrficas, foi criada durante o governo do presidente Affonso Penna, mais precisamente no ano de 1907, a Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), que, nos anos seguintes, seria mais conhecida como Comisso Rondon2, em referncia ao nome de seu comandante (Maciel, 1998; Bigio, 2000; Diacon, 2006; S et al., 2008). Tratava-se de alcanar a regio amaznica com a construo de linhas telegrficas em plena floresta, alm de empreender a inspeo das fronteiras brasileiras com o Peru e a Bolvia, e, instruo oficial, proceder ao inventrio cientfico do territrio percorrido3 (Bigio, 2000; Maciel, 1998; Diacon, 2006; S et al., 2008). Acreditava-se que a instalao de linhas telegrficas nessas regies seria o primeiro passo dado na direo da sua ocupao produtiva, colaborando simultaneamente para incrementar a economia do pas e garantir definitivamente a posse de grandes pores do territrio ptrio (Maciel, 1998; Diacon, 2006). Os trabalhos da CLTEMTA ligaram Cuiab a Santo Antnio do Madeira e duraram de 1907 a 1915, quando a regio amaznica foi alcanada.

    1 Referimo-nos, aqui, aos limites dos estados poca.2 Sob o nome Comisso Rondon so, em geral, designados os trabalhos realizados pelo mato-grossense Cndido Mariano da

    Silva Rondon (1865-1958) no interior do Brasil ao longo de sua carreira militar; um perodo de 50 anos, que vai de 1889 a 1939. Os trabalhos realizados por ele incluem, entre outras atividades: construo da linha telegrfica de Cuiab ao Araguaia, como auxiliar do Major Gomes Carneiro (1892-1898); construo de linhas telegrficas de Cuiab a Corumb (1900-1906), que chefiou; trabalhos da CLTEMTA (1907-1915), que tambm chefiou includas a as atividades da Expedio Cientfica Roosevelt-Rondon (1913-1914); elaborao da Carta do estado de Mato Grosso (1918); e inspeo das fronteiras brasileiras (1927-1930). Neste artigo, tratamos apenas dos trabalhos da Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas, ou CLTEMTA (04/03/1907-01/01/1915). Para mais informaes sobre as Comisses Telegrficas anteriores a 1907, ver Maciel (1998), Diacon (2006) e S et al. (2008).

    3 Instrues pelas quais se dever guiar o chefe da Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas, organizadas de acordo com a letra b, do n. XXI do art. 35, da lei n. 1.617, de 30 de dezembro de 1906. Decises do Governo n. 19 Em 4 de maro de 1907. Aprova as instrues para o servio da Comisso Construtora da Linha Telegrfica de Mato Grosso ao Amazonas.

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    A CLTEMTA j foi objeto de vrios trabalhos em histria do Brasil (Bigio, 2000; Maciel, 1998; Diacon, 2006; S et al., 2008), os quais se ocuparam em examinar as iniciativas de integrao nacional que capitaneou luz da documentao produzida pelos seus membros, como relatrios (tcnicos), fotografias, filmes, mapas e plantas (com o reconhecimento e levantamento das regies), cadernetas e dirios de viagem. Diacon (2006), em seu estudo sobre o tema, foi o primeiro autor a conferir especial ateno aos relatrios produzidos pelos mdicos que acompanharam os servios de extenso da linha telegrfica, de modo a compreender as dificuldades ento enfrentadas e o cotidiano dos trabalhos da Comisso.

    Este artigo tambm dedicado ao exame dos relatrios mdicos da CLTEMTA, mas nossa nfase recai sobre a anlise desta documentao para compreender o impacto das doenas, sobretudo da malria, na reformulao tanto dos seus objetivos mais gerais, como a ocupao da regio, quanto da prpria atuao dos mdicos em campo. O crescente e frequente adoecimento dos membros das expedies fez com que os mdicos da Comisso, alm de encarregarem-se do tratamento e da cura dos doentes, realizassem investigaes detalhadas sobre as principais molstias ento identificadas. Resultaram deste trabalho relatrios gradativamente mais extensos e atentos s diversas possveis causas das doenas dos sertes do noroeste4, s probabilidades do povoamento futuro daquela poro do territrio e s formas de controlar a malria para a imediata concluso da linha telegrfica. sobre este tema que trataremos neste texto.

    dIvERsos CAMInhos PARA A oCuPAo dos sERTEs do noRoEsTEDe acordo com as Instrues pelas quais dever se guiar o chefe da Comisso Construtora de Linhas Telegrficas de Mato Grosso ao Amazonas, publicadas em 4 de maro de 1907 pelo ministro da Indstria, Viao e Obras Pblicas, Miguel Calmon Du Pin e Almeida, a CLTEMTA deveria, entre outras atribuies: percorrer boa parte da regio amaznica; determinar coordenadas geogrficas e azimutes astronmicos dos locais percorridos; realizar exploraes dos principais rios da regio; avaliar o terreno explorado, sua topografia, estatstica e sociedades indgenas; estabelecer colnias em torno das estaes telegrficas; estudar a regio tendo em vista sua defesa, suas vias de comunicao, sua potencialidade agrcola e seus recursos naturais5. A CLTEMTA tinha, desde o momento em que foi criada, muitas tarefas a cumprir.

    Estas tarefas diferenciavam-se, em muitos aspectos, umas das outras, o que pode ser explicado pela sua mltipla vinculao institucional (S et al., 2008). Estava subordinada aos Ministrios da Guerra, da Agricultura e da Viao e Obras Pblicas, e cada um deles tinha demandas especficas para a Comisso, o que a tornou heterognea, inclusive, em sua formao, tendo em vista que participaram das expedies soldados, engenheiros militares, telegrafistas, mdicos, farmacuticos, fotgrafos e naturalistas.

    Sob a tica do Ministrio da Guerra, a comisso era uma tima oportunidade de assegurar definitivamente a posse das regies a noroeste do pas, numa zona prxima quela que, no muito tempo antes da criao da CLTEMTA, havia sido disputada entre Brasil e Bolvia,

    4 Em diversos momentos, Rondon e os outros membros da Comisso do este nome ao noroeste do estado de Mato Grosso e ao sudoeste do Amazonas, regies que foram por eles percorridas. Ver, como exemplo, o primeiro volume publicado pela CLTEMTA, no qual a expresso empregada repetidas vezes: CLTEMTA, s.d. (Publicao n. 1). Acervo da Reserva Tcnica do Museu Histrico do Exrcito/Forte de Copacabana (ARTMHEx/FC).

    5 Instrues pelas quais se dever guiar o chefe da Comisso Construtora de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas, organizadas de acordo com a letra b, n. XXI, art. 35, da lei n. 1.617, de 30 de dezembro de 1906. Acervo do Museu do ndio (AMI). A Comisso notabilizou-se por seus contatos com sociedades indgenas. Os levantamentos cientficos realizados por seus membros foram muito importantes para a valorizao do trabalho dos naturalistas brasileiros e para o enriquecimento das colees de instituies cientficas nacionais, sobretudo o Museu Nacional. Para maiores informaes a respeito, ver Maciel (1998), Bigio (2000), Diacon (2006) e S et al. (2008).

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    culminando com a assinatura, em 1903, do Tratado de Petrpolis, que estabeleceu a paz entre os pases por meio da anexao do Acre ao territrio brasileiro e da construo custeada pelo Brasil da ferrovia Madeira-Mamor, por onde a Bolvia escoaria sua produo para o oceano Atlntico (Hardman, 2005).

    O Ministrio da Viao e Obras Pblicas a partir do qual a Comisso foi criada estava interessado especialmente na expanso da infraestrutura de comunicaes do pas, que, com a linha telegrfica de Cuiab a Santo Antnio do Madeira, alcanaria o seu extremo noroeste, colocando-o em comunicao direta com a capital da Repblica e outras importantes cidades.

    Do Ministrio da Agricultura, Indstria e Comrcio6 partiram as demandas para que a comisso realizasse contatos com as sociedades indgenas, efetuasse levantamentos cientficos e iniciasse o processo de ocupao produtiva da regio por meio do estabelecimento de pequenos ncleos agropecurios (S et al., 2008).

    O pessoal nomeado para integrar a comisso era composto majoritariamente por militares do Exrcito e por membros da Repartio Geral dos Telgrafos, somados a alguns outros civis encarregados do cumprimento de funes especficas, como a de fotgrafo e a de farmacutico. Alm de todo esse pessoal, ao contingente da comisso deveriam ser somados 300 praas encarregados dos servios mais pesados de abertura de picadas, levantamento de postes, estiramento de fios e construo de estaes telegrficas.

    Inicialmente, o contingente foi dividido em trs grandes sees. A primeira (1 seo de construo),

    chefiada pelo major Felix Fleury de Souza Amorim, ficaria encarregada de construir um ramal da linha que ligasse So Lus de Cceres cidade do Mato Grosso; a segunda (2 seo de construo), sob o comando do capito Marciano de Oliveira e vila, foi incumbida de iniciar a construo da linha-tronco a partir de Cuiab at Diamantino, na direo de Santo Antnio do Madeira; a terceira e ltima acompanharia Rondon numa srie de trs expedies sucessivas realizadas nos anos de 1907, 1908 e 1909 para realizar estudos e fazer o reconhecimento do territrio que seria cruzado pela linha7.

    Esta organizao durou at abril de 1910, quando, findos os estudos e reconhecimentos liderados por Rondon e concluda a construo do ramal de So Luis de Cceres cidade do Mato Grosso, a comisso foi novamente dividida. Desta vez, entre duas sees de construo: a seo do sul, comandada pelo prprio Rondon, ficou encarregada de continuar a construo iniciada em Cuiab em direo a Santo Antnio do Madeira; a seo do norte, sob a liderana do capito Manoel Tephilo da Costa Pinheiro, deveria realizar o percurso oposto, partindo de Santo Antnio em direo ao sul, onde encontraria a construo matriz. Nesse momento, o contingente disposio da comisso foi elevado a 600 praas, dos quais 350 ficariam na seo do sul, ao passo que seo do norte caberiam os demais 250 praas. Acreditava-se que essa diviso, mantida at o trmino da construo, aceleraria a marcha dos trabalhos, que passariam a ser feitos em duas frentes, realizando um movimento semelhante ao de uma pina8.

    Simultaneamente aos trabalhos de construo e s expedies de estudos e reconhecimento do territrio

    6 A pasta da agricultura foi extinta em 1891 e sua estrutura passou a funcionar na Secretaria dos Negcios da Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas no interior do Ministrio da Indstria, Viao e Obras Pblicas. Recriada em 1906, com o nome de Ministrio da Agricultura, Indstria e Comrcio, foi efetivamente implementada em 1909. Na sua nova configurao, a aliana entre cincia e agricultura, que j marcara as suas atividades durante o Imprio, foi ainda mais acentuada. Sobre o tema, ver Bhering (2008) e Ribeiro (2005).

    7 Ver Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas. Conferncias realizadas em 1910 no Rio de Janeiro e em So Paulo pelo Tte. Coronel Cndido Mariano da Silva Rondon, Chefe da Comisso [contm 112 pginas, trs conferncias e 14 fotogravuras fora do texto]. Rio de Janeiro, 1919 (2 edio em 1946). Publicao n. 68, p. 10-11. AMI; e Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas. Relatrio apresentado Diretoria Geral dos Telgrafos e Diviso Geral de Engenharia do Departamento da Guerra pelo Tte. Coronel Cndido Mariano da Silva Rondon, Chefe da Comisso. 2 volume. Construo (1907 a 1910) [Contm 134 pginas, 30 fotogravuras fora do texto e 14 suplementos de coordenadas geogrficas. In folio]. Rio de Janeiro, Pap. Macedo, s.d. Publicao n. 39, p. 16. AMI.

    8 Ver CLTEMTA, s.d. Publicao n. 39, p. 17. AMI.

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    lideradas pessoalmente por Rondon, a comisso realizou muitas outras expedies que, comandadas por engenheiros militares, encarregavam-se da explorao de rios. Tais expedies tinham, entre seus membros, naturalistas enviados pelo Museu Nacional, interessados em coleta e anlise de material, e mdicos encarregados de cuidar do estado de sade dos expedicionrios e de avaliar a nosologia das zonas prximas aos rios percorridos.

    Especificamente em relao s atividades cientficas da comisso, podemos dizer que sua principal estratgia consistia em enviar naturalistas s localidades atravessadas pela linha telegrfica em construo para coleta de material, identificao de recursos naturais e localizao de terras mais adequadas agricultura (S et al., 2008). Nas diversas expedies das quais participaram, os naturalistas da comisso reuniram grande nmero de amostras de espcimes geolgicos, botnicos, zoolgicos e antropolgicos. O Museu Nacional, igualmente subordinado ao Ministrio da Agricultura e sediado no Rio de Janeiro, foi a instituio que cedeu a maior parte dos naturalistas que serviram na CLTEMTA e tambm o principal beneficirio das suas atividades cientficas, tendo recebido, entre 1907 e 1915, perodo de durao dos trabalhos da comisso, 8.837 espcimes botnicos, 5.637 espcimes zoolgicos, 42 exemplares geolgicos, mineralgicos e paleontolgicos e 3.380 peas antropolgicas (S et al., 2008).

    Quanto aos mdicos da CLTEMTA, em sua maioria militares subordinados ao Ministrio da Guerra, seu papel era, em primeiro lugar, cuidar dos doentes e acidentados, o que lhes garantiu muito trabalho durante as expedies. No entanto, alm dos prprios membros da comisso, estes mdicos tambm atenderam diversas vezes aos habitantes das regies percorridas, o que, alis, trouxe a eles a oportunidade de travar um contato mais intenso com as principais molstias que grassavam nos sertes do noroeste. Estes mdicos tambm foram incumbidos de produzir relatrios que descreviam aspectos como clima, quadro nosolgico e hbitos dos moradores de diversas

    localidades. Eles elaboraram, por meio de seus escritos, um quadro mdico-sanitrio das regies percorridas. Assim como os botnicos, zologos e gegrafos que participaram da comisso, os mdicos viram e analisaram a regio a partir de olhos treinados por sua especialidade profissional. Os relatrios mdicos da Comisso Rondon constituem, assim, outro importante elemento da caracterizao dessas regies.

    As informaes presentes nestes relatrios tinham, ainda, uma importncia prtica. De acordo com o projeto da comisso, a incorporao dos sertes do noroeste nao brasileira passava pela transformao das estaes telegrficas em centros irradiadores de civilizao. Elas seriam os pontos a partir dos quais o povoamento se expandiria por toda a regio, e, portanto, assumiram um papel de destaque nos planos da CLTEMTA. As estaes contavam com bastante espao reservado para a expanso tanto da criao de gado quanto de lavouras. Algumas vezes, at mesmo pequenas escolas eram construdas ao lado das estaes telegrficas. Rondon e os membros da comisso acreditavam que, assim equipadas, elas atrairiam indgenas e migrantes de diversas partes do pas para aquelas regies (Viveiros, 1958).

    Para a escolha dos stios nos quais seriam instaladas as estaes telegrficas, era importante conhecer as localidades no apenas de um ponto de vista topogrfico, encargo dos engenheiros militares que acompanhavam os trabalhos de extenso da linha, mas de uma maneira mais ampla. Foi ento que se tornou crucial o conhecimento dominado pelos mdicos da Comisso. Embora no existam registros do uso direto das informaes produzidas pelos mdicos sobre o quadro nosolgico de diversas localidades da regio na escolha dos pontos onde deveriam ser construdas as estaes, h motivos para se acreditar que estas informaes foram computadas nos momentos em que os oficiais comandantes tomavam estas decises. Havia a demanda por este tipo de informao por parte dos engenheiros que dirigiam a comisso e sua oferta por parte dos mdicos. Cremos que, neste caso especfico, a oferta se ajustou demanda e as informaes que aparecem

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    nos relatrios mdicos assumiram um importante papel logstico na CLTEMTA.

    os RELATRIos MdICos dA CLTEMTAMdicos estiveram presentes em diversas expedies e viagens de carter cientfico promovidas pelo Estado brasileiro, bem como na construo de ferrovias pelo pas. Estas iniciativas buscavam, do mesmo modo que a CLTEMTA, a integrao dos pontos mais distantes do territrio nacional aos principais centros do pas. Muitas delas tambm foram realizadas nos primeiros anos do sculo XX. Como exemplos nesse sentido, podem ser citadas as viagens de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas regio amaznica nos primeiros anos da dcada de 1910 (Schweickardt e Lima, 2007). O primeiro deles foi contratado pela Madeira-Mamor Railway Co. para supervisionar as condies sanitrias da construo da estrada de ferro; o segundo fez parte de uma comisso contratada pela Superintendncia de Defesa da Borracha para fazer um levantamento das condies sanitrias da regio amaznica, apresentando solues para melhor-las.

    Desses levantamentos, foram produzidos importantes relatrios. Segundo Schweickardt e Lima (2007, p. 21), estudiosos desses documentos:

    Para os cientistas, no apenas as variaes ecolgicas, como tambm o registro histrico era crucial ao entendimento do quadro de doenas e sua relao com as condies de vida da populao. As referncias a relatos escritos por naturalistas acerca de condies de vida e a identificao de algumas molstias no devem ser vistas como meras citaes ilustrativas; tratava-se de realmente atribuir importncia explicativa a registros anteriores sobre as regies percorridas. Merecem ateno no apenas aspectos estticos do ambiente, como tambm o impacto de suas transformaes.

    Segundo esses autores, os mdicos e os cientistas que percorreram a regio amaznica a inventaram em seus relatrios. E essa inveno foi realizada, em grande parte, a partir da leitura e da apropriao dos relatos dos viajantes que j haviam passado por aquela regio como,

    por exemplo, o do suo radicado nos EUA, Louis Agassiz, que l esteve entre 1865 e 1866, ou o de Euclides da Cunha, que percorreu a regio entre os anos de 1904 e 1905. Schweickardt e Lima (2007) esboam tambm uma classificao dos relatrios mdicos de viagens a partir das demandas s quais os mdicos respondiam: servios profilticos necessrios construo de infraestrutura de transportes ou consultorias prestadas a agncias de desenvolvimento regional. Os autores apontam que:

    A anlise dos relatrios mdicos em misso de apoio construo das ferrovias indica que esses constituem fonte imprescindvel para o estudo dos bastidores dos projetos: as condies de trabalho, a disciplina imposta, a relao com as medidas de profilaxia, as possibilidades de arregimentao dos trabalhadores, as contraposies entre educao sanitria e medidas compulsrias. No entanto, revelam pouco sobre as localidades percorridas e os hbitos das populaes locais. Talvez o que tenha merecido maior destaque sejam os cenrios de cidades mortas ou ameaadas pelo espectro de doenas, caso do registro de Oswaldo Cruz sobre a cidade de Santo Antnio do Madeira. A natureza do trabalho imprime, contudo, um vis que dirige o olhar para a micro-sociedade artificialmente organizada em torno da ferrovia. Por isso, neste caso, talvez seja um pouco difcil falar de um retrato do Brasil, que vai sendo esboado, principalmente nas viagens cientficas voltadas para projetos de desenvolvimento regional (Schweickardt e Lima, 2007, p. 38).

    Se substituirmos a construo de ferrovias pela do telgrafo, podemos enquadrar a CLTEMTA no primeiro tipo de viagem cientfica, de acordo com a classificao exposta acima. No entanto, a comisso tambm guarda semelhanas com as viagens contratadas pelas agncias de desenvolvimento regional, especialmente se levarmos em conta seu vnculo institucional com o Ministrio da Agricultura e seu grande objetivo de fomentar o povoamento dos sertes do noroeste. Portanto, podemos dizer que a CLTEMTA combina elementos destes dois tipos de viagem cientfica. E esta dupla perspectiva marcou seus registros de cunho mdico. Eles combinam o exame da microssociedade envolvida na construo das linhas telegrficas com anlises

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    sobre as condies nosolgicas, climticas e sobre os costumes dos habitantes das regies percorridas.

    Cruzando enormes distncias ao longo dos estados do Mato Grosso e Amazonas durante oito anos, os expedicionrios puderam colocar-se em contato dirio com diversos aspectos daqueles sertes. A anlise dos registros mdicos da comisso nos permite perceber os elementos que saltavam aos olhos destes homens, bem como as imagens que eles construram sobre as regies exploradas. Diante disso, cabe, aqui, formularmos algumas questes: o que os relatrios mdicos da Comisso Rondon diziam sobre os sertes do noroeste? Como esta regio foi representada nesses relatrios? Quais foram as principais imagens utilizadas para caracteriz-la? Em relao s classificaes e aos padres de anlise acima citados, aplicados a outros relatrios mdicos produzidos no mesmo perodo, podem ser verificadas especificidades nos relatrios mdicos da Comisso Rondon?

    Trabalharam na Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas, como mdicos, os primeiros tenentes do Exrcito, Armando Calazans (maro de 1907 a julho de 1908)9; Manoel Antonio de Andrade (maro a dezembro de 1907)10; Joaquim Rabello (julho a dezembro de 1908)11; e Murillo Campos (maio a novembro de 1910 e setembro a dezembro de 1911). Joo Florentino Meira de Faria (por volta de 1914)12 e Jos Antnio Cajazeira (janeiro de 1914 at a inaugurao da linha)13 eram capites do Exrcito; Paulo Fernandes dos Santos (junho de 1909 a dezembro de 1910)14 era oficial da Armada, e Joaquim Tanajura (abril de 1909 at a inaugurao da linha)15, oficial da fora policial do Distrito Federal.

    Dos mdicos que fizeram parte da CLTEMTA, seis tiveram seus relatrios publicados pela comisso. Foram

    eles: Armando Calazans (sem data); Manoel Antonio de Andrade (sem data); Joaquim Rabello (sem data); Joaquim Tanajura (sem data); Jos Antonio Cajazeira (1914); e Joo Florentino Meira de Faria (1916). Murillo Campos publicou um texto sobre o noroeste de Mato Grosso, resultante de sua participao na comisso, na revista Archivos Brasileiros de Medicina (Campos, 1913). Estes relatrios no possuem uma padronizao; foram elaborados de acordo com o critrio de seus prprios autores e, portanto, no formam um todo coeso, mas um conjunto heterogneo de textos. Ainda assim, cremos poder agrup-los em dois tipos de relatrios que se sucederam no tempo.

    Em primeiro lugar, h o grupo formado por relatrios mdicos de carter sumrio, que se preocuparam apenas em narrar brevemente algumas ocorrncias mdicas e em apresentar estatsticas sobre a incidncia de doenas e acidentes entre os membros da comisso. Ainda que a partir destas estatsticas possamos formar uma ideia acerca das principais doenas enfrentadas ao longo do percurso dos expedicionrios, a principal orientao destes relatrios parece ser a de cumprir burocraticamente a ordem compartilhada por todos os oficiais da CLTEMTA de escrever relatrios sobre suas atividades no tempo em que estivessem prestando servios comisso16. Nos relatrios deste grupo, no h investigaes mais aprofundadas sobre o estado sanitrio da regio. Os mdicos apenas documentam sua passagem produzindo narrativas curtas e estatsticas. Os relatrios que apresentam estas caractersticas so aqueles elaborados por Armando Calazans, Manoel Antonio de Andrade e Joaquim Rabello, os trs primeiros mdicos a servir comisso, entre os anos de 1907 e 1908.

    9 Botelho de Magalhes, Amlcar. Pela Comisso Rondon. 1919. ARTMHEx/FC.10 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 37. AMI.11 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 20. ARTMHEx/FC.12 CLTEMTA, 1916. Publicao n. 32. ARTMHEx/FC.13 Botelho de Magalhes, Amlcar. Pela Comisso Rondon. 1919. ARTMHEx/FC.14 Botelho de Magalhes, Amlcar. Pela Comisso Rondon. 1919. ARTMHEx/FC.15 Botelho de Magalhes, Amlcar. Pela Comisso Rondon. 1919. ARTMHEx/FC.16 Instrues pelas quais se dever guiar o chefe da Comisso Construtora de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas,

    organizadas de acordo com a letra b, n. XXI, art. 35, da lei n. 1.617, de 30 de dezembro de 1906. AMI.

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    O segundo grupo constitudo pelos relatrios elaborados por Joaquim Tanajura, Jos Antonio Cajazeira, Joo Florentino Meira de Faria e Murillo Campos formado por textos que, para alm das narrativas de ocorrncias mdicas e das estatsticas de doenas e acidentes entre os expedicionrios, trazem anlises sobre a configurao nosolgica das regies percorridas. Estes relatrios incluam o exame do clima e da geografia das regies; a observao dos hbitos e das condies de trabalho de indgenas, seringueiros e trabalhadores da comisso e a enumerao de medidas que, se postas em prtica, reduziriam a incidncia de doenas tanto entre os membros da CLTEMTA quanto entre os demais habitantes dos sertes do noroeste. Cabe, aqui, lembrarmos que Joaquim Tanajura, Jos Antonio Cajazeira, Joo Florentino Meira de Faria e Murillo Campos estiveram trabalhando na CLTEMTA entre os anos de 1909 e 1915.

    Observamos, assim, que, enquanto os relatrios do primeiro grupo se configuram como textos meramente informativos, aqueles do segundo grupo so estudos que mapeiam as causas das principais doenas dos sertes do noroeste, apontando maneiras de control-las. O que causou esta mudana nos relatrios? Quando, precisamente, ela se deu?

    A mudana ocorreu entre os anos de 1909 e 1910. importante salientarmos que datam deste perodo a publicao das instrues para o servio sanitrio e a duplicao do efetivo da CLTEMTA, com a criao da seo do norte, encarregada de instalar a linha telegrfica no sentido Norte-Sul, a partir de Santo Antnio do Madeira em direo a Cuiab. Esses eventos marcam uma reorganizao da comisso.

    A seo do norte foi criada em abril de 1910 e deu incio aos seus trabalhos em agosto do mesmo ano. Neste mesmo perodo, em maio, foram publicadas as instrues para o servio sanitrio, que traziam uma srie de recomendaes que visavam o melhoramento

    da infraestrutura mdico-hospitalar da comisso17. No entanto, como revela a prpria criao do servio sanitrio, a despeito da preocupao expressa da CLTEMTA com as doenas, a grande maioria dos membros da seo do norte, em apenas um ms de trabalho de locao da linha, j em setembro de 1910 estava fora de servio, acometida pela malria. Os trabalhos da comisso precisaram ser paralisados por seis meses e em sua fase mais decisiva, uma vez que o encontro entre as sees norte e sul seria o marco da concluso dos trabalhos de construo e do incio da comunicao telegrfica por toda a regio atravessada18.

    Desde ento, a CLTEMTA passou a encarar a malria como um obstculo de primeira ordem realizao plena de seus objetivos; obstculo que precisava, em primeiro lugar, ser conhecido em suas particularidades locais, para, em seguida, ser controlado e contornado (Caser, 2009). As doenas passavam a fazer parte das preocupaes fundamentais da comisso e o detalhamento dos relatrios mdicos produzidos desde ento expressam o ajuste do foco desses profissionais.

    Para tornar mais clara a distino entre os grupos de relatrios mdicos dos quais tratamos aqui, apresentaremos a seguir a organizao formal de cada um dos relatrios, para, posteriormente, tratarmos dos principais aspectos desses textos: as doenas que aparecem em destaque, as causas apontadas para cada uma delas e as medidas sugeridas para o seu controle.

    O relatrio de Armando Calazans19 traz, em sua parte inicial, uma breve apreciao do quadro sanitrio do estado de Mato Grosso. Em seguida, o mdico narra os principais episdios ocorridos de maro de 1907 a abril de 1908 na seo de construo do ramal da linha telegrfica de So Luiz de Cceres cidade de Mato Grosso. Acompanham o relatrio quadros com informaes estatsticas sobre as principais doenas ou acidentes que acometeram os membros da seo.

    17 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 37, p. 109. AMI.18 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 39, p. 17-18. AMI.19 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 20. ARTMHEx/FC.

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    O relatrio de Joaquim Rabello20, anexo ao do Dr. Calazans, ainda mais sucinto do que este ltimo, tratando, em sua maior parte, de uma doena chamada corrupo pelos habitantes dos sertes do noroeste21. Assim como o relatrio de Armando Calazans, este acompanhado por quadros com informaes estatsticas sobre as principais doenas ou acidentes que acometeram os membros da comisso. Em ambos, a malria j aparece como a maior responsvel pelo adoecimento dos homens sob as ordens de Rondon.

    O relatrio mdico de Manoel Antonio de Andrade22, tambm do primeiro grupo de relatrios do qual vimos falando, , de todos, o mais sucinto. So pouqussimas pginas que tratam, fundamentalmente, como explica o prprio autor, das alteraes havidas no servio de sade nos meses de Junho a Dezembro [de 1908] no contingente que acompanha a mesma seo [a segunda seo da construo, encarregada da linha tronco de Cuiab a Santo Antnio]. Andrade tambm aponta a malria como a doena de maior incidncia em sua seo.

    digna de nota a estrutura formal simplificada destes textos, que, em geral, apresentam de uma maneira bastante sumria as principais alteraes no estado de sade do contingente de trabalhadores que estava sob a imediata responsabilidade do mdico relator. Estes relatrios so uma simples prestao de contas do trabalho do mdico e, portanto, apenas informam quantos pacientes foram tratados e as enfermidades que os afligiram.

    Em contraste com tais textos to concisos, temos os relatrios do segundo grupo, que tanto apresentam um maior nmero de informaes sobre os percalos

    cotidianos enfrentados nas expedies quanto, e sobretudo, trazem anlises acerca das possveis causas das principais doenas presentes nos sertes do noroeste, o que inclua o exame do clima, da geografia, dos hbitos e da alimentao das populaes locais, bem como a verificao da presena de mosquitos do gnero Anopheles, transmissores da malria, nas localidades percorridas. Estes relatrios tambm enumeravam medidas que visavam ao controle das doenas entre os membros da comisso e os demais habitantes da regio, entre as quais podemos citar: a melhoria das condies de trabalho e da qualidade dos alimentos consumidos por seringueiros da regio amaznica e membros da CLTEMTA onde no era raro o consumo de gneros avariados , o controle do consumo de lcool, a realizao de obras de engenharia sanitria em algumas localidades, o uso de mosquiteiros, a quininizao preventiva e curativa e o combate s larvas anofelinas nas reas de acmulo de gua parada23.

    Formalmente, estes relatrios tambm adotam solues mais complexas do que os primeiros, embora, tanto em uns quanto em outros e lembremos que todos so relatrios mdicos endereados a superiores , a clareza das narrativas, descries e anlises seja o aspecto mais marcante. Apresentamos, a seguir, a estrutura formal dos relatrios mdicos do segundo grupo, para que fique mais clara a comparao aqui proposta.

    O relatrio do Dr. Joaquim Tanajura24 sobre a segunda expedio de reconhecimento realizada em 1909 pela CLTEMTA e liderada pessoalmente por Rondon pode ser dividido em trs partes. Na primeira, Tanajura apresenta suas impresses sobre os aspectos sanitrios de cada uma

    20 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 20. ARTMHEx/FC.21 Queixas sobre a incidncia da corrupo ou corruo chegaram aos ouvidos de diversos mdicos da CLTEMTA, que tendiam a

    entend-la como uma manifestao particularmente agressiva da malria e no como uma nova entidade nosolgica. Ver, a respeito, CLTEMTA, s.d. Publicao n. 20. ARTMHEx/FC e CLTEMTA, 1914. Publicao n. 55. AMI.

    22 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 37. AMI.23 Ver, guisa de exemplo: Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas. Servio Sanitrio pelo Dr.

    Joaquim Augusto Tanajura, Mdico da Expedio [Contm 50 pginas e dez relaes da turma expedicionria. In folio]. Rio de Janeiro: Pap. Macedo, s.d. Publicao n. 19. ARTMHEx/FC. Para maiores informaes sobre os debates mdico-cientficos da ocasio sobre a malria, que tambm ganhava, poca, os nomes de paludismo e impaludismo, ver Benchimol e Silva (2008).

    24 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 19. ARTMHEx/FC; e CLTEMTA, 1914. Publicao n. 55.

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    das localidades percorridas, atentando especialmente para os dados da geografia e do clima. A narrativa cronolgica: inicia com o ingresso de Tanajura na CLTEMTA e termina com seu regresso ao Rio de Janeiro. A segunda parte do texto dedicada anlise de alguns aspectos da regio e da organizao da comisso que poderiam estar relacionados emergncia de doenas, como a deficincia na alimentao dos soldados, a formao de poas de gua parada propcias reproduo de anofelinos e a passagem dos expedicionrios por povoados nos quais a populao se encontrava contaminada pela malria em sua quase totalidade. A terceira parte dedicada especialmente malria. Nela, so examinadas as manifestaes da doena na regio, suas possveis causas e os estratagemas mais adequados ao seu controle o que inclui aqueles dos quais o prprio Tanajura lanou mo na expedio de reconhecimento de 1909.

    O relatrio de Joo Florentino Meira de Faria25 trata, em primeiro lugar, das imagens negativas que circulavam na ento capital federal e em Cuiab sobre os sertes do noroeste; imagens que associavam a regio doena, ao abandono, misria e morte. Em seguida, o autor aborda os principais incidentes da expedio aos rios Arinos e Tapajs, da qual participou, destacando, sobretudo, a constante ameaa da malria aos expedicionrios. No final do texto, Meira de Faria revela como controlou a malria na expedio e discute outras estratgias possveis para atingir o mesmo objetivo.

    Outro relatrio do segundo grupo aquele elaborado por Antonio Cajazeira26 divide-se entre os seguintes itens: Palavras Explicativas, no qual o autor fala de seu recrutamento para a participao na expedio; Exposio Geral, em que Cajazeira faz pequenas observaes sobre cada um dos lugares pelos quais passou acompanhando a expedio; Algumas Consideraes sobre a Epidemiologia de Mato Grosso, no qual o autor discorre sobre as principais enfermidades presentes no estado, dedicando um subitem a cada uma delas (corruo, impaludismo, polinevrite

    palustre, lepra, doena de chagas, ancilostomose, disenterias, leishmaniose, ulceraes e beribri); Outras Consideraes, subdividida em: mordeduras de cobras, insolao e intermao, vesturio, alimentos, profilaxia usada do impaludismo e clima. Trata-se do relatrio mdico mais denso da comisso.

    Por fim, faz parte deste grupo o artigo escrito por Murillo Campos (1913) e publicado nos Archivos Brasileiros de Medicina. O artigo divide-se em quatro partes intituladas, respectivamente, A regio e seus caracteres principais; Os habitantes e suas condies; Patologia regional; e Higiene Decorrente. A primeira das quatro partes trata de aspectos da hidrografia, da geologia, da flora com uma cuidadosa exposio sobre o uso medicinal que os sertanejos e indgenas faziam de diversas plantas nativas , da fauna e de alguns aspectos climatolgicos da regio, fornecendo algumas informaes sobre a variao das temperaturas e o regime das chuvas. A segunda parte versa sobre os habitantes do noroeste de Mato Grosso: os ndios Parecis, os ndios Nambiquaras, os seringueiros e os trabalhadores da comisso. Campos mostra-se atento observao dos hbitos alimentares e de trabalho de cada um destes grupos. Na terceira parte, a diviso entre Parecis, Nambiquaras, seringueiros e trabalhadores da comisso, estabelecida no item anterior, mantida, e so enumeradas as doenas que mais afetam cada um destes grupos. Finalmente, a ltima parte, Higiene Decorrente, traz uma srie de medidas que, de acordo com o autor, seriam capazes de tornar o noroeste de Mato Grosso habitvel, tendo em vista que, para ele, era impossvel povoar aquela regio sem sane-la.

    A mudana na forma por meio da qual os relatrios mdicos foram escritos se explica pela maior ateno que as doenas passaram a despertar entre os lderes da CLTEMTA desde 1910. A partir deste momento, os mdicos deixaram de ser encarregados apenas da cura

    25 CLTEMTA, 1916. Publicao n. 32. ARTMHEx/FC.26 CLTEMTA, 1914. Publicao n. 55. AMI.

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    dos doentes e acidentados da comisso e passaram a acumular as funes de investigadores e analistas das doenas da regio, conselheiros dos chefes das expedies, encarregados da profilaxia da malria e da cura de doentes e feridos.

    A principal questo colocada para os mdicos da comisso era, desde ento, a seguinte: como tornar vivel a ocupao dos sertes do noroeste? Ou, em outras palavras, como controlar a malria naquelas paragens de modo a tornar possvel seu povoamento? A resposta est nos relatrios que prepararam aps 1910, que, alm de estudos mdicos detalhados, fornecem elementos que nos permitem perceber que o objetivo da imediata ocupao do territrio foi preterido em favor do controle da malria e da concluso dos trabalhos de extenso da linha telegrfica. O projeto de ocupao do noroeste do Brasil ia sendo deixado a cargo de novas iniciativas e geraes.

    QuInInA E MosQuITEIRo PARA A ConCLuso dA LInhA TELEGRfICAEm artigo que analisa a atuao de cientistas do Instituto Oswaldo Cruz em experincias de combate malria em obras de construo de linhas ferrovirias, Benchimol e Silva (2008) chamam ateno para as diversas possibilidades de adaptao das medidas a adotar em funo das circunstncias peculiares de cada projeto. Os autores afirmam que:

    Apesar dos avanos cons iderve i s nos conhecimentos da malria na passagem do sculo, os modos de enfrent-la no eram fceis nem bvios. Partindo de um conhecimento, digamos, livresco, a respeito do que se devia fazer e com base, claro, na experincia decisiva com a febre amarela, os jovens pesquisadores do Instituto de Manguinhos adaptariam as frmulas aceitas s circunstncias particulares onde iriam atuar. Ajustes e inovaes seriam determinados, por um lado, pelos ecossistemas que encontraram e pelos interesses econmicos e sociais que os coagiram; por outro, adviriam das respostas que encontraram para os enigmas que desafiavam os malariologistas daquele tempo (Benchimol e Silva, 2008, p. 728).

    Argumento semelhante a este mobilizado por Schweickardt (2009) no momento em que trata do controle da malria no estado do Amazonas. De acordo com o autor:

    No caso do Brasil (...) houve tanto medidas de combate ao mosquito e larvas como o combate ao parasito atravs do uso de medicamentos. Alm de medidas de saneamento das cidades e sugestes de defesa individual contra o mosquito. Elas poderiam ser modificadas de acordo com o lugar e as atividades desenvolvidas, pois uma obra como a construo da estrada de ferro Madeira-Mamor exigia um tipo especfico de profilaxia, diferente de aes dirigidas a um contexto de cidade como Manaus ou nos seringais dispersos no vale amaznico. Ambos esto inseridos no mesmo espao amaznico, no entanto, exigiram estratgias diferentes pela natureza da ao humana e sua relao com o ambiente. Com isto queremos dizer que as medidas nem sempre foram to simples de serem decididas por um determinado modelo, mas que seguiam diferentes estratgias dependendo de outras variveis como recursos, investimentos, acesso tecnologia, conhecimentos sobre a fauna e a flora, os conflitos polticos etc. (Schweickardt, 2009, p. 68-69).

    Se examinarmos atentamente os relatrios dos mdicos da CLTEMTA, podemos perceber que estes tambm tiveram de escolher as estratgias mais adequadas para o controle da malria nas situaes concretas com as quais se depararam. Eles, em geral, optaram por duas ordens distintas de medidas. Por um lado, havia aquelas postas em prtica para viabilizar e acelerar o ritmo da construo da linha telegrfica. Seu objetivo era to simplesmente diminuir o nmero de casos de malria entre os membros da comisso. Por outro lado, havia as medidas sugeridas para que a ocupao definitiva dos sertes do noroeste se tornasse possvel. Diante da alta incidncia de doenas, da falta de assistncia mdica adequada e do medo que esta situao inspirava nos trabalhadores e nos possveis migrantes interessados em viver e trabalhar na regio, os mdicos assumiram a tarefa de indicar o que deveria ser feito em longo prazo para que as doenas fossem controladas e o medo dissipado, promovendo,

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    desse modo, o povoamento produtivo daqueles sertes; donde o adensamento dos seus textos.

    Entre as medidas sanitrias intimamente relacionadas viabilizao das atividades realizadas pela comisso, que buscava resultados prticos no controle da malria num curto intervalo de tempo, as estratgias aventadas e postas em prtica pelos mdicos foram: proteo mecnica, luta antilarviana e quininizao preventiva. O texto das Instrues para o servio sanitrio das sees do norte e do sul menciona estas trs formas de controle da malria. O terceiro, o quarto e o sexto itens do tpico Da profilaxia contra o paludismo tratam, especificamente, de cada uma delas. Eles recomendam o uso sistemtico do mosquiteiro por todo o pessoal, nos lugares em que for julgada necessria tal medida; a quininizao diria de todo o pessoal, na dose de 50 ou 30 centigramas do sal de quinina adotado pelo facultativo e a juzo dele, distribuda s refeies, fiscalizado rigorosamente este processo, pelo facultativo ou auxiliar de sua imediata confiana; e a drenagem do terreno, toda vez que se fizer mister, aterro das poas dgua, destruio das larvas encontradas e quaisquer outras medidas julgadas precisas no stio atingido, em bem da sade dos trabalhadores27.

    No entanto, embora a luta antilarviana, a proteo mecnica e a quininizao preventiva estivessem presentes nas instrues para o servio sanitrio, os relatrios mostram que antes e depois de sua publicao estas medidas no foram adotadas em conjunto e com a mesma sistematicidade. De forma geral, os mdicos priorizaram a quininizao preventiva de todo o pessoal da comisso, nas diversas expedies que a compuseram, tambm procurando disseminar o uso do mosquiteiro entre seus membros. A luta antilarviana acabou sendo deixada de lado por no se adequar grande mobilidade do pessoal envolvido tanto na construo quanto nas expedies de reconhecimento geogrfico e levantamento cientfico.

    Nas palavras de Murillo Campos (1913, p. 222), as medidas de profilaxia antipaldica, exequveis no serto, consistem no uso do mosquiteiro e no emprego do quinino, a ttulo preventivo. Joo Florentino Meira de Faria, mdico da expedio aos rios Arinos e Tapajs comandada pelo tenente Joaquim Bueno Horta Barbosa, utilizou apenas a quininizao preventiva no combate malria, como deixa claro na seguinte passagem:

    Eu sabia todas as dificuldades que se tem a vencer entre ns para manter sem desfalncias um servio de tratamento profiltico coletivo. Mas eu confiava na forma tolervel (comprimidos) sob a qual era administrado o quinino e por ltimo na minha pacincia e no prmio reservado aos que dessem mostra de boa vontade a aguardente quinada e arsenicada.

    E minhas esperanas no foram desmentidas.

    Posta como condicional para aceitao no momento do engajamento pelo Tenente J. H. Barbosa e reconhecida durante a viagem como uma medida simples e do interesse de todos, a rao profiltica de quinino no encontrou refratrios28.

    Aqui, Meira de Faria destaca que o uso da quinina na preveno da malria no suscitou nenhuma forma de insatisfao entre os trabalhadores. No entanto, isto no significa que a imposio desta medicao preventiva tenha sido sempre bem aceita tanto pelos membros da comisso como pelos habitantes dos sertes do noroeste. outro mdico, Antonio Cajazeira, quem faz o seguinte aviso:

    (...) a profilaxia daquelas regies no pode ser feita, com proveito, por pessoal incompetente; porm por mdicos familiarizados com o microscpio. No admira, portanto, que a quinina mal empregada, quer profilaticamente quer como meio curativo, entrasse em descrdito nas zonas malsinadas pela malria. Todos os distrbios produzidos pelo impaludismo foram considerados, pelos habitantes daquelas zonas, como males promanados da quinina; esta foi mais ou menos abandonada, e para substitu-la foram empregados remdios at absurdos29.

    27 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 37, p. 109. AMI.28 CLTEMTA, 1916. Publicao n. 32, p. 10. ARTMHEx/FC.29 CLTEMTA, 1914. Publicao n. 55, p. 120. AMI.

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    Ou seja, embora a quininizao preventiva e curativa aparecesse como a melhor soluo para o controle da malria entre os trabalhadores da comisso sujeitos a uma severa disciplina militar e, ainda assim, como vimos nas palavras do capito Meira de Faria, aliciados pelo prmio da aguardente , tal medida era de mais difcil aplicao no universo mais amplo dos moradores do noroeste de Mato Grosso e sudoeste do Amazonas.

    Quando tratavam das medidas para a viabilizao do povoamento dos sertes do noroeste, os mdicos sugeriam medidas mais amplas do que as destinadas proteo dos trabalhadores da comisso. Para alm da quininizao, da proteo mecnica e da luta antilarviana, eram indicadas a mudana dos hbitos higinicos, a melhoria das condies alimentares, a realizao de obras de engenharia sanitria e a transformao das condies de trabalho nos seringais. Embora aventassem tais medidas, os mdicos no se credenciavam para aplic-las naquele momento. A ocupao dos sertes do noroeste, que, a princpio, deveria ser concomitante aos trabalhos de construo da linha e explorao do territrio, aparece aqui como um objetivo distante, que demandaria grandes esforos, os quais no deveriam se restringir aos mdicos, aos militares e aos telegrafistas da comisso.

    Tratando da importncia de se encaminhar uma soluo definitiva para a presena da malria nos sertes do noroeste, Joaquim Tanajura faz a seguinte reflexo:

    Questo complexa que importa ao poltico como ao socilogo, abrangendo em conjunto mltiplas variedades de aspecto, tem sido enfrentada apenas pelo cientista, mais interessado no estudo especial da etis-patogenia da molstia, sem meios e sem elementos de levar adiante a sua tarefa, no promanar os benefcios inestimveis da profilaxia antimalrica.

    Enquanto na Itlia, na Frana, na Alemanha, nas ndias Inglesas, em Algria, o movimento patritico em torno do assunto tem j produzido brilhantes resultados, formando-se uma legislao especial antipaldica, expedindo-se regulamentos sbios, organizando-se

    comits filantrpicos, entre ns, irmos abandonados nos longnquos seringais da Amaznia, pagam ainda pesado tributo letalidade palustre, falta de garantias acauteladoras da sua sade.

    Campanha de difcil execuo, exigindo o devotamento assduo dos seus sectrios e dispndio avultado da fortuna pblica ou particular, nem por isso deve ser desprezada numa zona em que poder ser iniciada por ncleos de populao, que teriam certo seus resultados evidentes pela obedincia s medidas empregadas e pelo saneamento desde logo iniciado.

    Para seu xito, dois fatores lhe so indispensveis: a engenharia sanitria e a medicina.

    Como auxiliar, o devotamento da sociedade inteira, nas provas altrusticas e de civismo, concorrendo para uma obra meritria, no ser de menor valia, pela comunho de sentimentos em torno de uma causa que se constitui regional mas que interessa a todo pas30.

    A concluso qual os mdicos militares que trabalharam na CLTEMTA chegaram foi a de que no havia como povoar os sertes do noroeste sem, antes, estabelecer-se uma soluo definitiva para o controle da malria na regio. No entanto, eles entenderam que essa tarefa no estava ao seu alcance. Enquanto elaboravam estudos mais detalhados das regies percorridas e indicavam medidas de carter amplo que poderiam no futuro viabilizar a to almejada ocupao produtiva do territrio, eles punham em prtica entre os membros da comisso a quininizao e o uso do mosquiteiro, buscando proteg-los do contgio para que terminassem, o mais rpido possvel, a construo da linha telegrfica.

    ConsIdERAEs fInAIsQuando chegou aos sertes do noroeste, um dos primeiros locais pelos quais a comisso passou foi a cidade de Mato Grosso, outrora chamada de Vila Bela da Santssima Trindade, antiga sede da provncia. Rondon, o chefe da expedio, descreveu suas impresses sobre o lugar da seguinte forma:

    30 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 19, p. 44. ARTMHEx/FC.

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    A fundao deste lugar data de 1730, por bandeirantes que de Cuiab partiram em busca do pobre ndio e do precioso metal, estabelecendo-se no lugar que tomou o nome de pouso alegre, crismado mais tarde por D. Rolim de Moura com o Garrido nome de Vila Bela, hoje to solitria e abandonada que mais lhe quadra o nome de Vila Triste31.

    E, em conferncia realizada no Palcio Monroe, no Rio de Janeiro, no ano de 1910, acrescentou, tratando da mesma cidade, que:

    Ao contemplarem-se estas runas evocativas de um passado de pompas e de domnio absoluto, sente-se a alma embeber-se de indefinvel melancolia, como quando se reveem stios que j vimos transbordantes de vida, e agora encontramos abandonados, sem rudo, sem um movimento, sem uma cor que lembre o presente, apagado pelas sombras da saudade. Oprime-nos aquele aniquilamento do cenrio que enquadrou talvez o melhor trecho de nossa vida, como se s agora nos apercebssemos de que uma boa parte da nossa existncia j passou e que tambm ns corremos para a voragem dos tempos. Desejaramos reanimar aqueles lugares e, sem o sabermos, com eles as cenas vividas...32

    A decadente cidade de Vila Bela pode ser vista aqui como uma espcie de metfora para os sertes do noroeste. Diante de um quadro desolador como este, a Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas, de acordo com Rondon, deveria ser a responsvel por transformar esta paisagem melanclica, repleta de runas, abandonada, habitada por uma pequena populao miservel e doente, num centro produtivo, nas suas palavras o celeiro da terra, repleto de habitantes laboriosos e adeptos do uso de novas tecnologias especialmente as linhas telegrficas.

    No incio dos trabalhos, entre membros da comisso e das pastas ministeriais que a patrocinavam, acreditava-se que, apesar das dificuldades inerentes ao projeto, a instalao de linhas e estaes telegrficas, a abertura de estradas,

    o conhecimento da fauna, da flora, da geologia da regio garantiriam o sucesso do povoamento dos sertes do noroeste. Havia, assim, nos primeiros anos da comisso, a crena de que o povoamento da regio seria realizado sem maiores dificuldades, bastando para tanto a abertura de estradas e a construo de linhas e estaes telegrficas. Foram sendo constantes, no entanto, as interrupes dos trabalhos de construo da linha causadas pela irrupo de doenas, com destaque para a paralisao de seis meses dos trabalhos da seo do norte em 1910, cujos membros, em sua quase totalidade, foram acometidos pela malria. Verificou-se que, para que o povoamento se tornasse uma realidade, seria fundamental no apenas prestar atendimento a doentes, mas conhecer a regio do ponto de vista mdico.

    Esta mudana de perspectiva se materializou na mudana no modo pelo qual os relatrios mdicos foram escritos. Os documentos, inicialmente informativos e que privilegiavam as estatsticas como ferramentas para abordar a incidncia das doenas e dos acidentes entre os membros da CLTEMTA, foram substitudos por relatrios de cunho mais analtico, que, como j frisamos, apresentavam investigaes acerca das causas das enfermidades de indgenas, seringueiros, membros da comisso e demais habitantes dos sertes do noroeste, sugerindo medidas adequadas ao seu controle.

    Ocorre que os levantamentos mdicos realizados pela CLTEMTA acabaram por apontar aquelas regies como centros irradiadores de doenas; espaos caticos do ponto de vista sanitrio. Chegou-se, assim, concluso de que era imprescindvel implementar estratgias pontuais de controle de molstias para que a comisso pudesse levar a termo ao menos uma das tarefas das quais estava incumbida a concluso da linha telegrfica no noroeste do Brasil. Diante do panorama formado, sobretudo, pela malria que anunciava custosa e demorada transformao a implantao do celeiro da terra, para lembrar as palavras de Rondon, ficou muito distante dos planos imediatos da CLTEMTA.

    31 CLTEMTA, s.d. Publicao n. 1, p. 337. ARTMHEx/FC.32 CLTEMTA, 1919. Publicao n. 68. AMI. Nesta passagem, Rondon cita o livro A cidade de Matto Grosso, de Visconde

    de Taunay.

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 5, n. 2, p. 363-377, maio-ago. 2010

    377

    AGRAdECIMEnTosEste artigo uma verso modificada do terceiro captulo da dissertao de mestrado de Arthur Torres Caser, intitulada O medo do serto: doenas e ocupao do territrio na Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915), defendida, em julho de 2009, no Programa de Ps-Graduao em Histria das Cincias e da Sade da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. Agradecemos aos pareceristas annimos pelas sugestes de reformulao do texto.

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    Recebido: 03/02/2010 Aprovado: 12/07/2010