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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, sér. Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 1, p. 137-147, jan-abr. 2005 137 1 MPEG-Museu Paraense Emílio Goeldi. Mestre em Antropologia Social. ([email protected]) 2 MPEG-Museu Paraense Emílio Goeldi. Bióloga/Antropóloga, mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável. 3 MPEG-Museu Paraense Emílio Goeldi. Doutora em Ciências Biológicas. ([email protected]) 4 UEPA-Universidade do Estado do Pará. Biomédico, mestrando em Psicobiologia. Medicinas T Medicinas T Medicinas T Medicinas T Medicinas Tradicionais no V radicionais no V radicionais no V radicionais no V radicionais no Vale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observações ale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observações ale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observações ale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observações ale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observações sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá ( sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá ( sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá ( sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá ( sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá ( Ampelozizyphus Ampelozizyphus Ampelozizyphus Ampelozizyphus Ampelozizyphus amazonicus amazonicus amazonicus amazonicus amazonicus): Atividade F ): Atividade F ): Atividade F ): Atividade F ): Atividade Farmacológica e/ou Eficácia Simbólica armacológica e/ou Eficácia Simbólica armacológica e/ou Eficácia Simbólica armacológica e/ou Eficácia Simbólica armacológica e/ou Eficácia Simbólica Traditional Medicines in the Rio Negro V raditional Medicines in the Rio Negro V raditional Medicines in the Rio Negro V raditional Medicines in the Rio Negro V raditional Medicines in the Rio Negro Valley (Amazonas state, Brazil). Observations on alley (Amazonas state, Brazil). Observations on alley (Amazonas state, Brazil). Observations on alley (Amazonas state, Brazil). Observations on alley (Amazonas state, Brazil). Observations on the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá ( the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá ( the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá ( the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá ( the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá ( Ampelozizyphus Ampelozizyphus Ampelozizyphus Ampelozizyphus Ampelozizyphus amazonicus amazonicus amazonicus amazonicus amazonicus): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy ): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy ): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy ): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy ): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy Antônio Maria de Souza Santos 1 Claudia C. Kahwage 2 Márlia Regina Coelho Ferreira 3 Nilton Alvarez Sampaio 4 Resumo esumo esumo esumo esumo: No Vale do Rio Negro (Amazonas, Brasil), o sistema local de saúde se caracteriza por um “pluralismo médico”, co- existindo procedimentos terapêuticos heterogêneos, entre eles a fitoterapia. Destacamos o uso da planta saracura- mirá (Ampelozizyphus amazonicus), como estimulante energético. É de uso tradicional entre índios e “caboclos” da região do Rio Negro. Verificamos os fatores intervenientes no processo de cura com a utilização dessa planta (mito, rito, forma, tempo), caracterizando, assim, não só o princípio ativo, mas também e, especialmente, a aficácia simbólica. Palavras alavras alavras alavras alavras- Chave Chave Chave Chave Chave: Medicinas tradicionais, Vale do Rio Negro, Saracura-Mirá, Eficácia simbólica, Etnofarmacologia. Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: In the rio Negro river valley in the state of Amazonas, Brazil, local health systems are characterized by a “medical pluralism”, exhibiting a coexistence and heterogeneity of therapies. Among these, phytotheraphy practices are encountered. This article explores the use of saracura mirá (Ampelozizyphus amazonicus), as a stimulant and energizer. This plant is traditionally used among indigenous peoples and caboclos in the Rio Negro region. As such, intervening factors in the healing processses encountered in the use of saracura-mirá will be examined (in myth, ritual, form, and periodicity). Thus, its symbolic effects will also be evaluated in addition to its active ingredients. Key W ey W ey W ey W ey Words ords ords ords ords: Traditional medicine, Rio Negro valley, Saracura-Mirá, Simbolic efficiency, Ethnofarmacology.

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1 MPEG-Museu Paraense Emílio Goeldi. Mestre em Antropologia Social. ([email protected])2 MPEG-Museu Paraense Emílio Goeldi. Bióloga/Antropóloga, mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável.3 MPEG-Museu Paraense Emílio Goeldi. Doutora em Ciências Biológicas. ([email protected])4 UEPA-Universidade do Estado do Pará. Biomédico, mestrando em Psicobiologia.

Medicinas TMedicinas TMedicinas TMedicinas TMedicinas Tradicionais no Vradicionais no Vradicionais no Vradicionais no Vradicionais no Vale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observaçõesale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observaçõesale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observaçõesale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observaçõesale do Rio Negro (Amazonas, Brasil). Observaçõessobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá (sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá (sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá (sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá (sobre Etnofarmacologia e o Uso da Planta Saracura-Mirá (AmpelozizyphusAmpelozizyphusAmpelozizyphusAmpelozizyphusAmpelozizyphus

amazonicusamazonicusamazonicusamazonicusamazonicus): Atividade F): Atividade F): Atividade F): Atividade F): Atividade Farmacológica e/ou Eficácia Simbólicaarmacológica e/ou Eficácia Simbólicaarmacológica e/ou Eficácia Simbólicaarmacológica e/ou Eficácia Simbólicaarmacológica e/ou Eficácia SimbólicaTTTTTraditional Medicines in the Rio Negro Vraditional Medicines in the Rio Negro Vraditional Medicines in the Rio Negro Vraditional Medicines in the Rio Negro Vraditional Medicines in the Rio Negro Valley (Amazonas state, Brazil). Observations onalley (Amazonas state, Brazil). Observations onalley (Amazonas state, Brazil). Observations onalley (Amazonas state, Brazil). Observations onalley (Amazonas state, Brazil). Observations on

the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá (the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá (the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá (the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá (the Ethnopharmacology and the Use of the Plant Saracura-Mirá (AmpelozizyphusAmpelozizyphusAmpelozizyphusAmpelozizyphusAmpelozizyphusamazonicusamazonicusamazonicusamazonicusamazonicus): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy): Pharmacological Activity and/or Symbolic Efficacy

Antônio Maria de Souza Santos 1

Claudia C. Kahwage 2

Márlia Regina Coelho Ferreira 3

Nilton Alvarez Sampaio 4

RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: No Vale do Rio Negro (Amazonas, Brasil), o sistema local de saúde se caracteriza por um “pluralismo médico”, co-existindo procedimentos terapêuticos heterogêneos, entre eles a fitoterapia. Destacamos o uso da planta saracura-mirá (Ampelozizyphus amazonicus), como estimulante energético. É de uso tradicional entre índios e “caboclos” daregião do Rio Negro. Verificamos os fatores intervenientes no processo de cura com a utilização dessa planta (mito,rito, forma, tempo), caracterizando, assim, não só o princípio ativo, mas também e, especialmente, a aficáciasimbólica.

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Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: In the rio Negro river valley in the state of Amazonas, Brazil, local health systems are characterized by a “medicalpluralism”, exhibiting a coexistence and heterogeneity of therapies. Among these, phytotheraphy practices areencountered. This article explores the use of saracura mirá (Ampelozizyphus amazonicus), as a stimulant andenergizer. This plant is traditionally used among indigenous peoples and caboclos in the Rio Negro region. As such,intervening factors in the healing processses encountered in the use of saracura-mirá will be examined (in myth,ritual, form, and periodicity). Thus, its symbolic effects will also be evaluated in addition to its active ingredients.

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INTRODUÇÃO

Nesse ensaio propomos tecer considerações iniciais(dentro de nossa proposta) sobre as medicinastradicionais e etnofarmacologia no Vale do RioNegro, considerações estas, fruto de observaçõesfeitas através da execução dos projetos “Xamanismoe Concepção da Natureza na Amazônia Ocidental”e “Revisitando a Amazônia de Carlos Chagas: daBorracha à Biodiversidade”, ambos com a participaçãodo pesquisador Antônio Maria de Souza Santos.Iniciado em 1994, o primeiro projeto vem sendodesenvolvido por pesquisadores brasileiros ejaponeses, com apoio do Museu Paraense EmílioGoeldi e do National Museum of Ethnology (Japão),em fase de conclusão pela parte brasileira. Osegundo foi promovido pela Fundação OswaldoCruz-Casa de Oswaldo Cruz, sendo a expediçãodos rios Negro e Branco realizada em 1995, coma participação de pesquisadores da Fiocruz e váriasinstituições de pesquisa da Amazônia, quando foirefeito o percurso da viagem do médico epesquisador Carlos Chagas em 1913 (Fiocruz, 1991,1996). As observações aqui em foco abrangem todoo Vale do Rio Negro (municípios de São Gabriel daCachoeira, Santa Izabel, Barcelos, Novo Airão),incluindo não apenas as sedes municipais comotambém vários povoados ribeirinhos.Nos projetos acima referidos, foram abordadosvários subtemas, sob a responsabilidade dospesquisadores participantes. A presente comunicaçãoé uma elaboração dos autores dentro dos contornosdas medicinas tradicionais como soma dosconhecimentos, explicáveis ou não, usados paradiagnóstico, prevenção e cura de transtornos físicos,mentais e sociais, baseados, exclusivamente, naexperiência e na observação e transmitidos,verbalmente ou por escrito, de uma geração à outra.Imbricados nas medicinas tradicionais estão osrecursos naturais de origem vegetal, animal emineral, bem como os conhecimentos sobre esses,utilizados por uma nação ou povo na prevenção ecura dos problemas de saúde. As plantas medicinais

despertam particular importância pela sua amplautilização e por estarem na essência das medicinastradicionais.Os dados aqui apresentados foram obtidos atravésdo convívio com as comunidades visitadas e, deforma mais controlada, através da aplicação de 106questionários distribuídos ao longo de todo o Valepor ocasião da Expedição “Revisitando”, cujasentrevistas foram realizadas por todos os membrosda equipe, com a seguinte distribuição pormunicípios: Barcelos 35%; São Gabriel da Cachoeira25%; Santa Isabel 25% e Novo Airão 15%.As abordagens analíticas, que a seguir apresentaremos,não pretendem responder a questões específicas nocampo botânico ou da fitoterapia, mas sim apresentaralguns elementos destes campos presentes nasmedicinas tradicionais, dentro de um contextosocioespacial específico, que é o Vale do Rio Negro– AM. Entendemos que os estudos realizados sobrea fitoterapia tradicional, de uma maneira geral, nãoevidenciam os fatores simbólicos que estão inseridosno processo de cura. Dessa forma, uma das propostasde nossa abordagem é trazer à tona e explicitar aimportância de alguns elementos de cunho simbólicoque estão expressos, mas não óbvios, nas atividadesdos processos fitoterápicos das medicinas tradicionaisnessa região. Adotamos como paradigma dessaanálise transdisciplinar o uso da saracura-mirá, umadas plantas mais utilizadas no rio Negro (conformelevantamento feito em campo, 1995), olhando-anão apenas pelo lado orgânico, mas, principalmente,pelo âmbito da eficácia simbólica.Assim sendo, apresentamos, inicialmente, uma visãopanorâmica sobre o Vale do Rio Negro; em seguida,abordamos os recursos da medicina ocidental e asmedicinas tradicionais nesta região; detemo-nossobre a fitoterapia local; e, finalmente, analisamoso uso da planta saracura-mirá: eficácia orgânica e/ou eficácia simbólica, alguns aspectos fitoquímicose farmacológicos, fatores intervenientes nosprocessos de cura (mito e o rito, forma, tempo);considerações finais.

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O VO VO VO VO Vale do Rio Negroale do Rio Negroale do Rio Negroale do Rio Negroale do Rio NegroO rio Negro, com suas nascentes no planaltocolombiano, onde recebe a denominação deGuainía, percorre em território brasileiro a parteNoroeste do estado do Amazonas, indo desembocarna margem esquerda do rio Solimões, àsproximidades da cidade de Manaus, perfazendo umtotal de 1.700 km de extensão.Desde meados do século XVII a região do rio Negrocomeçou a ser alcançada pela ação colonial-expansionista lusa, o que provocou, ao longo dotempo, o desaparecimento de vários gruposindígenas, como Baré, Passé, Manao, Tarumá etc.De modo especial no baixo e médio rio Negro, osprocessos de depopulação, miscigenação eintegração foram mais intensos, enquanto que noalto, apesar de todas as compulsões sofridas,percebe-se um certo insulamento cultural dosvários grupos indígenas distribuídos ao longo dosrios e nas matas, como que amparados pelascachoeiras e corredeiras e pelas cíclicas secas doscursos d’água, quando seus leitos diminuem de nível,obstando a navegação, mesmo em embarcaçõesleves, criando, assim, áreas de refúgio.O alto rio Negro, localizado na Área CulturalNorte-Amazônica (GALVÃO, 1960), representauma grande província etnográfica (cerca de 15.000indígenas), composta de vários grupos tribais(Tukano, Dessano, Tariano, Maku...) que formamum verdadeiro emaranhado cultural, com váriasformas de contato intertribal e interétnico. Enquantoque no médio e baixo Negro percebe-se umamaior miscigenação da população.Desde o início do século XX, a CongregaçãoSalesiana passou a atuar no Vale do Rio Negro,deflagrando um processo sistemático de aculturaçãodos grupos indígenas, tornando-se a instituição demaior influência na região.Nos centros missionários, foram construídos grandescolégios de alvenaria, que durante décadasfuncionaram como internatos (masculino efeminino): São Gabriel, 1914; Barcelos, 1916;

Taracuá, 1925; Yauareté, 1929; Pari-Cachoeira,1942; Tapuruquara (Santa Isabel), 1946; Içana,1955; Cauboris, 1967. A educação formal nestescentros e nas escolinhas dos povoados constitui oprincipal veículo de ação salesiana na região. Ao ladoda educação, a saúde também ocuparia seu espaçona atuação dos missionários com a construção dehospitais e os serviços prestados por determinadosreligiosos (padres e freiras) e agentes de saúde, quemuitas vezes eram os mesmos professores oucatequistas, coexistindo, é claro, com a fortepresença das medicinas tradicionais indígenas, ondeo xamanismo tem papel preponderante.As atividades extrativistas tradicionais (borracha, cipó,piaçava, peixes ornamentais etc.) constituem parteintegrante das relações socioeconômicas do Vale doRio Negro, atravessando todas as épocas. Maisrecentemente, o extrativismo mineral (garimpo deouro), praticado por frentes migratórias, vemacarretando desequilíbrios ecológicos e ocasionandonovas alterações no perfil epidemiológico local.Conforme observa Buchillet (1994):

“...as epidemias podem surgir, dependendo da alteraçãode variáveis sociais e ambientais (concentraçãoimportante de indivíduos não imunizados, reintroduçãode agentes patogênicos, deterioração do ambientefavorecendo os contatos entre hospedeiro, vetores eagentes patogênicos etc.) que aumenta a receptividadede uma população à determinada doença”.

A partir da década de 70, o alto rio Negro sofreualgumas influências dos programas oficiais dedesenvolvimento dos governos militares. Houveum início de execução de um plano rodoviárioque não prosperou, mas abriu caminho para outrasiniciativas governamentais, como a implantação deagências bancárias, serviços de comunicação,abertura e melhoria de aeroportos etc. De outrafeita, o Exército passou a marcar maior presençana área, inclusive com o estabelecimento de infra-estruturas.Dentre as sedes municipais do Vale do Rio Negro,a cidade de São Gabriel da Cachoeira (antiga

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Uaupés), originária de um forte construído em1760, é o núcleo populacional de maior expressão.Com cerca de 5.000 habitantes (população em parteflutuante), São Gabriel constitui um locus onde estãorepresentadas as várias etnias daquela área, dentrode um processo de urbanização recente (SOUZASANTOS, 1984).

RECURSOS DA MEDICINA OCIDENTAL EAS MEDICINAS TRADICIONAIS

No Vale do Rio Negro, o “sistema local de saúde” écaracterizado por um “pluralismo médico”, coexistindoprocedimentos terapêuticos heterogêneos. De umlado a medicina ocidental, representada peloshospitais que se encontram nas sedes municipais,os profissionais de saúde que ali atuam e,secundariamente, pelos postos de saúde, ex-Sucam(Superintendência de Erradicação da Malária), Funai(Fundação Nacional do Índio), Exército e MissõesSalesianas. De outro lado, as medicinas tradicionaisrepresentadas pelo xamanismo, herbalismo, cultosdos santos e, sobretudo, pelos rezadores (versãolocal dos xamãs indígenas).Quando os habitantes dessa região falam de saúdeno passado, têm na memória a assistência médicaoferecida pelos missionários salesianos (padres,freiras e coadjutores). Além de fazerem alusão aum sistema tradicional de cura (plantas/xamanismo),as pessoas dessas comunidades referem-se à faltade assistência médica oficial (que não existia), ondea única alternativa era recorrer ao pajé, figuraessencial para a assistência à saúde no passado.Relatam que as doenças do passado eram “doençascomuns” (gripe, diarréia, verminose...) e queembora “morresse muita gente” por causa delas,“nessa época os tempos eram melhores, pois nãohavia doenças complicadas” (DST, câncer,tuberculose, diabete, parto complicado...). Nota-se, através do depoimento das pessoas, que o pajéperde gradualmente parte de sua “influência” e deseu “poder” frente a essas “novas doenças”

(complicadas), já que os recursos terapêuticostradicionais não são suficientemente eficazes para oseu tratamento e cura.Atualmente, apesar da precariedade do sistema oficialde saúde, avaliam que houve uma melhoria dasituação da saúde, pois o tratamento das doençasreferidas como “comuns” passou a ser mais eficaz.A assistência médica oficial é muitas vezes reificadapela figura do médico e do hospital, que passam afazer parte integrante de um sistema de saúdediferenciado do passado, instaurando-se, assim, umnovo paradigma de saúde/doença, criando-seexpectativas e demandas em relação aos sistemasoficiais de saúde, principalmente quanto as jámencionadas “doenças complicadas”. Dada a essaprecariedade (falta de infra-estrutura, de recursoshumanos etc.) e à permanência das tradiçõesculturais, as populações redefinem, reelaboram ereordenam o sistema de saúde – “pluralismomédico” – nas ações do dia-a-dia.As populações procuram, assim, aplicar seusconhecimentos à nova realidade. Há, em crescenteproporção, alternativas de tratamento às “doençascomplicadas”. O conhecimento “fitoterápico” vaisendo direcionado para tratar doenças como malária,que vem recrudescendo nos últimos tempos, nãoapenas nessa região como em toda a Amazônia,devido, principalmente, aos desmatamentos,garimpos e migrações. Esse acervo terapêuticocontinua a ser utilizado freqüente e eficazmenteno tratamento das doenças mencionadas como“comuns”, sendo essa situação, na grande maioriados casos, claramente notória nas comunidadesque não têm acesso imediato ao sistema de saúdeoficial.O “pluralismo médico”, redefinido nessa região, dáespaço a uma diversidade de atores sociais: médicos,agentes de saúde, rezadores, curandeiros,benzedeira etc., que se art iculam, inter-relacionam-se em diferentes locais e exercemdiferentes papéis, práticas terapêuticas diversas,tratando e prevenindo os males da população.

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A fitoterapia localA fitoterapia localA fitoterapia localA fitoterapia localA fitoterapia localNeste trabalho, a f itoterapia é consideradasimplesmente como a utilização do acervo vegetalno tratamento e cura das enfermidades em geral 5.É parte essencial das medicinas tradicionais, queutilizam procedimentos próprios e especializados,no sentido de melhor aproveitar o potencialmedicinal das plantas.Os recursos naturais vegetais são, então,tradicionalmente utilizados, passando a integrar oacervo cultural da população, assim como osprocedimentos necessários para util ização etransformações dos mesmos. A incorporação dessesrecursos naturais ao cultural dá margem aoaparecimento de sistemas simbólicos que ordename dão validade à eficácia terapêutica vegetal. Assim,a fitoterapia, como parte integrante da cultura, épeculiar ao contexto social e ecológico de cadaregião.No rio Negro a fitoterapia é usada em larga escala,tanto nas sedes municipais como nas comunidadesribeirinhas. A pesquisa de campo, realizada quandoda Expedição Revisitando a Amazônia de CarlosChagas, revelou um grande arsenal de plantasmedicinais, sendo que 58 foram coletadas e,posteriormente, identificadas na Coordenação deBotânica do Museu Paraense Emílio Goeldi, pelobotânico Antônio Sérgio Silva. A lista de espécieslevantadas com seus respectivos usos encontra-seno relatório de viagem da Expedição Revisitando aAmazônia de Carlos Chagas (1996).Do total, 31 foram identificadas especificamente,19 até gênero e 8 em nível de família. Distribuem-se em 30 famílias botânicas, entre as quais se

destacam: Lamiaceae (8 sp.), Asteraceae (5 sp.),Euphorbiaceae (4 sp.), Rutaceae e Verbenaceae (3sp.). Tratam-se de famílias de grande expressão noâmbito da medicina tradicional amazônica (BERG,1993) e que, nos últimos 50 anos, vêm sendofreqüentemente estudadas por farmacólogos(SOUZA BRITO, 1993).De um lado, são utilizadas plantas próprias da região,muitas concebidas como símbolos culturais, comsuas formas de administração e seus modos de usorelacionados aos diversos fatores que vão contribuirpara o processo ritual (TURNER, 1974) de cura,que a planta como símbolo enseja, reorganizando aordem natural perturbada e interrompida peladoença. É importante relatar que as populaçõestradicionais, principalmente as indígenas, têm umaconcepção causalística abrangente de doença.6

Além das plantas empregadas medicinalmente innatura, sob as formas de chá, infusão, cataplasmas,garrafadas e lambedores, verificou-se na cidade deBarcelos a existência de uma farmácia caseira-comunitária, funcionando em uma sala cedida pelaparóquia do município. Nela, 25 mulheres – asbruxinhas de Deus, integrantes da Pastoral da Saúde,atuam em regime de revezamento na manipulaçãode fórmulas simples, transformando as plantas e seussaberes tradicionais no que elas denominam deremédios caseiros.O processo de manipulação adequa-se às condiçõesmateriais de que dispõem, seguindo, no entanto,regras básicas. O material vegetal empregado –folhas, raízes e cascas – é colhido e lavado pararetirar as impurezas que porventura estejamaderidas. Em seguida é exposto ao vento para a

5 No contexto da medicina ocidental, a fitoterapia é uma terapêutica caracterizada pela utilização de plantas medicinais comprovadamenteativas ou de derivados vegetais (extratos, tinturas, óleos, ceras etc).

6 “... a aparição da doença, assim como advento de um infortúnio, individual ou coletivo, que não constituem categorias separadasdo ponto de vista da causalidade, inscrevem-se num dispositivo de explicação que remete ao conjunto de representações dohomem, de suas atividades em sociedade e de seu meio natural” (BUCHILLET, 1991).

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secagem, sendo pendurado em varais estirados pelasala. Quando seco, acondicionado em lustres,dispostos sobre o balcão com bocal voltado paracima, e apoiados em uma espécie de suporte feitocom bolas de gude coladas. A partir desse materialestocado, manipulam tinturas, formas básicas aserem indicadas como tal ou utilizadas na preparaçãode pomadas, xaropes e elixires.Segundo Dona Maria do Carmo Tavares Brito, umadas “bruxinhas, além de terem fartura de plantasmedicinais, existem na comunidade pessoasdispostas a trabalhar pela saúde.“... os remédios são baratos, mas quando o doentenão pode pagar, a gente dá de graça. Só pede quena próxima vez ele traga alguma coisa pra trocar,como vidros vazios, mel ou plantas que pegam namata. Nosso objetivo não é comercial, é pastoral!Todo dinheiro que recolhemos é usado na comprade material para a farmácia”, explica ela.O cultivo de espécies introduzidas tem,incessantemente, enriquecido o acervo local. Nosdias de hoje, percebe-se a dinamização desseprocesso, proporcionada pelo contato com outrosmovimentos comunitários atuantes na AtençãoPrimária à Saúde, em suas respectivas comunidades.Desta maneira, as bruxinhas, ao diversificarem osrecursos e ao transformarem seus remédios caseirosem medicamentos, estão, tentando se integrar emum novo contexto histórico, adaptar seusconhecimentos a esta nova realidade que se impõe.Essas práticas vêm sendo valorizadas e incentivadaspela OMS, a fim de suprir as necessidades básicasdessas populações (AKERELE, 1991). O trabalhodesenvolvido em Barcelos, ao lançar mão deconhecimento tradicional e ocidental, cria, então,uma forma alternativa de convivência e de fusãodesses dois saberes em benefício da saúde de seushabitantes.A Tabela 1 apresenta alguns produtos encontradosna farmácia caseira-comunitária de Barcelos e suasrespectivas indicações.

Tabela 1. Produtos comercializados na farmácia caseiracomunitária de Barcelos

ProdutoProdutoProdutoProdutoProduto IndicaçãoIndicaçãoIndicaçãoIndicaçãoIndicação

TINTURASTINTURASTINTURASTINTURASTINTURAS

Abacateiro Pressão alta, reumatismo e rins

Alho Reumatismo e inflamações

Angico Fortificante e anti-inflamatório

Carapanaúba Febre, limpar o sangue e reumatismo

Cipó-d’alho Reumatismo e infeções

Corama Pulmão e rins

Couve Alcoolismo

Erva de Passarinho Asma, pneumonia, arteriosclerose,pressão baixa e menopausa

Erva-silvina Memória e epilepsia

Malvarisco Gripe, tosse e inflamação da garganta

Maracujá Calmante e dores no nervo

Mulungá Calmante

Quebra -Pedra Rins e dores

Quina Febre e diabetes

Sucuúba Febre, reumatismo, gastrite,cicatrizante dos ossos

POMADASPOMADASPOMADASPOMADASPOMADAS

Caminex Massagens, reumatismo e dores musculares

Confrey Problema de pele e feridas difíceis

Forte Feridas velhas e infeccionadas,pisaduras de prego

FONTE: Informações reproduzidas a partir da Cartilha das“Bruxinhas de Deus” (Barcelos. AM).

SARACURA-MIRÁ: EFICÁCIA ORGÂNICASARACURA-MIRÁ: EFICÁCIA ORGÂNICASARACURA-MIRÁ: EFICÁCIA ORGÂNICASARACURA-MIRÁ: EFICÁCIA ORGÂNICASARACURA-MIRÁ: EFICÁCIA ORGÂNICAE/OU EFICÁCIA SIMBÓLICAE/OU EFICÁCIA SIMBÓLICAE/OU EFICÁCIA SIMBÓLICAE/OU EFICÁCIA SIMBÓLICAE/OU EFICÁCIA SIMBÓLICA

Dentre as várias plantas coletadas, já mencionadasanteriormente, destacamos a saracura-mirá (Figura 1),pelo seu amplo uso e difusão em todas as localidadesvisitadas na região do rio Negro. Trata-se de umaplanta estimulante, energética, “que aumenta aresistência”, além de apresentar outras propriedades,conforme veremos mais adiante. É de uso tradicionalentre os índios e caboclos da região do rio Negro etambém em outras áreas da Amazônia, incluindoalguns centros urbanos. Além de saracura-mirá,seu nome mais divulgado, esta-liana ou arbusto

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escandente é, também, denominada saracura -muirá, cerveja- do -mato , cerve ja -de - índ io ,cervejeira, cervejinha e curupira-mirá.

Figura 1 - Ampelozizyphus amazonicus Ducke (RHAMNACEAE)

Fonte: A. Ducke. 1935. Plantes nouvelles ou peu connues de larégion amazonienne. Arch serv. Biol. Vegetal. 2(2): 157-8

Considerando-se que o uso dessa planta estásempre associado ao bem-estar e depuração docorpo, consideramos importante abordar, além daatividade farmacológica de seus constituintesquímicos, o seu contexto simbólico que atua como“propriedade indutora”, unindo mito, xamanismo eplanta.Em 1993, os pesquisadores Antônio Maria de SouzaSantos, Nilton Alvarez Sampaio e Ideo Takei tiveramcontato direto com essa planta nos arredores deSão Gabriel da Cachoeira -rio Negro. Após longacaminhada pela mata, através da orientação de doisindígenas do grupo Tukano, a planta foi coletada e,em seguida, preparada a mistura da entrecasca dasraízes e caule na água. Porções dessa bebida foramingeridas por todos, que a partir daquele momentopassaram a sentir-se restabelecidos do cansaço, dafadiga e da fome. Naquela ocasião, os pesquisadorestomaram conhecimento do amplo uso da mistura,

não apenas por índios e caboclos da região, mastambém por garimpeiros compelidos a demoradasandanças pela floresta, militares em treinamento naselva e, ainda, moradores urbanos da sede domunicípio de São Gabriel da Cachoeira.Seu uso mais difundido é sem dúvida comoenergético, bebendo-se da mistura antes detrabalhos pesados, como nos piaçabais, ou apenaspara conseguir disposição para o trabalho. Diz-se que o corpo, estando fraco ou intoxicado,res tabe lece - se com a sa racura -m i rá . Porexemplo, em casos de mal-estar por abuso deálcool ou alimentos gordurosos, faz-se uso dopreparado. Sua propriedade energética estáligada, também, na utilização pelos doentes commalária, visto objetivar não a cura propriamentedita, mas o restabelecimento da energia. Épossível que essa relação esteja presente, dealguma forma, nas outras indicações citadas pelosusuários do rio Negro: reumatismo, fígado,afrodis íaco, “ fer ida brava”, “pereba”, DST,pneumonia, “toda dor”, verminose, coceira,diabete, diarréia e inflamação.O estudo de Coelho-Ferreira (1992) sobre asplantas medicinais comercializadas e usadas, emManaus, mostra que além de ser prescrita contramalária e problemas hepáticos, saracura-mirá éreputada no combate à insônia.No segundo semestre de 1995, durante arealização da expedição Revisitando, que percorreutodo o Vale do Rio Negro, os dezoitopesquisadores obtiveram informações sobre o usodesta planta em todas as localidades visitadas,verificando-se por unanimidade o amplo uso damesma em todo Vale.Percebe-se que a saracura-mirá faz parte doacervo terapêutico/cultural das comunidades do Valedo Rio Negro, sendo seu uso ligado a uma tradiçãoque vem sendo transmitida de geração em geração,redefinindo-se ao longo do tempo. O índio TukanoAnacleto, 46 anos, de São Gabriel da Cachoeira,informa que o conhecimento da sacarura-mirá é

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milenar, “desde os tempos antigos”. O SenhorRaimundo Golçalves Martins, 26 anos, morador deBarcelos, refere conhecer a planta “desde o tempoque eu me entendi”, através dos pais. O SenhorIrineu Pereira da Silva, 72 anos, rezador em NovoAirão, diz ter recebido um livro de seu pai no qualconsta a indicação da sacacura-mirá, desde muitosanos, para fortalecer o corpo.Entretanto, informações sobre as propriedadesterapêuticas desta planta não se limitam à regiãoamazônica. A saracura-mirá, juntamente comoutras 6 plantas, é citada como uma das espéciesvegetais de uso medicinal no Manual deSobrevivência na Selva, de Cícero Feliciano dePontes, editado em 1993 pelo IBGE (RJ). Nessemanual, destaca-se a sua função de “protetorhepático”, trazendo como dado adicional o fato deser “narcótica quando ingerida em grandequantidade”.Amostras da planta foram trazidas para Belém doPará, em 1993, pelos pesquisadores referidosanteriormente, que a tinham conhecido em SãoGabriel da Cachoeira. Em Belém, o fato mereceuuma ampla reportagem escrita por Manuel Dutrano jornal de maior circulação no Pará - O Liberal- em sua edição de 21.11.93, com o título:“Saracura-Mirá a Planta EficazSaracura-Mirá a Planta EficazSaracura-Mirá a Planta EficazSaracura-Mirá a Planta EficazSaracura-Mirá a Planta Eficaz”.A matéria ocupou um espaço nobre no jornal:primeira página no caderno Dia-a-Dia, numdomingo, com uma ampla fotografia colorida deum nativo mostrando a planta e uma outra fotomenor do pesquisador Antônio Maria de SouzaSantos “experimentando a bebida milagrosa”. O teordo texto é claramente de grande valorização dopoder energético da planta, como se pode constatarjá no início da reportagem: “Espumosa comocerveja, amarga que nem chimarrão, adocicadaquando chega à boca. Seus efeitos? Imediatos, fimda fadiga, tristeza vai embora, disposição para otrabalho, forças redobram. A cabeça fica no lugar,raciocínio é perfeito. Não é alucinógena nem tóxica.Eis aí o que parece a poção mágica da felicidade.

Não é chá, nem vinho, nem nada do gênero. É asaracura-mirá, coisa que os índios do alto rioNegro usam há milênios, os caboclos há 200 anose os garimpeiros e militares da fronteira degustam,embevecidos, há década e meia”.No mesmo texto, os efeitos da saracura-mirá sãocomparados aos do ginseng oriental e do guaranáamazônico. É referido, ainda, o fato de existiremplantas macho e fêmea, diferença que se podeperceber pela sinuosidade do caule. É, também,ressaltado que os próprios pesquisadores “beberamda poção e caminharam três horas e meia na mata,sem qualquer cansaço e ainda de muito bom humor,sentindo apenas efeitos positivos”. Essa reportagemteve ampla repercussão não apenas nesta capital,como em outros quadrantes da região e do país.Durante vários meses, foram inúmeras assolicitações feitas ao Museu Goeldi sobre a citadaplanta: pedidos de muda, de dados sobre suaspropriedades terapêuticas, de ajuda a aidéticos etc.Foi, também, dado ensejo a que casas de venda deervas em Belém passassem a comercializar a planta,uma vez que começou a haver considerável procurada mesma. A própria reportagem foi utilizada comomeio de propaganda pelos proprietários dessespontos de venda, sendo que eles mesmos atribuemao jornal a grande demanda que houve durante umcerto período.Todavia, o uso no Pará é esparso e não possui aconsistência tradicional que se verifica no Vale doRio Negro. Pode-se atribuir a este fato a progressivaqueda da demanda comercial da planta em Belém,que atualmente é bastante diminuta, ao contráriodo que se observa no rio Negro, onde a tradiçãovem não apenas mantendo-se, mas mesmoatualizando-se.

FFFFFitoquímica e farmacologiaitoquímica e farmacologiaitoquímica e farmacologiaitoquímica e farmacologiaitoquímica e farmacologiaAtualmente, vêm-se desenvolvendo estudosfarmacológicos e fitoquímicos da saracura-mirá,cujo principal objetivo tem sido verificar a realeficácia do remédio caseiro produzido a partir de

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suas raízes e caule. No Laboratório de Química daUniversidade Federal do Pará, os estudos emandamento estão direcionados tanto para oisolamento e a caracterização estrutural de seusprincipais constituintes químicos, como para aidentificação das substâncias responsáveis pelaatividade biológica. Nessa abordagem, verificou-se ser uma planta rica em saponinassaponinassaponinassaponinassaponinas- responsáveispela formação de espuma- de onde o nome,cerveja–de-índio; tendo apresentado aindalapachollapachollapachollapachollapachol, substância que, conforme a Dra. MaraSilvia Pinheiro Arruda (comunicação pessoal),poderia ser responsável por uma possível atividadeanti-tumoral da planta. De fato, segundo Duke(1992), além de ser antimalárica, antiniflamatória,bactericida, fungicida, essa substância é umreconhecido antitumoral e anticarcinômico.Segundo Carvalho (1997), os resultados dos testesrealizados com seu extrato bruto e suas fraçõessemipurificadas justificam o uso popular de saracura-mirá como preventivo da malária, porém, na faseinicial do desenvolvimento do parasita.Não há, entretanto, qualquer estudo direcionado àação estimulante, energética. É notório que osestudos fitoquímicos e farmacológicos presentesainda são inconclusivos e que outros mais serão,certamente, necessários para que se esclareçamelhor o poder dessa planta.

FFFFFatores intervenientes nos processos de curaatores intervenientes nos processos de curaatores intervenientes nos processos de curaatores intervenientes nos processos de curaatores intervenientes nos processos de curaPretende-se contextual izar aqui os fatoressimbólicos embutidos nos procedimentos deutilização da planta. Nas comunidades existentes nacalha do rio Negro, quer nas sedes municipais, quernos pequenos povoados, em que pese a presençados serviços de saúde convencionais (sobretudo nascidades), há uma marcante atuação das medicinastradicionais, ancoradas nas tradições xamanísticasindígenas e caboclas e representadas, sobretudo,pelos rezadores e pajés e pela utilização dos recursosnaturais, especialmente as plantas medicinais. O usoda mistura da saracura-mirá está inserido neste

contexto cultural. Destacaremos, a seguir, algunsfatores que foram apreendidos.

Mito e o ritoMito e o ritoMito e o ritoMito e o ritoMito e o ritoO mito vem como forma explicativa da própriaessência humana, indo mais além da criaçãoprimordial. O mito nos remete a uma realidadeinicial fundadora, esteja ela num contexto micro oumacro. O mito vem para conduzir e permear avida nas sociedades; ele controla as atividades moraise sociais de um povo. Quando se ouve alguém dizer“desde os tempos antigos”, “desde os tempos queeu me entendi”, há uma volta ao passado, há umaalusão ao mito, a uma “realidade viva” – não a umanatureza de ficção – que se crê ter acontecido emtempos recuados, e continua a influenciar o mundoe os destinos humanos (MALINOWSKY, 1984).Todo ritual encena a recriação dos arquétiposmitológicos. O ritual é observado no cotidiano, oritual faz parte do presente, o ritual é ação. Assim,as populações do rio Negro acreditam estarrepetindo o que seus antepassados faziam, o quelhes deixaram como herança, e a ação de referir, defazer o que “meus pais fizeram” caracteriza-secomo ação ritual.A planta saracura-mirá, como parte integrante dopatrimônio tanto cultural (simbólico) quanto natural,passa a ter um significado ainda hoje reconhecido(compartilhado) em todo o Vale do Rio Negro, queperdura e perpetua pela alusão constante aos temposantigos. É nesse retorno que o poder simbólico émanifesto, onde a “eficácia simbólica”, aludida porLevi-Strauss (1976), é atuante, essencial aoprocesso de cura.

FFFFFormaormaormaormaormaA planta, inicialmente, tem forma de um pequenoarbusto, transformado-se com o seu crescimentoem cipó, que se espalha agarrado a algumas árvores,alcançando certas alturas. O caule arrancado apresentaraízes de dois tipos: macho, quando tem formaretilínea, e fêmea, quando se bifurca. Na maioria dos

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lugares, seu uso dá-se para homens e mulheres deacordo com a respectiva forma da raiz: homens sótomam da raiz macho e mulheres, da raiz fêmea.Porém, em alguns lugares do baixo rio Negroencontramos casos que não seguem essa regra. Ésugestiva a analogia da sexualidade, simbolizada pelasduas formas das raízes da planta.Por outro lado, a cor amarelada e forma espumosada mistura, lembrando a cerveja, dá um caráterlúdico à ingestão da mesma, com o gosto amargoinicial e adocicado posterior, fato esse semprecomentado pelos usuários.

TTTTTempoempoempoempoempoAssim como nas tradicionais milenares horascanônicas da Igreja (Laudes: ofício da manhã;Vesperas; ofício da tarde; Completas: oração antesde deitar) que formam a “liturgia das horasliturgia das horasliturgia das horasliturgia das horasliturgia das horas”, osrezadores e as práticas terapêuticas com recursosnaturais também seguem horários, cujatemporalidade nem sempre é balizada de formamecânica, mas obedecendo, muitas vezes, atémesmo aos ciclos da natureza, ou mesmopodendo-se fazer uma analogia com as formasalopáticas de se tomar medicamentos com intervalosde horas prescritos pelos médicos.Tanto para a coleta das plantas (ou de outros recursos),como para a administração de remédios, há horáriospróprios e rituais específicos associados. A existênciade uma temporalidade vem sendo comprovadapelos avanços da cronobiologia que permite, atravésde uma leitura mais atenta das diferenças observadasnos seres vivos, em função dos ciclos temporais, odesenvolvimento, entre outras coisas, de padrõesrítmicos de administração de medicamentos: acronoterapêutica.cronoterapêutica.cronoterapêutica.cronoterapêutica.cronoterapêutica.A coleta, preparação e ingestão da mistura daplanta aqui em foco, embora não estejaenquadrada na obediência de horários rígidos,encontra-se dentro de uma certa temporalidade.Assim, antes de um trabalho pesado ou atémesmo de tarefas do cotidiano, indica-se o uso

da mistura, bem como após longas caminhadas.Por outro lado, é comum os rezadores da Regiãodo Rio Negro realizarem seus trabalhos de cura(rezas) obedecendo a horários de meio-dia edo crepúsculo.A saracura-mirá está incorporada como plantasagrada de cura na seita do Santo Daime, na VilaCéu do Mapiá, rio Purus (próximo à Boca do Acre).Nesse contexto, sua coleta, preparação e seu usosão realizados dentro de determinadosprocedimentos ritualísticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho apresentou alguns resultadospreliminares sobre as Medicinas Tradicionais eEtnofarmacologia no Vale do Rio Negro-AM, emdecorrência do desenvolvimento dos projetos depesquisa referidos no texto.Os levantamentos feitos durante a expedição“Revisitando a Amazônia de Carlos Chagas”, nosquatro municípios do Vale do Rio Negro,evidenciam mais uma vez a importância dos recursosnaturais (em especial as plantas) e os procedimentosterapêuticos tradicionais, com a presença doxamanismo, herbalismo, culto dos santos e, emespecial, os rezadores.Na medida do possível, aprofundamos uma análisemais abrangente a respeito da planta saracura-mirá(Ampelozizyphus amazonicus Ducke) levando emconta não apenas sua constituição química e suaatividade farmacológica, como o seu contextosimbólico, unindo mito, xamanismo e planta,verificando-se, assim, a “eficácia simbólica”, comopropriedade indutora que melhor enseja eharmoniza o uso desse recurso natural.O enfrentamento entre as medicinas tradicionais e aocidental demonstrou que não se trata, no caso, deum antagonismo e sim de uma complementariedade,fato esse corroborado, sobretudo, pelo amplo usoda fitoterapia local e a constante atualização dastradições.

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Finalmente, queremos ressaltar a significativacontribuição desse esforço transdisciplinar, quer notrabalho de campo pelos pesquisadores envolvidos,quer nesta elaboração por seus autores, quer nasvárias colaborações recebidas. A transdisciplinaridadeilumina e amplia nosso olhar sobre a realidade,emprestando maior significado e visibilidade àmesma.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos as contribuições recebidas dosseguintes profissionais: Antônio Sérgio da Silva(Botânico); Vanja da Cunha Bezerra (Professora deSociologia Médica e Metodologia Científica); IdeoTakei (Médico-Antropólogo); Mara Silvia PinheiroArruda (Pesquisadora em Química Orgânica); Mariado Carmo Tavares Brito (Coordenadora do Grupo“Bruxinhas de Deus”); Isumi Noguchi (Estudante deMedicina/ex-bolsista CNPq). Agradecemos, ainda,a colaboração dos pesquisadores participantes daExpedição “Revisitando a Amazônia de CarlosChagas” (Fiocruz, 1995) e aos participantes daexpedição pelos rios Negro e Branco (1995):FIOCRUZ: Eduardo V. Thielen, Frenando S. D. dosSantos, Flávio R. de Souza, Luis C. Bonella, ZiadirF. Coutinho, Muriel Saragoussi, Luciano M. deToledo, Elizabeth M. dos Santos. Inst. MedicinaTropical (Manaus): Nelson F. Fé, Flor Martinez,Simone L. Andrade. Unive. do Amazonas: Sérgio I.G. Braga, Auxiliomar S. Ugarte, Francisco J. dosSantos, Fernando Abreu. INPA: José Alberto N. deMello. Museu Paraense Emílio Goeldi: AntônioMaria S. Santos. Jornal do Brasil: Rogério Reis,Alexandre Medeiros.

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Recebido: 01/08/2002Aprovado: 02/06/2003