médici: os anos de chumbo

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Memória 1 Médici: Os Anos de Chumbo Por Claudio Blanc * e ao longo dos governos Castelo Branco e Costa e Silva a linha-dura agiu nos subterrâneos, aflorando vez ou outra, mas voltando a submergir, com o terceiro general-presidente, Emílio * Claudio Blanc é escritor e tradutor, autor, entre outros, dos livros O Homem de Darwin, O Lado Negro da CIA e Tempos de Luta e de Glória A História do Sindicato dos Padeiros de São Paulo S

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Médici: Os Anos de Chumbo

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Page 1: Médici: Os Anos de Chumbo

Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Memória

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Médici:

Os Anos de Chumbo

Por Claudio Blanc*

e ao longo dos governos Castelo Branco e

Costa e Silva a linha-dura agiu nos

subterrâneos, aflorando vez ou outra, mas voltando a

submergir, com o terceiro general-presidente, Emílio

* Claudio Blanc é escritor e tradutor, autor, entre outros, dos livros

O Homem de Darwin, O Lado Negro da CIA e Tempos de Luta e de

Glória – A História do Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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Garrastazu Médici, ela chegou à superfície do regime,

assombrando ainda mais os brasileiros.

Médici assumiu a presidência em 30 de outubro de

1969, dando início “àquele que talvez tenha sido o

período mais repressivo da história do Brasil”, nas

palavras do escritor Eduardo Bueno. Nunca houve

tanta censura, tantas limitações às liberdades neste

país. Eduardo Bueno, autor, entre outros, de Brasil:

Uma História (Editora ática, 2003), sustenta que a

administração Médici foi um “dos períodos mais

esquizofrênicos na vida da nação: oficialmente tudo ia

às mil maravilhas – o Brasil era ‘o país grande’ que

ninguém segurava, ‘o país que vai para a frente’;

enquanto isso, nos porões da ditadura, havia tortura

repressão e morte”. De fato, no governo Médici, por

conta das prerrogativas garantidas pelo Ato

Institucional número 5, o Legislativo foi reduzido a

simples homologador das determinações do Executivo.

Médici apertou ainda mais a censura, determinando a

censura prévia, que se alastrou a praticamente toda a

informação jornalística e se estendeu até mesmo a

anúncios de publicidade. Jornalistas tinham suas

credenciais suspensas simplesmente por confrontar as

informações oficiais com outras fontes. As prisões

arbitrárias, torturas e assassinatos atingiram

igualmente seu auge na administração Médici.

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Emílio Garrastazu Médici

A arbitrariedade era justificada para garantir a

democracia. Como colocou o próprio Médici, “a

plenitude do regime democrático é uma aspiração

nacional. (...) Creio [ser] necessário consolidar (...) o

sistema representativo baseado na pluralidade dos

partidos e na garantia dos direitos (...) do homem”.

Mas era um plano futuro. Naquele momento,

assumiam os ditadores, os miliatres deveriam

consolidar o progresso da nação – e a qualquer custo.

Para respaldar Médici, no cenário internacional, bons

ventos sopravam a favor do governo – e o presidente

soube capitalizar a maré através de pesada propaganda

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política. Com efeito, a Era Médici foi uma de ufanismo,

apregoado e estimulado nos notórios slogans “ninguém

segura este país”, “este é um país que via pra frente”

ou o apelativo “ame-o ou deixe-o”.

A começar pela Copa Mundial de Futebol de 1970.

Menos de um ano depois de Médici assumir, a seleção

brasileira conquistou seu terceiro título mundial,

trazendo para casa a almejada taça Jules Rimet –

certamente o mais cobiçado troféu esportivo de então.

Médici não hesitou em usar a máquina de propaganda

do Estado para associar seu governo àquela vitória – a

qual foi, aliás, uma verdadeira catarse na vida nacional,

tão aviltada e suprimida da democracia, seu ideal

político natural. Desiludidos com a ditadura, os

brasileiros louvaram a pátria através do futebol.

Mas o regime militar se imiscuiu até mesmo nessa

paixão do povo. Médici fez com que o técnico João

Saldanha, notório militante comunista, fosse

substituído. Além disso, a comissão técnica era

composta quase que exclusivamente de militares.

Buscando ufanar a população, o governo investiu

pesado para transmitir a Copa do México de 1970 para

todos os brasileiros. Aproveitando o torneio, os

militares inauguraram as transmissões de TV em cores

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e via satélite – símbolos do progresso que o regime

supostamente proporcionava ao país.

Médici com o capitão da seleção brasileria Carlos Alberto

Para projetar ainda mais a ideia de grandeza, o governo

anunciava em 1970 a megalomaníaca construção da

Transamazônica, uma estrada concebida para levar o

futuro à selva. A estrada destinada a ligar os extremos

leste e oeste do Brasil, num percurso de mais de cinco

mil quilômetros, fazia parte de um grande plano de

desenvolvimento, o Programa de Integração Nacional,

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prioridade absoluta do governo Médici. “Será a

redenção da pátria, o caminho para o futuro”, prometia

o ministro dos transportes Mario Andreazza.

A Transamazônica também foi concebida para abrir a

região à colonização de nordestinos. Mas o projeto

fracassou. As obras atrasaram demasiadamente e os

colonos enfrentaram grandes dificuldades, uma vez

que a ocupação humana foi feita sem condições

objetivas e em uma região inóspita. Em cartas ao

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(Incra), órgão encarregado de assentar os migrantes, os

colonos denunciavam a quebra de promessa por parte

do governo. Um dessas cartas deixa claro os problemas

que os migrantes enfrentaram. “Eu fui enganado”,

atesta o autor. “Me prometeram terra, semente,

crédito, casa escola e médico. Só cumpriram uma

promessa – a da terra. Aí veio chuva grossa, a estrada

virou lama e nós ficamos isolados do mundo, no meio

do mato. Quase morremos de fome”. Outra dessas

queixas escritas ao Incra reclama: “não está certo

cobrar assistência médica. Quando saímos de

Pernambuco nos disseram que era de graça”. Uma

terceira dizia: “aqui se paga a farinha, a banha e o

charque mais caro que em qualquer empório de

Itaituba”.

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As críticas ao projeto – feitas inclusive por militares,

como o general Juarez Távora, veterano da Coluna

Prestes, para quem “a urgência da obra era discutível”

– se confirmaram. A Transamazônica nunca chegou a

ser totalmente trafegável. Em menos de uma década, a

floresta retomou grande parte da estrada. Pior ainda: o

modelo de ocupação da Amazônia – desordenado e

insustentável – começou nesse governo. Preciosos

recursos naturais desperdiçados para promover

inutilmente a soberania nacional.

Para completar a ilusão que Médici projetava sobre os

brasileiros houve ainda o “milagre econômico”, como

veio a ser chamado o incrível desenvolvimento do país

entre 1969 e 1973. Nesse período, o PIB cresceu uma

média anual de 11% (8,3% em 1970, 11,3% em 1971,

12,1% em 1972 e 14% em 1973). A realidade, porém,

era outra. Durante a era Médici ocorreu um processo

de concentração de renda e o crescimento desmedido

da dívida externa. Isso aumentou ainda mais o desnível

social que sempre separou os ricos dos pobres no

Brasil. “Com o dinheiro arrancado da população,

[Médici] construiu obras suntuosas e inúteis. O resto

foi emprestado a industriais amigos. Este foi o ‘milagre

brasileiro’: um surto de prosperidade para poucos que

levou à deterioração do perfil da renda”, analisa o

escritor Jorge Caldeira.

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Até 1973, os bons resultados econômicos tornaram-se

a razão de ser do próprio regime. Médici aproveitou a

maré para continuar uma tendência iniciada desde

Castelo Branco. Assim, o governo Médici se tornou no

maior agente econômico do país. Estatizou ainda mais

a economia do que nos dois governos que o

precederam - em sua administração foram fundadas 74

empresas estatais. O governo também passou a deter

metade dos depósitos bancários e a realizar 50% dos

empréstimos. Em 1972, o Estado controlava ainda 80%

da capacidade nacional de gerar energia elétrica.

Médici vislumbrou ampliar ainda mais o potencial

energético do país. Seu grande projeto nessa área

nasceu em 1973, com a assinatura o Tratado de Itaipu,

que criou a empresa binacional que construiria o que,

na época, seria a maior usina hidrelétrica do mundo.

A hidrelétrica de Itaipu

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Guerrilha

Depois da edição do Ato Institucional número 5 (Veja

matéria “Costa e Silva”) os mais radicais entenderam

que a única forma de se opor ao regime era por meio

da luta armada. Na verdade, desde 1967 – antes,

portanto do AI-5 – grupos de guerrilheiros de esquerda

já começavam a se formar. No final dos anos 60

surgiram várias organizações, como a Ação Libertadora

Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária

(VPR), o Movimento Revolucionário Oito de Outubro

(MR-8) e a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares

(VAR-Palmares). Originados principalmente do

movimento estudantil, os membros desses grupos se

inspiravam em Che Guevara, para quem a igualdade

entre os povos só seria conquistada por meio das

armas. E da mesma forma que Che Guevara, os

guerrilheiros brasileiros adotaram uma estratégia

desesperada.

Como os líderes da Coluna Prestes quatro décadas

antes, os combatentes contrários á ditadura militar

acreditavam que seu exemplo provocaria um levante

popular. E como os líderes da Coluna Prestes, estavam

enganados. Depois de empreenderem uma série de

ações armadas, como assaltar – ou “expropriar”, como

preferiam – bancos e promover sequestros de figuras

que apoiavam o regime, inclusive de diplomatas

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estrangeiros, perceberam que estavam lutando contra

um inimigo muito mais poderoso. Melhor armados e

preparados, os militares não tiveram qualquer

escrúpulo para destruir seus inimigos.

O governo reagiu aos esforços dos guerrilheiros com

rigor. Montando grande aparato repressivo, auxiliado

por agentes da CIA, valeu-se de tortura e de

assassinatos. A máquina de repressão que Médici

montou para combater a luta armada englobava

aspectos legais e extralegais. As Forças Armadas

estabeleceram estruturas de inteligência – o aspecto

legal. O Exército passou a agir por meio dos

Destacamentos de Operações e Informações (DOIs) e

Centros de Operação de Defesa Interna (CODIs), órgãos

coordenados pelo Centro de Informação do Exército.

Os DOI-CODIs eram, na verdade, verdadeiros centros

de tortura que acabaram se tornando um poder

paralelo que viria a desafiar o próprio governo.

Além desse aparato, o regime também criou grupos

paramilitares formados principalmente por policiais

civis e bancados por empresários – o aspecto extralegal

da repressão. Beneficiados pelo favoritismo do

governo, esses empresários garantiam, em

contrapartida, fundos para o aparato extralegal do

governo. Com isso, surgiram sofisticados grupos, cujo

objetivo era dar “caça aos terroristas”. A tortura –

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ensinada pela CIA com o nome de Técnica de

Interrogatório Coercivo, conforme consta nos manuais

da agência - era um procedimento obrigatório, e a

morte de suspeitos durante as sessões era comum. A

Operação Bandeirante (OBAN) comandada pelo

delegado Sergio Paranhos Fleury foi o mais notório

desses grupos.

A proteção oficial e a censura à imprensa tornavam os

grupos paramilitares cada vez mais ousados. Mesmo

com a derrota dos guerrilheiros, os comandos

paramilitares continuaram a operar. Para garantir sua

continuidade – a qual trazia polpudos lucros aos seus

membros, por meio das doações dos empresários –

alguns desses grupos buscaram gerar pânico,

perpetrando atentados em que culpavam a esquerda.

Marighella e Lamarca

Um dos primeiros militantes de esquerda a pegar em

armas contra o regime foi Carlos Marighella (1911 –

1969). Veterano militante do Partido Comunista do

Brasil (PC do B), Marighella iniciou sua vida política

tomando parte na malograda Intentona Comunista,

planejada por Luis Carlos Prestes e sufocada por Vargas

em 1935. Contrário às orientações do PC do B de não

pegar em armas contra a ditadura militar, Marighella

rompeu com o partido e, em 1967, fundou a Ação

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Libertadora Nacional (ALN), lançando uma campanha

de guerrilha urbana. A ação mais ousada deste

soteropolitano, filho de imigrante italiano e de uma

afro-brasileira, teve lugar em agosto de 1969, quando

tomou uma estação da rádio Nacional e leu um

manifesto revolucionário.

Carlos Marighella

O exemplo de Marighella levou centenas de jovens a

aderir à guerrilha nos dois últimos anos da década de

60. No final de 1969, a morte de Marighella havia se

tornado uma questão de honra para o regime. Em 4 de

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novembro de 1969, com informações arrancadas por

tortura de dois frades dominicanos, o guerrilheiro foi

emborcado e morto pelo delegado Sergio Paranhos

Fleury.

Carlos Lamarca

Além da guerrilha urbana, cujo maior expoente foi

Marighella, houve também focos de guerrilha rural. O

primeiro deles foi estabelecido na serra do Caparaó no

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final de 1966 pelos 14 combatentes do Movimento

Nacional Revolucionário (MNR) – logo desbaratado

pelo Exército. Apesar da derrota, o MNR deu origem à

Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Sob a

liderança do capitão Carlos Lamarca – exímio atirador,

brilhante estrategista e desertor do Exército –, a VPR

instaurou um novo foco de guerrilha rural no vale do

Ribeira, região sul do estado de São Paulo. Contando

com apenas nove homens, Lamarca foi vencido

facilmente. Mas o combatente conseguiu escapar do

cerco e foi à Bahia, onde tencionava continuar a luta.

Não teve, porém, sucesso. Caçado implacavelmente, foi

fuzilado enquanto descansava à sombra de um arbusto.

O último foco guerrilheiro significativo foi estabelecido

por combatentes do PC do B – depois que facções do

partido decidiram aderir à luta armada – ao longo do

rio Araguaia, entre os estados do Pará, Maranhão e

Goiás. A Guerrilha do Araguaia, como ficou conhecido o

esforço, foi empreendida por pouco mais de setenta

combatentes, que resistiram durante cerca de três

anos, de 1972 e 1974, ao cerco de mais de dez mil

soldados. Sem apoio da população, em março de 1974,

foram finalmente sufocados.

No final da administração Médici, o governo protelou

ainda mais as promessas iniciais de redemocratização –

retomadas, aliás, no discurso de posse de Médici. Em

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outubro de 1972, Médici promulgou a Emenda

Constitucional número 2, alterando a Constituição de

1967 – outorgada pelos militares – que previa

originalmente eleições diretas para os governos de

estado para outubro de 1974. “Não me disponho, no

momento ou em futuro próximo, a abrir mão de

prerrogativas que, pela Constituição, me foram

conferidas”, anunciou.

No último ano de seu mandato, apesar de todo o

ufanismo, do tricampeonato de futebol e do falso

“milagre brasileiro”, as máscaras de Médici caíram.

Com a crise mundial de petróleo de 1973, os bons

ventos da economia internacional pararam de soprar, e

o Brasil, mergulhado até o pescoço em dívidas

externas, precisava agora pagar a conta da festa que

promovera.

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