mediação comunitária e acesso à justiça as duas faces da metamorfose social

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1 MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇA AS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇA AS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL Caroline Wüst

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1MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇA AS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL

MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇAAS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL

Caroline Wüst

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2 MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇA AS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL

Essere nel MondoRua Borges de Medeiros, 76Cep: 96810-034 - Santa Cruz do SulFones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269www.esserenelmondo.com.br

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406

Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates

Correção ortográfica: Fabiano Felten

Diagramação: Daiana Stockey Carpes

Prefixo Editorial: 67722Número ISBN: 978-85-67722-06-1Título: Mediação comunitária acesso à justiça: as duas faces da metamorfose social

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3MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇA AS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL

Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/BrasilProf. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha

Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/ItáliaProf. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina

Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/BrasilProf. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil

Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/ChileProf. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália

Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/BrasilProf. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil

Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/ItáliaProf. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil

Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/BrasilProf. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil

Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/BrasilProf. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/BrasilProf. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil

Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/BrasilProfª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália

Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/BrasilProf. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/

PortugalProf. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil

Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/EspanhaProf. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil

Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/BrasilProf. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México

Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ EscóciaProfª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil

CONSELHO EDITORIAL

Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/BrasilProf. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil

COMITÊ EDITORIAL

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4 MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇA AS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL

2014

Santa Cruz do Sul

1a edição

Caroline Wüst

MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇAAS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL

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5MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇA AS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL

“O ser humano deve desenvolver, para todos os seus conflitos, um método que rejeite a vingança, a agressão

e a retaliação. A base para esse tipo de método é o amor.”

Martin Luther King

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AGRADECIMENTOS

O ato de agradecer não é uma tarefa fácil, mas é muito prazeroso. Quando se chega ao final de uma longa trajetória e tu olhas para o início e percebes que foram muitas as pessoas que te auxiliaram e se sacrificaram na busca de teus objetivos, não há nada mais a fazer senão dizer: muito obrigada!

Agradeço, então, a todos que, mesmo sem saber, me auxiliaram direta ou indiretamente na construção deste livro e na realização deste sonho.

Aos meus pais e ao mano Egon, minha gratidão será eterna. Obrigada pelo apoio incondicional recebido ao longo de todos os anos de minha vida, pela paciência, carinho e ensinamentos, enfim, pelo amor sem medidas. Vocês são tudo para mim!

A uma das pessoas mais especiais que conheço, tio Fritz, sem o qual nada disso teria acontecido. O senhor é meu exemplo de vida, a pessoa que me ins-pira e me faz ter forças em todos os momentos de dificuldade. Nada no mundo paga tudo o que o senhor fez a vida inteira por mim. Obrigada!

Ao meu namorado, Róger, por toda a compreensão e paciência durante esta fase. Sei o quanto foi difícil, mas vencemos!

À Universidade de Santa Cruz do Sul e a todos os professores do Mestrado em Direito, aos colaboradores e aos colegas que me auxiliaram e facultaram todos os espaços acadêmicos necessários para que a pesquisa fosse realizada.

À professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler, por todos os ensi-namentos e experiências compartilhadas, pelas dúvidas dirimidas, corre-ções atentas, sugestões, oportunidades oferecidas e principalmente pela paciência, compreensão e confiança em mim depositada.

Muito Obrigada!!!!

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Comunidade e comunitário são temas que pouca atenção mereceram das ciências sociais no Brasil nas últimas décadas. A atenção esteve voltada aos embates e inter-relações entre público e privado, Estado e mercado. Nos meios filosóficos o debate liberais x comunitaristas, deflagrado na década de 1970, teve alguma repercussão, mas restrita a determinadas questões (justiça re-distributiva, Estado neutro, moralidade e legalidade) e espaços de discussão.

Esse quadro é similar, de certo modo, ao cenário internacional. A relação entre Estado e mercado vem sendo o foco dos estudos não só da economia, como também da política, do direito, da sociologia e de outras ciências. Ten-do como pano de fundo a categoria iluminista e racionalista de indivíduo, o liberalismo tornou-se a referência sociopolítica central na segunda metade do século XX, aquela que vem orientando a análise científica da vida em socie-dade. Comunidade, conceito de tradição milenar, passou a ser uma categoria incômoda na grande parte dos círculos intelectuais depois do seu uso pelo nazismo e de nacionalismos autoritários em vários países.

Alguns eventos puseram em questão a hegemonia do indivíduo nos estudos acadêmicos. O debate liberais x comunitaristas colocou em xeque as premissas liberais e a pouca atenção dada ao comunitário. O multiculturalismo trouxe à baila as tensões entre diferentes comunidades étnicas e a legitimidade dos jul-gamentos baseados nos padrões culturais dominantes. Na política, as terceiras vias apontaram novas formas de relação entre os setores econômicos e de atua-ção estatal. Dessas, gostaria de assinalar a terceira via comunitarista norte-ame-ricana, o comunitarismo responsivo, movimento organizado em fins da década de 1980 por um conjunto de intelectuais de diferentes matizes, empenhado em recolocar a comunidade no centro das discussões e em afirmar o equilíbrio Es-tado/comunidade/mercado. Esse movimento tem conseguido atenção na aca-demia e na opinião pública ao se apresentar como alternativa aos extremos do individualismo e do coletivismo, do neoliberalismo e do neoconservadorismo.

Esse pano de fundo ajuda a ler os importantes intentos em favor da in-trodução dos conceitos de comunidade e comunitário no âmbito jurídico, no qual continua vigendo a dicotomia público/privado. Nessa ótica, os fenôme-nos sociais continuam sendo lidos à luz de óculos bifocais, que reduzem os fenômenos e as organizações a duas esferas distintas – pública e privada - e

PREFÁCIO

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não permitem perceber a especificidade de um conjunto amplo de fenômenos que não são redutíveis nem à lógica do Estado nem à do mercado. O signi-ficado profundo de abordagens inovadoras, como a da justiça comunitária e a da mediação comunitária, só vem à tona com o rompimento desse enfoque dual. É imperativo um novo paradigma que dê um sentido global, sistêmico, às abordagens comunitárias. É necessário um paradigma comunitarista.

A construção de um paradigma comunitarista é tarefa complexa, a ser exe-cutada a muitas mãos. Requer uma fundamentação filosófica consistente e o aporte de elementos particulares e empíricos de diferentes áreas do conheci-mento. O comunitarismo responsivo norte-americano, liderado por Amitai Et-zioni, avançou premissas importantes: (i) a construção da boa sociedade só é possível pelo equilíbrio Estado/comunidade/mercado; (ii) comunidade e indi-víduo devem estar em equilíbrio: são polos com a mesma importância e um só faz sentido em relação ao outro; (iii) nas sociedades ocidentais (diferente das orientais) a comunidade tem sido desprestigiada em favor do indivíduo, o que requer o fortalecimento do polo comunitário para que se alcance novo equilí-brio; (iv) a relevância principal das comunidades está no fato de serem espaços de construção e reconstrução dos valores morais; (v) a lei deve ser expressão da moral e não deve se afastar das convicções morais dos cidadãos; (v) as comuni-dades particulares não são o árbitro final dos valores morais; a Constituição e os direitos humanos o são.

O debate acadêmico certamente continuará por um largo tempo tensionado entre individualistas e comunitaristas. Esse quadro não impede a emergência de avanços comunitários importantes em várias áreas em função do ímpeto renovador de lideranças e da sua receptividade junto a cidadãos e agentes políticos, para os quais a comunidade evoca conotações altamente positivas, como solidariedade, cooperação e participação. Essas conotações positivas estão presentes em políticas públicas deflagradas em anos recentes, como o policiamento comunitário e a justiça comunitária. A mediação comunitária situa-se nesse contexto. Impulsionada por intelectuais e operadores do direito, convencidos da urgência de dar respostas às demandas dos cidadãos diante de um sistema judiciário lento e insuficiente, constroem formas de resolução de conflitos para além da esfera estatal. A mediação recoloca na análise científica algo frequentemente olvidado: o fato do comunitário ser anterior ao estatal. Os seres humanos viveram milhares de anos sem Estado (e sem mercado) e não há razões para restringir todas as iniciativas humanas à esfera estatal.

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O presente livro de Caroline Wüst é uma defesa consistente da mediação comunitária. Nota-se de imediato o entusiasmo da autora pelo tema; entusias-mo balanceado por sólida fundamentação teórica e argumentação bem de-senvolvida. Dentre os muitos méritos da obra chamo a atenção para a correta compreensão de que o comunitário não exclui o conflito; o conflito é inerente à vida em sociedade, assim como o é o anseio da unidade. Seres essencial-mente sociais, vivemos permanentemente a tensão dos princípios de individu-ação e da socialidade, do pessoal e do social. Essa compreensão personalista e comunitária é um contraponto tanto ao isolamento do indivíduo quanto à sua submersão no coletivo.

A mediação comunitária abordada sob o ângulo do personalismo comuni-tário constitui-se em precioso instrumento de construção de uma sociedade marcada por relações fraternas, cooperativas e solidárias, sem desrespeitar em momento algum a individualidade de cada ser humano. Aliada a outras iniciativas comunitárias no plano político, econômico, cultural e ambiental, é um efetivo instrumento de edificação de uma sociedade democrática, inclu-dente e sustentável.

João Pedro Schmidt

Professor titular da Universidade de Santa Cruz do Sul, lotado no Departamento de Ciências Humanas. Docen-te do Programa de Pós-Graduação em Direito. Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul.

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SUMÁRIOINTRODUÇÃO

1 ACESSO À JUSTIÇA: UM DIREITO EM BUSCA DE EFETIVAÇÃO

1.1 Sociedade: os conflitos que a permeiam e a prestação jurisdicional como meio ordinário de resolução

1.2 Acesso à justiça, crise da função jurisdicional e as possibilidades

1.2.1 O acesso à justiça: conceito e os obstáculos a serem superados

1.2.2 As crises da função jurisdicional, sua ineficiência diante da complexidade social e o descrédito do cidadão na jurisdição

1.2.3 Perspectivas para o acesso à justiça: uma abordagem a partir da terceira onda renovatória

1.3 Do dissenso ao consenso: um novo paradigma – a jurisconstrução

2 MEDIAÇÃO: A ARTE DE ESTAR NO MEIO E A INCES-SANTE BUSCA PELA CULTURA DA HARMONIZAÇÃO DA CONVIVÊNCIA SOCIAL ATRAVÉS DO FORTALECI-MENTO DOS LAÇOS DE AMIZADE E FRATERNIDADE

2.1 O limiar: conceito, características, espécies, aspectos histó-ricos da mediação no contexto mundial e sua propagação

2.1.2 A mediação no direito pátrio: Resolução nº 125, do Conse-lho Nacional de Justiça, e os Projetos de Lei 166/2010, 517/2011, 405/2013 e 434/2013

2.2 A mediação como instrumento democrático, consensual e autônomo capaz de tratar o conflito e harmonizar os interes-ses divergentes

2.3 Do individualismo à vida compartilhada: os laços de ami-zade e fraternidade que envolvem a mediação

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2.3.1 A amizade e a fraternidade como pressupostos do direito fraterno e da mediação

3 UMA PROPOSTA TRANSFORMADORA: MEDIA-ÇÃO COMUNITÁRIA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA E DE EMPODERAMENTO DA COMUNIDADE

3.1 Mediação comunitária: a possibilidade de tratamento do conflito “dentro de casa”

3.1.2 Comunidade: um espaço de compartilhamento

3.1.3 Comunicação: a linguagem como promotora da transfor-mação e o mediador comunitário como seu fomentador

3.2 Mediação comunitária: uma política pública feita “na”, “para” e “pela” comunidade

3.2.1 A relevância das políticas públicas para o desenvolvimen-to social e concretização da paz

3.2.2 Mediação comunitária como política pública de meta-morfose social e de acesso à justiça

3.3 A comprovação prática da eficácia da mediação comuni-tária enquanto política pública em face do programa “Justiça Comunitária”, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

ANEXO – Gráficos do Programa Justiça Comunitária

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O conflito é inerente à convivência humana, constituindo-se como parte de sua vida e história. Sendo, portanto, encarado sob um prisma positivo, torna-se um meio de coesão e integração social capaz de ensejar profundas transforma-ções na sociedade e na comunidade na qual se desenvolve. Assim, ao tentar re-solvê-lo, as partes têm à sua disposição diversas possibilidades, dentre as quais a mais comum é a jurisdição estatal, através da atuação do Poder Judiciário.

Entretanto, inúmeros são os óbices - econômicos, sociais e culturais – que dificultam e até mesmo impedem o cidadão de acessar a Justiça de forma equânime. Tais entraves se traduzem nas crises enfrentadas pelo ente público e na sensação de abandono experimentada pelo sujeito que necessita de res-postas céleres e eficientes e não as consegue obter. Dessa forma, um instru-mento diferenciado, a mediação comunitária, vem, paulatinamente, ganhando espaço com o fito de alterar o paradigma do litígio para o paradigma da con-sensualidade: a jurisconstrução1.

Partindo dessas premissas, a finalidade do debate proposto centra-se no estudo da mediação comunitária como política pública eficaz de tratamento de conflitos, cujas metas são possibilitar o acesso à justiça a toda e qualquer pessoa, promover a harmonização dos interesses e a inclusão social, ensejar o empoderamento e a emancipação das partes e da comunidade no tratamento de suas contendas, bem como prevenir o surgimento de novos litígios.

Trata-se de uma proposta inovadora, na medida em que pretende devolver aos membros das comunidades mais carentes o sentimento de pertencimento e de inclusão por meio da instituição de práticas consensuais-dialógicas que visam resgatar os laços de amizade e fraternidade enfraquecidos, ou seja, ambiciona-se pensar a jurisdição em um sentido mais amplo.

1 Jurisconstrução é um neologismo criado por Jose Luis Bolzan de Morais e Fabiana Marion Spengler no livro Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição (2012, pp. 119-124) para designar a mudança de paradigma que existe entre os dois métodos de compor os conflitos. De um lado, o exprimir o direito próprio do Estado, que se caracteriza pela função jurisdicional como poder, ou seja, como titular de dizer a última palavra em uma lide, e, de outro, o elaborar, concertar, pactuar e, acima de tudo, o construir o tratamento para o conflito existente a partir do restabelecimento da comunicação interrompida entre as partes.

INTRODUÇÃO

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Nessa senda, a escolha do tema ocorreu justamente em virtude da urgência de se apresentar um modelo diferenciado de tratamento das demandas que pos-sibilite a democratização do acesso à Justiça, a autonomia e a responsabilização dos envolvidos na tomada de decisões, isto é, que seja capaz de promover uma verdadeira metamorfose social.

Assim, sabendo da situação atual do Poder Judiciário e da explosão de liti-giosidade que caracteriza a sociedade contemporânea, as indagações centrais que nortearam o desenvolvimento do presente trabalho foram as seguintes: é possível considerar a mediação comunitária como um meio complementar de acesso à justiça que não apenas propõe a diminuição de demandas que diaria-mente chegam às portas dos tribunais, mas promove a participação social na tomada de decisões, emancipando o sujeito, ao mesmo tempo em que restaura a confiança deste no Estado? A mediação comunitária possibilita a reapro-priação do conflito pelos seus integrantes, empoderando-os a fim de que cons-truam respostas mais adequadas àquele? Essa mediação, ainda, apresenta-se como uma política pública democratizadora de acesso à justiça?

As hipóteses levantadas confirmaram que a mediação comunitária é um importante mecanismo de acesso à Justiça, que potencializa as relações hu-manas existentes nas comunidades. Ela é, por conseguinte, um instrumento democrático e consensual que possibilita o tratamento eficaz dos conflitos e o empoderamento não apenas das partes envolvidas no litígio, mas da co-munidade como um todo, haja vista que faculta o nascimento de verdadeiros sujeitos responsáveis por sua vida e destino.

Ainda, a mediação comunitária propõe o desenvolvimento e progresso dos cidadãos, uma vez que proporciona a participação da comunidade no tratamento de suas próprias controvérsias, gerando o sentimento de perten-cimento, diminuindo a violência e intensificando a autogestão das conten-das pelo fortalecimento da autoestima e pelo aprimoramento das capacida-des de cada indivíduo.

Cristalino é, por conseguinte, o objetivo da presente pesquisa: desenvolver um estudo acerca da viabilidade de conceder aos membros das comunidades o tratamento de seus próprios conflitos de forma autônoma, democrática e con-sensual, tendo como pressupostos os regramentos, costumes e hábitos locais que culminarão, por derradeiro, na inclusão e emancipação social.

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Para tanto, o método de abordagem aplicado na investigação foi o hipotéti-co-dedutivo, que, inicialmente, parte de uma premissa, problema, ao qual se oferece uma solução provisória por meio de uma ou mais hipóteses que serão examinadas a fim de verificar a viabilidade da solução.

Os métodos de procedimento empregados na execução do presente traba-lho são três: o histórico, que visa à investigação de situações e fatos ocorri-dos no passado para verificar a sua influência na sociedade contemporânea; o monográfico, cujo objetivo consiste no estudo de grupos, instituições, in-divíduos, comunidades, entre outros, com o escopo de obter generalizações e conceituações, e o estatístico, usado para analisar a eficácia do programa “Justiça Comunitária”.

A técnica de pesquisa utilizada, por sua vez, foi a documentação indireta, a qual se consolida pelo levantamento de dados através de pesquisa biblio-gráfica, também denominada documental. Em vista disso, após consultas em livros e artigos científicos relativos ao tema, bem como através de leituras e sínteses relacionadas ao assunto de aplicadores do Direito, utilizou-se os seguintes autores como fundamentação de base: Eligio Resta, Fabiana Ma-rion Spengler, Gláucia Falsarella Folley, Jürgen Habermas, Martin Buber e Zygmunt Bauman.

Destaca-se, então, a relevância científica e social desta perquirição, não apenas por existirem poucas publicações e investigações sobre a matéria, mas pela dimensão da estratégia proposta. Assim, a exploração se volta para um novo olhar dos conflitos e da forma como eles são tratados no seio das comu-nidades mais carentes, tendo como alicerce a cultura do consenso, da qual decorre o caráter democrático e autônomo da mediação, que busca na alteri-dade, na cooperação mútua, na solidariedade e no diálogo responsivo solidi-ficar a amizade e a fraternidade existentes nas relações sociais. Ademais, a importância deste trabalho se deve igualmente ao fato de o assunto proposto suscitar significativos debates no ambiente acadêmico.

A pesquisa que deu origem ao presente texto é fruto da dissertação de Mestrado realizada na Universidade de Santa Cruz do Sul sob a orientação da Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler.

Logo, é evidente a conexão entre a mediação, o acesso à justiça e a inclu-são social nesta pesquisa, porquanto permite o tratamento de litígios pelos

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integrantes da própria comunidade de forma consensual, sem a intervenção direta do ente estatal, ao mesmo tempo em que estimula a participação dos cidadãos, gerando responsabilização, autonomia e empoderamento na toma-da de decisões.

Nesse diapasão, para desenvolver o assunto proposto, o presente estudo está dividido em três capítulos. O primeiro deles debate de forma ampla o acesso à justiça como um direito a ser perseguido e efetivado em face dos problemas enfrentados pela jurisdição e que acabam impedindo o cidadão de ter acesso a uma ordem jurídica justa. O estudo inicia relatando que o conflito faz parte da vida em sociedade, não podendo ser visto como uma patologia social, mas como um fenômeno intrínseco às relações humanas, capaz de motivar profundas transformações e evoluções sociais. Dessa forma, entre as opções para solucioná-lo tem-se a prestação jurisdicional como meio ordi-nário. Contudo, as crises – materiais, pragmáticas e subjetivas – pelas quais passa o Poder Judiciário se refletem nos obstáculos a serem superados pelo cidadão para poder efetivamente acessar a justiça.

Para, destarte, vencer todos os óbices, Mauro Cappelletti e Bryant Garth propuseram três ondas renovatórias de universalização do acesso à justiça. A primeira refere-se à assistência judiciária aos menos favorecidos econo-micamente; a segunda prevê a representação jurídica dos interesses difusos e coletivos através do combate ao sentido individualista do processo e da justiça; a terceira e mais importante para esta pesquisa consiste em um novo “enfoque de acesso à justiça”, que tem a finalidade de ampliar a concepção de acesso por meio de novas alternativas para o enfrentamento de situações conflituosas. Em consequência, métodos alternativos de resolução de dispu-tas despontam como procedimentos eficazes, pois enxergam e trabalham o conflito adequadamente desde o seu limiar, reconhecendo-o como problema e procurando alternativas responsáveis para o seu tratamento.

Dessa maneira, a adoção de mecanismos complementares no tratamento das controvérsias enseja a construção de um novo paradigma, a juriscons-trução, isto é, a transformação da cultura do dissenso para a do consenso, na medida em que visa à criação de uma cultura de participação, compromissos, em que não haja vencedores ou perdedores, mas tão somente ganhadores, sendo a expressão mais significativa dessa transição a mediação.

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Com o propósito então de promover um novo modelo e uma nova cultura, o segundo capítulo debate de forma abrangente a mediação, que se torna proe-minente em face de seu caráter autônomo, consensual e democrático, capaz de tratar as contendas e restabelecer a relação social entre os envolvidos. Parte--se, em vista disso, de sua origem, conceito, características e espécies até a sua propagação em âmbito mundial, enfatizando que sua utilização remonta aos primórdios da história, mas que hodiernamente está disseminada em to-dos os continentes.

Chegando ao Brasil, a mediação, apesar de ser um instrumento novo, está galgando espaço no ordenamento pátrio não somente pela Resolução 125, do Conselho Nacional de Justiça, e pelo Projeto de Lei 166/2010, mas por di-versos outros Projetos de Lei que recentemente foram unificados de forma harmônica e aguardam votação para, enfim, converterem-se em Lei.

Ademais, exalta-se que a mediação é um instrumento que tende a trans-formar a vida individualista e solitária das pessoas em uma forma com-partilhada, na qual os laços de amizade, fraternidade e solidariedade con-vergem, com o sentido da alteridade e do direito fraterno, em um nítido despontar rumo à comunidade.

Enfim, o terceiro e último capítulo aborda a mediação em seu viés comuni-tário, analisando a comunidade como um lugar seguro e aconchegante em que os problemas podem ser solucionados pelos seus integrantes com o auxílio de um mediador que seja membro da comunidade e utilize a comunicação, o diálogo, como ferramenta na construção do entendimento e do consenso.

Propõe, também, a discussão da relevância das políticas públicas para o desenvolvimento social e concretização da paz, destacando a diferença entre estas e as políticas de governo com o objetivo de concluir que a mediação co-munitária é uma política pública de Estado, que possibilita o tratamento dos conflitos, a inclusão social, o acesso a uma ordem jurídica justa e, principal-mente, o empoderamento do cidadão que, ao decidir suas próprias controvér-sias, toma as rédeas de seu presente e futuro.

Por fim, apresenta-se, ainda no último capítulo, um projeto desenvolvido pelo Ministério da Justiça, intitulado “Justiça Comunitária”, que tem como meta a utilização da mediação para tratamento das contendas em âmbito comunitário, além da democratização do acesso à justiça e a solidificação da

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cidadania pela conscientização e responsabilização do cidadão na cons-trução de respostas aos seus problemas.

Desse modo, percebe-se que a discussão está centrada em uma proposta inovadora que visa ao tratamento dos conflitos “na”, “para” e “pela” comu-nidade, a partir da construção do consenso pelas partes e não mais de forma coercitiva, como faz querer a jurisdição tradicional. Essa nova cultura propor-cionada pela mediação comunitária enquanto política pública pressupõe uma harmonia e paz social baseada na cidadania, participação, alteridade e com-partilhamento, o que a torna a possibilidade mais adequada à complexidade conflitiva atual, haja vista que resgata os laços de amizade e fraternidade ao mesmo tempo em que propõe o empoderamento do cidadão pela democrati-zação do acesso à justiça.

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18 MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA E ACESSO À JUSTIÇA AS DUAS FACES DA METAMORFOSE SOCIAL

A complexidade das relações entre as pessoas, aliada à explosão de liti-giosidade e à crise da jurisdição, tornam o sistema estatal obsoleto, na me-dida em que a maneira tradicional de resolver as controvérsias já não mais corresponde aos anseios e necessidades da sociedade contemporânea. O Po-der Judiciário, que, via de regra, era considerado o único meio de acesso à justiça está sofrendo inúmeras crises, o que faz com que os conflitos sejam analisados sob uma nova perspectiva e os litígios sejam tratados a partir de uma nova racionalidade.

As deficiências que acometem o Estado produzem no cidadão uma sensa-ção de abandono, que se traduz na obstrução dos canais formais de acesso à justiça e na dificuldade de ofertar uma resposta eficiente e célere aos males da plural sociedade. Assim, novos meios de acesso à justiça devem ser busca-dos, alterando o paradigma2 do litígio para o paradigma da consensualidade: a jurisconstrução.

Nesse sentido, o presente capítulo objetiva fazer uma breve contextualiza-ção da sociedade e seus inerentes conflitos, adentrando no monopólio estatal como força legítima de tratar os conflitos. Na sequência, abordar-se-ão as cri-ses do Poder Judiciário como fatores determinantes da descrença do cidadão na prestação jurisdicional e as consequentes perspectivas do tão almejado acesso à justiça para, ao final, demonstrar a transição da cultura do litígio para a harmonização da convivência social3 através de métodos consensuais de solucionar as contendas.

2 Compartilha-se a noção de paradigma delimitada por Kuhn (1997, p. 13): “Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”.3 Optou-se racionalmente pela escolha dessa expressão, uma vez que são diversas as controvérsias e polêmicas existentes em torno da locução “pacificação social”. Dessa forma, tendo em vista que o tema é muito complexo e que a pacificação é uma meta difícil de ser atingida por inúmeros fatores, considera-se mais palpável e adequado ao presente trabalho o uso da frase “harmonização da convivência social”.

1 ACESSO À JUSTIÇA: UM DIREITO EM BUSCA DE EFETIVAÇÃO

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1.1 Sociedade: os conflitos que a permeiam e a prestação jurisdicional como meio ordinário de resolução

O conflito é parte integrante da sociedade4, constituindo-se como a mola pro-pulsora que fomenta o desenvolvimento social e a interação entre os indivíduos. Ele é intrínseco à realidade complexa e multidimensional que compõe a vida em grupo, pois ultrapassa as fronteiras do simples desencontro de opiniões, de posicionamentos, de valores, de culturas, ensejando a busca constante do ser humano por aquilo que ele acredita ser justo (SPENGLER, 2012, p. 109).

Conceituar o conflito é uma tarefa árdua e enigmática, haja vista que deriva de diversos fatores que se relacionam com questões religiosas, políticas, eco-nômicas e sociais. Assim, não obstante o conflito ter em sua raiz etimológica a ideia de choque, controvérsia, disputa, lide, litígio e contraste, o certo é que “para que haja conflito é preciso, em primeiro lugar, que as forças confron-tantes sejam dinâmicas, contendo em si próprias o sentido de ação, reagindo umas sobre as outras” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 45).

Para Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 117) o conflito, significando choque, pode ser entendido como “a situação existente entre duas ou mais pessoas ou grupos, caracterizado pela pretensão a um bem ou situação da vida e impossibilidade de obtê-lo”. Todavia, transcendendo a noção de lide, o con-flito pode ser considerado de forma mais ampla, sendo, pois, constituído “por uma aspiração e seu estado de não satisfação, independentemente de haver ou não interesses contrapostos” (DINAMARCO, 1999, pp. 140-141).

Pelos conceitos explicitados, constata-se que o conflito envolve diversos as-pectos que não apenas os jurídicos, mas também os sociológicos, psicológicos e filosóficos, que revelam ser imprescindível a utilização da interdisciplinaridade para compreender esse fenômeno tão comum, mas igualmente tão difícil de ser

4 Segundo John Stuart Mill (1999, p. 77), as leis dos fenômenos da sociedade não são nem podem ser outra coisa senão as ações e paixões dos seres humanos unidos entre si em estado de sociedade. Entretanto, os homens, em um estado de sociedade, são ainda homens; suas ações e paixões obedecem às leis da natureza humana individual. Os ho-mens não são, quando reunidos, transformados em outro tipo de substância com pro-priedades diferentes, como o hidrogênio e o oxigênio são diferentes da água, ou como o hidrogênio, o oxigênio, o carbono e o azoto são diferentes dos nervos, músculos e ten-dões. Os seres humanos em sociedade não têm outras propriedades além daquelas que são derivadas e que podem ser resolvidas nas leis da natureza e do homem individual.

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definido. Logo, “uma análise interdisciplinar transcende em muito a assepsia do discurso jurídico tradicional fundado na simples análise legislativa e no estudo de conceitos jurídicos abstratos” (TARTUCE, 2008, p. 26).

Assim, para compreender o real significado e abrangência de um confli-to é imperioso pensar em articulações dinâmicas entre muitas dimensões: o ambiente, os organismos nele inseridos, as variáveis escondidas e as que se inserem nos processos de longa duração (SPENGLER, 2012, p. 110) para, dessa forma, concluir que ele é salutar e inevitável para o crescimento e de-senvolvimento da sociedade, na medida em que gera “vivências e experiên-cias valiosas para o indivíduo em seu ciclo de vida” (TARTUCE, 2008, p. 33).

O conflito, então, pode ser considerado tanto uma potencialidade como uma situação, uma manifestação, um evento ou um processo. Certo é que ele é “uma forma social possibilitadora de elaborações evolutivas e retroativas no concernen-te a instituições, estruturas e interações sociais” (SPENGLER, 2010, p. 248), que promove uma transformação nas relações dele resultantes, ou seja, é um processo dinâmico de interação humana e confronto de poder em que uma parte influencia e qualifica o movimento da outra (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 48).

Nesse sentido, revela-se importante a noção de “transformação do conflito”, segundo a qual o conflito é constituído pela percepção da relação vivida, uma vez que altera o modo de visualizar os fatos tidos como conflituosos, podendo gerar uma mudança de comportamento e, com isso, refletir no andamento da controvér-sia, transformando-a em uma nova experiência (TARTUCE, 2008, p. 33).

Portanto, o conflito tem funções individuais e sociais importantes, propor-cionando aos homens o estímulo para promover transformações e desenvol-vimento social (CALMON, 2007, p. 25). Constata-se então que é justamente o caráter de heterogeneidade que gera o conflito, embora, ao mesmo tempo, promova a mudança de pensamento e de comportamento do ser humano – o que leva a crer que ele não tem necessariamente um aspecto negativo.

Ralph Dahrendorf (1992, p. 40) explicita as diferenças entre as pessoas que geram a heterogeneidade:

As chances de vida nunca são igualmente distribuídas. Não conhece-mos nenhuma sociedade na qual todos os homens, mulheres e crianças tenham as mesmas prerrogativas e gozem dos mesmos provimentos. Não conhecemos sequer uma em que todos os homens tenham o mes-mo status. Provavelmente essa condição não é possível.

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Ao perceber que a sociedade é um tecido de relações humanas que se diferencia e se modifica sem cessar, deve-se encarar o conflito como o meio através do qual essas modificações ocorrem. Assim, o conflito não é somente uma disfunção ou uma coisa ruim; ao contrário, é um impulsio-nador de mudanças qualitativas com saldos bastante positivos, tanto em nível interpessoal quanto no intrapessoal, dependendo da maneira como é visto (JÚNIOR, 2007, p. 41).

Dessa forma, o conf lito e o desacordo são partes integrantes das re-lações sociais e não necessariamente sinais de instabilidade ou de rom-pimento. Um grupo totalmente harmonioso, em que não haja brigas ou desentendimentos, é uma situação utópica e irreal, haja vista que não existe uma unidade social na qual correntes convergentes e divergentes não estão entrelaçadas (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 53).

Por conseguinte, a dinâmica conf litiva torna-se o meio de manter a vida social, de determinar seu futuro, facilitar a mobilidade e valorizar certas configurações ou formas sociais em detrimento de outras. Nesse sentido, para Simmel (1983, p. 124) “essa dinâmica conf litiva permite verificar que o conf lito pode ser tanto positivo quanto negativo e que a valoração de suas consequências se dará justamente pela legitimidade das causas que pretende defender”, razão pela qual a sociedade precisa de doses proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e de competição, de “amor e ódio”, pois uma sociedade verdadeira não se constitui apenas de forças positivas e da inexistência de fatores negati-vos, mas sim do resultado de aspirações positivas e negativas (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 53).

Conclui-se que a função do conf lito é estabelecer um contrato, um pacto entre os adversários que satisfaça os respectivos direitos a fim de se chegar à construção de relações de equidade e de justiça entre os indivíduos no interior de uma mesma comunidade e entre diferentes comunidades, isto é, o conf lito nada mais é que um elemento estrutu-ral das relações interpessoais e, por conseguinte, de toda a vida social (MULLER, 1995, p. 18).

Enfim, não obstante o caráter positivo do conf lito como meio de co-esão e integração social, não se pode olvidar a intrínseca relação entre

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o conf lito e o poder5 e entre este e o monopólio estatal de resolver as contendas. Assim, nem sempre o Estado prestou a tutela jurisdicional. Houve períodos em que ele não era atuante no que se refere aos ímpetos dos indivíduos em obter a satisfação de suas pretensões; sequer havia leis, normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares. O que se tinha para sanar o mal era a força bruta, a violência6 (JÚNIOR, 2007, p. 21).

Nos primórdios da civilização, o indivíduo, valendo-se de meios violentos, impunha a prevalência de sua vontade sobre a do seu antagonista para con-seguir alcançar seus objetivos. A essa forma de solução de conflitos dá-se o nome de autotutela, que se caracteriza pelo uso ou ameaça de uso da força como garantia unilateral de defesa das pretensões, com imposição da decisão de uma das partes à outra (CALMON, 2007, p. 29).

Outra maneira possível é a autocomposição, que é uma solução pací-fica de controvérsias em que as partes, por si mesmas, põem fim às suas pendências através de três formas distintas: a desistência, em que o autor de uma pretensão abdica de seu intento em favor de seu adversário; a sub-missão, que se distingue pela admissão da pretensão pela parte contrária, e a transação, que põe fim à disputa através de concessões recíprocas (JÚ-NIOR, 2007, p. 21).

Com o passar dos tempos, à medida que as sociedades foram se tornan-do mais complexas, produziu-se uma normatização mínima de condutas reguladoras para o convívio harmônico entre os integrantes dos grupos sociais. Assim, paulatinamente, conforme as relações sociais foram se sofisticando, aparece a instituição estatal de monopólio da aplicação do direito, a jurisdição, com seu poder de coerção (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 57).

5 O jogo dos conflitos que opõem os homens é frequentemente um jogo de poder. É verdade que cada pessoa precisa possuir objetos suficientes para satisfazer as suas ne-cessidades vitais – alimentação, alojamento, vestuário – da mesma forma que necessita de poder suficiente para fazer respeitar os seus direitos (MULLER, 1995, p. 18).6 Para Muller (1995, p. 20), a violência está de tal forma presente no coração da histó-ria dos homens que, por vezes, somos tentados a acreditar que ela se encontra inscrita no coração do próprio homem. A violência seria, assim, natural, porém não é a violên-cia que está inscrita na natureza humana, mas sim a agressividade, pois a violência não passa de uma expressão de agressividade.

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O surgimento do ente estatal como força legítima fez com que fosse afastada a justiça privada, considerada como garantia e execução pes-soal do direito. Logo, a jurisdição foi considerada uma das funções do Estado, pois é através dela que o mesmo atua como terceiro, substituto das partes, resolvendo o conf lito em concreto através da aplicação coer-citiva da vontade da lei com o intuito de assegurar a convivência social (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 58). Em outras palavras, o Estado im-põe sua própria atuação como o único meio institucionalmente destinado a fazer valer a vontade concreta do direito objetivo, com vistas a pôr fim às controvérsias e promover a harmonização da convivência social (CALMON, 2007, p. 37).

Max Weber propôs uma teoria diferenciada sobre o conf lito e suas relações de poder, distinguindo o poder legítimo do ilegítimo. Assim, considera-se legítima a autoridade que detém o poder sobre algumas pes-soas, as quais devem obedecê-la. Para ele, existem três tipos de autorida-de/legitimidade de poder: a carismática, que se fundamenta na qualidade pessoal de líder, de modo que os governados se submetem à capacidade de uma pessoa cuja autoridade se legitima pela crença em seus poderes mágicos, sendo cultuada como herói; a tradicional, cuja base de aceita-ção está enraizada no passado e, por fim, a legitimidade legal/racional, na qual o respeito se alicerça sobre regras formais (MORAIS; SPEN-GLER, 2012, p. 61).

O Estado, enquanto detentor de poder e autoridade e embasado em re-gras formais e racionais, é considerado o monopólio não apenas da força mas principalmente da força legítima dentro de um território em que pre-tende manter a coesão social, segundo a teoria weberiana (SPENGLER, 2010, p. 275).

Nesse sentido, a autoridade como poder legítimo pode resolver con-f litos porque as relações de autoridade são sempre de superioridade e subordinação, razão pela qual o controle é exercido por ordens, admoes-tações e proibições, bem como porque a desobediência a seus comandos pode provocar sanções.

Consequentemente, o ente estatal como meio ordinário de resolver os litígios utiliza-se de seu poder para solucionar as controvérsias. O Estado,

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então, através do Poder Judiciário, toma para si a legitimidade de dizer o direito no caso concreto, devendo o juiz decidir os litígios para que não se perpetuem no tempo. Dessa forma, diz-se que “a legitimidade estatal de decidir os conflitos nasce, assim, do contrato social no qual os homens outorgaram a um terceiro o direito de fazer a guerra em busca da paz” (SPENGLER, 2010, p. 278).

Entretanto, ao delegar ao Poder Judiciário a tarefa de resolver os con-f litos, o cidadão ganha, de um lado, a tranquilidade de deter a vingança e a violência privada/ilegítima pela força legítima/estatal, mas perde, por outro, a possibilidade de tratar7 seus conf litos de modo mais autônomo e não violento, mediante outras estratégias (SPENGLER, 2010, p. 283).

A sociedade moderna se constitui como uma cultura de conf litos, na qual não apenas se verifica uma enorme e interminável quantidade de contendas, como também o hábito predominante de atribuir ao Estado a responsabilidade de solucioná-las (CALMON, 2007, p. 25). Assim, a sociedade permanece inerte enquanto seus litígios são solucionados por um juiz.

É inegável que uma das características da contemporaneidade é a constatação de que todos litigam. O demandismo tornou-se comum atu-almente, por isso recorrer ao ente estatal parece ser a única alternati-va para quem vê falhar o cumprimento espontâneo das obrigações e a quebra dos compromissos em todas as esferas. O Poder Judiciário seria a “última trincheira, aquela que resta quando tudo o mais falhou” (NA-LINI, 2008, p. 108).

Espera-se, por isso, que o Judiciário resolva toda e qualquer questão controvertida, que decida quem tem mais direitos, mais razão, ou quem é o vencedor. Ocorre, dessa forma, uma transferência de prerrogativas

7 Utilizar-se-á a expressão “tratamento” em vez de “resolução” de conflitos, justamente por entender que os conflitos sociais não são “solucionados” pelo judiciário no sentido de resolvê-los, suprimi-los, elucidá-los ou esclarecê-los. Isso porque “a supressão dos conflitos é relativamente rara. Assim como relativamente rara é a plena resolução dos conflitos, isto é, a eliminação das causas, das tensões, dos contrastes que os originam (quase por definição, um conflito social não pode ser “resolvido”)”. Por conseguinte, a expressão “tratamento” torna-se mais adequada enquanto ato ou efeito de tratar ou medida terapêutica de discutir o conflito buscando uma resposta satisfatória (SPEN-GLER, 2010, p. 26).

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que “engessa a solução da lide em prol da segurança, ignorando que a reinvenção cotidiana e a abertura de novos caminhos são inerentes a um tratamento democrático” (SPENGLER, 2010, p. 284).

Essa transferência de responsabilidades que foi passada ao ente esta-tal é fruto da racionalização weberiana, haja vista que, ao ser concedido ao Estado a gestão dos litígios, lhe é dado também o monopólio legítimo da decisão vinculante. Ele detém o poder legal de dizer o direito e essa personificação se traduz na pessoa do juiz, cuja função é dizer a última palavra, “não importa qual, mas a última” (SPENGLER, 2010, p. 285).

Dessa maneira, atrelado ao monopólio do Poder Judiciário está o di-reito de acesso à justiça dos cidadãos que necessitam concretizar essa prerrogativa para ver satisfeitos os seus direitos; todavia, nem sempre isso ocorre, seja por obstáculos que os impedem de serem exercidos, seja porque a função jurisdicional está sofrendo inúmeras crises. Assim, na sequência, serão analisados o direito de acesso à Justiça, os óbices a se-rem transpostos, as crises da função estatal e, por fim, as possibilidades encontradas para ver esse direito realmente concretizado.

1.2 Acesso à Justiça, crise da função jurisdicional e as possibilidades

Surgindo o conf lito a partir da falta de harmonia entre as pessoas e sendo desejada a sua solução, a prestação jurisdicional estatal apare-ce como o meio tradicional para tanto. Contudo, diante das crises que assolam a mesma e o Estado como um todo, que se exprimem na falta de eficiência e de respostas que sejam satisfatórias para as partes en-volvidas, conclui-se que esse não é o único meio legítimo para compor as controvérsias, momento em que diferentes desafios emergem como novos paradigmas, conforme se verá na sequência.

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1.2.1 O acesso à justiça: conceito e os obstáculos a serem superados

O acesso à justiça está presente na sociedade desde os tempos mais remotos. No entanto, a ele foram atribuídos diferentes sentidos face às metamorfoses sociais ocorridas ao longo da história8. Assim, como destacam Cappelletti e Garth (1988, p. 12), ele “pode, portanto, ser encarado como o requisito funda-mental – o mais básico dos direitos humanos9 – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos a todos”.

Logo, para que se faça uma análise mais acurada da expressão “acesso à jus-tiça”, imprescindível é compreender o significado da palavra “justiça”.

Inúmeras são as controvérsias acerca do vocábulo “justiça”, seja em relação ao seu significado ou à própria etimologia; todavia, é incontroverso que ela é um dos maiores fomentadores das incessantes transformações da sociedade (BARBOSA, 1984, p. 29), na medida em que o desejo de justiça está esculpido no âmago das pessoas. Nesse sentido, Hans Kelsen assevera que “o anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade10” (KELSEN, 1997, p. 2).

A justiça é, pois, um valor supremo, cujo sentido consiste em permitir que todos os outros direitos sejam respeitados e concretizados sob a égide de uma

8 Como destacam Cappelletti e Garth (1988, p. 9 e 10), o conceito de acesso à justiça tem sofrido uma transformação importante, uma vez que nos estados liberais burgue-ses dos séculos dezoito e dezenove os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista vigorante, ou seja, o direito de acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo de propor ou contestar uma ação. A teoria era de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um “direito natural”, não necessitavam de uma ação do Estado para a sua proteção. Porém, à medida que as sociedades do laissez-faire cresceram em tamanho e complexi-dade, bem como a partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram um caráter mais coletivo, o acesso à justiça passou a ser encarado como um direito acessível a todos os cidadãos.9 Os direitos humanos devem ser entendidos, nesse sentido, a partir de uma pers-pectiva emancipadora, cujo objetivo é contribuir para o incremento de níveis de hu-manização, desenvolvidos como o conjunto de práticas sociais, simbólicas, culturais e institucionais que repugnam qualquer excesso de poder que impede o ser humano de constituir-se como sujeito (RUBIO, 2010, p. 38).10 Segundo Kelsen (1997, p. 3), felicidade é a satisfação de certas necessidades reco-nhecidas como legítimas pela autoridade social – o legislador –, como a necessidade de alimentação, vestuário, moradia e equivalentes. Assim, para que o homem seja feliz e satisfaça todas essas necessidades é imprescindível o direito de acesso à justiça.

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ordem social que tem como pressupostos a igualdade11 e a liberdade12, isto é, que assegure a inviolabilidade das garantias constitucionais pela máxima de “dar a cada um o que lhe é devido” (SILVA, 2005, p. 83). Assim, “numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais” (RAWLS, 2000, p. 4).

Portanto, intrínseco aos valores de igualdade e liberdade que compõem o sentido da palavra “justiça”, bem como à busca incessante pelo direito, está o ideal de acesso à justiça, cujos termos são de difícil definição, mas que servem para designar duas finalidades básicas do sistema jurídico:

[...] O sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou re-solver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos (CAPPELLETI; GARTH, 2002, p. 8).

Assim, diferentes acepções foram atribuídas à expressão “acesso à justiça”, sendo fundamentalmente duas: a primeira converge no mesmo sentido e conteúdo que o Poder Judiciário; por conseguinte, as expressões “acesso à justiça” e “acesso ao Poder Judiciário” são sinônimas; a segunda, partindo de uma visão axiológica, compreende o acesso à justiça como um acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano (RODRIGUES, 1994, p. 28).

Nesse diapasão, tal direito não deve ser entendido apenas como um simples direito de acessar o Poder Judiciário, pois seu conteúdo é muito mais abran-gente, compreendendo o acesso a uma ordem jurídica justa, que deve ser ex-tensiva ao maior número de pessoas (AMARAL, 2009, p. 51). A esse respeito, Watanabe (1988, pp. 128-135) descreve os elementos da ordem jurídica justa:

11 Nesse sentido, a igualdade deve ser dinâmica e não estática, real e não apenas for-mal, no sentido de que o Estado deve fornecer os instrumentos para suprir as situações de desigualdade para, em superando a desigualdade de fato, chegar-se à igualdade de direito (GRINOVER, 1990, p. 244).12 Amartya Sen (2000, pp. 25-26) aduz que existem cinco tipos distintos de liberdade: as liberdades políticas, as facilidades econômicas, as oportunida-des sociais, as garantias de transparência e a segurança protetora. Cada uma dessas cinco espécies representam direitos e oportunidades que os cidadãos possuem, o que faz com que eles não precisem ser vistos como beneficiários de engenhosos programas de desenvolvimento e, portanto, passem a ser respon-sáveis por suas decisões.

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Os dados elementares do direito à ordem justa são: a) o direito à infor-mação; b) o direito à adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do país; c) o direito ao acesso a uma justiça adequada-mente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; d) o direito à pré-ordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela dos direitos; e) o direito à remoção dos obs-táculos que se anteponham ao acesso efetivo a uma justiça que tenha tais características.

Acesso à justiça significa, acima de tudo, a busca por respostas justas, que estejam em consonância com o valor de justiça desenvolvido e almejado pela sociedade e de acordo com cada momento histórico vivido, ou seja, “abarca uma série de possibilidades de verificação e realização da justiça, o que se coaduna com a nossa realidade multifacetada na configuração de um sistema jurídico pluriprocessual” (DINAMARCO, 2004, p. 114).

Quando se fala de acesso à justiça, o objetivo direto é tornar efetivo um dos principais e fundamentais direitos do cidadão: o de garantir seus direitos e não apenas a sua propositura (SILVA, 2005, p. 96), motivo que leva a crer que o conceito desse direito está amplamente relacionado com a possibilidade/viabilidade de acessar o sistema jurídico em igual-dade de condições, com a busca de tutela específica para o direito ou interesses ameaçados e com a produção de resultados justos e efetivos (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 31).

Na ordem jurídica brasileira, essa tutela está consubstanciada no artigo 5º, inciso XXXV, da Carta da República de 1988. Para Watanabe (2011, p. 5), o inciso descrito “deve ser interpretado não apenas como garantia de mero acesso aos órgãos do Poder Judiciário, mas como garantia de acesso à ordem jurídica justa, de forma efetiva, tempestiva e adequada”, razão pela qual a ideia de que o acesso à justiça compreende somente a simples garantia de ingresso aos órgãos estatais já está ultrapassada e não mais se coaduna com a atual e plural sociedade.

Dessa forma, todo cidadão que se depara com qualquer lesão ou ameaça de direito pode se valer dos órgãos estatais para que estes o socorram não apenas por meio de processos judiciais, mas por ações simples, “como a

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obtenção de documentos essenciais para o exercício da cidadania e até mesmo de simples palavras de orientação jurídica” (WATANABE, 2011, p. 4), e, ainda, por instrumentos diferenciados e autocompositivos, como se verá posteriormente. Por isso, “no processo democrático, o acesso à jus-tiça desempenha um relevante papel ao habilitar o cidadão a tutelar seus interesses e possibilitar à sociedade a composição pacífica dos conflitos” (TARTUCE, 2008, p. 97).

Não obstante o processo de civilização da humanidade ter sido marcado pelo reconhecimento formal de direitos, sua efetiva aplicação tem sido ne-gada para a grande maioria das pessoas (BEZERRA, 2008, p. 113). Assim, apesar do acesso à justiça ser um direito constitucionalmente reconhecido, inúmeros são os óbices que dificultam seu exercício, entre eles o custo proces-sual, a demora na pacificação do conflito, o número crescente de demandas de cunho meramente protelatório, a grande quantidade de meios recursais, entre outros (ARAÚJO, 2011, p. 37).

A fim de sistematizar e contextualizar os entraves que dificultam o acesso amplo e irrestrito do cidadão à justiça, Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 168) descreve que esses empecilhos são de três tipos: econômi-cos, sociais e culturais. O primeiro problema apontado como obstáculo ao efetivo acesso à justiça é a carência de recursos financeiros pela grande maioria população, isto é, tendo em vista o elevado custo do processo ju-dicial, inúmeras pessoas não conseguem arcar com as despesas decorren-tes das custas processuais, honorários advocatícios, perícias, entre outras (MATTOS, 2011, p. 76).

Nesse sentido:

[...] Estudos revelam que a justiça civil é cara para os cidadãos em geral, mas revelam sobretudo que a justiça civil é proporcionalmente mais cara para os cidadãos economicamente mais débeis. É que são eles fundamentalmente os protagonistas e os interessados nas ações de menor valor e é nessas ações que a justiça é proporcionalmente mais cara, o que configura um fenômeno da dupla vitimização das classes populares face à administração da justiça (SANTOS, 2008, p. 168)

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Aliado ao elevado custo do processo tem-se a demasiada duração dos trâ-mites dos processos judiciais, seja pela enorme gama de recursos, muitos de-les apenas protelatórios, seja pela falta de preparo dos servidores ou de novas tecnologias. O certo é que essa demora eleva consideravelmente as despesas para aqueles que litigam. José Renato Nalini (2008, p. 13) reforça essa ideia, referindo que “a multiplicidade de recursos no sistema processual e as quatro instâncias abertas e disponíveis atuam mais para prolongar indefinidamente as lides do que para trazer segurança jurídica”.

Outro fator que distancia o cidadão da administração da justiça decorre do estrato social ao qual pertence – óbice social. Assim, quanto menor for o poder aquisitivo, menor será o conhecimento acerca de seus direitos e, por consequência, menor será a sua capacidade de identificar a violação de seus direitos e uma possível reparação para os mesmos (CESAR, 2002, p. 97).

A esse respeito, Souza Santos (2008, p. 170) aduz que:

[...] Os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um pro-blema que os afeta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou ignorar as possibilidades de reparação jurídica.

Ademais, nessa classificação há restrições culturais segundo as quais mes-mo reconhecendo um problema como jurídico as pessoas hesitam em recorrer aos tribunais para interpor uma ação. Essa hesitação deriva de dois fatores: o primeiro tem a ver com experiências judiciais pretéritas, das quais resulta um sentimento de decepção ocasionado ou por serviços prestados de manei-ra diferente, em razão dos parcos recursos recebidos pelos advogados que, em função disso, acabam não se dedicando tanto ao exercício da profissão, ou por não obterem a decisão almejada; o segundo procede da insegurança produzida pelo temor de represálias que possa vir a sofrer caso recorra ao Poder Judiciário, bem como da falta de iniciativa de propor uma ação, mesmo reconhecendo um problema como problema (SANTOS, 2008, p. 170). Logo, pessoas de gerações mais longevas ainda se orgulham de proclamar: “Nunca entrei no fórum, nem como testemunha!” (NALINI, 2008, p. 106).

Cappelletti e Garth ressaltam que

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[..] procedimentos complicados, formalismo, ambientes que intimi-dam, como o dos tribunais, e juízes e advogados, figuras tidas como opressoras, fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 24)

Os imponentes palácios da justiça, o traje, a linguagem extremamente formal e os ritos são apenas alguns fatores que intimidam o cidadão na bus-ca por justiça, certamente por não se sentirem aptos a reivindicarem seus direitos. A insegurança, pois, toma conta daquele que deveria recorrer ao Judiciário, ensejando cada vez mais um distanciamento entre aqueles que mais necessitam do Poder Judiciário, os hipossuficientes, e o verdadeiro acesso à justiça, pois a experiência de passar pelo Judiciário, com todo o seu formalismo, seus trâmites e, sobretudo, a sua lentidão, é quase sempre nefasta (NALINI, 2008, p. 109).

A discriminação social no acesso à justiça é um fenômeno complexo e complicado de ser administrado, haja vista que envolve questões de cunho econômico, social e cultural resultantes da interiorização de valores tão arrai-gados que se tornam difíceis de modificar (SANTOS, 2008, p. 170-171). Em vista disso, não basta que o acesso à justiça seja um direito reconhecido cons-titucionalmente; deve ser respeitado e exercitado, caso contrário os cidadãos tornam-se meros expectadores do mundo que os rodeia.

Dessa forma, após essa breve conceituação do acesso à justiça e dos entraves que o circundam, adentrar-se-á nas crises da jurisdição com o fito de corroborar a tese de que o sistema jurisdicional atual está cada vez mais ineficiente face à complexidade social vivida.

1.2.2 As crises da função jurisdicional, sua ineficiência diante da complexidade social e o descrédito do cidadão na jurisdição

A jurisdição é uma das expressões do poder estatal (DINAMARCO, 1999, p. 115) que visa a garantir a neutralidade dos interesses conflitantes pelas normas de direito substancial, preservando a ordem e a paz na so-ciedade. É através do exercício da função jurisdicional que uma decisão é

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emanada e imposta por um terceiro, juiz, com o objetivo de resolver a lide em concreto baseado na legislação vigente, ou seja, é o responsável por dizer a quem pertence o direito.

Consubstancia-se a jurisdição em três pressupostos básicos: poder, fun-ção e atividade. O poder se traduz na manifestação do poder estatal, ou seja, é a capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Como função, expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a harmonia e o equilíbrio social mediante a realização do direito justo. Como atividade, é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete (CINTRA; GRINO-VER; DINAMARCO, 2012, p. 155).

Sendo latente a preocupação com a função jurisdicional, desde a pri-meira Constituição Brasileira há um capítulo próprio destinado ao Po-der Judiciário, que o descreve como órgão encarregado de administrar a justiça (NALINI, 2008, p. 31). Na mesma esteira, foi editada a Emenda Constitucional nº 45/2004, que tem como pressuposto “efetivar o acesso ao Judiciário através do cumprimento de uma prestação de serviço, pau-tado na preocupação de alcançar uma resposta eficiente aos anseios dos jurisdicionados” (TRENTIN; SPENGLER, 2012, p. 30).

Entretanto, diante da explosão de litigiosidade que vivencia o Poder Judiciário, ele não está mais conseguindo cumprir com seu papel de ga-rantidor da justiça, realça-se, por conseguinte, as contínuas incapacida-des e deficiências da estrutura judiciária. Devido a essa assertiva é que se deve discutir a crise da jurisdição a partir da crise do Estado13, anali-sando como consequência a perda paulatina de soberania, a incapacidade de proporcionar respostas céleres e condizentes com os litígios atuais e a fragilidade nas esferas legislativa, executiva e judiciária (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 76), ou seja, “a estrutura funcional do Estado, que deveria possibilitar a realização da jurisdição, também se encontra em crise” (SPENGLER, 2010, p. 104).

Assim, ao se deparar com um conf lito de interesses, o cidadão busca tradicionalmente na jurisdição, Poder Judiciário, um meio de ver a sua

13 De acordo com Spengler (2010, p. 36), o Estado contemporâneo está em crise, devendo ser revistos todos os papéis, tanto na esfera econômica quanto nos modelos de regulação social e jurídica tradicionais.

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situação resolvida, porém, “tratar o conf lito judicialmente significa recorrer ao magistrado e atribuir a ele o poder de dizer quem ganha e quem perde a demanda”. Conclui-se, em vista disso, que a magistratu-ra apenas decide as controvérsias que lhe são alheias, encaixando-as em um modelo normativo pré-estabelecido, sem ouvir nem sentir as partes. “Para os juízes, o outro não existe; sempre decidem a partir de si mesmos, de seus egos enfermos. Decidem sem responsabilidade porque projetam a responsabilidade na norma” (SPENGLER, 2010, pp. 290-291).

Para Joel Dias Figueira Júnior (1999, p. 106), o papel desenvolvido pelos magistrados na sociedade atual pode ser resumido em dois mo-delos: o primeiro14, que se define como “administrador”, visa tornar concreta a vontade da lei em cada caso através dos escopos do Estado dentro da clássica tripartição dos poderes; o segundo15, que pode se conceituar como “garante”, à medida que opera fora e dentro dos ou-tros poderes do Estado, exerce uma função de salvaguarda dos direitos fundamentais do cidadão.

A concepção de que o juiz é um ser sagrado, agraciado com o dom de decidir a vida das pessoas, não passa de um simbolismo exagerado, fruto da ritualização do processo, que buscou arcabouços na mitolo-gia, na história e até mesmo na Bíblia. Dessa forma, o simbolismo judiciário, a princípio, teve origem em uma ordem cosmológica, cen-trando-se na procura de uma comunicação com as forças da natureza. Posteriormente, foi visto sob uma óptica religiosa, através da qual se acreditava que os juízes eram “homens aos quais incumbe uma tarefa sobre-humana, para a qual se devem tornar dignos” (GARAPON, 1997, pp. 27-30).

A ritualização do Poder Judiciário passa por diversos elemento desde

14 O primeiro modelo, “administrador”, corresponde historicamente ao rol dos juízes integrantes de países da civil law (ou de derivação românica), que têm a sua expressão máxima na Europa Continental (JÚNIOR, 1999, p. 106).15 O segundo modelo, “garante”, corresponde aos juízes integrantes dos paí-ses da common law (ou anglo-americanos), nos quais é tradicional a contrapo-sição da magistratura aos poderes do Estado como garantia do corretismo nas suas respectivas funções (JÚNIOR, 1999, p. 106).

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o traje judiciário16, os gestos17, as expressões18 e as posturas19, que representam um verdadeiro abismo entre o cidadão que quer ver o seu direito reconhecido e o juiz que configura um ser superior dotado do poder de dizer a quem cabe o direito. Tal separação é caracterizada pelo simbolismo da porta de um Pa-lácio de Justiça, na medida em que nunca se encontra ao mesmo nível da rua, sendo necessário que o espectador eleve seu olhar para o céu para vê-la. Ela, pois, representa o caráter sagrado do edifício, acentuando “a separação entre o espaço judiciário e o espaço profano da cidade” (GARAPON, 1997, p. 35).

O juiz afastado de si e dos outros não consegue perceber nem compreender a realidade que o rodeia. A vida só entre os livros e os processos é como “a luz da ribalta que ofusca os olhos de quem queira enxergar o público” (BOMFIM, 1998, p. 71). Dessa forma, o magistrado não deve ser encarado como um ser diferenciado por sua sacralidade; na verdade, deveria ser um mero intermedi-ário entre os conflitos sociais e o Estado, isto é, um promotor de justiça social. Contudo, nem sempre isso ocorre.

16 A história do traje judiciário confunde-se com a história da própria profissão judi-ciária. Ela é testemunha do desejo de igualar em dignidade, por meio da magnificência dos símbolos, a nobreza guerreira. A toga serviu para distinguir essa nova categoria de letrados, na qual a monarquia se apoiava para afirmar o seu poder em detrimento do feudalismo. O traje judiciário tem a sua origem na realização da sagração; assim, o traje real e o religioso são trajes do poder glorificador da autoridade, e os de cerimônia do Império inspiraram as vestimentas litúrgicas. O traje judiciário cobre um duplo corpo: o próprio corpo do personagem que o veste e o corpo invisível do social. A toga tem uma dupla função: purificadora e protetora, pois protegerá aqueles que a usam de qualquer conluio com o criminoso e de qualquer confusão com o horror do crime. Essa proteção suscita um sentimento de superioridade, na medida em que assinala a vitória do parecer sobre o ser (GARAPON, 1997, pp. 80-86).17 Os gestos realizam a estética do processo; decompõem-se em posição do corpo e em expressões que culminam no juramento. A mão levantada do juramento, o efeito da manga, a designação acusadora do índex, a posição em sentido dos agentes ou do acusado que ouve o veredicto, a entrada solene no tribunal ou o retinir das algemas correspondem a outros tantos gestos que constituem a base corporal do ritual (GA-RAPON, 1997, p. 119).18 Existem tantas expressões como pessoas e, logo, como processos. Porém, foram identificados quatro tipos de expressões nas jurisdições americanas: afável (3%), dura (5%), firme e, muitas vezes, moralizadora (14%), impessoal e burocrática (78%) (GA-RAPON, 1997, p. 122).19 O corpo é o ponto de referência primordial de qualquer experiência. O ritual judi-ciário organiza-se em redor de três posturas fundamentais: o homem a andar, a estar de pé e sentado. O ritual é, assim, a deformação caricatural dessas posturas (GARAPON, 1997, pp. 120-121).

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Não obstante esse caráter sagrado e superior que o juiz representa por “di-tar as regras do jogo”, sendo o único capaz de decidir quem tem mais ou menos direito ou quem tem razão diante de uma contenda, não representa o modo mais adequado e democrático de tratar os conflitos; ao contrário, essa forma de compor a lide nada mais é que uma maneira de “garantir que o direi-to objetivo material seja cumprido” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2012, p. 157).

Nessa senda, diz-se que ao Poder Judiciário não cabe a tarefa de eliminar os conflitos, mas apenas decidi-los20, pois as competências do ente estatal fixam-se nos limites de sua capacidade de absorver e resolver litígios. Sua incumbência não é eliminar os vínculos21 existentes nas relações sociais, mas, ao contrário, a ele tão somente é imputado o poder de interpretar esses laços de uma maneira diferenciada (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 71).

O Poder Judiciário apenas interrompe a relação controvertida, mas não impede o desenvolvimento de tantas outras. Seu objetivo não é suprimir os conflitos sociais, mas sobre eles decidir, se lhe for demandado. Assim, ele “funcionaliza os conflitos sociais, mas não a própria vida. O que se espera é que decida os conflitos que absorve, dados os graves riscos para a sua funcio-nalidade e para a própria sociedade” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 72).

Assim, o que se constata é que padrões tradicionais de resolução de contro-vérsias já não encontram mais sustentação e, portanto, legitimidade, em face da pressa que a humanidade tem em atingir as promessas feitas para o novo milênio: “A sociedade contemporânea já deixou longe o perfil de comunidade estável de tempos longevos” (NALINI, 2008, p. 5) e quer, acima de tudo, ver seus conflitos tratados.

Em razão disso, as práticas judiciais atuais veem as suas atividades com-prometidas e sem solução de continuidade, em virtude de um novo e incerto cenário no qual o “Estado perde a sua autonomia decisória, deixando de ser o posto central de poder do qual emanam comportamentos, escolhas e deci-

20 Nas palavras de Clóvis Gorczevski (2006, p. 1551), o direito não resolve conflitos, não o verdadeiro conflito, aquele que geralmente é interior, que é o gerador do conflito externo. O que o direito faz é utilizar a técnica de substituição, transformando o con-flito pessoal em jurídico.21 O conflito social representa um antagonismo estrutural entre os elementos de uma relação social que, embora antagônicos, são estruturalmente vinculados. O vínculo é a condição sine qua non do conflito (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 71).

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sões” para dar lugar a uma jurisdição diferenciada que opera com justiças não profissionais e deflagra, por isso, uma crise de identidade funcional (SPEN-GLER, 2010, p. 108).

Essa crise de identidade se caracteriza “por um certo embaçamento do pa-pel judicial como mediador central de conflitos, perdendo espaço para outros centros de poder, talvez mais aptos a lidar com a complexidade conflitiva atu-al, mais adequados em termos de tempo e espaço” (SPENGLER, 2009, p. 67).

Aliado a isso há um descompasso entre a realidade social, econômica e cul-tural, da qual são oriundos os conflitos, e a realidade legal, que está obsoleta e ultrapassada, uma vez que muitas legislações foram criadas a partir de va-lores, interesses e anseios que hodiernamente não correspondem à realidade vivenciada. A utilização de leis e códigos arcaicos, que muitas vezes ainda estão em vigor, tem, na prática, sua eficácia reduzida pela defasagem.

Em contrapartida, a legislação atualizada e condizente com as contendas de cunho individual e coletiva sofre com a cultura arraigada dos profissio-nais do direito, que esbarram no individualismo22 e formalismo23 exagerado (SPENGLER, 2010, p. 113). Os juízes formalistas “consideram que a função jurisdicional se esgota no respeito aos ritos processuais e solenidades, não im-portando que disso resulte injustiça, ineficiência da decisão, desrespeito aos direitos humanos” (BOMFIM, 1998, p. 74); eles se preocupam unicamente em cumprir as leis.

Intrinsecamente relacionada à crise de identidade tem-se a crise de eficiên-cia, que se destaca pela impossibilidade do Poder Judiciário de dar respostas eficientes à complexidade conflitiva atual. Há então um “flagrante descom-passo entre a procura e a oferta de serviços judiciais, em termos tanto qua-litativos quanto quantitativos” (FARIA, 1995, p. 11). Essa crise de eficiência pode ser analisada sob diversas perspectivas, sendo a primeira delas chamada de “crise estrutural”, relacionada ao financiamento, infraestrutura de instala-ções, pessoal, equipamentos, custos – que se referem não apenas aos valores efetivamente despendidos, mas também ao custo diferido, que se reflete em

22 Para Spengler (2010, p. 113), o individualismo se traduz pela convicção de que a parte precede o todo, ou seja, de que os direitos do indivíduo estão acima dos direitos da comunidade. 23 O formalismo decorre do apego a um conjunto de ritos e procedimentos burocrati-zados e impessoais, justificados em nome da certeza jurídica e da segurança do proces-so (SPENGLER, 2010, p. 113).

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função do imenso tempo que as demandas demoram para serem apreciadas (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 78).

Uma questão relevante é a que tange aos custos processuais, que se tornam imensamente dispendiosos para a maioria da população e são justificados pelo custo econômico dos serviços públicos, de profissionais privados, como os advogados, e os custos indiretos, como os cartoriais, registrais, entre outros, o que só faz com que se afaste ainda mais os que mais necessitam da justiça (BEZERRA, 2008, pp. 188-189).

Ademais, torna-se imperioso refletir sobre a falta de estrutura física e de pessoal não apenas no Poder Judiciário, mas em todos os órgãos estatais. O sistema de administração do judiciário padece de falta de infraestrutura física dos prédios, salas de audiências, materiais de expediente, além da moder-nização, informatização e de novas tecnologias que, se adotadas, poderiam diminuir significativamente o tempo das demandas judiciais. Conjuntamente está a falta de servidores e de qualificação para os demais que se encontram na labuta. Nalini (2008, p. 120) ressalta que “o despreparo administrativo de algumas cúpulas faz com que a gestão dos tribunais reste confiada a uma in-teligentzia nem sempre proficiente ou bem intencionada”.

Posteriormente, verifica-se uma crise objetiva, também denominada prag-mática, que se relaciona com aspectos pragmáticos da atividade jurídica, en-globando questões relativas à linguagem técnico-formal utilizada nos rituais e trabalhos forenses, à burocratização e lentidão dos procedimentos e, ainda, ao acúmulo de demandas (SPENGLER; BRANDÃO, 2009, p. 69).

Evidencia-se que a morosidade é uma das maiores causas que fomentam a cri-se do judiciário, posto que “constitui problema muito mais amplo, ultrapassando o interesse das partes envolvidas e se conformando como ferida social à medida que o Estado não resolve a atividade a que se propõe de forma adequada e eficiente” (TRENTIN; SPENGLER, 2012, p. 57). Dessa forma, o excessivo número de recur-sos e agravos que facultam os legisladores acaba procrastinando a solução do pro-cesso, bem como o exagerado número de procedimentos especiais e formalidades, que ocasionam um dos principais problemas do ordenamento jurídico: a demora do ente estatal em fornecer respostas aos problemas que batem às suas portas.

Santos (2008, pp. 42-43) aponta dois tipos de morosidade na prestação da tutela jurisdicional:

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A morosidade sistemática é aquela que decorre da burocracia, do po-sitivismo e do legalismo. Muitas das medidas processuais adaptadas recentemente no Brasil são importantes para o combate à morosidade sistêmica. Será necessário monitorar o sistema e ver se essas medidas estão a ter realmente a eficácia, mas há morosidade ativa, pois consiste na interposição, por parte dos operadores concretos do sistema judi-cial (magistrados, funcionários ou partes), de obstáculos para impedir que a sequência normal dos procedimentos desfechem o caso.

Ora, por mais justa e correta que possa ser uma decisão judicial, ela se torna ineficaz e inócua quando procrastinada no tempo, haja vista que, muitas vezes, é entregue ao jurisdicionado justamente no momento em que ele não a necessita mais, ou seu reconhecimento não mais o interessa (TRENTIN; SPENGLER, 2012, p. 55).

Outro problema relativo à crise pragmática é o excesso de formalismo dos profissionais da área jurídica (juízes, advogados e promotores de justiça), que dificultam sobremaneira o diálogo entre aqueles que necessitam ver seus pro-blemas solucionados e os que estão incumbidos de dizer a justiça. A lingua-gem rebuscada e barroca que é utilizada nos pareceres e sentenças torna as decisões incompreensíveis e sem efetividade para as pessoas comuns, o que acaba por distanciar o judiciário do povo (AMARAL, 2009, p. 43).

É latente a necessidade de haver uma comunicação mais clara, que evite os termos alcunhados como “juridiquês”, os quais dificultam a compreensão da atuação da justiça por parte dos cidadãos. Além disso, os procedimentos devem se tornar mais simplificados e otimizados, caso contrário a morosidade e lentidão não serão mais consideradas como exceções ocasionadas pela crise, mas sim a regra.

Nesse início de milênio, um processo que ainda demande a utilização de excessivo número de fórmulas, burocracias e o cultivo de uma retórica arcaica e superada, intangível para o destinatário e, mesmo, para alguns profissionais, é totalmente incompreensível para o ritmo da sociedade moderna.

Outrossim, os atos de comunicação não se modernizaram e são confiados a um tratamento artesanal. Tal como acontece com a coleta de provas que, salvo em algumas comarcas onde as audiências são gravadas, é realizada por meios superados, uma vez que a oitiva das partes e testemunhas, na grande maioria das vezes, ocorre mediante a redução de termo por escrito, de manei-

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ra idêntica à realizada na Idade Média, o que faz concluir que o processo nada mais é que a institucionalização do conflito, e não a sua verdadeira solução (NALINI, 2008, pp. 175-176).

Quanto ao acúmulo de processos, percebe-se atualmente que o número ex-cessivo de feitos é a regra no judiciário. Todos recorrem a ele: ricos, pobres, pessoas físicas e jurídicas, empresas, ONGs, sindicatos e bancos, associações de classe e escolas. Invoca-se o juiz “quando se tem razão e, principalmente, quando não se tem nenhum direito”, ou seja, independentemente de querer ver um direito satisfeito ou não, as pessoas procuram o Poder Judiciário para que diga a última palavra no litígio; porém, a complexidade do processo causa uma lentidão tão grande que “a injustiça consegue uma sobrevida com a lon-ga duração das demandas, que podem se prolongar por mais de uma década” (NALINI, 2008, pp. 106-107).

A terceira crise está atrelada à incapacidade tecnológica dos operadores ju-rídicos tradicionais de lidarem com as novas realidades fáticas, as quais neces-sitam não apenas da construção de novos mecanismos legais, mas também da reformulação dos pensamentos arraigados, “moldados que foram para preten-derem funcionar a partir de silogismos lógicos neutralizados da incidência de uma pressuposição legal-normativa a um fato ocorrido na realidade” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 79). Tal crise é chamada de subjetiva ou tecnológica.

Por fim vem a crise paradigmática, que se relaciona com os métodos e con-teúdos utilizados pelo direito na busca do tratamento pacífico dos conflitos, a partir da atuação prática do direito aplicável ao caso levado a juízo. Vis-lumbra-se, nesse sentido, a dificuldade de adequação do modelo jurisdicional às necessidades sociais, o que leva a admitir que o Poder Judiciário não cor-responde mais à realidade fática da sociedade contemporânea (SPENGLER; BRANDÃO, 2009, p. 69).

O processo intrincado, obsoleto e ideologicamente voltado à preservação das injustiças, juntamente com o excesso de ritualismo (NALINI, 2008, p. 182), não permite que a jurisdição consiga dar conta dos conflitos atuais, bem como das expectativas e anseios da sociedade moderna. Assim, as decisões judiciais representam a mera aplicação da lei ao caso concreto; apenas resol-vem a lide sem, entretanto, atacar suas causas.

O exercício da magistratura tornou-se distante da sociedade e em descom-

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passo em relação à atual realidade. A sociedade mudou, os conflitos sociais tornaram-se mais complexos, mas o aparelho burocrático do judiciário, com regras próprias de organização e atuação específica desenvolvida e aplicada por um corpo de profissionais, continua o mesmo, o que leva a crer que já não consegue mais decidir os conflitos mediante a simples aplicação de normas gerais e abstratas (SALES, 2007, p. 47).

A multiplicação do número de conflitos é uma realidade inegável e inexorá-vel. Sua verificação decorre do crescimento da interação e da interdependên-cia humana e organizacional. Assim, a presente sociedade, hiperdinâmica que é, requer, imperiosamente, a existência de um sistema jurídico e de métodos de tratar controvérsias que sejam igualmente ágeis, atualizados e idôneos para pacificar essa sociedade convulsionada (TARUCE, 2008, p. 27).

Todavia, assiste-se à crise do judiciário e do Estado como um todo diante de todas essas deficiências abordadas, o que faz com que

a população tenha a maior parte de suas expectativas frustradas pela inoperância dos órgãos públicos, que não conseguem realizar suas funções, e pelo agravamento das condições econômicas, criando jun-tos um clima de insegurança que impede a antevisão de um futuro promissor (AGRA, 2005, p. 11)

Enfim, o excesso de burocracia do Poder Judiciário, a morosidade na pres-tação da resposta pleiteada e resultados inadequados aos valores sociais são alguns dos fatores que promovem no cidadão a sensação de insegurança e descrença na jurisdição.

Assim, apesar do Poder Judiciário ser um meio de consolidação dos fins do Estado mediante a prestação jurisdicional, a crise pela qual passa a noção de justiça no consciente coletivo do povo relaciona-se à descrença na relação de po-der estabelecida entre este mesmo poder e a sociedade (MATTOS, 2011, p. 110).

A descrença não decorre apenas da distância entre o cidadão comum e os ri-tos e da linguagem excessivamente formal dos processos judiciais, mas também do tempo longo dos procedimentos, da inadequação das decisões ante a comple-xidade dos litígios que se apresentam e, principalmente, da impossibilidade de seu cumprimento (SPENGLER, 2010, p. 111).

Há, então, um descompasso entre o aparato judicial como um todo e o

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sistema político e social, que resulta no “desmoronamento dos princípios que nortearam a organização política da sociedade por vários séculos, tanto no campo de sua incidência normativa quanto no campo de seu valor simbólico” (AGRA, 2005, p. 11).

Essa desconexão torna cada vez maior o abismo entre a aplicação e inter-pretação das leis e a sociedade atual. Assim, a capacidade do Poder Judiciário de absorver e decidir conflitos está atrelada à sua maior ou menor sensibilida-de a mudanças sociais, o que se traduz através da profundidade das mudanças e da velocidade com que se processam essas transformações na esfera social (SPENGLER, 2010, p. 113).

A distância entre a função do judiciário e as demandas sociais representa claramente que o ente estatal não está mais conseguindo dar conta dos con-flitos que lhe são apresentados; tampouco consegue prolatar decisões que se coadunem com a realidade fática e que sejam eficientes ao ponto de extinguir definitivamente o conflito para que novas lides não voltem a bater às suas por-tas. Vive-se, por consequência, a crise da jurisdição e do Estado.

A descrença decorre não apenas da falta de compromisso político para com as questões sociais, mas também do descompasso entre a função da jurisdi-ção e a complexidade social, o que faz com que novas possibilidades surjam como respostas democráticas e condizentes com a realidade vivida, buscando superar todos os entraves que impedem o cidadão de acessar a justiça em igualdade de condições. Uma abordagem dessas premissas ocorrerá a seguir.

1.2.3 Perspectivas para o acesso à justiça: uma abordagem a partir da terceira onda renovatória

Chega-se à sacralização das praxes e, até mesmo, a uma verdadeira negação da justiça (NALINI, 2008, p. 112). O que se quer são possibilidades diferenciadas e eficazes para os inúmeros obstáculos que dificultam e até mesmo impedem o acesso à justiça a todos os cidadãos que dela necessitam. Assim, na década de setenta Mauro Cappelletti e Bryant Garth desenvolveram um projeto denomina-do “Florença”, que possibilitou um novo olhar sobre o direito de acesso à justiça. Esse estudo, que consolida uma pesquisa internacional, ensejou a realização de

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um diagnóstico acerca do Poder Judiciário em âmbito mundial, com vistas aos entraves e problemas relacionados ao acesso à justiça, bem como possibilitou en-contrar soluções para tais questões (TARTUCE, 2008, p. 99).

Dessa forma, quando se fala da abrangência do acesso à justiça significa falar de uma imensurável gama de garantias que devem estar à disposição dos cidadãos; porém, faltam a estes a informação, o conhecimento dos direitos e a descoberta do caminho de como alcançá-los (CAOVILLA, 2006, p. 33), razão pela qual, a fim de ensejar a superação de todos esses óbices, Cappelletti e Garth propuseram três ondas renovatórias de universalização do acesso à justiça.

A primeira onda refere-se à assistência judiciária aos menos favorecidos eco-nomicamente, à inclusão daqueles que não podem arcar com as despesas oriun-das dos processos judiciais, além dos honorários advocatícios: os denominados hipossuficientes. Tal onda objetiva a superação dos obstáculos decorrentes da pobreza (hipossuficiência econômica), não sendo considerada como verdadeira a jurisdição que priva a parte pobre de informações e representação, as quais se constituem em condições imprescindíveis para participação de todos na ad-ministração da justiça (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 35). Todavia, para sua concretização a jurisdição deve proporcionar “soluções antes do processo (as-sistência jurídica) e durante a causa (patrocínio gratuito para ação e defesa e atendimento das despesas processuais)” (PORTANOVA, 2001, p. 113).

A segunda onda prevê a representação jurídica dos interesses difusos e coletivos através do combate ao sentido individualista do processo e da jus-tiça, isto é, todos os princípios, conceitos e estruturas que eram radicais na-quela concepção tornam-se “cada vez mais insuficientes a dar uma aceitável resposta ao problema de assegurar a necessária tutela por novos interesses difusos e de grupos, tornados vitais para a sociedade moderna” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 35). Para Rodrigues Júnior (2007, p. 31), “o objetivo é expandir a tutela jurisdicional a direitos decorrentes de interesses transindivi-duais (difusos e coletivos) e individuais homogêneos”.

Cappelletti e Garth (1988, pp. 66-67) destacam que:

É preciso que haja uma solução mista ou pluralística para o problema de representação dos interesses difusos. Tal solução, naturalmente, não precisa ser incorporada numa única proposta de reforma. O importante é reconhecer e enfrentar o problema básico nessa área; resumindo, esses

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interesses exigem uma eficiente ação de grupos particulares, sempre que possível. Mas grupos particulares nem sempre estão disponíveis e cos-tumam ser difíceis de organizar. A combinação de recursos, tais como as ações coletivas, as sociedades de advogados do interesse público, a assessoria pública e o advogado público, pode auxiliar a superar este problema e conduzir à reivindicação eficiente dos interesses difusos.

Focando seu interesse nos interesses difusos, essa segunda onda forçou a reflexão sobre noções tradicionais do processo civil e o papel dos tribunais, pois até então o Poder Judiciário preconizava e preocupava-se tão somente com as questões de cunho iminentemente individuais (CAOVILLA, 2006, p. 28). Surge então uma nova e múltipla combinação e integração de iniciativas públicas e privadas, voltadas à salvaguarda dos interesses individuais.

Já a terceira onda consiste em um novo “enfoque do acesso à justiça”24, cuja concepção revolucionária consubstancia-se na implantação de uma inovadora forma de pensar, na qual

[...] o direito não é encarado apenas do ponto de vista dos seus produtores e do seu produto (normas gerais e especiais), mas, principalmente, pelo ângulo dos consumidores do direito e da justiça, enfim, sob o ponto de vista dos usuários dos serviços processuais (CAPPELLETTI, 1994, p. 14).

Essa terceira onda renovatória, na medida em que passa a enaltecer uma visão transformadora desse direito, amplia a concepção de acesso, indo além da representação em juízo (SILVA, 2005, p. 129). E, para tanto, ocupa-se da reforma da advocacia, judicial e extrajudicial, e, ainda, “centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utili-zados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, pp. 67-68).

Em vista disso, fala-se em tendências contemporâneas, as quais Morais e Spengler (2012, p. 36) mencionam:

24 Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 68) esclarecem que à terceira onda renovatória foi dada a designação de “enfoque de acesso à justiça” em virtude de sua abrangência, sendo que o seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso.

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1) Reforma dos procedimentos judiciais em geral, sem que a criação de novas alternativas para a solução de conflitos implique a elimina-ção das formas tradicionais; 2) causa de particular importância social e especialização das instituições e procedimentos, tratando da criação de tribunais especializados, como os de pequenas causas, tribunais de vizinhança, de consumidores, etc.; 3) mudanças nos métodos utiliza-dos para a prestação de serviços jurídicos: são maneiras de se reduzir o custo da representação por advogado, tornando-a acessível para to-dos, sem perder a qualidade necessária.

Todas essas propensões nada mais são do que o reflexo do novo modo de ver e compreender o acesso à justiça, que se traduz na expressão de uma radical transformação do pensamento jurídico e social, promovendo a busca de soluções alternativas para o enfrentamento de situações conflituosas (CA-OVILLA, 2006, p. 30).

Para entender sobre a incipiente maneira de abordar esse direito constitucionalmente previsto, vale ressaltar que durante toda a sua his-tória o movimento de acesso à justiça foi dividido em três períodos: o do mero acesso ao Poder Judiciário; o do acesso ao Poder Judiciário por uma resposta tempestiva e, por último, o acesso que visa a uma solu-ção efetiva para o conf lito através da participação adequada do Estado (OLIVEIRA; SPENGLER, 2013, p. 48).

O primeiro período caracterizava-se pela busca dos cidadãos ao Poder Público para reivindicar seus direitos ou resolver seus litígios (CAPPEL-LETTI; GARTH, 1988, p. 8). O segundo baseava-se não apenas no ingres-so formal de uma demanda junto ao Poder Judiciário, mas na busca de uma efetividade que se fundava na prolação de uma sentença em tempo razoá-vel, ou seja, as respostas do Estado deveriam ser tempestivas. O terceiro e atual período de acesso à justiça centra-se na busca por novos instrumen-tos de solução de conflitos: “O terceiro período é resultado da situação de intensa conflitualidade, sobrecarga excessiva e perda da credibilidade do Poder Judiciário” (OLIVEIRA; SPENGLER, 2013, p. 49).

A ideia de que o ente estatal, na pessoa do juiz, é o único responsável por dirimir de forma definitiva os conflitos através de uma sentença é uma noção ultrapassada e antidemocrática de justiça, pois torna a sociedade estagnada,

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ou seja, mera expectadora de uma decisão imposta. Na realidade, o que se es-pera são respostas harmônicas, consensuais e responsáveis para os conflitos.

Corroborando tal tese, Ada Pellegrini Grinover (2007, p. 14) destaca:

[...] O que importa é pacificar; se torna irrelevante que a pacificação se faça por obra do Estado ou por outros meios, desde que eficientes e justos. Por outro lado, cresceu a percepção de que o Estado tem falha-do na sua missão pacificadora, que tenta realizar por meio da jurisdi-ção e através das formas do processo. A sentença autoritativa do juiz não pacifica as partes, porquanto imposta.

É inevitável dizer que o Poder Judiciário tem um papel fundamental na resolução de controvérsias. Porém, na atual conjuntura em que se encontra a sociedade, não está mais conseguindo corresponder aos seus anseios. Im-prescindível é a abertura de formas diversificadas de tratamento dos litígios.

Nessa esteira,

cada vez mais se reconhece que, embora não possamos negligenciar as virtudes da representação judicial, o movimento de acesso à justiça exige uma abordagem muito mais compreensiva da reforma. Poder-se-ia dizer que a enorme demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos forçou uma nova meditação sobre o sistema de suprimento – o sistema judiciário (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, pp. 69-70).

Sem olvidar a importância do Poder Judiciário na resolução dos conflitos, a terceira onda proposta por Mauro Cappelletti e Bryant Garth objetivou uni-camente tornar a justiça mais acessível a todos que dela necessitem por meio da simplificação dos procedimentos e da utilização de meios alternativos de resolução de conflitos – também denominados Alternative Dispute Resolution (ADR)25, os quais nada mais são que uma ampliação dos canais de acesso à justiça (JÚNIOR, 2007, p. 33).

25 As alternative dispute resolution (ADR) são também chamadas de MASC: Meios Al-ternativos de Solução de Conflitos. De acordo com Calmon (2007, p. 87), essa denomi-nação, no entanto, recebe diversas críticas, porquanto a expressão não guarde precisão técnica e histórica considerável. A uma porque o meio mais antigo de solução dos conflitos não é judicial. A duas porque os meios chamados alternativos não excluem o judicial, pois na verdade todos se complementam. Assim, o autor entende que a expres-são mais correta seria “Meios Adequados de Solução de Conflitos”.

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As alternative dispute resolution tiveram origem nos Estados Unidos e de-signam todos os procedimentos de resolução de disputas sem a intervenção de uma autoridade judicial. Conceitualmente, referem-se a vários métodos de liquidação de desajustes entre indivíduos ou grupos pelo estudo dos objetivos de cada um, das possibilidades disponíveis, bem como pela maneira como cada um percebe as relações entre os seus objetivos e as alternativas apresen-tadas (SPENGLER, 2010, p. 295).

Inicialmente, o surgimento dessas técnicas ocorreu fora da seara jurídica, em virtude da forte necessidade de negociação no mundo dos negócios comer-ciais e políticos, isto é, as formas alternativas começaram no direito privado, principalmente nas relações comerciais, e paulatinamente se propagaram para áreas maiores de interesses de índole patrimonial e transacional. Assim, em face da ineficiência do ente estatal na prestação jurisdicional, o cidadão e seus grupos começaram a preferir soluções negociadas, nas quais pudessem se en-volver por sua própria iniciativa, diferentemente daquelas impostas pelo juiz (TARTUCE, 2008, p. 180).

Uma via alternativa é aquela que se põe como opção a uma anterior. Dessa forma, a palavra “alternativa” não significa “sucessão”, “substituição”, tam-pouco uma “solução de menor importância”. Falar em alternativo não é falar em contraposição, mas sim em interação, complementariedade, razão pela qual não se objetiva a supressão dos órgãos jurisdicionais, mas sim a utiliza-ção de meios adequados de tratamento dos conflitos (CALMON, 2007, p. 20).

A adoção de mecanismos complementares, em um primeiro momento, origi-nou-se em virtude da crise da prestação jurisdicional; contudo, o verdadeiro moti-vo para a invocação desses métodos deu-se pelo anseio da sociedade em ver seus conflitos realmente tratados pela fuga do binário “perdedor-ganhador”. Tais prá-ticas permitem que os envolvidos compreendam realmente a razão que motivou o conflito e consigam construir soluções a partir das diferenças, pois cada parte é única e o diálogo é o fio condutor que torna essas estratégias uma verdadeira mudança de visão das relações sociais (SPENGLER, 2010, pp. 295-310).

Assim, consideram-se vantagens desses mecanismos: 1) a obtenção de resul-tados rápidos, confiáveis, econômicos e condizentes com as mudanças tecnoló-gicas e sociais em curso; 2) a ampliação de opções aos cidadãos, que têm, assim, diversas oportunidades de tratamento dos conflitos; 3) o aperfeiçoamento do

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sistema de justiça estatal, tendo em vista a redução do número de demandas, além de as técnicas adotadas ensejarem o estabelecimento de uma relação sau-dável entre os indivíduos, o que resulta na composição da lide e na prevenção de futuras contendas (TARTUCE, 2008, p. 202).

Existem, todavia, algumas críticas relativas à adoção de tais meios, que podem ser resumidas da seguinte maneira: deletéria privatização da justiça, ou seja, a retirada do Estado, a ponto de enfraquecer uma de suas funções vitais e naturais: a administração do sistema de justiça; falta de controle e confiabilidade dos procedimentos e das decisões e falta de transparência e lisura; exclusão de certos cidadãos e sua relegação ao contexto de uma “jus-tiça de segunda classe”; frustração do jurisdicionado e enfraquecimento das leis (TARTUCE, 2008, p. 203).

Não obstante a divergência de quem apoia e de quem repudia a adoção de tais procedimentos, o certo é que a utilização desses métodos pressupõe o fim do conflito, “criando um estado de uniformidade de propósitos ou meios que significará a sua morte” (SPENGLER, 2010, p. 297). Seu objetivo não signi-fica a obtenção de um resultado positivo ou negativo do conflito, tampouco a identidade de desígnios, métodos ou processos, mas sim se ocupa em neutra-lizar os choques e minimizar os danos que a situação pode provocar, preconi-zando a continuidade do relacionamento entre as partes. Isso significa sair da lógica imposta pela jurisdição estatal em que há um perdedor e um ganhador e passar a trabalhar com o binômio “ganhador-ganhador”.

Esses procedimentos informais estabelecem uma ordem consensuada, opondo-se à solução imposta pelo Poder Judiciário. A partir do consenso, as partes mantêm, do início ao fim, o controle da situação e decidem os resulta-dos; por isso diz-se que “é um procedimento autônomo, uma vez que estipula suas regras, e informal, no sentido de que não segue prescrições ou modelos prontos” (SPENGLER, 2010, p. 300). O que chama a atenção é que o consenso baseia-se pela forma consciente, informada e democrática de se chegar a um possível acordo, de modo que este não seria alcançado por meios ardilosos, resultantes da persuasão, mas, ao contrário, através do diálogo e da partici-pação de todos os atores envolvidos, que sabem exatamente o seu papel e sua responsabilidade diante do conflito.

Desse modo, a partir do consenso, as partes, assim objetivando, podem

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estabelecer um acordo que certamente será cumprido em sua integralidade, pois este pacto é fruto de um diálogo aberto e franco, em que cada um dos envolvi-dos expõe seus sentimentos, angústias, frustrações e desejos. Em contrapartida, os conflitos levados ao arbítrio do Poder Judiciário nem sempre são satisfeitos e respeitados, haja vista que os conflitantes “podem não estar satisfeitos e as raízes do conflito não estarem extirpadas” (SPENGLER, 2010, p. 288).

Essa situação de insatisfação gera aquilo que se denomina de “circuito con-flito/remédio”, o qual se consubstancia pela entrega do litígio ao ente estatal com o propósito de vê-lo solucionado, o que não ocorre, entretanto, pois o re-médio age apenas sobre a ferida, não atacando o cerne do problema. Como consequência, os conflitos aumentam progressivamente e a busca pelo Poder Judiciário para reivindicar seus direitos cresce em progressões geométricas (SPENGLER, 2010, p. 289).

É óbvio que o controle das controvérsias dentro de uma sociedade se modifica no tempo e no espaço, criando os remédios necessários a serem aplicados quando os fenômenos conflitivos aparecem. Entretanto, além de gerarem a sensação de ineficácia para o cidadão, constata-se que o “remé-dio reage sobre o remédio, mas não tem nenhuma incidência direta sobre as causas, dimensões, efeitos da litigiosidade que determinam os confli-tos” (SPENGLER, 2010, p. 288).

Nesse sentido, como mencionado anteriormente, diz-se que o Poder Ju-diciário não elimina o conflito, apenas o decide de forma discricionária, po-dendo inclusive dar-lhe uma nova dimensão jurídica, consolidando modernas jurisprudências, pois, do contrário, estaria suprimindo a sua própria fonte (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 71), ou seja, o ente estatal apenas ameniza a situação de conflito existente, sem dissolvê-la por completo.

Tratar o conflito judicialmente é o mesmo que atribuir ao magistrado o poder de dizer quem ganha e quem perde a demanda, isto é, perde-se a face quando se vai ao juiz26. Assim, o mais relevante problema da magistratura é que ela decide os litígios apenas os enquadrando em um modelo legislativo,

26 Spengler (2010, p. 290) utiliza essa expressão para descrever o poder que é atribuí-do ao ente estatal: de decidir as controvérsias sem que haja a participação dos envol-vidos. “É nesse sentido a afirmativa de que ‘quando se vai ao juiz se perde a face’, uma vez que, imbuído do poder contratual que todos os cidadãos atribuem ao Estado, sendo por ele empossado, o magistrado regula os conflitos graças à monopolização legítima da força”.

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sem, tampouco, se preocupar com os sentimentos e objetivos das partes.Em face de todas essas questões é que ocorre a ascensão dos meios comple-

mentares de tratar os conflitos, justamente por serem mais humanos e verda-deiros, no sentido de que as partes expõem aquilo que as perturba e, a partir daí, desenvolve-se a comunicação que poderá resultar em um acordo mútuo. Logo, entre os métodos27 que mais se destacam estão: a negociação, a arbitra-gem, a conciliação e a mediação.

A negociação28 é o procedimento no qual as partes compõem as controvér-sias por meio da conversação, sem que um terceiro intervenha. Ela pode ser informal, quando as pessoas conversam e chegam a um acordo, porém sem assinar qualquer documento, e formal, se depois da negociação, por exemplo, for assinado um contrato. Nessa situação, havendo o descumprimento do que foi pactuado, é possível que uma das partes recorra ao Poder Judiciário para ver o acordo cumprido (SALES, 2007, p. 42).

Entre as várias espécies de negociação, há aquela denominada “direta”, que se caracteriza por ser o modelo mais completo e complexo desse método, na me-dida em que depende de um engajamento maior dos envolvidos no processo de comprometimento dos resultados. Perfectibiliza-se a negociação direta em cin-co etapas: inicia-se pela identificação do problema, segue-se pela comunicação das pessoas envolvidas na questão e pelo desenvolvimento e apresentação de possíveis soluções e, por fim, ocorre a decisão alternativa e a ação de resolução, que culminam na verificação do procedimento final a ser acatado e, posterior-mente, no cumprimento da decisão (SPENGLER, 2010, p. 301-302).

Teoricamente, os conflitos mais adequados à negociação são aqueles em que as pessoas têm condições de dialogar mesmo sem a intervenção de um terceiro – normalmente são os de ordem patrimonial. Contudo, o que mais se

27 Cada um desses mecanismos possui suas próprias características que os distinguem uns dos outros, cabendo aos indivíduos conhecê-las e buscar a forma mais adequada para solucionar seus conflitos, pois cada tipo de conflito se adapta a um método de solução. Entretanto, cabe ressaltar que nenhum instrumento é melhor do que o outro; apenas se revelam mais adequados a determinados tipos de conflitos (SALES, 2007, pp. 40-41)28 Cabe distinguir que a negociação pode ser compreendida de duas maneiras. Em sentido amplo, abrange todos os mecanismos de solução de conflitos em que se utilize o diálogo como instrumento principal; em sentido estrito, a negociação, que se revela como o meio de solução de controvérsias que prescinde da intervenção de um terceiro (SALES, 2007, p. 41). É nessa última perspectiva que a negociação será apresentada como um método de colocar fim ao litígio que dispensa a intervenção de um terceiro.

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valoriza em uma negociação é a conversa franca e a boa fé das partes (SA-LES, 2007, p. 42).

Outro procedimento considerado complementar é a arbitragem. Nela as partes, em comum acordo diante de um litígio ou por meio de uma cláusula contratual, estabelecem que um terceiro ou colegiado – árbitro(s) – terá(ão) poderes para solucionar a controvérsia sem a intervenção estatal, sendo que a decisão terá a mesma eficácia que uma sentença judicial. No Brasil a Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, sistematizou a arbitragem ao transitar entre o direito material e o direito processual relativos ao instituto (CAHALI, 2011, p. 75), regulamentando que as pessoas capazes de contratar podem utilizar a arbitragem para resolver litígios referentes a direitos patrimoniais disponíveis.

Considera-se um procedimento formal, visto que existem regras processu-ais legais que estabelecem os requisitos para que a arbitragem tenha validade. Caso essas determinações sejam desobedecidas, o processo de arbitragem torna-se nulo. Assim, os conflitos mais adequados para esse tipo de procedi-mento são aqueles que requerem sigilo, celeridade e decisão por uma pessoa, árbitro, especialista na natureza do problema, normalmente os de cunho em-presarial (SALES, 2007, p. 46).

A conciliação se distingue por ser um meio de solução de conflitos em que as pessoas buscam sanar as divergências com o auxílio de um terceiro, o qual recebe a denominação de “conciliador”. Seu objetivo é o entendimento entre as partes, independentemente da qualidade das soluções ou da interferência na interpretação das questões (JÚNIOR, 2007, p. 47).

Na conciliação, o conciliador interfere na discussão entre as pessoas su-gerindo e propondo possíveis soluções para o conflito; todavia, não intervém de maneira a dizer o que seria justo ou injusto, certo ou errado, mas, a partir da síntese da discussão, apresenta opções que devem ser fundamentadas nas falas das pessoas que vivenciaram a controvérsia e que serão refletidas pelas partes, obtendo, assim, um acordo (SALES, 2007, p. 43).

Os tipos de conflitos que mais se ajustam à conciliação são aqueles nos quais as partes não possuem vínculo afetivo e emocional, ou seja, são contro-vérsias esporádicas, menos complexas, que não revelam um entrelaçamento de sentimentos, haja vista que conflitos de ordem continuada, sentimental, exigem uma conversa mais longa, com menor interferência de sugestões por

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parte de um terceiro e mais ingerência, de forma a estimular a criatividade e opções das próprias partes (SALES, 2007, pp. 43-44).

Resume-se o procedimento da conciliação nos seguintes passos: abertura, quando são explicitados os esclarecimentos iniciais acerca do método utiliza-do e todas as implicações legais em caso de acordo ou não; esclarecimentos das pessoas sobre suas ações, e atitudes que resultaram no conflito, momento em que as pessoas apresentam seus interesses e posições; em seguida, tem-se a criação de opções, na qual são apresentadas sugestões pelo conciliador e pelas partes; por fim, o acordo (SALES, 2007, p. 44).

No Brasil há duas espécies de conciliação: a extrajudicial, que ocorre an-tes da abertura de um processo judicial, sendo considerada uma alternativa à prestação jurisdicional estatal, e a judicial, que acontece concomitantemente ao processo, resultando no retorno dos autos ao juiz, seja para uma atividade homologatória, seja para o prosseguimento do processo (CALMON, 2007, pp. 145-147).

Por fim há a mediação, que será abordada no capítulo subsequente. Podemos antecipar que a mediação se diferencia substancialmente da conciliação por ser um método em que o terceiro, mediador, não opina para que se concretize um acordo, apenas facilita o diálogo por meio de técnicas próprias, estimulando as partes a exporem o que pensam e sentem para, ao final, tentarem encontrar solu-ções que sejam prazerosas para todos os envolvidos. Logo, o conciliador aponta soluções, porém cabe às pessoas aceitarem ou não, enquanto o mediador, por sua vez, incentiva que as próprias partes encontrem as soluções que acharem melhor para o conflito em que estão envoltas (SALES, 2007, p. 43).

O que se denota, enfim, é que tais instrumentos tornam-se eficazes porque consistem em aliviar o congestionamento do Poder Judiciário, diminuir os custos e a demora no trâmite dos casos, facilitar o acesso à Justiça, incen-tivar o desenvolvimento da comunidade e, principalmente, possibilitar um tratamento qualitativamente melhor dos conflitos – razão pela qual o que re-almente importa não é classificar um método como ordinário ou alternativo/complementar, mas sim analisar a sua operacionalidade e efetividade (CAL-MON, 2007, pp. 87-88).

Vislumbra-se, por conseguinte, a multiplicação, proliferação e aperfeiçoa-mento dos métodos aptos a facilitar, incentivar ou colaborar para o tratamento

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dos conflitos, o que faz com que seja retirada do Estado a responsabilidade exclusiva pela harmonização dos interesses. Nesse diapasão, Calmon (2007, p. 89) explicita que

o certo é que é tempo de revisitação e de revitalização, ou, ainda mais, de reestruturação e de reformulação de conceitos e práticas. Constatando--se a inoperância dos mecanismos tradicionais, a solução, à evidência, encontra-se no aperfeiçoamento da Justiça e, concomitantemente, na ado-ção de soluções alternativas.

Enfim, o objetivo da adoção desses métodos diferenciados é a consolidação de uma justiça igualitária que desenvolva meios efetivos de enfrentamento de situações e que busque alternativas para a solução do problema, tendo como propósito o acesso à justiça (CAOVILLA, 2006, 30). A seguir será analisada essa nova perspectiva de mudança: da cultura do litígio para a harmonização da convivência social.

1.3 Do dissenso ao consenso: um novo paradigma – a jurisconstrução

No decorrer dos anos a sociedade sofreu profundas transformações, porém sempre reivindicou seus direitos, inclusive o de acessar a justiça. Contudo, o que se observa atualmente é uma “desatualização do sistema jurídico processual e uma profunda ineficiência e insuficiência do próprio aparato do Estado” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 105).

A impossibilidade de tratar adequadamente os conflitos que integram a sociedade, o descompasso das decisões, a morosidade, entre outros fatores, culminam no desprestígio e descrédito do cidadão no Poder Judiciário como forma legítima de compor as lides. Assim, o que se quer é um acesso à justiça qualitativa e quantitativamente melhor, que atenda e satisfaça os objetivos e desejos da atual sociedade.

Nesse diapasão, constata-se que as sociedades contemporâneas ocidentais passam por um momento de transformação em relação ao sistema de justiça, o que revela uma situação paradoxal: de um lado, o acelerado processo de

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urbanização e desenvolvimento da sociedade e, com ele, o aumento da cons-ciência em relação aos direitos individuais e coletivos, que, por consequência, ensejaram uma explosão de litigiosidade e, por outro lado, um processo de desjudicialização29 da solução de conflitos (FOLEY, 2010, p. 67).

Deve-se, portanto, abandonar a ideia de que um sistema apenas é eficiente se os conflitos são solucionados por uma decisão judicial e passar a um novo paradigma: “Um sistema é eficiente quando conta com instituições e proce-dimentos que procuram prevenir e resolver controvérsias a partir das neces-sidades e dos interesses das partes” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 106).

O exercício da jurisdição precisa ser olhado sob uma óptica diferenciada, adequando-se historicamente às realidades e necessidades dos novos tempos, a começar pelo rompimento do mito do monopólio estatal da jurisdição, sem que isso importe em enfraquecimento do Poder Judiciário ou na afastabilida-de do controle jurisdicional (JÚNIOR, 1999, p. 110): “O certo é que é tempo de revisitação e de reavaliação, ou, ainda mais, de reestruturação e de refor-mulação de conceitos e práticas” (CALMON, 2007, p. 89).

É neste cenário que há uma transformação da cultura do dissenso para a do consenso, pois esse último visa à criação de uma cultura de participação e com-promisso em que não há ganhadores ou perdedores, pois todos são vencedores (SPENGLER, 2010, p. 300). Ou seja: essa nova forma de ver o modelo de juris-dição, que se molda pela apropriação de experiências diversas, em que há uma (re)descoberta de meios diferenciados de tratamento de conflitos que não se limitam à atividade jurisdicional e que procura veicular uma justiça democrá-tica da proximidade (FOLEY, 2010, p. 67), é o que se chama “jurisconstrução”.

A confiança, a escolha e a participação são pressupostos desse novo mo-delo. Juntas, mantêm o equilíbrio entre os indivíduos sem privilegiar uns em detrimento de outros, e faz com que as partes saiam da clausura do individu-alismo e vão ao encontro do coletivo, das escolhas consensuais e harmônicas.

A justiça consensual, base da jurisconstrução, aparece como resposta ao disfuncionamento do modelo tradicional de compor os litígios. Ela proclama a emergência de novos métodos de tratar as controvérsias através de um proce-

29 Essa desjudicialização ocorre justamente pelo fato de uma parcela significativa da sociedade ser excluída do acesso à justiça, aliada à fragmentação e complexidade das sociedades modernas, que exigem respostas plurais a uma realidade multifacetada (FOLEY, 2010, p. 67).

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dimento informal no qual um terceiro busca promover o restabelecimento da comunicação rompida pelo conflito, permitindo que as partes se confrontem e consigam, ao final, concretizar um acordo que seja satisfatório para ambos os envolvidos (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 121).

Visa-se, pois, sair do caráter triádico imposto pelo Poder Judiciário, no qual um terceiro, alheio à disputa, magistrado, impõe uma decisão a partir da função do Estado de dizer o direito e dos auspícios da legislação vigente, e instaura-se uma postura díade, na qual a resposta é emanada e construída pelas próprias partes (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 121).

A jurisconstrução é, por conseguinte, um novo paradigma, que emerge como uma maneira mais adequada de compor os conflitos, pois, para o Esta-do, essa nova forma de ver o direito o desincumbe dos contenciosos, restando--lhe uma função simbólica de referencial, como instância de homologação e apelo. Em relação às partes, enseja a harmonização, a comunicação e a res-ponsabilização pela decisão tomada (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 122).

Assim, a jurisconstrução promove o revigoramento de métodos antigos, hete-rônomos ou heterocompositivos30, que se caracterizam pela utilização da jurisdi-ção estatal como meio ordinário. Nesse, o Estado-juiz decide coercitivamente a lide. Ainda, fomenta o uso de procedimentos autônomos ou autocompositivos31, que revelam a pretensão de que os litígios podem ser tratados a partir da apro-ximação dos oponentes e da (re)elaboração da situação conflitiva sem a prévia adequação a uma norma jurídica, ou seja, o tratamento do conflito provém de uma confrontação explícita de pretensões, interesses, dúvidas e perplexidades, que permite às partes, nesse processo de troca, construir uma resposta consensu-ada, apenas mediada pela figura de um terceiro, que facilita os intercâmbios sem

30 Fala-se em “heterocomposição” quando um terceiro, alheio ao conflito, define a resposta com caráter impositivo em relação aos contendores. Tal mecanismo pode se verificar por duas vias: a arbitral, na qual o terceiro, de confiança de ambas as partes, é por elas escolhido para decidir o impasse, e a jurisdicional, pela qual uma das partes acessa o Poder Judiciário para obter uma decisão sobre o conflito proferida por uma autoridade estatal investida de poder coercitivo. Na linguagem americana, tais hipó-teses constituem processos de adjudicação (adjudicative processes), sendo produzido um resultado tipo “ganha-perde” (win-lose) (TARTUCE, 2008, p. 74).31 A possibilidade de que as partes resolvam, isoladamente ou em conjunto, uma saída para o conflito encerra a hipótese de autocomposição. Em tal caso, a solução do conflito contará com a vontade de uma ou ambas as partes para definir o impasse, inexistindo a participação de um terceiro (TARTUCE, 2008, p. 46).

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ditar a sentença (MORAIS; SPENGLER, 2012, pp. 125-126). Enfim, o que se verifica é o confronto entre uma tradição firmada em um

modelo conflitivo de solução de litígios, no qual a regra é ter um perdedor e um ganhador – logo um satisfeito e um descontente –, e, por outro lado, tem-se o crescimento de importantes métodos complementares de tratamento de confli-tos, seja pela discussão acerca da ineficiência e insuficiência do sistema jurisdi-cional, seja pela impossibilidade de todos os cidadãos acessarem a justiça.

A adoção de meios complementares e autônomos de composição de con-flitos é uma tendência mundial que vem sendo estimulada não apenas em virtude dos problemas ocasionados pela crise da jurisdição vigente, mas tam-bém pela evolução da sociedade rumo a uma cultura participativa, em que o cidadão seja protagonista da busca da solução de seus conflitos por meio do diálogo e do consenso (TARTUCE, 2008, p. 201).

É notório que a realidade social pujante não se contenta mais com o modelo individualista das soluções judiciais. Desde o século passado vem se cons-truindo um novo perfil, alicerçado na prevalência do interesse social sobre o individual. Daí a necessidade de uma jurisdição mais humana, justa e solidá-ria, o que se faz pela utilização de instrumentos mais eficazes de tratamento de conflitos, que não objetivam extirpar a função do Poder Judiciário, mas sim servir como complementos da atividade estatal (JÚNIOR, 1999, p. 113), pois a harmonia e a paz se operam “quando se previne ou se elimina o conflito e não somente quando ele é resolvido” (CALMON, 2007, p. 90) – e o melhor meio que se apresenta atualmente com esse fim é a mediação. Assim, no capítulo que se segue será apresentado esse método diferenciado, que não visa apenas à consecução de um acordo, mas sim ao real tratamento do conflito.

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Hodiernamente, diante da ineficiência e ineficácia do ente estatal em re-solver os litígios que batem às suas portas, vive-se um momento de intensa desacomodação interna, no qual os indivíduos reivindicam novas formas de acessar a justiça e tratar seus conflitos – momento em que surge a mediação, que objetiva causar menor sofrimento às partes, proporcionar maior satisfação de seus interesses e fortalecer laços de amizade e fraternidade, promovendo a coesão do grupo e a harmonização da convivência social.

Trata-se de um instrumento capaz de despertar nos envolvidos os seus mais ocultos e íntimos recursos pessoais, para que, com o auxílio de um terceiro, mediador, consigam (re)estabelecer a comunicação e transformar o conflito em oportunidade de construção.

Sendo um mecanismo muito antigo, foi utilizado por praticamente todas as ci-vilizações do mundo. Todavia, sua introdução no ordenamento pátrio está paula-tinamente acontecendo, seja pela Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, seja pelos Projetos de Leis números 166/2010, 517/2011, 405/2013 e 434/2013. O certo é que, por ser um meio eficaz de tratar as contendas, sua difusão cresce em progressões geométricas.

Enfim, é um procedimento que está mudando a cultura e a mentalidade da sociedade como um todo, uma vez que, além de oportunizar, a toda e qualquer pessoa que esteja em conflito, tratá-lo, permite que a outra parte envolvida no conflito seja vista como “um igual que possui diferenças”. Assim, o resga-te da alteridade e da reciprocidade supera o individualismo e conduz à vida compartilhada.

Dessa forma, o presente capítulo propõe apresentar essa maneira diferen-ciada de tratar as contendas, tendo como ponto de partida a conceituação, ca-racterização, espécies e o contexto histórico da mediação, até a sua disseminação.

2 MEDIAÇÃO: A ARTE DE ESTAR NO MEIO E A INCESSANTE BUSCA PELA CULTURA DA HARMIZAÇÃO DA CONVIVÊNCIA SOCIAL

ATRAVÉS DO FORTALECIMENTO DOS LAÇOS DE AMIZADE E FRATERNIDADE

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Analisam-se, na sequência, as novidades legislativas relativas ao assunto no âmbito nacional, além das peculiaridades que a tornam democrática, consen-sual e autônoma e, por fim, enfatizam-se os laços de amizade e fraternidade que unem os envolvidos na mediação, transformando a vida individual, soli-tária, em uma vida compartilhada comunitariamente.

2.1 O limiar: conceito, características, espécies, aspectos históricos da mediação no contexto mundial e sua propagação

A mediação32 é um processo dinâmico e interativo que busca o enten-dimento consensuado e harmônico33 entre os conflitantes. Seu objetivo não se restringe apenas a resolver as contendas: busca desarmar as partes envolvidas, através do restabelecimento da comunicação interrompida, da criatividade e da intercompreensão, a fim de que encontrem a melhor ma-neira de solucionar a controvérsia sem que uma delas saia prejudicada ou insatisfeita com o resultado alcançado.

É notório que a sociedade, de modo geral, acostumou-se a estabelecer rela-ções binárias como verdadeiros paradigmas enraizados em todos os campos

32 O vocábulo “mediação” procede do latim mediare, que significa mediar, dividir ao meio, interpor e intervir, os quais conduzem ao significado de centro, equilíbrio. Seu radical “med” origina uma série de outras palavras que auxiliam na conceituação da palavra “mediação”, tais como: média, moda e mediana. “Média” pressupõe a separa-ção e a divisibilidade, entretanto exclui a conjunção. Ela resolve o conflito, porém o faz cortando, interrompendo cada comunicação e excluindo passado e futuro. “Moda” aponta as preferências mais expressas, aproxima a maior parte, mas exclui as minorias. “Posição mediana” é aquela mais significativa para a experiência de mediação, pois, enquanto a média separa, a mediana une, constituindo um lugar de partida do qual é possível que a comunicação recomece. Ainda, enquanto a primeira decide, a segunda conserva espaços argumentativos para que cada outra possibilidade se realize (MO-RAIS; SPENGLER, 2012, pp. 145-146). 33 A harmonia é uma das prioridades do processo de mediação, que se consubstancia pelo restabelecimento/estabelecimento da comunicação entre os conflitantes. Assim, ao falar do tema “harmonização das relações sociais”, não se objetiva apenas o en-cerramento daquele dilema discutido, mas sim a real pacificação das contendas que permeiam os envolvidos. Visa-se, na verdade, que, após o procedimento de mediação, as partes não somente se vejam ressarcidas dos prejuízos sofridos, mas também sintam que aquele conflito pelo qual passaram esteja definitivamente tratado, vigorando nova-mente a amizade e o respeito mútuo (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 135).

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da vida: bem/mal, bom/mau, certo/errado, vencedor/perdedor, inocente/cul-pado. Todavia, a mediação vem propor um novo modo de olhar e compreender as relações sociais, inserindo a aproximação e a distinção do outro sem sepa-rá-lo ou rotulá-lo, isto é, o “eu” e “tu”34 passaram a ser chamados de “nós”.

Logo, para que se conceitue esse procedimento é preciso considerar preli-minarmente que existem pelo menos quatro tipos de mediação: a criadora, a renovadora, a preventiva e a curativa. As duas primeiras dedicam-se a fazer nascer ou renascer laços relacionais, enquanto as últimas se destinam a admi-nistrar uma situação de conflito, seja ele iminente ou deflagrado. Parte-se do pressuposto, portanto, de que são quatro os elementos constitutivos do con-ceito de mediação: a terceira pessoa, o não poder, a catálise e a comunicação (NICÁCIO, 2010, p. 157).

O terceiro, legitimamente credenciado a atuar, é a pessoa a quem se fran-queia a palavra, o tempo e a autoridade para intervir. Ele se encontra entre duas partes – não sobre, mas entre elas –, razão pela qual não tem nenhum poder além da mencionada autoridade concedida. Assim, o terceiro, denomi-nado “mediador”, auxilia os envolvidos a despertarem seus recursos pessoais para que consigam transformar o conflito em oportunidade de elaboração de alternativas para o seu enfrentamento (TARTUCE, 2008, p. 207).

Ainda, a mediação implica uma catálise na dinâmica das relações interpes-soais ou intergrupais, haja vista que atua como um catalisador, sem se desnatu-rar, mas que altera os componentes e o produto final de uma determinada lide, acelerando o seu processo de transformação e tendo, pois, como resultado o estabelecimento ou retomada da comunicação (NICÁCIO, 2010, pp. 157-158).

A partir dos quatro pilares que sustentam a mediação é possível perceber que se trata de um procedimento que visa aliar o tratamento do conflito exis-tente – a partir do restabelecimento da comunicação rompida – à preservação dos laços relacionais em questão.

34 O “eu e tu” não é apenas uma fenomenologia da palavra, mas é também sobretudo uma ontologia da relação. Assim, na busca pelo entendimento que conduza à pacificação do conflito, Buber (2012, p. 27-28) propõe ao homem a realização da vida dialógica, que se baseia no sentido profundo da palavra “entre”, ou seja, além do eu e aquém do tu está o “entre”, que representa todos os sentimentos que permeiam o ser e conduzem a sua existência. Para Buber, a palavra proferida é uma atitude efetiva, eficaz e atualizadora do ser do homem através da qual ele se faz homem e se situa no mundo com os outros.

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Verifica-se, em vista disso, que esse método parte de uma premissa diversificada, se comparado às práticas ordinárias, uma vez que busca o encontro de respostas pacíficas e consensuais que não sejam fruto de decisões pré-estabelecidas e impositivas, pois seu objetivo é a partici-pação das partes na criação do tratamento (SALLA, 2007, p. 113). Isso, por conseguinte, coloca a mediação em situação de plena evolução e, segundo um conceito de concretização de justiça, divergindo do enten-dimento de que seria apenas uma forma não jurisdicional de composição de contendas (TAVARES, 2002, p. 63).

Nesse sentido, Warat (1998, p. 5) define a mediação como a forma ecoló-gica de resolução de conflitos sociais e jurídicos, cujo intuito de satisfação do desejo substitui a aplicação coercitiva e terceirizada de uma sanção legal. Em outras palavras, “é um modo de construção e de gestão de vida social graças à intermediação de um terceiro neutro, independente, sem outro po-der que não a autoridade que lhe reconhecem as partes” (MORAIS; SPEN-GLER, 2012, p. 131).

No mesmo diapasão, Bonafé-Schimitt (1992, pp. 16-17) conceitua a media-ção da seguinte forma:

[...] Mediação é um processo frequentemente formal, pelo qual um tercei-ro neutro tenta, por meio da organização de trocas entre as partes, permi-tir a estas confrontar seus pontos de vista e procurar, com sua ajuda, uma solução para o conflito que as opõe35.

Segundo essa definição, a mediação, além de contribuir para a administra-ção de conflitos e para o incremento de práticas individuais e coletivas mais autônomas e cidadãs no gerenciamento da vida em sociedade, está apta a abrir possibilidades para que o equilíbrio se estabeleça entre, de um lado, a busca comum da autocompreensão pessoal, expressa na pretensão do respeito como sujeitos iguais e, de outro lado, a necessidade de, ao fazê-lo, serem as pessoas respeitadas como únicas e singulares, apesar das diversidades e subjetivida-des culturais (NICÁCIO, 2010, p. 159).

35 Tradução: [...] la médiation comme étant un processus le plus souvent formel par lequel um tiers neutre tente à travers l´organisation d´échanges entre lês parties de permettre à celles-ci de confronter leurs points de vue et de rechercher avec son aide une solution au conflit qui les oppose.

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Conceituada a mediação, é possível, nesse momento, apresentar suas caracte-rísticas: a privacidade, uma vez que o processo de mediação é desenvolvido em ambiente secreto e somente será divulgado se esta for a vontade das partes – a qual será desconsiderada caso o interesse público se sobreponha ao privado; a economia financeira e de tempo, em contrapartida aos processos judiciais, que são lentos e custosos; assim, “a demora na solução da questão faz com que o di-reito da pessoa seja ignorado por ela própria, já que prefere abdicá-lo a enfrentar trâmites lentos e burocráticos” (GHISLENI, 2011, pp. 107-108); a oralidade, que se consubstancia por ser a mediação um processo informal no qual os envol-vidos têm a oportunidade de debater os problemas que os circundam, visando encontrar a melhor solução possível. Essa é uma das características mais impor-tantes, pois o objeto da mediação diz respeito aos problemas relativos às ques-tões do quotidiano, como discussões entre membros de instituições de ensino ou lazer, familiares e entre vizinhos que vivem em comunidade, como se verá no terceiro capítulo, o que faz com que o conflito não seja apenas resolvido, mas efetivamente tratado (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 133).

Outras características: a reaproximação das partes, que é obtida pelo deba-te e consenso; a autonomia das decisões, que se caracteriza pela competência dos conflitantes em optarem pelo que consideram ser o melhor para si mes-mos, e, por fim, o equilíbrio das relações entre os litigantes, que preceitua ser fundamental que a todas as partes seja conferida a oportunidade de se manifestar e de ter total compreensão acerca das ações que estão sendo desen-volvidas (MORAIS; SPENGLER, 2012, pp. 132-135).

Quanto às espécies, há duas formas básicas de mediação: a mandatória e a voluntária. A mandatória é aquela que é realizada em virtude de determinação legal ou da vontade previamente definida das partes, como, por exemplo, em um contrato. Já a voluntária é aquela que ocorre voluntariamente por vontade comum dos conflitantes, sem nenhuma imposição legal ou contratual (SPEN-GLER, 2010, p. 322).

Como pode ser observado, o mecanismo da mediação oferece inúmeras vantagens, dentre elas: é um procedimento voluntário e sigiloso, trazendo cer-ta tranquilidade às partes, especialmente nas disputas que determinam priva-cidade; é econômico, haja vista que normalmente os envolvidos dividem os custos e honorários; é menos burocrático; é mais justo e produtivo, além de ser

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capaz de aumentar o sentimento de justiça no âmago das pessoas (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 144).

Embora a mediação apresente muitos benefícios, suscita a resistência de várias pessoas, inclusive a de operadores do direito, tornando-se alvo de severas críticas, especialmente por ser um instrumento relativamente novo, sem legislação específica que o discipline, bem como por ser informal, ge-rando insegurança e incerteza jurídica. Na realidade, a utilização desse mé-todo faz vir à tona a verdade consensual que se opõe à verdade processual, transcendendo, pois, aquilo que o direito, na sua generalidade, parece ne-gar: “A possibilidade de recuperação daqueles espaços decisionais que a organização estatal sempre invasiva e juridificada gradativamente subtraiu” (SPENGLER, 2010, pp. 327-328).

A mediação então abre a possibilidade de resolução da lide sociológica e não somente daquela que seria a lide jurídica. Ela não trata apenas da pre-tensão resistida, fixada em posições objetivas, mas pode proporcionar uma compatibilização dos interesses, em um resultado ganha-ganha, salutar para os envolvidos e para a sociedade (CALMON, 2007, p. 126).

Tendo a mediação a incumbência de tratar o conflito por inteiro, tende a oferecer respostas mais humanas, plausíveis e eficazes, que se coadunam com as expectativas e desejos das partes. Torna-se, dessa maneira, um procedi-mento mais próximo do cidadão, e não tão distante e frio como é a jurisdição tradicional, na medida em que estimula o tratamento cordial entre os atores envolvidos e desenvolve a autoestima dos participantes. Ela é, pois, a arte de estar no meio (WARAT, 2004a, p. 40).

Enfim, apresenta-se a mediação como um verdadeiro instrumento de transformação social, haja vista que, além de promover a cooperação entre os envolvidos num litígio, auxilia os mesmos a prevenirem e resolverem conflitos futuros, o que implica necessariamente em uma mudança cultu-ral de cunho pessoal e público (SILVA, 2010, p. 188).

Assim, após esse breve exame sobre o conceito, as características e as es-pécies de mediação, necessária é a sua contextualização histórica, desde seu surgimento até a sua difusão em âmbito mundial.

A mediação, como as demais formas de tratar os conf litos, não cons-titui um fenômeno novo. Na realidade, sempre existiu, e passa a ser

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redescoberta em meio a uma crise profunda dos sistemas judiciários de regulação dos litígios (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 132).

Sendo um instituto de origem muito antiga, foi utilizada por quase todas as cul-turas do mundo. Sua existência remonta aos anos 3.000 a.C., passando pela Grécia, Egito, Creta, Assíria e Babilônia, nos casos entre as cidades-estados. Da mesma forma, os chineses, influenciados pelas ideias do filósofo Confúcio, já praticavam a mediação como principal meio de solucionar as controvérsias, pois acreditavam ser possível construir um paraíso na terra, desde que os homens pudessem se entender e resolver pacificamente seus problemas (SERPA, 1999, pp. 67-68).

A paz, por conseguinte, era consolidada através de acordos e da persuasão moral, nunca pela coerção ou mediante qualquer tipo de poder, haja vista que a crença era de que existia “uma harmonia natural nas questões humanas que não deveria ser desfeita por procedimentos adversariais ou com ajuda uni-lateral” (SERPA, 1999, pp. 67-68). Nesse momento histórico, “procurava-se sempre o compromisso, a conciliação e a solução negociada que acomodasse uma ou outra parte, evitando-se o processo – pois ele era considerado deson-roso, na medida em que tentava contra a paz social” (GHISLENI, 2011, p. 84).

Entretanto, cabe ressaltar que nos primórdios a mediação era exercida por qualquer pessoa, sem qualquer formação específica, bastava ter capacitação natu-ral para praticá-la. Assim, os atores envolvidos nessa prática poderiam laborar em outras funções e deveres, não se restringindo apenas ao exercício desse procedi-mento (CALMON, 2007, p. 174).

Na antiga Roma, o Diritto Fecciali, ou seja, o direito oriundo da fé, em seu aspecto religioso, era a expressão da justiça incipiente, em que a mediação aparecia como meio de resolver os conflitos existentes. Logo, eram previstos os procedimentos in iure e in iudicio, que significavam, respectivamente, na presença do juiz e do mediador ou árbitro. Contudo, no antigo ordenamento ático e, posteriormente, no ordenamento romano republicano a mediação era considerada como uma mera regra de cortesia e não como um instituto jurídi-co (JÚNIOR, 2007, p. 64).

Ainda, inúmeras culturas, dentre elas judaicas, cristãs, islâmicas, hinduís-tas e budistas, têm longa e efetiva tradição na prática da mediação, seja para solver questões de cunho religioso ou civil.

Em tempos bíblicos, as comunidades judaicas utilizavam a mediação tanto

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por líderes religiosos quanto por políticos para solucionar problemas civis e re-ligiosos. Posteriormente, na Espanha, África do Norte, Itália, Europa Central, Leste Europeu, Império Turco e Oriente Médio, rabinos e tribunais rabínicos usavam a mediação no julgamento de disputas entre membros de sua fé, o que contribuiu para a manutenção da identidade cultural (MOORE, 1998, p. 32).

Os cristãos, por sua vez, viam Jesus Cristo como o “mediador entre Deus e os homens” – I Timóteo 2:5-6. Assim, até a renascença a Igreja Católica foi considerada a principal organização de mediação e administração de confli-tos da sociedade ocidental, sendo o clero o mediador de disputas diversas, dentre as quais se destacam as familiares, os casos criminais e as disputas diplomáticas entre a nobreza (CALMON, 2007, p. 173).

Nas culturas islâmicas, em diversas sociedades pastoris tradicionais do Oriente Médio, os problemas eram resolvidos através de uma reunião comu-nitária dos idosos, em que os participantes discutiam, debatiam, deliberavam e mediavam para resolver questões tribais ou intertribais críticas. E, nas áreas urbanas, o costume local foi codificado por uma lei chamada shari’a, que era interpretada e aplicada por intermediários especializados, os quadis36, que exerciam funções judiciais e de mediadores (MOORE, 1998, pp. 32-33).

Na Índia, as aldeias hindus utilizavam um sistema de justiça chamado pan-chayat, através do qual uma comissão de cinco membros era responsável pela mediação e arbitragem das disputas, além de exercer funções administrativas, lidando com questões concernentes ao bem estar e a queixas dentro da comu-nidade (MOORE, 1998, p. 33).

Salienta-se que a mediação não se restringe apenas à cultura ocidental; ao contrário, esse método é muito mais praticado e respeitado em sociedades e países não ocidentais, como o Japão, onde a religião37 e a filosofia enfatizam o consenso social, a persuasão moral e a busca do equilíbrio e da harmonia nas relações humanas. Seu exercício é tão enraizado nessa cultura que pessoas que buscam as vias judiciais antes de esgotar completamente todas as possi-

36 Um quadi podia interpretar seu papel como o de um conciliador, tentando preservar a harmonia social e efetivando um acordo para extinguir a disputa, ao invés de aplicar coercitivamente as normas legais (MOORE, 1998, p. 33).37 Uma das religiões mais propagadas no Japão é o budismo, cujos textos sagrados descrevem pelo menos três casos nos quais Buda atuou como mediador (Dhammapada Commentary, s.d.; Kosambi Jataka, s.d., e o Sangha) (MOORE, 1998, p. 33).

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bilidades de resolução amigável do conflito são desprezadas pela comunidade (CALMON, 2007, p. 173).

A mediação é também praticada na África, onde os tribunais leigos cons-tituem um meio utilizado por vizinhos para resolver contendas – o mesmo ocorrendo em aldeias árabes da Jordânia. De igual forma, na Oceania as al-deias Tolai, da Nova Bretanha, têm cada uma um conselheiro e um comitê que se reúnem regularmente para dirimir as divergências a fim de manter a ordem do debate e a liberdade de argumentação em benefício de todos que desejam se expressar (CALMON, 2007, p. 174).

Todavia, é importante ressaltar que somente no século passado, princi-palmente nos Estados Unidos38, a mediação ganhou destaque, na medida em que era utilizada como uma forma de descongestionar os tribunais, diminuir custos e acelerar as resoluções de disputas (JÚNIOR, 2007, p. 65). Dessa ma-neira, em meados do século XX, com os estudos e trabalhos de Mary Parker Follett, foi despertada a necessidade de se buscar soluções integradoras para resolver situações conflitivas com ideias visionárias (CALMON, 2007, p. 174), o que fez com que se propagasse mundialmente.

No Canadá, a mediação é um procedimento corriqueiro nos conflitos tra-balhistas coletivos para evitar greves, sempre submetida a um comitê espe-cial nomeado pelas autoridades federais. Em Quebec há serviços de mediação especializados em conflitos de família desde a década de 70, sendo a Lei de Divórcio, de 1985, a primeira referência legislativa (CALMON, 2007, p. 182).

A Argentina, por sua vez, sem qualquer experiência anterior, adotou em 38 Nos Estados Unidos, a história da mediação tem seu início entre os puritanos e outras seitas religiosas, como os Quakers. Era utilizada paralelamente aos mecanismos preexis-tentes de solução de conflitos dos povos nativos e das primeiras nações, que se reuniam para resolver questões controvertidas (MOORE, 1998, p. 33). Porém, somente em 1913 a mediação foi formalmente instituída naquele país, com a criação do Departamento de Trabalho, Department of Labor, o qual estabeleceu comissões de conciliação para atender conflitos entre empregados e empregadores, mais tarde se convertendo no Serviço de Conciliação dos Estados Unidos; em 1947 se transformou no Serviço Federal de Me-diação e Conciliação. Entretanto, a mediação patrocinada por organismos oficiais não se limitou a questões trabalhistas. Assim, em 1964 a Lei dos Direitos Civis criou o Servi-ço de Relações Comunitárias do Departamento de Justiça, que tinha como um de seus objetivos ajudar vítimas de discriminação racial, mediante a prática da mediação e da conciliação. A partir de então, muitos organismos oficiais, comissões de direitos civis e organismos privados passaram a usar a mediação para resolver conflitos relacionados a questões sexuais, raciais e étnicas, entre outros (CALMON, 2007, p. 175).

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1992 uma política de mediação cujo ponto central é a edição da Lei 24.573, de 4 de outubro de 1995, pela qual foi instituída a mediação prévia obrigató-ria. Uma ação conjunta dos poderes Judiciário e Executivo permitiu construir uma nova ordem no tema da solução de conflitos, começando por implantar o Programa Nacional de Mediación, elaborado por comissão composta de juízes, advogados e representantes dos setores públicos e privados, incluindo organizações não governamentais, que mais tarde culminou no Plan Nacional de Mediación (CALMON, 2007, p. 188).

O que se percebe é que a mediação foi e está se desenvolvendo em praticamente todos os países do mundo como um instrumento capaz de tratar o conflito de forma pacífica e consensual. Assim, todos os continentes – Ásia, Europa, Oceania, África e América –, de uma forma ou de outra, permitiram a inclusão de métodos diferen-ciados de compor controvérsias, o que comprova que o contexto cultural contempo-râneo fomentou e determinou o surgimento dessas práticas como uma verdadeira mudança de paradigma, haja vista que conduzem a caminhos diferentes daqueles trilhados pela cultura jurídica tradicional (SPENGLER, 2010, p. 294).

Há, dessa forma, um embate entre a tradição assentada num modelo ordinário de resolução de conflitos, que se orienta pela dicotomia “perdedor/ganhador” e pela imposição de uma decisão aos litigantes, e, de outro lado, o crescimento e relevância adquiridos por métodos autocompositivos de tratamento de controvér-sias, como a mediação, que se caracteriza como uma prática consensual e har-mônica que permite “observar a singularidade de cada participante do conflito, considerando a opção de ‘ganhar conjuntamente’, e construindo em comum as ba-ses de um tratamento efetivo, de modo colaborativo” (SPENGLER, 2010, p. 295).

A disseminação da mediação pelo mundo deve-se, portanto, a uma série de fatores: o reconhecimento mais amplo dos direitos humanos39; a dignidade dos indivíduos; a expansão das aspirações pela participação democrática em todos os níveis sociais e políticos; a crença de que um indivíduo tem o direito de participar e de ter o controle das decisões que afetam a sua própria vida e a uma maior tolerância à diversidade (MOORE, 1998, p. 34).

39 Sánchez Rubio explicita que são as ações diárias e cotidianas em todos os espaços sociais que reconhecem e constroem dignamente os direitos humanos, sem, entretanto, negar a importância dos ordenamentos jurídicos, dos estados constitucionais e dos sistemas de ga-rantias estatais de direitos fundamentais, pois quanto maior a cultura sobre direitos huma-nos menores serão as demandas que passarão pelos tribunais (RUBIO, 2009, p. 15).

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Assim, tendo a mediação se alastrado mundo afora, também chegou ao Bra-sil, sendo lentamente incorporada à cultura nacional. Os movimentos mais re-centes para regulamentação do tema no sistema jurídico brasileiro são a Resolu-ção nº 125, do Conselho Nacional de Justiça, e os Projetos de Lei 166, de 2010, e 517/2011, 405/2013 e 434/2013, que serão analisados na sequência com o fito de demonstrar que tais normas são de suma relevância e revelam um grande salto na forma como são vistos os conflitos e os meios de solucioná-los. Porém, uma questão que fica é: serão estes utilizados de forma correta, ou seja, de acordo com suas características e especificidades, a ponto de ensejarem uma real mu-dança de pensamento? É o que se verificará a seguir.

2.1.2 A mediação no direito pátrio: Resolução nº 125, do Conse-lho Nacional de Justiça, e os Projetos de Lei 166/2010, 517/2011, 405/2013 e 434/201340

A mediação é uma técnica que está se difundindo mundialmente e demons-trando sua eficiência ao tratar os conflitos entre as pessoas. É, pois, um méto-do diferenciado, já que não impõe sentenças ou laudos, mas permite às partes a busca de seus verdadeiros interesses e a preservação da harmonia e da paz.

No Brasil, a mediação é um instrumento relativamente novo, mas vem pau-latinamente galgando seu espaço no ordenamento pátrio. Contudo, não há nenhuma legislação que a institua como um método de tratamento de conflito; o que existe, na prática, são Projetos de Lei ainda não aprovados sobre o tema.

Nesse diapasão, somente em 1998 a mediação começou a ganhar forma legislativa, com o Projeto de Lei41 nº 4.827/98, oriundo de proposta da deputada Zulaiê Cobra, que, inicialmente, levou ao crivo da Câmara dos Deputados

40 Insta esclarecer que esse item busca analisar os pontos mais relevantes das normas ju-rídicas que tratam da mediação no direito brasileiro; porém, urge mencionar que, por ser um assunto novo, não foram encontrados textos e autores que exploram profundamente o tema. Nesse caso, será feita apenas uma breve explanação sobre as questões consideradas mais importantes acerca da matéria, sem, contudo, visar ao esgotamento da mesma.41 Para maior aprofundamento sobre o histórico e tramitação do Projeto de Lei nº 4.827/98, recomenda-se a leitura da seguinte obra: PINHO, Humberto Dalla Bernar-dina de (Org.). Teoria Geral da Mediação à luz do Projeto de Lei e do Direito Comparado, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

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uma regulamentação concisa, com apenas sete artigos, em que constava ape-nas a definição e algumas disposições acerca desse procedimento sem, porém, contemplar questões como a figura do mediador e a qualificação técnica que deveria possuir (PINHO, 2011, p. 269).

Atualmente, como inovação normativa em relação à mediação no âmbito nacional, tem-se a Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça, CNJ, que institui uma política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, e os projetos de lei 166/2010, que propõe um novo Código de Processo Civil, 517/2011, que institui e disciplina o uso da mediação como instrumento para prevenção e solução consensual de conflitos, 405/2013, que dispõe sobre a mediação extrajudicial, e 434/2013, que disciplina a mediação.

Dessa forma, o Conselho Nacional de Justiça, dentro de sua missão constitucional de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, publicou a Resolução nº 12542, instituindo a política judiciária nacional de tratamento adequado de conf litos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução das contendas por meios adequados à sua natureza e peculiaridade43.

A Resolução busca uma atuação mais ampla do Poder Judiciário, que atenda aos anseios da comunidade e dissemine a cultura da pacificação social. Nesse contexto, a mediação e a conciliação são ofertadas pelos órgãos judiciários nas mais diversas áreas jurídicas – cível, fazendária, previdenciária, de família e criminal, entre outros. Assim, com a utilização desses mecanismos a sociedade amplia o conhecimento sobre eles, bem como sobre as vantagens que eles pro-porcionam, podendo optar por realizar sessões de conciliação e mediação antes mesmo de ingressar com um processo judicial (mediação pré-processual).

Ela centra-se, por conseguinte, no acesso à justiça qualificado, o qual com-preende o acesso a uma ordem jurídica justa que seja efetiva, célere e adequa-da. Cabe ao ente estatal organizar em âmbito nacional os serviços processu-ais, incentivar a utilização de mecanismos consensuais e os meios para que

42 Esclarece-se que a Resolução nº 125, do Conselho Nacional de Justiça, foi instituí-da em 29 de novembro de 2010; porém, em 31 de janeiro de 2013, foi publicada uma emenda, nº 1, que alterou os artigos 1º, 2º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 12º, 13º, 15º, 16º, 18º e os anexos I, II, III e IV da Resolução.43 Tal redação encontra-se no artigo 1º da Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça.

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essa política se concretize, seja pela implementação de núcleos permanentes44 e centros judiciários45 em todo o país, seja pela formação técnica de profissio-nais ou de controle estatístico.

Contudo, embora essa política judiciária nacional tenha por objetivo a mudança de mentalidade dos próprios operadores do direito, das partes envolvidas nos litígios e da sociedade em geral, na busca pela convivên-cia harmônica, ela apresenta algumas fragilidades, entre elas: a falta de estrutura física e de pessoal; a incapacidade do Poder Judiciário brasi-leiro em arcar com os custos de implantação dessa política pública; a re-sistência social em aceitar a utilização desses mecanismos, bem como a confusão feita ao considerar a mediação e a conciliação como institutos idênticos46 (GHISLENI; WALTRICH; OLIVEIRA, 2013, p. 10).

Como mencionado acima, há também alguns projetos de lei que merecem atenção e serão analisados na sequência.

O Projeto de Lei 166/2010 propõe a construção de um novo Código de Pro-cesso Civil que contemple a mediação e a conciliação como procedimentos judiciais, sem, porém, excluir as formas extrajudiciais. Ao analisar tal pro-posta, verifica-se que ela estabelece apenas questões incipientes, como: os princípios informadores tanto da mediação quanto da conciliação; a descrição 44 De acordo com o artigo 7º da Resolução n. 125 do CNJ, os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos serão compostos por magistrados da ativa ou aposentados e servidores, preferencialmente atuantes na área, e terão as seguintes atribuições, entre outras: desenvolver a política judiciária de tratamento ade-quado dos conflitos de interesses; planejar, implementar, manter e aperfeiçoar as ações voltadas ao cumprimento da política e suas metas; atuar na interlocução com outros tribunais; instalar Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania; incentivar ou promover capacitação, treinamento e atualização permanente de magistrados, ser-vidores, conciliadores e mediadores e propor ao Tribunal a realização de convênios e parcerias com entes públicos e privados.45 De acordo com o artigo 8º da Resolução 125, são funções dos centros judiciários: a realização de sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores e o atendimento e orientação ao cidadão.46 Não obstante ter sido explicitado brevemente sobre a conciliação no capítulo ante-rior, é importante mencionar que a mediação e a conciliação são institutos totalmen-te diferentes, que possuem traços distintivos significativos, tais como: a conceituação propriamente dita; o papel desempenhado pelos profissionais que operam as sessões; conciliador e mediador, em que um opina e induz a um acordo e o outro apenas facilita e auxilia as partes para que tenham um diálogo aberto e franco, respectivamente, pelo tipo de conflitos nelas tratados, pelos objetivos perseguidos e, finalmente, pelos resul-tados almejados.

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dos requisitos para escolha do mediador/conciliador; suas características; o consequente cadastro, que os habilita a exercerem a função; os impedimentos e, por fim, a remuneração percebida pelos mesmos (PINHO, 2011, p. 281).

Não obstante esse Projeto de Lei reconhecer a importância da mediação e da conciliação como mecanismos eficientes de tratamento de conflitos, es-tranha-se o fato de não diferenciar claramente cada um dos institutos. Tal constatação é ratificada quando, no Projeto, é usado como traço distintivo o simples fato do conciliador sugerir soluções e o mediador não, ou seja, a diferenciação se faz apenas pela postura do terceiro (PINHO, 2011, p. 282).

Chama a atenção também quando o Projeto faz referência ao registro de conciliadores e mediadores, pois menciona que constarão todos os dados rele-vantes para a atuação daqueles profissionais, tais como: o número de causas de que participou; o sucesso ou o insucesso da atividade; a matéria sobre a qual versou a controvérsia, bem como quaisquer outros dados que o tribunal jul-gar relevantes. Ora, se a capacitação é medida pelo sucesso ou insucesso das atividades, cristalino é o caráter eficientista imposto pelo sistema de justiça (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 195). Em outras palavras, a concretização da justiça, nesse caso, seria medida pelo número de acordos realizados e não pelo seu real cumprimento, que é o que esses instrumentos almejam.

Já o Projeto de Lei nº 517/2011 versava sobre a mediação judicial e extra-judicial, que seria realizada prévia, incidental ou posteriormente à relação processual, podendo ser utilizada na solução de litígios de qualquer natureza, exceto naqueles casos em que a lei não admita negociação, sendo a sua abran-gência sobre o objeto do litígio total ou parcial.

Assim, a sessão de mediação judicial, além de ser recomendada pelo juiz, deveria seguir os procedimentos disciplinados no Código de Processo Civil, podendo ser convolada em audiência de conciliação, caso o mediador enten-desse que o mecanismo não se mostrava adequado ao tipo de litígio e não tivesse oposição das partes, o que igualmente causa surpresa, pois parece que ambos os institutos são sucessórios, isto é, quando um não serve, aplica-se o outro. Ou, ainda, quando as partes não conseguem sozinhas resolver a conten-da, como na mediação, aparece o conciliador para opinar e pôr fim ao litígio.

A mediação extrajudicial, por sua vez, poderia ocorrer por “acordo de me-diar” ou por “convenção de mediar”. Nesse último caso, mediante cláusula

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compromissória47. Entretanto, não havendo acordo prévio sobre a forma de mediar, deveria a parte interessada se manifestar, demonstrando a sua inten-ção de dar início ao procedimento e comunicando à outra parte por via postal.

Ainda, o acordo obtido na mediação judicial ou extrajudicial incidental ficaria condicionado à homologação judicial, a fim de que produzisse efeitos processuais e tornasse o acordo irrecorrível, o que parece ser um contrassen-so, haja vista que tanto a mediação quanto a conciliação são métodos auto-compositivos democráticos que têm como característica a responsabilização das partes diante das decisões tomadas, não necessitando, por derradeiro, ser a deliberação ratificada por um ter terceiro, juiz.

O Projeto de Lei nº 405/2013, oriundo da Comissão de Juristas, criada pelo Senado Federal com a finalidade de elaborar anteprojeto de Lei de Arbitragem e Mediação, visava disciplinar exclusivamente a mediação extrajudicial, que abran-geria matérias que admitissem composição, dependendo de homologação judicial e oitiva do Ministério Público. Previa que a mediação fosse realizada via internet, ou por qualquer meio de comunicação presencial, ficando o procedimento, em caso de não estipulação prévia, a cargo do mediador, respeitados os princípios de autonomia, igualdade entre as partes, confidencialidade, boa fé e imparcialidade. Estabelecia ainda que o Ministério da Educação deveria incentivar as instituições de ensino superior a incluir em seus currículos a disciplina “Mediação”, e que o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério Público deveriam incluir nos conte-údos programáticos dos concursos públicos matérias relacionadas à mediação.

Já o Projeto de Lei nº 434/2013 referia que poderiam se submeter ao meca-nismo da mediação qualquer matéria que versasse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitissem transação, exceto os conflitos que envolvessem filiação, adoção, poder familiar, invalidade de matrimônio, interdição, recuperação judicial, falência e medidas cautelares.

O projeto previa, da mesma maneira que o anterior, a mediação via internet nos casos de comercialização de bens ou prestação de serviços efetuados por esse meio, sendo admitida a aplicação das disposições da lei à resolução de con-flito oriundo de transações internacionais celebradas por meio da rede mundial de computadores ou por outro meio que permitisse a transação à distância.

47 Cláusula compromissória, segundo o artigo 15 do Projeto de Lei 517/2011: “É a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à mediação os litígios que possam vir a surgir relativamente a tal negócio jurídico”.

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Contudo, não obstante os Projetos de Lei números 517/2011, 405/2013 e 434/2013 versarem sobre mediação em enfoques diversificados, a Comissão de Constituição e Justiça, no dia 11 de dezembro de 2013 e sob o relatório do sena-dor Vital do Rêgo, aprovou um projeto substitutivo que contempla em um único documento as disposições positivas de cada um dos três projetos, de forma har-mônica; porém, tal proposta precisa ainda ser votada em turno suplementar pela Comissão e seguir para votação na Câmara dos Deputados se não houver recurso para votação em plenário.

Esse documento uno abarca a mediação como um meio alternativo de solução de conflitos, definindo sua conceituação, características, princípios e regras do procedimento na prática, bem como esclarece o mecanismo na forma extraju-dicial e judicial, além da mediação em que for parte órgão ou entidade pública.

Relata que os acordos que envolvam direitos indisponíveis e transigíveis deverão ser homologados em juízo com a oitiva do Ministério Público quando houver interesse de incapazes, e que não serão passíveis de se submeterem à mediação conflitos que versarem sobre filiação, adoção, poder familiar, inva-lidade de matrimônio, interdição, recuperação judicial ou falência.

Além disso, descreve as atribuições e requisitos para ser mediador, em especial os judiciais, que terão que ser graduados há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação, e que tenham capacitação em escola de formação de mediadores reconhecida pelo Con-selho Nacional de Justiça ou pela Escola Nacional de Mediação e Conciliação do Ministério da Justiça.

Por fim, esclarece que a lei aplica-se a outras formas consensuais de resolução de conflitos, tais como mediações comunitárias, escolares, penais, trabalhistas e fiscais, podendo ser realizada via internet ou por outro meio de comunicação que permita a transação à distância, desde que as partes estejam de acordo.

Ademais, pontifica que o Ministério da Justiça deverá criar e manter ban-co de dados para fins de formulação, planejamento e avaliação de políticas públicas. Que o Ministério da Educação tem a incumbência de incentivar as instituições de ensino superior a incluírem em seus currículos a disciplina “Mediação” e que o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público deverão promover a inclusão de matérias relacionadas à mediação nos conteúdos programáticos dos concursos públicos.

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Constata-se, em suma, que tanto a Resolução nº 125, do Conselho Nacional de Justiça, quanto os projetos de lei acima mencionados são verdadeiros avan-ços legislativos que visam ao reconhecimento dos institutos da mediação e da conciliação no ordenamento pátrio; porém, muito deverá ser alterado para que sejam utilizados e contemplados na exata medida de suas peculiaridades e ca-racterísticas, caso contrário serão meras legislações que objetivam tão somente descongestionar o Poder Judiciário e diminuir a judicialização dos conflitos.

Assim, por todo o exposto, é possível afirmar que as duas últimas décadas do século passado, especialmente entre os anos 1980 e 1990, foram da mediação, haja vista que todos, em todos os lugares, falavam nela. Porém, o que se observa é uma banalização do termo, empregado indiscriminadamente para todo e qualquer pro-pósito (SPENGLER, 2010, p. 316).

O que se deve ter cristalino é que a função da mediação vai muito além da simples concepção de ser um método não adversarial de tratamento de con-flitos que tem como desígnio diminuir o número e os custos de processos nos fóruns e tribunais. É, pois, um instrumento de suma relevância, cujos objeti-vos buscam promover a harmonização dos interesses conflitantes e a inclusão social através de práticas democráticas, consensuais e autônomas, sendo o acordo mera consequência destas.

Dessa forma, após essa digressão histórica, conceituação, caracterização e con-solidação atual da mediação no direito pátrio, importa analisar esse procedimento como um método autônomo, consensual e democrático de tratar os conflitos.

2.2 A mediação como instrumento democrático, consensual e autônomo capaz de tratar o conflito e harmonizar os interesses divergentes

A mediação é a proposta mais adequada à complexidade conflitiva atual, na medida em que consegue tratar as contendas por inteiro sem precisar da intervenção estatal. Assim, as partes têm total liberdade para dialogar e expor tudo aquilo que as está reprimindo, desde as angústias, sentimentos e aspi-rações, para, ao final, se for do desejo mútuo, formalizar um acordo que será efetivamente cumprido.

A prática mediativa difere dos métodos tradicionais porque seu local de atu-

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ação é a sociedade, composta de sistemas de vida diversos e alternativos, sendo a sua base de operações o pluralismo de valores. Por isso, sua maior aspiração é reabrir os canais de comunicação interrompidos, reconstruir os laços sociais destruídos, aceitar a diferença e a diversidade, o dissenso e a desordem (SPEN-GLER, 2011, p. 202).

Assim, antes de caracterizar a mediação como um instrumento democrático, necessário é tecer alguns comentários sobre a democracia.

A democracia não tem um sentido único; é, pois, uma palavra cuja signifi-cação está em constante mutação, constituindo-se como um camaleão que se modifica e se altera de acordo com a sociedade na qual está inserida e com a época histórica em que se encontra.

É inventada e reinventada constantemente nos mais diversos locais, o que faz com que sua história remonte a tempos pretéritos. Nesse sentido, Dahl (2001, p. 19) acredita que, da mesma forma que a terra pode ser cultivada se os níveis de chuva forem adequados para o desenvolvimento da agricultura, havendo condições sociais favoráveis a tendência será, por consequência, o desenvolvimento de uma sociedade democrática, razão pela qual, “devido a condições favoráveis, é bem provável que tenha existido alguma forma de democracia em governos tribais muito antes da história registrada”.

Dessa forma, durante o longo período em que os indivíduos viveram jun-tos em pequenos grupos, sobrevivendo da caça e da coleta de raízes, frutos e outras dádivas da natureza, certamente criaram um sistema em que parte dos membros, animados pelo sentimento de igualdade48, participava das mais variadas decisões em nome do grupo todo. “Portanto, durante muitos milha-res de anos alguma forma primitiva da democracia pode muito bem ter sido o sistema político mais ‘natural’” (WALTRICH, 2012, pp. 34-35).

Contudo, ao pensar em uma definição para o vocábulo “democracia”, Bobbio (1997, p. 20) adverte que, para que isso seja feito, não basta atribuir a um elevado número de cidadãos o direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, tampouco basta existir regras de procedimento, como as da

48 Igualdade política pressupõe que os membros mais fracos de uma comunidade polí-tica tenham direito a uma atenção e respeito por parte do governo equivalentes à aten-ção e respeito que os membros mais poderosos conseguem garantir para si mesmos, de modo que a liberdade conseguida por alguns indivíduos para tomar decisões, quaisquer que sejam seus efeitos sobre o bem comum, deve ser reconhecida a todos os indivíduos (DWORKIN, 1978, p. 199).

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maioria. É necessário ir além e considerar uma terceira condição, ou seja, é preci-so que aqueles que são chamados a decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra opção.

O que define, portanto, a democracia é o respeito pelos projetos individuais e coletivos, que “combinam a afirmação de uma liberdade pessoal e o direito de identificação com uma coletividade social, nacional ou religiosa particular” (TOURAINE, 1996, p. 26), isto é, democracia implica a possibilidade de escolha, de poder decidir o futuro, sem que para isso seja imposta uma decisão. Ela, então, reconhece o ser humano como um indivíduo livre capaz de fazer suas escolhas e responsabilizar-se por isso.

Touraine (1996, pp. 24-25) explicita ainda que a democracia não se reduz à liberdade negativa, conjunto de garantias institucionais, à proteção contra o poder arbitrário ou a classes mais favorecidas economicamente, mas sim deve ser entendida como “a luta dos sujeitos, impregnados de cultura e liberdade, contra a lógica dominadora dos sistemas”. Ou seja, democracia ou poder do povo significa “a capacidade reconhecida ao maior número possível de pessoas para viverem livremente” e, assim, fazer suas escolhas e decidir o destino de suas vidas.

Há, então, três tipos de democracia. O primeiro considera a vital impor-tância da limitação do poder do Estado pela lei e pelo reconhecimento dos di-reitos fundamentais; tem-se, com ele, uma concepção liberal de democracia, que se adapta facilmente a uma representatividade limitada dos governantes, mas que protege da melhor forma possível os direitos sociais ou econômicos contra os ataques de um poder absoluto (TOURAINE, 1996, p. 46).

A segunda espécie enaltece a cidadania49, a Constituição ou as ideias mo-rais e religiosas que garantem a integração da sociedade e fornecem um sólido fundamento para as leis: “Aqui a democracia progride mais pela vontade da igualdade do que pelo desejo de liberdade”. Finalmente, o terceiro tipo insiste na representatividade social dos governantes e opõe a democracia à oligar-quia, quer esteja associada a uma monarquia definida pela posse de privilé-

49 De acordo com Gorczevski (2009, p. 35-36), falar em cidadania, em qualquer época, significa fazer referência aos que têm opinião, pois ser cidadão é ter voz, poder opinar e decidir, além de ser detentor de todos os direitos civis, como o direito à vida, à proprie-dade, à igualdade perante a lei, à liberdade e até mesmo o direito de acessar à Justiça para ver esses outros direitos concretizados.

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gios ou então à propriedade do capital (TOURAINE, 1996, pp. 46-47).Pelos três tipos apresentados, verifica-se que são elementos constitutivos da

democracia a moderação do poder estatal pela legislação, o reconhecimento de direitos fundamentais, a cidadania, a representatividade e, principalmente, a participação, que possui uma longa trajetória: desde a antiguidade, na obra clássica de Aristóteles, Política, passando pela obra de Rousseau, Do contra-to social, até a contemporaneidade, devendo ser entendida não como a ausên-cia, superação ou eliminação de poder, mas como uma outra forma de poder (DEMO, 1996, pp. 20-21).

Constata-se, por consequência, que a democracia se exprime “pela com-binação do universal com o particular, do universo técnico com os univer-sos simbólicos, dos signos com o sentido”, assentando-se, principalmente, na criação de indivíduos-sujeitos capazes de resistir às amarras de poder e pri-mar pela liberdade de escolha e de decisão, notadamente quando o conflito se referir a questões da vida particular (TOURAINE, 1996, p. 176).

Tendo em vista, portanto, que a democracia visa à participação do cidadão nas escolhas que regerão seu futuro, é possível coaduná-la com o sentido e objetivo da mediação, na medida em que esta é um meio de tratamento de conflitos que requer a participação efetiva das pessoas para que solucionem seus problemas, estimulando o diálogo e a reflexão sobre suas responsabilidades, direitos e obri-gações (SALES, 2007, p. 37).

O tratamento do conflito pela mediação é regido por um terceiro, o media-dor, que tenta estabelecer, pela organização de trocas comunicativas, um diálo-go aberto em que há confronto de opiniões. O debate, por isso, é direcionado, durante todo o processo mediativo, para o consenso e para a harmonia, num pertencer comum (GHISLENI, 2011, p. 95), haja vista que o entendimento de modo linguístico possibilita “aos participantes, na interação, chegar ao acordo mútuo sobre a validade pretendida para os seus atos de fala, ou, se for o caso, levar em consideração os desacordos que foram averiguados” (SPENGLER, 2010, p. 356).

Entretanto, a figura do mediador não possui um papel central, mas secundá-rio, pois, diferentemente do magistrado, não tem o poder de obrigar os envol-vidos a resolverem a contenda ou impor uma decisão. Sua atuação restringe-se tão somente à reconciliação de interesses conflitivos, conduzindo as partes no

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processo de autoconhecimento e de conhecimento alheio, a fim de que en-contrem em seus íntimos a melhor solução para a controvérsia (SPENGLER, 2010, p. 321).

Em contrapartida, as pessoas envoltas no conflito são tidas como as mais importantes no processo de mediação, pois são ouvidas, respeitadas, valoriza-das e responsáveis pela decisão tomada; mas, acima de tudo, têm a oportuni-dade de expor todas as suas percepções sobre a contenda: ideias, sentimentos, angústias, aspirações e desejos. Enfim, “esse mecanismo incentiva a reflexão sobre as atitudes dos indivíduos e a importância de cada ato para a sua vida e para a vida do outro” (SALES, 2007, p. 37).

Como é um instrumento informal e simples de tratamento de controvérsias, a mediação pressupõe que o conflito seja olhado sob um espectro diferencia-do, no qual há maior valorização do ser humano do que dos documentos e for-malidades em si. Assim, o sujeito, ao participar ativamente da tomada de de-cisões que influenciarão a sua vida, sente-se valorizado, incluído, e, portanto, o ator principal e fundamental dessa peça teatral chamada vida em sociedade.

A mediação apresenta-se, dessa forma, com o fim de oferecer aos cidadãos a sua real e efetiva participação nos assuntos que lhes dizem respeito. Inde-pendentemente da natureza das controvérsias – questões financeiras, familia-res ou uma simples briga entre vizinhos – o importante é que seu resultado final se concretize no crescimento do sentimento de responsabilidade civil, de cidadania e de controle sobre os problemas vivenciados. Logo, sendo a mediação um procedimento democrático, tem impacto direto na melhoria das condições de vida das pessoas, na perspectiva de acesso à justiça e na cons-cientização de direitos, isto é, no exercício da cidadania (SALES, 2007, p. 37).

É possível inferir que a mediação não é apenas uma ciência, mas uma arte na qual o mediador não pode se preocupar em intervir no litígio, dando opiniões ou conduzindo a um acordo forçado. Ele apenas oferece a possibilidade de as partes restabelecerem o diálogo rompido pelo conflito e, com isso, tratá-lo sem maiores danos ou ressentimentos.

Nesse diapasão, a mediação pode ser considerada uma estratégia do agir co-municativo proposto pela teoria de Habermas, uma vez que “a força consen-sual dos processos linguísticos para obtenção do entendimento e as energias vinculativas da própria linguagem são eficazes para a coordenação da ação”

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(GHISLENI, 2011, p. 96), que se baseia em uma racionalidade manifestada nas condições necessárias para que ocorra um acordo motivado pelo consenso (SPENGLER, 2010, p. 356).

A teoria habermasiana da ação comunicativa baliza-se nas relações sociais, nas quais a linguagem é utilizada como o fio condutor para obtenção do entendimento. Se-gundo essa teoria, os participantes têm posturas ilocucionárias que objetivam buscar o significado do que é dito a partir do entendimento do ouvinte (SPENGLER, 2010, p. 357). Essa teoria será melhor apresentada no capítulo que se segue, em item específico sobre a comunicação.

Conclui-se que a mediação é um mecanismo democrático porque: rompe com os marcos de referência da certeza alicerçados no conjunto normativo, postos e expostos de forma hierarquizada; acolhe a desordem e, por consequ-ência, o conflito como possibilidades positivas de evolução social, bem como porque prima pelo compartilhamento de escolhas numa nítida matriz inclusi-va (SPENGLER, 2010, p. 338).

Outrossim, considera-se a mediação, da mesma forma, como um procedi-mento consensual, haja vista que a comunicação restabelecida volta-se para o entendimento e para o compartilhamento de ideias e expectativas. Dessa forma, o consenso não se exprime pelo simples “aceitar tudo”, de forma pas-siva e inerte, mas pelo diálogo aberto, franco e sem uma normatividade pré--estabelecida, ensejando, assim, o fim da lide, a decomposição dos conteúdos conflituosos e a reaproximação dos envolvidos, que perdem as máscaras e as identidades construídas a partir da raiva, do desprezo e da vontade de vingan-ça (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 147).

O consenso tem como ideias centrais a escolha, a confiança e a razão, que, juntas, revelam o sinal de união entre os homens, traduzido no comprome-timento nascido da comunicação, participação e, sobretudo, das razões co-muns. É nesses termos que o consenso aparece como uma característica da mediação e a torna o meio mais adequado e tranquilo de gerir os desacordos.

Por fim, a mediação se constitui como um procedimento autônomo, uma vez que são as próprias partes que constroem a decisão final juntas e se comprometem a cumpri-la, responsabilizando-se por meio da alteridade. A autonomia, nesse caso, representa o núcleo central que permite produzir diferenças, determinando o ser humano como único e capaz de encontrar respostas aos seus problemas.

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Sendo, pois, um instrumento comunicativo, a mediação permite que as partes participem, inicialmente, da construção da decisão, comprometendo-se e respon-sabilizando-se pelo seu cumprimento e, posteriormente, instigando uma partici-pação mais ampla, que se concretiza com a mudança de mentalidade e de cultura (GHISLENI, 2011, pp. 98-99).

Isso ocorre porque a mediação, como ética de alteridade, “reivindica a recu-peração do respeito e do reconhecimento da integridade e da totalidade dos es-paços de privacidade do outro, repudiando o mínimo de movimento invasor ou dominador” (SPENGLER, 2011, p. 209). Nesse sentido, quando estão em con-flito, as pessoas tendem a dominar as outras e impor suas vontades, invadindo amplamente o espaço do outro litigante, razão pela qual a técnica da mediação é radicalmente diferente, uma vez que não invade o espaço alheio, tampouco aceita dominação, sequer em relação aos gestos (GHISLENI, 2011, p. 99).

As mudanças culturais mencionadas acima se iniciam com a desvincula-ção da ideia de que uma terceira pessoa tem o condão de decidir a questão ou impor uma decisão, bem como pelo fato de as partes permanecerem inertes, aguardando uma resposta que determinará um ganhador e um perdedor. O que se deseja é a participação ativa dos envolvidos na busca pela compreensão dos motivos que levaram ao conflito e o seu consequente tratamento. Logo, não há coerção, sanção ou imposição de algum acordo ou decisão; há apenas um diálogo desembaraçado, auxiliado pelo mediador, que resulta na harmoni-zação dos interesses conflitantes (GHISLENI, 2011, p. 99).

Em vista disso, é uma aposta autônoma, cidadã e democrática que transcende a resolução adversarial de disputas baseadas no litígio e na cientificidade, pois conduz a um procedimento de sensibilidade que estabelece uma nova temporali-dade, diversa daquela proposta pelo Poder Judiciário; é o tempo instituído como tempo da significação, da alteridade, que reconstitui como singularidade em devir (SPENGLER, 2011, p. 215).

Portanto, a mediação é um instrumento democrático, consensual e que propor-ciona a autonomia individual. Sua prática desmancha a lide, desfaz os assuntos con-trovertidos e avizinha os conflitantes que destroem as identidades sedimentadas antagonicamente a partir dos sentimentos de raiva e competição, oriundos do litígio. Ela pretende então “ajudar as partes a desdramatizar seus conflitos, para que se transformem em algo bom à sua vitalidade interior” (SPENGLER, 2010, p. 320).

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Percebe-se, então, que o fim precípuo das técnicas de mediação nada mais é que responsabilizar50 os conflitantes pelo tratamento do litígio que os une a partir de uma ética de alteridade e encontrar, com o auxílio de um mediador, uma garantia de sucesso. Visa-se então revigorar e transcender os sentimentos bons que estão no íntimo de cada ser humano para que, por meio da comuni-cação, busquem um entendimento que atenda aos interesses de cada parte e conduza à harmonização da convivência social (SPENGLER, 2011, p. 210).

Dessa forma, viver em harmonia vai além da inexistência de violência fí-sica e moral, bem como da inércia. O caminho da busca pela paz social passa pela necessidade de encontrar e efetivar os direitos fundamentais. Por con-seguinte, ensina-se a paz quando se resolve e se previne a má administração dos conflitos, quando se granjeia o diálogo, quando se possibilita a discussão sobre direitos e deveres e sobre responsabilidade social, quando se subtrai a competição pela cooperação (o perde-ganha pelo ganha-ganha) (SALES, 2007, p. 38).

A mediação como um método pacífico e participativo de tratar os conflitos exige das partes envolvidas a discussão dos problemas, comportamentos, di-reitos e deveres de cada um e a sua consequente responsabilização, o que leva a crer que é um instrumento não apenas capaz de por fim a um litígio, mas de realmente tratá-lo e, em virtude disso, tornar a sociedade mais harmoniosa.

Assim, sendo a mediação um mecanismo que visa ao tratamento das con-tendas, bem como o equilíbrio entre as partes e a harmonização social através de seu procedimento diferenciado, cabe, nesse momento, refletir sobre os la-ços de amizade e fraternidade que a rodeiam como uma forma de antecipar a vida em comunidade – o que será apresentado no terceiro e último capítulo.

50 Para Buber (2012, p. 39), a experiência de receber a palavra e respondê-la é o âmago do “entre” ou a revelação vivida pela reciprocidade. Assim, esta experiência vivida a partir de um vínculo numa situação de apelo e resposta encerra o fenômeno da res-ponsabilidade, que possui dois sentidos: o primeiro, como resposta e, o segundo, como “obrigação” de responder. Para Buber a responsabilidade como projeto do homem na história de viver num nível real e essencial da vida humana é a resposta ao apelo do dialógico. A responsabilidade transcendendo o nível moral para um nível mais amplo é o ético da reciprocidade.

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2.3 Do individualismo51 à vida compartilhada: os laços de amizade e fraternidade que envolvem a mediação

A contemporaneidade foi marcada pela Revolução Francesa de 1789, que apregoou a liberdade, a igualdade e a fraternidade como princípios universais. Com o passar dos tempos e o início de uma nova era na qual o “eu” vale mais que o “nós”, esses ideais foram lentamente esquecidos; porém, o direito fra-terno52, embasamento teórico da mediação, fez ressurgir esses fundamentos.

Dessa forma, a amizade e a fraternidade representam os sustentáculos essen-ciais para a construção de uma vida compartilhada, que supera os efeitos ne-fastos da globalização53 e do individualismo54 e passa a inserir as pessoas num espaço comum que prima pela proximidade dos distantes e pela reelaboração de práticas até então arraigadas.

51 Importante esclarecer que o vocábulo “individualismo”, utilizado no título do item 2.3, não possui um sentido filosófico, mas tão somente semântico, haja vista que não exprime necessariamente uma perspectiva negativa, egoísta, mas sim a forma como os indivíduos se relacionam atualmente.52 O direito fraterno propõe uma nova/velha análise dos rumos, limites e possibilidades do sistema do direito na sociedade atual. Esse modelo de direito se torna relevante pela neces-sidade universalista de respeito aos direitos humanos, que vai se impondo ao egoísmo dos “lobos artificiais” ou dos poderes informais que à sua sobra governam e decidem (RESTA, 2004, pp. 15-16). São então pressupostos desse direito: 1) é um direito jurado conjuntamen-te entre irmãos – no sentido da palavra latina frater, é um direito que não parte da decisão de um soberano; 2) é um direito livre da obsessão de uma identidade que deve legitimá-lo; 3) centra suas observações nos direitos humanos; 4) deriva do paradoxo traçado entre a humanidade e a desumanidade da sociedade; 5) é um direito não violento que destitui o binômio amigo/inimigo; 6) é um direito que elimina alguns dogmas enraizados; 7) é um direito que pretende incluir sem limitações; 8) por fim, é um direito que aposta na diferenciação entre este e o direito codificado (VIAL, 2005, pp. 1480-1482).53 A globalização é o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista. Seus efeitos são tão nefastos porque suas bases se fundam na tirania da informação e do dinheiro, na competitividade, na confusão dos espíritos e na violência estrutural, acarretando o desfale-cimento da política feita pelo Estado e a imposição de uma política comandada pelas empre-sas. Sendo, pois, a perversidade sistêmica um de seus corolários (SANTOS, 2002, pp. 12-19).54 O indivíduo pode designar duas coisas distintas ao mesmo tempo: de um lado, o sujeito empírico, a amostra individual da espécie humana, que pensa, fala e tem dese-jos; de outro, o ser moral autônomo, independente, não social, portador dos valores supremos e que se encontra em primeiro lugar na ideologia moderna do homem e da sociedade. Assim, nas sociedades em que o indivíduo constitui o valor supremo, deno-mina-se “individualismo” (BUENO, 2007, p. 78).

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2.3.1 A amizade e a fraternidade como pressupostos do direito fraterno e da mediação

Aristóteles55 (2013, p. 9) referia que toda a arte, investigação, assim como toda ação e toda a escolha, tendem a um fim que se almeja por si mesmo, e tudo o mais é desejado por causa dele. Esse bem tão precioso e perseguido in-cansavelmente por todos os seres humanos é a felicidade56, eudaimonia. Essa atividade da alma é encontrada quando há a convergência entre a virtude e a amizade, pois a consciência de si, a identidade pessoal, se dá por meio do outro, na contemplação do outro. Assim, “na base do amor ao amigo está o amor de si” (SPENGLER, 2012, p. 48).

Nesse sentido, o filósofo grego refere que:

A amizade perfeita é aquela que existe entre os homens que são bons e semelhantes na virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons em si mesmos. Dessa forma, aqueles que desejam o bem aos seus amigos por eles mesmos são amigos no sen-tido mais próprio, porque o fazem em razão de sua própria natureza e não por acidente (ARISTÓTELES, 2013, p. 167).

Para Aristóteles (2013, p. 166), as pessoas são amigas por três razões principais: pela utilidade que buscam, pelo prazer que esperam e pelo bem que os indivíduos desejam um ao outro. Assim, aqueles que amam os outros por interesse, “amam pelo que é bom para eles mesmos”, e os que amam em razão do prazer, “amam em virtude do que é agradável a eles e não porque o outro é pessoa amada, mas por-que ela é útil ou agradável”, razão pela qual tais amizades se desfazem facilmente.

O terceiro motivo que conduz a uma amizade caracteriza-se por desejar o bem ao outro de forma idêntica como queria para si. Essa amizade, ao contrário das outras, é permanente, duradora e rara, visto que se baseia na semelhança. Porém, para que ela se desenvolva é preciso tempo e intimidade, uma vez que é somente com o passar do tempo que as pessoas realmente se conhecem e cultivam o reconhecimento do outro como amigo, ou seja, o “desejo de amizade pode surgir

55 Para uma melhor compreensão e esclarecimento acerca da busca por felicidade des-crita por Aristóteles, recomenda-se a leitura do Livro I da obra Ética a Nicômaco.56 Para Bauman (2003, p. 76), a busca da felicidade e a esperança de sucesso tornaram-se “a motivação principal da participação do indivíduo na sociedade”.

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depressa, porém a amizade não” (ARISTÓTELES, 2013, p. 167).As relações amigáveis que permeiam as pessoas e as características pelas

quais elas se balizam parecem derivar dos vínculos do homem consigo mes-mo. Define-se, portanto, amigo como aquele que “vive na companhia de uma outra pessoa e tem os mesmos gestos que essa pessoa, ou o que compartilha os pesares e alegrias de seu amigo” (ARISTÓTELES, 2013, p. 191).

Dessa maneira, aquele que encontra um amigo se depara com o bem mais precioso, pois

a amizade reproduz no interior toda a ambivalência das diferencia-ções. Se a existência de um amigo consola ou permite reencontrar autenticidade num mundo hipócrita, não suporta, por isso, que se rein-troduza no interior da amizade algum cálculo pré-estabelecido, como o interesse ou a mentira, mas, livre do domínio do interesse, não tolera sequer a mesma obrigação de solidariedade e o mesmo valor da parti-lha. [...] Mas exatamente graças à internalização das diferenças entre interação e sociedade há a necessidade de acreditar que se é amigo de alguém (porque é ele ou ela), enquanto que não somos amigos ou até mesmo somos inimigos de outros (RESTA, 2004, p. 31).

Diante dessas concepções, surge uma pergunta: o homem deveria amar, acima de tudo, a si ou a outra pessoa? A resposta a essa questão tem sofrido algumas modi-ficações ao longo da história. Assim, não obstante os ensinamentos aristotélicos de que todos os homens deveriam dedicar o seu tempo a ações nobres, como a amizade, com o intuito de beneficiar-se e, ao mesmo tempo, beneficiar o seu próximo (ARIS-TÓTELES, 2013, pp. 197-199), com o decorrer dos anos e por uma série de fatores que culminaram na tão aclamada globalização os seres passaram a pensar unica-mente em si, nos seus desejos, vontades e na ambição de ter mais coisas que o outro.

Antigamente eram utilizadas metáforas corporais para designar o tipo de ação e, consequentemente, o tipo de sociedade em que se vivia. Dizia-se que o conflito era resolvido cara a cara, que o combate era corpo a corpo, que a justiça era dente por dente, olho por olho, e que a comunidade era face a face, que a amizade era de braço dado e que a mudança era realizada passo a passo. Porém, essa realida-de mudou; aquela proximidade que existia entre as pessoas, que as fazia utilizar essas expressões, foi substituída pela capacidade técnica, pela velocidade de ação e pelo custo de utilização, em um nítido distanciamento entre as pessoas (BAU-MAN, 1999, pp. 23-24).

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O individualismo, como se observa, assenta-se na ideia de progresso e utilidade, responsável pelo privilégio outorgado ao setor econômico e ao controle racionaliza-do, acentuando as relações do homem com as coisas sem se preocupar com os sen-timentos, valores ou amizades, o que acaba por obstar o entendimento e o consenso entre os seres. Há uma verdadeira atomização do indivíduo (BUENO, 2007, p. 80).

Entretanto, essa busca desenfreada por poder, dinheiro e bens materiais acaba deixando o sujeito isolado, sem os vínculos de reciprocidade quotidianos criados a partir do ar comum que se respira. Os amigos são, em vista disso, desconhecidos, não vistos, não avizinhados, o que não corresponde mais com a atual sociedade em que se vive. A modernidade57, então, entendida num sentido puramente cronológico e não apenas em sua fase mais recente, “contemporânea”, é o elo de transição entre o individualismo e a vida compartilhada, haja vista que tenta resgatar valores e práticas mais humanas de convivência (DUMONT, 1985, p. 278).

Desse modo, num movimento reverso, a sociedade, urgindo por paz e harmo-nia, tem resgatado a concepção aristotélica de amizade e felicidade com o objetivo de buscar métodos eficazes de tratamento de conflitos, já que os meios tradicio-nais não correspondem aos anseios da mesma. Por conseguinte, o corpo social está se revigorando e mudando a forma de pensar, passando paulatinamente da concepção individualista de mundo para uma coletiva em que há o compartilha-mento de ideias, valores, sentimentos e amizades, pois entende que a pessoa só existe como sujeito quando se relaciona com o outro (BUENO, 2007, p. 85).

Assim, quando se fala em amizade, fala-se também em confiança, razão pela qual, importa destacar, a confiança é responsável por distinguir uma amizade verdadeira de uma interesseira. Dessa forma, quando a confiança se esvai e quando as expectativas não são cumpridas, o direito deve ser procla-mado, tornando a amizade juridificada. Por isso diz-se que “confiar na palavra do outro é se autoexcluir do sistema jurídico” (SPENGLER, 2012, pp. 61-62).

57 O termo “modernidade” é de difícil definição, suscitando inúmeras divergências entre os doutrinadores. Contudo, segue-se a ideia de Touraine (1994, p. 18), que explicita que a modernidade está estreitamente associada à ideia do racional. Assim, sociedade moderna é aquela que é essencialmente racional, deixando para trás a visão de sociedade tradicio-nal assentada em preceitos de fé. Contudo, para que se possa compreender melhor todos os vieses que rodeiam o conceito de modernidade e pós-modernidade, sugere-se a leitura do artigo “A pós-modernidade e a sociologia”, de TASCHNER, Gisela B. In: Revista USP, São Paulo, n. 42, pp. 6-19, junho/agosto 1999. Disponível em: < http://www.usp.br/revistausp/42/01-gisela.pdf>. Acesso em: 27 de novembro 2013.

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Logo, estando a confiança em crise58, sua principal consequência é a busca pelo Poder Judiciário a fim de solucionar as controvérsias, o que acaba culminando na explosão de litigiosidade mencionada no capítulo anterior. Diz-se, portanto, que “uma comunidade que usa preferencialmente o direito para resolver seus conflitos é menos confiável e menos capaz de produzir confiança” (SPENGLER, 2012, p. 64).

Percebe-se, nesse diapasão, que tanto a confiança quanto a amizade estão perdendo espaço para o direito positivado, sendo consideradas meros princí-pios jurídicos que tem sua aplicação garantida quando da intervenção estatal. Todavia, o resgate desses fundamentos – amizade, confiança, solidariedade e alteridade – como pressupostos da vida compartilhada tem sido feito pela fraternidade e pelo direito fraterno, pois a fraternidade é compreendida como uma forma intensa de solidariedade que une pessoas que, por se identificarem com algo profundo, sentem-se “irmãs” (PIZZOLATO, 2008, p. 113).

Nessa senda, constata-se que o valor da fraternidade foi proclamado pela Re-volução Iluminista de 1789 em simbiose com a liberdade e igualdade, as quais se transformaram em importantes valores jurídicos e políticos, capazes de se “mani-festarem tanto como princípios constitucionais quanto como ideias-força de mo-vimentos políticos”. Entretanto, a ideia de fraternidade não teve a mesma sorte; manteve-se em silêncio, como um princípio esquecido (BAGGIO, 2008, p. 8).

Contudo, no decorrer da história e com as diferentes conotações59 que foram atribuídas ao vocábulo, a fraternidade vem se tornando cada vez mais proeminente através dos estudos do direito fraterno, que a coloca em uma posi-ção de destaque, na medida em que “abandona a fronteira fechada da cidadania e olha em direção à nova forma de cosmopolitismo” (RESTA, 2004, p. 15).

Essa nova proposta acena para a possibilidade de resgate da fraternidade através

58 A confiança encontra-se em crise e possui dois aspectos fundamentais: primeiramente, há uma crise de confiança horizontal, observada nas relações existentes entre os cidadãos de modo a identificar o desmoronamento dos laços comunitários; posteriormente, verifica-se uma crise de confiança vertical, ou seja, um descrédito evidente e crescente entre o cidadão e as instituições às quais ele se conecta, entre elas a jurisdição (SPENGLER, 2012, pp. 63-64). 59 A fraternidade pode ser analisada sob os mais variados sentidos: numa conotação reli-giosa, quando se fala na fraternidade descrita na Bíblia Sagrada; na forma de uma ligação sectária, no âmbito de organizações secretas ou que colocam níveis de segredo ao lado de outros de caráter público, como a maçonaria, e que buscam fortalecer sua própria rede de poder econômico e político; como uma fraternidade de classe, na qual alguns regimes políticos, ao proclamá-la, negaram aos outros a liberdade ou até mesmo os invadiram, rea-firmando uma fraternidade formal (BAGGIO, 2008, p. 20).

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do espectro da transdisciplinaridade60 dos fenômenos sociais, que passa pela política, psicanálise, história e sociologia, entre outras áreas do conhecimento, ou seja, essa asserção, na realidade, aponta para uma nova luz, “uma nova possibilidade de inte-gração entre povos e nações”, através da qual as necessidades vitais são substituídas pelo pacto jurado conjuntamente. Assim, a fraternidade permite que as relações se encontrem numa dimensão horizontal e não mais vertical61 (VIAL, 2005, p. 1482).

É importante então olhar as relações entre as pessoas da mesma maneira como se observa e analisa o mundo globalizado: como uma rede62 multiconec-tada e compartilhada de relações em que há o reconhecimento do outro e sua alteridade. Isso ocorre porque,

ao enfatizar a liberdade e a igualdade em detrimento da fraternida-de, a modernidade acentuou os aspectos individualistas e egoístas dos direitos humanos, esquecendo o caráter social, fraterno e solidário desses mesmos Direitos que não são simplesmente do indivíduo e dos grupos ou classes, mas também do “outro”, do mais pobre, do mais desfavorecido. Se a liberdade remete ao indivíduo na sua singularida-de, e a igualdade abre uma dimensão social que, no entanto, perma-nece no âmbito da identidade de certo grupo ou classe social contra outros, a fraternidade remete à ideia de um “outro” que não sou eu nem meu grupo social, mas o “diferente”, diante do qual tenho deveres e responsabilidades, e não somente direitos a opor (TOSI, 2009, p. 59).

Assim, para levar a termo o projeto da modernidade deve-se reconhecer o outro sujeito não só como igual abstratamente, mas aceitá-lo em sua especifi-cidade e excentricidade; isto é, o importante é reconhecer o igual na diferença.

Partindo dessa premissa, deve-se olhar o outro como um sujeito singular, do-tado de características próprias que o diferenciam de qualquer outro no mundo,

60 Transdisciplinaridade, nesse caso, significa, antes de tudo, transgredir e, ao mesmo tempo, integrar (VIAL, 2005, p. 1480).61 Fraternidade, olhada em posição vertical, de cima para baixo, pressupõe que se faça o bem aos outros, mantendo-se uma posição de força que vai do mais forte ao mais fraco. Já a fraternidade horizontal refere que os sujeitos estão no mesmo pé de igualdade, mesmo sendo diferentes entre si; assim, a ajuda é recíproca (BAGGIO, 2008, p. 22).62 A palavra “rede” é entendida como a possibilidade oferecida pela tecnologia a qualquer in-divíduo de construir um conjunto de ligações, de relacionamentos virtuais, que permanecem à disposição do sujeito que os constrói (BAGGIO, 2009, p. 14). Ainda, sobre a sociedade em rede, recomenda-se a leitura de: A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2007, de Manuel Castells.

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sem que isso implique na leitura feita a partir da contraposição amigo/inimigo63. Nesse sentido, cada ser humano nasce em um determinado lugar geográfico e social, e isso implica a assimilação de uma determinada língua, cultura e maneira de ser, o que faz com que cada um seja único no universo; assim, “o homem, com efeito, não nasce homem, mas se faz homem” (TOSI, 2009, p. 61).

Essa identidade originária, intrínseca ao ser humano, é o estopim do confronto intersubjetivo entre um eu e o outro e entre nós e os outros. Nessa senda, se o outro for visto como um diferente, se tornará um inimigo, adversário, “aquele que me é hostil e do qual devo desconfiar” (TOSI, 2009, p. 61). Esse olhar do outro como um inimigo demonstra tão somente “o individualismo desencarnado da existência que prescinde, sempre, a presença do outro para nos construir como identidade” (WARAT, 2004a, p. 114).

Sendo a construção da identidade uma relação dialética entre a subjetivi-dade e a alteridade, não pode ser suprimida, uma vez que é parte integrante do sujeito. Entretanto, o desafio social é justamente superar essa lógica mera-mente identitária e caminhar rumo a um reconhecimento efetivo e eficaz da alteridade, da diversidade, da reciprocidade (SPENGLER, 2012, p. 90).

É nesse sentido que o outro deve ser reconhecido como um outro eu e não como um inimigo, “eu mesmo como um outro”, uma vez que reconhecer o outro como a mim mesmo significa vencer a dialética negativa da alteridade e alcançar, por derradeiro, o reconhecimento comum de pertença (TOSI, 2009, p. 63). Esse, por conseguinte, é o fundamento que leva a reconhecer a importância de um di-reito cosmopolita que se preocupa com questões ecológicas, de guerra e paz, mas que busca um desenvolvimento humano universal, ultrapassando as barreiras do individualismo e chegando ao reconhecimento e responsabilidade pelo outro64,

63 Os conceitos de amigo e inimigo devem ser entendidos no seu sentido concreto, existencial, e nunca como metáforas ou símbolos; não se deve atenuá-los, misturando-lhes representações econômicas, morais ou outras; nem sobretudo interpretá-los psicologicamente num sentido privado-individualista, como se eles exprimissem sentimentos e tendências privadas. Esses con-ceitos não são nem oposições normativas nem oposições espirituais (SPENGLER, 2012, p. 77).64 Emmanuel Lévinas (2010, p. 262) descreve que “o que chama de responsabilidade por outrem, ou amor sem concupiscência, o eu só pode encontrar sua exigência em si próprio; ela está no ‘eis me aqui’ do eu, em sua unicidade não intercambiável de eleito. Ela é originalmente sem reciprocidade, pois traria o risco de comprometer sua gratuidade ou graça, ou caridade incondicional. Mas ordem da justiça dos indivíduos responsáveis uns pelos outros surge não para restabelecer esta reciprocidade entre o eu e seu outro, mas por causa do terceiro que, ao lado deste que me é um outro, me é ‘também um outro’”.

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pois somente assim se caminhará rumo ao entendimento mútuo (SPEN-GLER, 2012, p. 93).

Diante dessa tentativa de encontrar um direito que seja capaz de trans-formar a sociedade e torná-la mais humana e fraterna, surge um direito diferenciado, denominado “direito fraterno”, que valoriza a comunhão de destinos e supera toda e qualquer diferença entre as pessoas. Vigora com ele a questão da comunhão de pactos entre os sujeitos, suas histó-rias e as diferenças, buscando sempre a inclusão social e o respeito aos direitos humanos65 (GHISLENI; SPENGLER, 2011, p. 24).

Nesse diapasão, Fausto Goria (2008, pp. 25-26) questiona: o que tem a ver a fraternidade e o direito? Existem ligações ou são apenas realidades que atuam em campos diferentes? Para muitos a resposta é de que a fraternida-de apenas pode ser espontânea, enquanto o direito é coativo, impositivo. Todavia, ambos os conceitos não são necessariamente excludentes; eles se complementam, haja vista que a fraternidade “poderia apresentar-se como experiência vivida com relacionamentos positivos e enriquecedores, tradu-zidos em direito justamente para assumir caráter estável e institucional”.

O binômio “direito e fraternidade”, portanto, além de ser uma ten-tativa de valorizar uma possibilidade diferente, “recoloca em jogo um modelo de regra da comunidade política: modelo não vencedor, mas pos-sível”. E é, nessa perspectiva, um direito vivo, jurado conjuntamente entre verdadeiros irmãos, construído pela comunicação fraterna e não imposto pelo “pai senhor da guerra”66 (RESTA, 2004, p. 15).

Ademais, a relação intrínseca entre direito e fraternidade só fica bem definida quando se analisa a presença desta nos ordenamentos jurídicos67. No Brasil, por exemplo, a fraternidade vem esculpida no

65 Nesse sentido, Resta (2004, p. 13) assevera que o direito fraterno relaciona-se com o espaço de reflexão ligado ao tema dos direitos humanos, em razão de que “a humanidade é simples-mente o lugar comum, somente em cujo interior pode-se pensar o reconhecimento e tutela”.66 Entenda-se, nesse caso, que o direito fraterno não é impositivo, como o direito tradicio-nal, mas construído pelas partes envolvidas através do (re)estabelecimento da comunição.67 A fraternidade já foi reconhecida pelos ordenamentos jurídicos no decorrer da his-tória; dentre elas destacam-se: a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, em seu artigo 1º, preceitua: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

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preâmbulo68 da Carta Magna de 1988, cuja redação traz dispositivos que en-trelaçam os direitos do homem garantidos pelo ordenamento nacional e a fra-ternidade como princípio facilitador de seu alcance (SPENGLER, 2012, p. 89).

Assim, direito e fraternidade tornam-se responsáveis pela construção de uma sociedade que tem como pressuposto a criação de verdadeiros cidadãos que deverão respeitar o próximo como a si mesmos e que, conscientes de seus direitos e deveres, buscarão a efetividade desse princípio com o fito de estabe-lecer um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

A fraternidade, em vista disso, poderá transformar o mundo real, mostrando um valor heurístico e uma eficácia prática (SPENGLER, 2012, pp. 89-90), na medida em que traz à baila a comunhão de ajustes entre sujeitos concretos, suas histórias e diferenças. Nesse contexto, a fraternidade aproxima-se frontalmente da amizade, pois ambas são capazes de unir, independentemente de vínculos ou liames visíveis (GHISLENI, 2011, p. 102), ou seja, elas são utilizadas como um contrato ou um pacto que ultrapassa os limites emocionais e servem como meio de manutenção das alianças sociais firmadas (SPENGLER, 2012, p. 32).

Esses acordos, portanto, são reconhecidos pelos sentimentos de confiança, fidelidade e gratidão que nutrem as pessoas, mas que não são normatizados ou legalizados, pois somente compõem o mundo dos sentimentos e não o da justi-ça. Tal posicionamento ratifica o pensamento de Aristóteles, uma vez que, exis-tindo amizade e fraternidade, não há a necessidade de justiça positivada, sendo esta imprescindível apenas se a “amizade deixar de ser a argamassa, cimento social” (SPENGLER, 2012, pp. 32-33).

O direito fraterno adquire, dessa forma, uma dimensão cosmopolita, haja vista que sua base de operações é diferente dos códigos tradicionais, que olham o outro como inimigo e, por isso, são também não violentos. Consequentemen-te, a diminuição da violência traz à tona a ideia de jurisdição mínima e de uma nova concepção da relação entre sociedade e justiça, levando em conta que o

68 Refere o preâmbulo, na íntegra: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a asse-gurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem inter-na e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (BRASIL, 1988).

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conflito nasce na sociedade e por ela deve ser tratado (GHISLENI, 2011, p. 103). Nesse cenário em que o compartilhamento se baseia no “estar com o outro”

e no “respeitá-lo por suas diferenças” é que a mediação aparece. Ela é, pois, um instrumento de exercício da cidadania cosmopolita, uma vez que procura valorizar os laços fundamentais de relacionamento, incentivando o respeito, a amizade e a fraternidade e ressaltando os pontos positivos de cada um dos en-volvidos na solução da lide para, ao final, extrair como consequência natural do procedimento os verdadeiros interesses em conflito (TAVARES, 2002, p. 64).

Ela serve então para educar, facilitar e auxiliar a compreender as diferen-ças como fatores normais da vida em sociedade, ou seja, possibilita que o outro envolvido no conflito não seja visto como um inimigo, mas como um amigo que tem características e pensamentos diferentes. Além disso, auxilia as partes litigantes a encontrarem a melhor solução para o conflito.

A mediação, sob a luz da fraternidade e da amizade, pode ser analisada como uma possibilidade de trilhar os caminhos em direção ao reconhecimento efetivo da alteridade, da diversidade e da reciprocidade através do intercâmbio comunicativo, cujo objetivo é facilitar a expressão do dissenso e administrar com responsabilidade a discordância para que, ao final, possa se chegar a um entendimento consensuado.

Enfim, tanto a amizade como a fraternidade, conjugados em sentido per-sonalista, passam pelo reconhecimento e pela valorização institucional de um tecido rico e solidário chamado comunidade. Esse sistema de relações es-truturado em formações sociais permite que seja continuamente recriada a independência e interdependência dos sujeitos com o intuito de desenvolver a pessoa humana para que se tornem responsáveis por suas decisões através da promoção da lógica participativa (PIZZOLATO, 2008, p. 126).

A sociedade precisa se revitalizar, oportunizando relações sociais mais pessoais e fraternas, desconstituindo, por conseguinte, o individualismo autista e indo ao encontro da vida compartilhada. Com isso, um novo caminho começa a ser percor-rido, rumo a um ideal de bem coletivo, de olhar o outro e vê-lo em si. Caminha-se, ainda que timidamente, em direção à comunidade, à amizade e à fraternidade.

Para se chegar ao objetivo final, que é a harmonização da convivência social, a mediação comunitária torna-se a ponte de ligação entre a vida solitária, o con-flito e a comunidade, haja vista que não se baseia em improváveis convergências de interesses individuais e egoístas, tampouco na transferência ao Estado do

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monopólio jurisdicional, mas sim na construção de uma comunidade empo-derada e responsável, que seja capaz de tratar seus conflitos e fortalecer os laços de amizade e fraternidade que a constituem.

Dessa forma, a análise do próximo capítulo se conduzirá por pontos es-pecíficos, que iniciam pela apresentação desse espaço de compartilhamento de ideias e sentimentos – a comunidade –, passando, na sequência, a abordar o mecanismo da mediação em seu viés comunitário para, posteriormente, analisá-la como uma política pública que proporciona o acesso à justiça a todo e qualquer cidadão e o torna protagonista de seu destino, empoderando--o. Paralelamente, serão discutidas questões como a comunicação, a figura do mediador, as políticas públicas e a importância delas para o progresso e harmonização da convivência social, bem como a utilização prática da me-diação comunitária através do projeto Justiça Comunitária, desenvolvido pelo Ministério da Justiça.

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3 UMA PROPOSTA TRANSFORMADORA: MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA COMO POLÍTICA

PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA E DE EMPODE-RAMENTO DA COMUNIDADE

Vida nasce de comunidades e aspira a comunidade. A comunidade é fim e fonte de vida.

(BUBER, Sobre comunidade)

No decorrer deste último capítulo, a mediação comunitária é o foco cen-tral, abordando-se de forma ampla sua base de operações, a comunidade, suas características, bem como a relevância da figura do mediador na busca pela construção do consenso e da harmonia social. Além disso, focaliza-se o empo-deramento proporcionado pela mediação, que torna o cidadão o ator principal – protagonista de sua vida e destino.

A mediação comunitária emerge como uma nova maneira de olhar o con-flito, que propicia uma real revolução no modo como o acesso à justiça é en-carado, na relação entre as partes e na sociedade como um todo, uma vez que almeja o tratamento da controvérsia, a prevenção da má administração dos conflitos, a inclusão social e a convivência pacífica.

Tais mudanças ocorrem porque ela trabalha o pluralismo de valores e os diversos sistemas de vida a partir da abertura/reabertura dos canais de comunicação inter-rompidos. Logo, o diálogo transformador e a participação das partes na construção de um consenso visam tão somente a robustecer os laços comunitários destruídos.

Destarte, ela é considerada uma política pública que tem como desafio aceitar a diferença, a singularidade e a diversidade das pessoas para que, através da comuni-cação, os vínculos de amizade e fraternidade despontem num nítido fortalecimento

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do sentimento de cidadania e de integração da vida em comunidade.Nesse sentido, o debate se volta para as políticas públicas e sua importância

para o desenvolvimento social na tentativa de concretização de um acesso à justiça irrestrito e eficaz para todos que dela necessitem, bem como para seus reflexos na emancipação das relações sociais, cujo objetivo é empoderar os sujeitos através do tratamento do conflito feito na, para e pela comunidade.

Por fim, após a análise da mediação comunitária como política pública, a discussão se direciona para o projeto Justiça Comunitária, desenvolvido pelo Ministério da Justiça, que tem por meta aproximar a justiça da comunidade e fortificar a cidadania pela informação, conscientização e responsabilização do cidadão na construção de respostas aos seus problemas. Essa proposta conso-lida um efetivo meio de acesso à justiça e de tratamento dos conflitos, combi-nando prevenção, diminuição da judicialização das demandas e obtenção da harmonização da convivência social. Ela, por conseguinte, revela que a media-ção comunitária é uma proposta válida, que dá certo e que é capaz de devolver à sociedade autonomia para a gestão e o tratamento de seus conflitos.

Assim, na sequência será feita a abordagem de todos esses temas com um úni-co e especial propósito: demonstrar que a mediação comunitária é uma política pública eficaz não apenas por proporcionar a democratização do acesso à justiça, mas por empoderar os sujeitos e torná-los verdadeiros cidadãos. É o que se verá.

3.1 Mediação comunitária: a possibilidade de tratamento do conflito “dentro de casa”

Atualmente o direito oficial apresenta um elevado grau de institucionaliza-ção da função jurídica, que o tornou burocrático, hierarquizado, sistematizado e rígido. Ele é, pois, padronizado e impessoal, motivo que o torna ineficaz diante de determinados litígios. Assim, à medida que o Estado perde o seu monopólio como única fonte de dizer o direito, novos espaços ganham a forma de verdadei-ros meios de tratamento dos conflitos (SPENGLER, 2012, p. 213).

A ausência ou presença mínima do ente estatal, somada à crise do Poder Judiciá-rio69, que não consegue atender às demandas que lhe são solicitadas, e à dificuldade

69 Sobre o tema, remete-se o leitor ao item 1.2.2 do primeiro capítulo deste trabalho.

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em acessar a justiça acaba gerando continuamente a “proliferação de direitos ditos inoficiais70, que têm berço, quase sempre, na falta de atenção do Estado para com os direitos fundamentais do cidadão” (SPENGLER, 2012, p. 215). Assiste-se, por con-seguinte, ao surgimento de entidades autossuficientes, nascidas em comunidades locais, para as quais o sujeito se volta buscando refúgio.

Cansados, portanto, de esperar, os indivíduos criam e aplicam suas próprias regras, ainda que ausentes de oficialidade, como mandamentos aptos a tratar as controvérsias. A “pluralidade de ordens, com diferentes centros de poder a sustentá-las e diferentes lógicas normativas” (BAUMAN, 2009, p. 54), apenas representa o “direito vivo, latente, que se traduz na forma como os cidadãos lidam com as adversidades da vida no cotidiano” (FOLEY, 2010, p. 67).

O direito, como pode ser observado, desponta em todas as relações sociais que tenham como pressuposto a alteridade, “em que os olhares diversos sobre os problemas engendrem soluções novas, aberturas diferentes e consignação de novos direitos” (AGUIAR, 2002, p. 70).

É, pois, em meio a esse pluralismo jurídico71 que se contextualiza a (re)emergên-cia de instrumentos complementares de tratamento de conflitos, como a mediação comunitária, não apenas para superar o esfacelamento do ente estatal, mas para servirem de métodos que valorizem simultaneamente o ambiente em que estão in-seridos e a participação ativa dos envolvidos no tratamento das contendas.

Assim, a mediação comunitária aparece como um instrumento de Justiça social

70 Sobre a utilização e aplicação do direito inoficial no tratamento dos conflitos, vale lem-brar o trabalho realizado por Boaventura de Sousa Santos (1988, p. 14) em uma favela do Rio de Janeiro, a qual denominou “Pasárgada”. O autor relata que nessa comunidade vigora um “direito paralelo não oficial, cobrindo uma interação jurídica muito intensa, à margem do sistema jurídico estatal”. Assim, a negociação e a aplicação de leis inoficiais eram rea-lizadas mediante um articulador representado pela figura do presidente da associação de bairros, que laborava como um mediador de conflitos. Contudo, o direito não oficial desen-volvido nas favelas das grandes cidades brasileiras não dispõe de mecanismos de coerção oficiais; ao contrário, a coerção advinda das associações de bairros é muito incipiente e quase inexistente. Na realidade, o que se verifica são formas de pressão representadas por violência e ameaças que visam dominar e impor a lei do mais forte. Isso ocorre, normal-mente, no direito marginal, no qual chefe do tráfico de drogas comanda a comunidade da qual faz parte (SPENGLER, 2012, p. 219).71 Para Wolkmer (2001, p. 219), o pluralismo jurídico é revelado pela “multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existen-ciais, materiais e culturais”.

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que possui uma cadência própria72 e destina-se a criar, reatar e fortalecer laços até então destruídos entre os indivíduos, a partir de uma ética da alteridade que busca no diálogo produtivo o respeito às diferenças e a composição da lide.

Ela, por meio da comunicação, visa a organizar as relações comuni-tárias e a auxiliar no tratamento das controvérsias com autonomia e res-ponsabilidade, reduzindo, por consequência, a dependência do terceiro, juiz, e possibilitando o entendimento mútuo e consensual. A mediação comunitária então conscientiza as partes da importância de sua parti-cipação na discussão dos problemas, o que dá a elas o sentimento de inclusão na sociedade (WALTRICH, 2012, p. 117).

Trata-se de um método que não se restringe apenas a resolver os li-tígios, mas que constitui uma proposta multidisciplinar73 e integradora, pois se configura pela contextualização do procedimento à dimensão local em que as pessoas estão inseridas e aos conf litos que as rodeiam. Essa sintonia propicia, em vista disso, uma transformação social, na me-dida em que promove o resgate da comunicação, permitindo aos envol-vidos que restabeleçam os laços de amizade e fraternidade a fim de que solucionem os seus problemas e previnam o surgimento de novos.

Não obstante ser a mediação comunitária uma ferramenta de suma relevância para o tratamento dos conf litos e para a harmonização da vida em comunidade, questiona-se: afinal, o que é comunidade? O que ela representa para seus membros? A resposta a essas perguntas é o objetivo do próximo item.

72 Diz-se que a mediação comunitária tem uma cadência própria porque enaltece o exer-cício da prudência e da paciência até que se encontrem as verdades das partes. Contraria-mente, o tempo da jurisdição depende da “lógica paradoxal da dupla ligação, que deseja sempre a palavra definitiva mas que permanece na espera de controles posteriores”, ou seja, é o tempo da imposição, da resposta outorgada (SPENGLER, 2010, p. 347). 73 Considera-se multidisciplinar, pois trabalha com questões sociológicas, jurídicas e psicológicas, entre outras áreas, do saber e entender humano.

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3.1.2 Comunidade: um espaço de compartilhamento

O conceito de comunidade tem uma rica trajetória ao longo do pensamento ocidental, desenvolvendo-se pela dicotomia74 existente entre ela e a noção de uma sociedade75 entendida sob as amarras do individualismo.

Diferencia-se “comunidade” de “sociedade” não apenas porque é “impreg-nada de um aspecto valorativo e ético”, mas por diversas outras razões que Leal (2007, p. 56) elenca:

a) A comunidade é natural e espontânea, sendo a sociedade, de certa maneira, artificial; b) a comunidade é uma maneira de ser (se é mem-bro dela), enquanto a sociedade é uma maneira de estar (se faz parte dela); c) na comunidade existe integração e hierarquia, já na socie-dade existe uma soma convencional de elementos; d) na comunidade há primazia de valores (virtus), ao passo que na sociedade predomi-nam valores divergentes (necessitas); e) na comunidade predomina o ético e, na sociedade, o jurídico; f) a justiça comunitária possui natureza distributiva, ao contrário da sociedade, em que a justiça é de natureza comutativa.

Assim, de acordo com o léxico, comunidade compreende o “conjunto de habitantes de um mesmo Estado ou qualquer grupo social cujos elementos vivam numa dada área, sob um governo comum e irmanados por um mesmo legado cultural e histórico” (HOUAISS, 2001, p. 782).

Ao ler atentamente o conceito percebe-se que o termo pode ser analisado sob várias perspectivas, entre elas: a filosofia moral, que ressalta um nível de valores comuns que justificam normas e princípios morais; a sociologia, que enfatiza as possibilidades de constituição de um grupo solidário que permi-ta aos indivíduos escaparem do perigo do isolamento social, e a política, que

74 Essa distinção entre comunidade e sociedade tem como precursor Ferdinand Tönnies (1855-1936) e sua obra Gemeinschaft und gesellschaft, Comunidade e sociedade, publicada em 1887. Essa obra marcou a popularização da ideia de oposição entre formas de vida marcadas pela coesão, unidade e comunidade, por um lado, e individualismo, fragmentação e sociedade, por outro (SCHMIDT, 2013, p. 28). 75 Na sociedade, o que predomina é a vontade refletida, isto é, a vontade formulada pela reflexão de cada indivíduo, tendo por referência seus interesses. As pessoas, por-tanto, são abstratas e separadas, sem qualquer laço que as unam. Elas são colocadas no mercado mundial, cujo único valor é o da troca, ligado ao lucro; por consequência, tornam-se solitárias, isoladas (NAUJORKS, 2013, p. 82).

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vê nas formas de participação comunitária uma espécie de democracia viva (HONNETH, 2003, pp. 291-292).

Todavia, a comunidade possui uma concepção muito mais ampla, na medida em que “abarca todas as formas de relação que se caracterizam por um eleva-do grau de intimidade pessoal, profundidade emocional, compromisso moral, coesão social e continuidade no tempo. Se assenta no homem entendido como totalidade76” (PÉREZ, 2009, p. XIV).

A comunidade, então, é decorrente de uma vontade orgânica das pessoas, produzida a partir das relações de parentesco, vizinhança e amizade. É o lugar dos sentimentos, do amor, da lealdade e da compreensão, sendo três os elemen-tos que a constituem: sangue, localidade e espírito77 (NAUJORKS, 2013, p. 82). Juntos esses requisitos compõem o conjunto de relações vivenciadas e sentidas pelos seus membros.

Pressupõe, ainda, relações autênticas entre os indivíduos, isto é, que as pes-soas se relacionem não pelo fato de possuírem algo em comum, como interes-ses, negócios ou trabalho, mas, ao contrário, “que se relacionem imediatamente, sem intermediários” (BUBER, 2008, p. 88), pelo simples fato de terem senti-mentos recíprocos e estarem “unidas umas às outras em relação viva e mútua” (BUBER, 2012, pp. 38-39).

Nessa ordem, ganha destaque o conceito de comunidade cívica elaborado por Putman (2002, p. 31), que estabelece uma forte correlação entre a comunidade, o capital social78, o desenvolvimento econômico e a eficácia governamental.

76 Original: “las formas de relación que se caracterizan por un elevado grado de inti-midad personal, profundidad emocional, compromiso moral, cohesión social y conti-nuidad en el tiempo. Se asienta en el hombre entendido como totalidad”.77 O sangue representa os laços de parentesco, a localidade ou proximidade refere-se às relações de vizinhança e o espírito, se fundamenta nas metas, sentimentos, e afetos comuns que unem as pessoas (TÖNNIES, 2009, p. 14).78 Para Putman (2002, p. 177), o “capital social diz respeito a características da orga-nização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando ações coordenadas”. Ainda, não obstante as inúme-ras classificações sobre capital social, Schmidt (2006, pp. 1761-1762) elenca três tipos: 1) capital social bonding, “de união”: está presente em relações estreitas, com frequência de contato pessoal. São os laços entre vizinhos, amigos e familiares; 2) capital social bridging, “de vinculação”: refere-se aos laços entre agentes de grupos sociais distintos, como as relações entre colegas de trabalho, membros de associações e clubes; 3) capital social linking, ”de conexão”: apresenta-se entre pessoas com relacionamento distante, que tenham pouco contato, como, por exemplo, entre governantes e cidadãos.

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Segundo o autor, a comunidade cívica se caracteriza por “cidadãos atuantes e im-buídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança79 e na colaboração”.

Na comunidade cívica, cuja característica é a união através das relações ho-rizontais de reciprocidade e cooperação, quanto mais desenvolvida for, maior será a possibilidade de seus cidadãos serem capazes de cooperar em benefício mútuo. Dessa forma, os indivíduos, interagindo como iguais, seguem as regras de reciprocidade, são prestativos e relacionam-se com respeito e confiança, sen-do esta última a chave que permite abrir os sujeitos a fim de que ajam coletiva-mente (SPENGLER, 2012, p. 222), sem precisarem de um terceiro, o juiz, que lhes diga o que está certo ou errado, ou o que devem ou não fazer.

Comunidade, enfim, sugere uma coisa boa: é bom ter uma comunidade e estar em uma. Ela produz uma sensação confortante, de paz, tranquilidade, relaxamento e proteção, seja porque é um lugar cálido ou porque é aconche-gante. O vocábulo evoca tudo aquilo que precisamos para viver seguros e confiantes, soando nos ouvidos como música (BAUMAN, 2003, pp. 7-9).

Entretanto, será que todas as pessoas vivem nesse tipo de comunidade? Não. A grande maioria das pessoas não está inserida nesse tipo de comuni-dade, mas é o local onde um dia almejam viver e que esperam vir a possuir.

Essa comunidade real, também chamada “paraíso perdido” ou “paraíso es-perado”, de uma maneira ou outra não é um local em que se habita, tampouco se trata de um paraíso que se conheça a partir da própria experiência, mas que se espera ansiosamente retornar e, assim, buscar febrilmente os caminhos que conduzam até ele (BAUMAN, 2003, p. 9).

O que se verifica, a partir dessa constatação, é justamente o abismo que se encontra entre a comunidade real e a dos sonhos. Para Bauman (2003, pp. 9-10), viver nessa comunidade dos sonhos exigiria rigorosa obediência em troca dos serviços que presta ou promete prestar. Relega-se a liberdade em nome da segurança.

Esse é o ônus a ser pago para se ter o privilégio de viver em comunidade:

79 Segundo Fukuyama (1996, p. 21), uma das lições mais importantes que se aprende é que o bem-estar de uma nação é condicionado a uma única e abrangente característica cultural: o nível de confiança inerente à sociedade. Assim, “uma sociedade cuja cultura pratica e valoriza a confiança interpessoal é mais propícia a produzir o bem comum, a prosperar” (ARAÚJO, 2003, p. 17).

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sacrifica-se a liberdade, a autonomia e a identidade80 para, em troca, ganhar segurança. A escolha de uma impõe a renúncia da(s) outra(s), independente-mente se a comunidade for regida pelo Estado e seu direito oficial ou condu-zida por regras próprias reconhecidas socialmente. É indubitável que nova-mente está-se diante da dicotomia ganhar/perder (SPENGLER, 2012, p. 224).

Porém, a comunidade81 que realmente se quer nos dias de hoje não conseguirá mais se basear em tais pressupostos, pois eles fazem parte de um passado individu-alista, em que o “eu” característico dessa época foi paulatinamente abrindo espaço para o “nós”, para o compartilhamento, para a proximidade e para a solidariedade.

Logo, será preciso resgatar os valores humanos que foram perdidos, substi-tuídos ou transformados ao longo da história (BUENO, 2007, pp. 81-82), com o objetivo de fazer transcender uma comunidade segura que eleve a vida – não aquela vida dominada, mas a vida que liberta de limites e preconceitos e que envolve o indivíduo nos laços comunitários. Vida e comunidade são, portanto, dois lados de um mesmo ser (BUBER, 2008, p. 34).

Nesse sentido, BUBER (2008, p. 39) descreve a transição entre as comuni-dades apontando para o fato de que

a humanidade, que teve sua origem em uma comunidade primitiva obs-cura e sem beleza e passou pela crescente escravidão da “sociedade”, chegará a uma nova comunidade que, diferentemente da primeira, não terá mais como base laços de sangue, mas laços de escolha. Somen-te nela pode o antigo e eternamente novo sonho se realizar. E mais, a unidade instrutiva de vida do homem primitivo, que foi dividida e de-composta durante tanto tempo, voltará sob novas formas em um nível superior e sob a luz de uma consciência criadora e, assim, a nova comu-nidade será fundada ao mesmo tempo entre os homens e no indivíduo.

80 Identidade é um conceito trabalhado sob diversas perspectivas e teorias, além de ser utilizada com acepções bastante diferenciadas. Entretanto, Naujorks (2013, p. 90) considera a identidade como uma “construção social de significados e sentimentos as-sociados ao reconhecimento que o indivíduo faz de si e dos outros. Tais significados são produzidos cognitivamente e vivenciados emocionalmente”. 81 A maioria das comunidades contemporâneas é feita sob medida para os tempos líquidos mo-dernos: comunidades extraterritoriais, voláteis, transitórias e descartáveis. Comunidades esté-ticas, comunidades-cabide ou comunidades de carnaval são algumas das denominações dadas a elas. Essas comunidades dos tempos da modernidade líquida formam-se a partir de espetáculos, eventos festivos recorrentes ou “problemas”, porém ganham vida pela duração do ritual semanal ou mensal previsto, dissolvendo-se na sequência após serem usadas (BAUMAN, 2003, p. 67).

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Essa nova comunidade82, nascida da evolução de todas as outras anteriores, é aquela que retoma a autonomia, o respeito, a identidade, as individualida-des de cada membro e que, ao mesmo tempo, consegue organizar, de forma compartilhada e consensual, a gestão e tratamento de seus conflitos, sejam eles internos ou externos. É, por conseguinte, aquela que, “para proteger seus participantes, dá-lhes meios de encontrar respostas comunitárias para proble-mas comunitários, gerando proteção e segurança sem abrir mão da liberdade” (SPENGLER, 2012, pp. 226-227).

Sendo assim, passado, presente e futuro são atravessados por conflitos e pela ambivalência de tratá-los de formas diferentes. Toda essa transformação histórica acontece porque se está à procura de algo que possa reverter a dor e o sofrimento experimentados pelo individualismo, pela solidão e pela clausura. Busca-se algo bom, que proporcione aconchego e acalento como a comunidade.

Isso significa a introdução de uma nova era, de um novo começo perma-nente, em que a inclusão do outro não significa seu confinamento dentro do próprio grupo e fechamento diante do alheio, mas representa que as fronteiras da comunidade estarão abertas a todos, inclusive aos que são tidos como dife-rentes (BUENO, 2007, pp. 82-83).

Percebe-se, em vista disso, que, diante da pluralidade e multiplicidade de indivíduos que compõem a comunidade e a sociedade como um todo, é cris-talino que não se pode regrar e moldar hermeticamente os conflitos que os envolvem. É preciso, ao contrário, encontrar soluções que percebam e con-siderem a diversidade das comunidades interligadas e das partes envolvidas em igualdade de direitos (BUENO, 2007, p. 83). Qual seria então a solução? A resposta mais segura e certa a essa pergunta remete a um instrumento de revitalização e flexibilização da justiça, que prima pelo encontro de opiniões

82 A nova comunidade é estável, duradoura e consolida-se na modernidade sólida, na medida em que faz tecer entre seus membros uma rede de responsabilidades éticas, gerando compromissos em longo prazo, direitos inalienáveis e obrigações inabaláveis que, graças à sua durabilidade prevista (melhor ainda, institucionalmente garantida), pudesse ser tratada como variável dada no planejamento e nos projetos do futuro. E os compromissos que tornariam ética essa comunidade seriam do tipo “compartilha-mento fraterno”, reafirmando o direito de todos a um seguro comunitário contra os erros e desventuras, que são os riscos inseparáveis da vida individual. Em suma, essa comunidade tem três atributos que faltam na vida isolada, solitária: certeza, segurança e proteção (BAUMAN, 2003, pp. 67-68).

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e sentimentos, pelo compartilhamento e pelo tratamento das controvérsias: a mediação comunitária.

Ela é um instrumento capaz de desenvolver na população conhecimentos, crenças, atitudes e comportamentos conducentes ao fortalecimento de uma cultura político-democrática e de paz, haja vista que busca, através do (re)estabelecimento da comunicação rompida e de práticas democráticas, uma convivência harmônica em que prevaleça o entendimento e o respeito mútuo (SALES, 2007, pp. 202-203).

Ainda, incentiva a prevenção dos conflitos, na medida em que estimula a prática do diálogo, a conscientização das pessoas acerca de seus direitos e deveres, a responsabilização pela concretização dos mesmos e a mudança de uma visão negativa para uma positiva das controvérsias. Enfim, é uma ferra-menta perfeita que potencializa sua força ao viabilizar o entendimento entre os cidadãos pela comunicação pacífica (WALTRICH, 2012, p. 118).

O diálogo promovido pela mediação comunitária é o cerne de toda a transfor-mação social, pois as relações entre as pessoas atualmente são multifacetadas, ou seja, se estruturam pelos mais variados vínculos e se perpetuam não pela imposição de uma decisão, mas essencialmente pelo equilíbrio proposto por este mecanismo.

Dessa forma, a seguir serão abordados pontos relevantes que caracterizam a comunicação como um artefato apto a propiciar uma metamorfose nos indivídu-os, seja porque expressam tudo aquilo que os está reprimindo, seja porque ouvem a parte contrária sem apontá-la como culpada. O certo é que o diálogo não visa a encontrar uma verdade absoluta ou universal, tampouco um ganhador ou perde-dor, mas sim à cooperação, integração, repeito e alteridade entre os envolvidos.

3.1.3 Comunicação: a linguagem como promotora da trans-formação e o mediador comunitário como seu fomentador

A mediação comunitária é uma maneira de instaurar o diálogo rompido en-tre as partes em virtude da posição antagônica instituída pelo conflito. Cons-titui-se, por isso, como um intercâmbio comunicativo no qual os envolvidos estipulam o que compete a cada um no tratamento da contenda. Ela então facilita a expressão do dissenso, definindo um veículo que possa administrar

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a discordância e chegar a um entendimento por meio de processos linguísticos (SPENGLER, 2011, p. 204).

Seu principal objetivo não é gerar relações calorosas, aconchegantes ou uma ordem harmoniosa, mas sim encontrar mecanismos que possibilitem uma convivência comunicativamente pacífica, na qual os indivíduos pos-sam falar e ouvir a parte contrária sem, contudo, perceberem-se como rivais (SPENGLER, 2012, p. 165).

Nesse sentido, a mediação comunitária pode ser considerada uma estraté-gia do agir comunicativo, de acordo com a teoria da ação comunicativa for-mulada por Jürgen Habermas, uma vez que propõe um meio diferenciado de tratar a contenda, em que os atores sociais são os protagonistas de um pro-cesso comunicativo baseado na argumentação racional e que tem por meta o entendimento obtido pela cooperação e solidariedade social, com a exclusão de métodos coercitivos e manipulatórios (COSTA; SILVA, 2011, p. 26).

Assim, inicialmente serão abordados alguns aspectos relevantes da teoria da ação comunicativa a fim de coaduná-la com a mediação comunitária; em seguida buscar-se-á analisar a figura do mediador que trabalha auxiliando os conflitantes a restabelecerem os vínculos dialógicos e emocionais que culmi-narão no consenso e na harmonia social.

Para o filósofo e sociólogo alemão a teoria da ação comunicativa não se constitui apenas em uma metateoria, mas sim no princípio de uma te-oria da sociedade que dá fundamento à crítica social, a qual é facultada pelos estudos interdisciplinares de várias ciências, como a filosofia, a sociologia e a psicologia (SPENGLER, 2010, p. 350).

Ela então pode ser entendida como um tipo de ação social mediada pela comu-nicação, em cuja dimensão encontra-se a possibilidade de reconhecer uma noção ampliada de racionalidade, capaz de resgatar e incorporar o interesse crítico e emancipatório dos sujeitos (GHISLENI, 2011, p. 96), ou seja, essa teoria “abre possibilidades de se construir novas percepções e compreender a sociedade, que tem características distintas, inclusive desiguais” (COSTA; SILVA, 2011, p. 23).

Importante se torna, nesse momento, diferenciar a ação comunicativa da instrumental. A ação instrumental, por ser uma modalidade técnica, orienta-se pelo êxito alcançado, independentemente dos meios empre-gados, enquanto a ação comunicativa baliza-se pela comunicação, pela

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interação entre as pessoas que conduzem ao entendimento83 mútuo (HA-BERMAS, 1987, p. 27). Dessa maneira, as sociedades que utilizam pre-ferencialmente a ação instrumental são chamadas de mundo sistêmico, e aquelas que usam a ação comunicativa são identificadas como mundo vivido ou mundo da vida.

Para Habermas (2003, p. 111), o mundo da vida constitui-se em noção es-sencial para a compreensão da vida em sociedade:

O conceito “mundo da vida”, da teoria da comunicação, também rompe com o modelo de uma totalidade que se compõe de partes. O mundo da vida configura-se como uma rede ramificada de ações comunicati-vas que se difundem em espaços sociais e épocas históricas; e as ações comunicativas não somente se alimentam das fontes das tradições cul-turais e das ordens legítimas, como também dependem das identidades de indivíduos socializados. Por isso, o mundo da vida não pode ser tido como uma organização superdimensionada, à qual os membros se fi-liam, nem como uma associação ou liga, na qual os indivíduos se inscre-vem, nem como coletividade que se compõe de membros.

É possível afirmar que o mundo da vida habermasiano é o lugar onde tudo acontece. Local que se firma pelas interações entre as pessoas desde as épocas mais remotas até os dias atuais, o mundo da vida nada mais é que a sociedade em que se vive e se compartilham experiências e vivências a partir da comu-nicação e da integração social.

O mundo da vida, por conseguinte, compreende três dimensões diferentes: a) mundo objetivo, enquanto conjunto de todas as entidades sobre as quais se possa produzir enunciados verdadeiros – das coisas; b) mundo social, como conjunto de todas as relações interpessoais legitimamente reguladas – das normas, e, por fim, c) mundo subjetivo, visto como totalidade das vivências do falante, às quais este tem acesso privilegiado – do afeto (SPENGLER, 2012, p. 166). Juntas, essas três perspectivas representam todos os tipos de interações que os sujeitos podem ter.

83 Considera-se entendimento aquele acordo racionalmente motivado e alcançado entre os participantes, que se mede por pretensões de validez. No caso de processos de entendimento mútuo linguísticos, os atores se erguem com seus atos de fala ao se entenderem uns com os outros sobre algo, pretensões de validez, mais precisamente, pretensões de verdade, pretensões de correção e pretensões de sinceridade, conforme se refiram a algo no mundo objetivo ou a algo no mundo social comum, ou ainda, algo no mundo subjetivo próprio (HABERMAS, 1989, p. 79)

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É nesse mundo da vida compartilhado, portanto, que o agir comunicativo84 emerge como uma forma de ação social que possibilita aos participantes inte-ragir entre si, expressando seus sentimentos, vontades e opiniões, em igualda-de de condições e sem qualquer tipo de coerção ou imposição de ideias.

Nessa perspectiva, as interações comunicativas85 despertam nos indivíduos “um reconhecimento intersubjetivo e uma aceitação do ouvinte em relação àquilo que o falante profere” (COSTA; SILVA, 2011, p. 24), que conduzem a uma real compreensão não apenas das expressões linguísticas explicitadas pelos indivíduos, mas também do mundo que os rodeia, ensejando, por derra-deiro, a compreensão mútua, a cooperação e a solidariedade.

Logo, sendo a sociedade plural e multifacetada, o entendimento deve ser percebido como um processo que é construído em cada contexto no qual está inserido, a partir da participação ativa de cada sujeito e não como um fim. Em vista disso, para atingir o fim almejado, o consenso, as partes devem se mani-festar, falar, expressar suas opiniões e desejos sempre em condições iguais e com total liberdade em uma fulgente ética discursiva.

Quanto mais se amplia a racionalidade86 comunicativa, momento em que as pessoas utilizam a argumentação para buscar o entendimento, maior é a possibilidade de haver coordenação da ação sem o emprego da coerção, o que aumenta consideravelmente as chances de tratamento consensual do conflito deflagrado em decorrência de dissonâncias cognitivas (GHISLENI, 2011, p. 96).

A racionalidade comunicativa, por derradeiro, “exprime-se na força unifi-cadora da fala orientada ao entendimento mútuo, discurso que assegura aos falantes envolvidos um mundo da vida intersubjetivamente partilhado”, como

84 A expressão “agir comunicativo” indica aquelas interações sociais para as quais o uso da linguagem está orientado: para o entendimento que ultrapassa o papel de coor-denador da ação (HABERMAS, 2002, p. 72).85 As interações comunicativas são aquelas em que as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação (HABERMAS, 1989, p. 79). Elas, contudo, não se referem apenas a atos de fala, mas também a gestos e expressões corporais, que se transformam no comportamento dos envolvidos e, por último, produzem a relação interpessoal entre aquele que fala e aquele que escuta (COSTA; SILVA, 2011, p. 22).86 “A racionalidade de uma pessoa mede-se pelo fato de ela se expressar racionalmente e poder prestar contas de seus proferimentos, adotando uma atitude reflexiva. Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em que se orienta performativamente por pretensões de validade; diz-se que ela não apenas se comporta racionalmente, mas que é racional” (HABERMAS, 2004, p. 102).

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também “o horizonte no interior do qual todos podem se referir a um único e mesmo mundo” (HABERMAS, 2004, p. 107). Porém, os diferentes meios de argumentação formadores do consenso não garantem nenhuma verdade ou exatidão, não podendo ser identificados como algo absoluto. Eles, ao contrá-rio, evoluem e se modificam continuamente, o que acarreta, em consequência, o risco do dissenso (SPENGLER, 2012, p. 180).

Desse modo, se os atores comunitários quiserem conviver harmonicamente deverão reconstruir dialogicamente, por meio de novos consensos, o mundo da vida. Essa contínua reconstrução, feita a partir do conflito/dissenso, pode ocorrer pela mediação comunitária, enquanto meio de restabelecimento da comunicação (SPENGLER, 2012, p. 180) que, por sua vez, institui responsa-bilidades87 e compromissos.

A mediação comunitária, por isso, reproduz “a situação ideal de fala haber-masiana88, na medida em que capacita pessoas, grupos e instituições a trilhar caminhos possíveis para a solução de seus problemas por meio de um diálogo não colonizado pela coerção” (FOLEY, 2010, p. 125), isto é, a teoria crítica da sociedade proposta por Habermas se compatibiliza com a mediação jus-tamente por entender que qualquer pessoa, em igualdade de condições e sem nenhuma espécie de coação interna ou externa, poderá falar e fazer parte do debate, bem como escutar a parte contrária a fim de que, juntas, cheguem a uma solução para a divergência que as impregna.

Portanto, esse novo paradigma do agir comunicativo pressupõe não apenas que o sujeito é detentor de uma capacidade crítica de autorreflexão sobre os seus problemas e sobre a forma de solucioná-los, mas também permite a inte-ração entre os indivíduos, “capaz de superar a concepção egocêntrica própria do individualismo” e conduzir a uma vida compartilhada e partilhada em comunidade (HERMANY, 2007, p. 46).

87 A plena responsabilidade pressupõe uma autorrelação refletida da pessoa com o que ela pensa, faz e diz; por meio das autorreferências correspondentes, essa capacidade se entrelaça com as estruturas racionais centrais do saber, da atividade orientada e da comunicação (HABERMAS, 2004, p. 102).88 Consideram-se pressupostos da situação ideal da fala formulada por Habermas e que estão em consonância com a mediação: 1) qualquer pessoa com competência para falar pode fazer parte do debate; 2) qualquer pessoa está autorizada a questionar qualquer assertiva; 3) qualquer pessoa está autorizada a apresentar qualquer assertiva; 4) qualquer pessoa está autorizada a expressar suas atitudes, desejos e necessidades; 5) ninguém deve ser impedido, por coerção, interna ou externa, de exercer seus direitos (FOLEY, 2011, pp. 254-255).

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O diálogo, nesse ínterim, além de representar a principal ferramenta de interlocução entre os conflitantes, é o meio pelo qual podem tratar suas con-trovérsias e transformar a realidade vivida, para, ao final, conquistar uma sociedade mais fraterna e solidária, tal qual a mediação comunitária pretende.

Assim, existindo participação cooperativa e envolvimento da comunidade no enfrentamento dos conflitos locais, é possível construir um processo inclusivo de satisfação de ideais que permite a concretização de um novo modelo de justiça e, consequentemente, uma nova cultura social (COSTA; SILVA, 2011, p. 27).

Enfim, a comunicação construtiva89 contribui para gerar confiança, empatia e colaboração no trato dos inevitáveis conflitos de convivência humana; toda-via, somente poderá ser desenvolvida e atingir seus objetivos se contar com o imprescindível auxílio do mediador comunitário.

Não obstante ser o mediador aquela terceira pessoa escolhida ou aceita pelas partes que, com técnicas próprias, facilita e auxilia a comunicação, possibilitan-do um diálogo pacífico e um consequente acordo satisfatório (SALES, 2007, p. 69), definir essa palavra não é uma tarefa fácil. Assim, o importante é caracteri-zar esta pessoa tão importante, o mediador, descrevendo o que ele não é.

O mediador não é um juiz, uma vez que não impõe um veredicto, mas, como um, merece o respeito e a consideração das partes, conquistados com sua atuação. Não é também um negociador que se posiciona em favor de uma parte com inte-resse direto nos resultados, tampouco um árbitro que emite laudos ou decisões, haja vista que, mesmo sendo especialista no assunto tratado, não poderá prestar assessoramento sobre a questão em discussão (GHISLENI, 2011, pp. 104-105).

89 O desenvolvimento da comunicação construtiva ocorre a partir do reconhecimento da essencialidade e legitimidade do outro, enquanto coconstrutor, correstaurador e coi-novador dos padrões relacionais. Ela, portanto, se fundamenta nos seguintes preceitos: a) conotação positiva: representa o início do diálogo a partir do afago e do acolhimento do outro por meio de uma linguagem apreciativa e estimulante. Ela afasta a comuni-cação dominadora pelo trabalho desenvolvido pelo mediador; b) escuta ativa: esta não se consubstancia apenas em ouvir, mas é atitude de reconhecimento; c) perguntas sem julgamento: as perguntas ajudam a esclarecer e contextualizar a situação conflituosa, porém não devem ser feitas como pré-julgamentos; d) reciprocidade discursiva: se cons-titui no respeito do outro se expressar; e) mensagem como opinião pessoal: é o modo como as pessoas se expressam demonstrando o que pensam e sentem; f) assertividade; g) priorização do elemento relacional: se concretiza pela restauração da relação pessoal; h) reconhecimento da diferença; i) não reação: significa não reagir ao outro de forma agres-siva e, finalmente, j) não ameaça: aduz que o diálogo deve ser pacífico, pois do contrário, estar-se-ia diante do confronto e da violência (VASCONCELOS, 2012, pp. 97-107).

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O mediador, na realidade, é uma pessoa que investiga e procura conhecer os reais interesses envolvidos no litígio com o simples intuito de tentar esta-belecer um novo relacionamento entre as partes, capaz de torná-las aptas a en-contrarem sozinhas as melhores soluções para os problemas que as atormen-tam, ou seja, elas serão totalmente responsáveis pelo tratamento do conflito.

No âmbito comunitário, inúmeras são as vantagens que decorrem dessa ma-neira consensuada e harmônica de tratar as contendas, uma vez que, sendo o mediador membro da comunidade, ele conduz o processo de mediação de acor-do com sua conduta e valores pessoais, “cuja principal consequência é inspirar nos litigantes a certeza de que seus problemas serão tratados por um igual” (SPENGLER, 2012, p. 234).

Dessa forma, as controvérsias encaminhadas à mediação comunitária con-tam com a presença de um terceiro, que conhece a realidade, os valores, os hábitos e que fala a mesma linguagem dos conflitantes, razão pela qual é um corresponsável pela celebração de compromissos mútuos que garantam um fu-turo de harmonização social, dentro da diversidade (SPENGLER, 2011, p. 184).

Diferentemente do processo judicial, que é regido pela autoridade da lei e pela transferência de prerrogativas a um terceiro, o juiz90, que tem a faculdade de dizer quem tem mais ou menos direitos no intuito de assegurar a estabilidade social, na mediação comunitária as partes são conduzidas pela ética da alterida-de, em que cada uma delas enxerga a outra como um semelhante que tem dife-renças, tendo sempre como pressupostos a amizade e a fraternidade na busca de um consenso que corresponda às expectativas de ambos os envolvidos.

Nesse contexto, é relevante diferenciar dois tipos de mediador: os institu-cionais e os cidadãos. Os primeiros buscam a institucionalização da media-ção, trabalhando de forma exclusiva para o ente estatal e seus clientes, isto é, atuam tentando amenizar o congestionamento do Poder Judiciário a partir de práticas que impeçam que o litígio chegue até os tribunais. São, destarte, especialistas formados que atendem a um problema específico, bem definido, pelo qual vão responder, nem que para isso tenham que exprimir todo o seu poder (SPENGLER, 2012, pp. 236-237).

90 O lugar do juiz entre os conflitantes é uma questão complicada, pois ele não deixa “encerrar na fácil fórmula da lei que assegura ‘distância de segurança’ das razões de um e de outro. Ele vive no conflito e é do conflito que ele decide, pronunciando a última palavra” (SPENGLER, 2012, p. 235).

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Os mediadores cidadãos, por seu turno, enxergam a mediação como uma possibilidade autônoma de tratamento das contendas, pois não são fabricados pelas instituições, tampouco devem impor uma decisão, mas tão somente são chamados para restabelecer a comunicação e os laços afetivos rompidos entre os litigantes. Em vista disso, são mediadores “naturais”, que nascem nos gru-pos sociais e agem como sábios que sugerem e não como gurus que decidem, não possuindo qualquer espécie de poder; apenas têm a autoridade moral que lhes foi outorgada (SPENGLER, 2012, p. 236).

Constata-se, em vista disso, que o mediador comunitário é um mediador cidadão, fruto da comunidade, escolhido entre os seus membros, que não pos-sui o poder de decidir91, mas de auxiliar os envolvidos a construírem uma solução consensual. Estimulam a liberdade, a coragem e a vontade própria, fazendo com que as pessoas reflitam sobre os obstáculos que o acordo lhes impõe a fim de removê-los de forma consciente.

Segundo Six (2001, p. 136), os mediadores comunitários/cidadãos são aqueles que

mesmo sendo grandes técnicos, são sobretudo gente da rua, gente do ramo, aqueles que pensam seu lugar dentro de uma visão de conjunto, que recusam todos os corporativismos e querem organizar juntos, com todos, uma vida em comum.

Diante de todas as características, diz-se que a virtude do mediador cidadão está justamente no fato de ele estar no meio, de compartilhar e até mesmo de “sujar as mãos” (RESTA, 2004, p. 125). Em vista disso, as pessoas dirigem-se aos mediadores cidadãos de igual para igual, como alguém que levará uma aju-da, independentemente se esta for psicológica ou de assistência técnica e mate-rial. Eles, portanto, agem como pastores92 que necessitam ter conhecimento de-talhado da vida dos membros da comunidade para poderem fornecer segurança, bem-estar, paz e liberdade no “aqui e agora” (FOLEY, 2010, p. 92).

91 Para Resta (2004, p. 126), “um mediador que faz os interesses de um ou de outro promove a falência da mediação e perde a sua identidade, transformando-se em advo-gado ou juiz demasiadamente parcial”.92 A mediação comunitária pode ser encarada como uma variante do modelo pastoral de po-der encontrado nas sociedades hebraicas. O poder pastoral reúne técnicas de controle direcio-nadas para os detalhes da vida de cada membro da comunidade; seu objetivo é o bem-estar de cada “ovelha”, pois assim se alcançará o bem-estar de todo o “rebanho” (FOLEY, 2010, p. 92).

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Foley (2010, p. 92), nesse diapasão, destaca que

tal qual um pastor que, em sua tarefa religiosa, dedica-se a aten-der às necessidades espirituais, o mediador comunitário deve ouvir as partes, reconhecer os seus clamores e emoções e, ao fornecer um ambiente seguro, permitir que as raízes do conflito floresçam. Nesse sentido, há um aspecto restaurativo na justiça comunitária, pelo qual os disputantes podem compreender uns aos outros e, em desenvolvendo aptidões para a comunicação e prevenção, trabalhar na direção de cura dos danos causados pelo conflito.

O mediador comunitário deve então ser sensível aos sinais espargidos pelos litigantes, prestando atenção nos mínimos detalhes para poder as-cender um mistério que ultrapassa as técnicas da comunicação e da as-sistência a terceiros, isto é, ele deve estar compassivo à arte do encontro, da comunhão e da atividade de interpretação para, assim, reconstruir a controvérsia, oportunizando às partes tratarem suas diferenças pela rein-terpretação (WARAT, 1998, pp. 22-28).

Isso ocorre porque os mediadores comunitários, com o propósito de beneficiar a todos, dedicam seu tempo e responsabilidade à busca de um vínculo social efetivo entre os membros daquela comunidade. Assim, sen-do o mediador um morador da comunidade, que conhece e compartilha a realidade vivida pelos conflitantes, tem uma legitimidade que não é atri-buída pelo Estado, mas pelos próprios conflitantes, para atuar inspirando confiança e a certeza de que os problemas serão tratados por um igual, de acordo com valores éticos e morais (SPENGLER, 2011, p. 184).

Com isso, o mediador comunitário leva aos membros da comunidade o sentimento de inclusão social, na medida em que auxilia na identificação dos conflitos e interesses e proporciona a construção do tratamento em conjunto. Logo, o pertencer à comunidade faz com que haja sintonia entre os anseios e as ações locais; dessa maneira, “é por meio do protagonismo dos agentes locais que a comunidade poderá formular e realizar a sua pró-pria transformação” (FOLEY, 2010, p. 146).

O grande diferencial, portanto, da mediação comunitária é o fato de ela ser executada na comunidade por um mediador que é membro desta e que foi esco-lhido e capacitado para atuar em prol da harmonização dos interesses contro-

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vertidos. Ainda, sendo a atuação voluntária, percebe-se que o mediador é mo-vido pelos sentimentos de amizade, fraternidade, alteridade e inclusão social.

Todavia, ressalta-se que, apesar da mediação comunitária ser realizada em núcleos instituídos dentro da própria comunidade e ser regida por me-diadores gerados por ela, há a possibilidade de intervenção e atuação do poder público nessa prática. Assim, a participação do Estado ocorre quando ele estimula as iniciativas, coordena as diferentes experiências, resguarda a autonomia comunitária e potencializa a capacidade de transformação social exatamente no local onde os conflitos emergem (FOLEY, 2011, p. 263).

Conclui-se, por todo o exposto, que a instituição da mediação comunitária pode se dar por iniciativa dos membros da comunidade e por organizações sociais que a componham ou, também, de forma conjunta em uma brilhante parceria com o ente estatal que, através de políticas públicas, tenciona in-corporar centros de mediação dentro da própria comunidade com o fito de proporcionar um tratamento eficaz, efetivo e responsivo dos conflitos.

Dessa forma, após uma breve explicitação acerca da teoria da ação co-municativa e da atuação do mediador comunitário, necessário é abordar a mediação enquanto política pública realizada na e, sobretudo, para e pela comunidade, com o propósito de demonstrar que ela não é somente uma política pública de suma relevância para o desenvolvimento e harmoniza-ção social, mas que também tem o condão de viabilizar o acesso efetivo de todos os cidadãos à justiça e de emancipá-los, empoderando os moradores da comunidade a fim de que eles mesmos consigam tratar as suas contro-vérsias – o que revela um inegável sentimento de pertencimento e cidada-nia. Esse é, pois, o assunto a ser desenvolvido no próximo item.

3.2 Mediação comunitária: uma política pública feita “na”, “para” e “pela” comunidade

A mediação comunitária é um meio compartilhado de administrar e tra-tar os conflitos. Através dela criam-se e fortalecem-se laços que ensejam a integração e participação de todos na vida social.

Além disso, incentiva e auxilia as pessoas a pensar de forma conjunta,

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oportunizando uma resolução que satisfaça os interesses e aspirações de todos os envolvidos e que valorize o ganho comum, o que a torna uma política pública de acesso à justiça que não se caracteriza apenas por diminuir o número de demandas direcionadas ao Poder Judiciário, mas que tem por meta empo-derar os atores comunitários, tornando-os responsáveis pela decisão tomada.

Nesse sentido, esse mecanismo vem ganhando destaque como política pú-blica através do programa “Justiça Comunitária”, desenvolvido pelo Ministé-rio da Justiça. Antes, porém, de analisar de forma ampla o referido projeto, es-sencial é discorrer sobre as políticas públicas, sua importância para sociedade, bem como acerca da mediação comunitária enquanto instrumento de acesso à justiça e de empoderamento da comunidade, como se verá na sequência.

3.2.1 A relevância das políticas públicas para o desenvolvimento social e concretização da paz

As políticas públicas constituem tema que inicialmente se originou da ciência política e da ciência da administração pública (BUCCI, 2006, p. 1), contudo, atualmente ganham relevo nas mais variadas áreas do direito, como a penal, tributária, constitucional, civil, entre outras. Assim, nesse item serão exploradas as políticas públicas, a partir de sua conceituação e características, com o objetivo de diferenciá-las das políticas de governo.

Vários são os conceitos elaborados para definir o que são políticas pú-blicas; porém, entre todos eles vislumbra-se a presença de um elemento co-mum, “o fato de o núcleo central do conceito estar focado no conjunto de ações promovidas pelo Estado com vistas a atender um determinado fim, geralmente de cunho econômico e/ou social” (GHISLENI, 2011, p. 112).

Sendo um tema que envolve todas as pessoas, independentemente da si-tuação financeira ou social, a importância do estudo das políticas públicas está vinculada à ideia de progresso e desenvolvimento da sociedade, a uma compreensão teórica dos fatores intervenientes e da dinâmica própria das políticas, bem como da necessidade de os cidadãos conhecerem e entende-rem o que está previsto nas políticas que os afetam: quem as estabeleceu e de que modo foram implementadas (SCHMIDT, 2008, p. 2308).

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Na realidade, as transformações sociais estão intimamente relacionadas às iniciativas do Estado, o qual “é um agente unitário que atua em prol dos interesses de um corpo político coletivo, a cidadania”. Assim, em termos político-administrativos, “o desenvolvimento de uma sociedade resulta de decisões formuladas e implementadas pelos governos dos Estados nacio-nais, subnacionais e supranacionais, em conjunto com as demais forças vivas da sociedade” (HEIDEMANN, 2010, p. 28), isto é, o conjunto dessas decisões e ações de governo compõe o que se conhece com o nome gené-rico de “políticas públicas”93.

As políticas públicas atuais são regidas pelo direito94 e constituem a forma precípua da ação estatal. Normalmente a concepção e implemen-tação de políticas públicas referem-se a respostas de algum aspecto da vida social que passa a ser percebido como problemático, de tal forma que dependem da intervenção por parte do Estado. “Esta ‘descoberta’ de um novo problema social usualmente relaciona-se a informações anterior-mente não disponíveis ou, se disponíveis, não reconhecidas” (MASSA--ARZABE, 2006, pp. 52-54).

Portanto, ao apresentar propostas institucionais ou até mesmo caminhos para solucionar os problemas identificados, o direito das políticas públicas “abre espaço para o aprimoramento das condições de vida e para a conse-cução do ideal de vida boa [good life] para as pessoas em dada sociedade”. Em vista disso, “relegitima o papel do direito enquanto instância mediadora de poder – quer do Estado, quer da sociedade – e de composição de confli-tos em sociedade” (MASSA-ARZABE, 2006, p. 54).

93 No Brasil, o estudo sobre as políticas públicas nasceu com a transição do período autoritário, oriundo dos anos regidos pela ditadura militar, para a tentativa de redemo-cratização iniciada no final dos anos 1970 e na primeira metade dos anos 1980. Com a Carta Magna de 1988 e com o modelo de democratização surgiram diversos trabalhos que uniam esforços no exame de políticas setoriais para entendê-las e propor novas alternativas a fim de incentivar uma reforma estatal no sentido de garantir acesso de todos à justiça e à participação política (COSTA, 2011, p. 197).94 As formas de Estado dirigente, intervencionista e gestionária, ou seja, as formas efe-tivas do Estado requerem para a sua atuação e legitimação um modelo jurídico próprio denominado “direito das políticas públicas”. Tal direito é responsável por implementar programas de ação postos pelo Estado para atender as mais variadas finalidades; en-tretanto, não deve ser voltado a ordenar o já estabelecido, mas o presente, em direção a determinado futuro almejado (MASSA-ARZABE, 2006, pp. 52-53).

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Assim, para compreender melhor o sentido e significado dessa expressão, ne-cessário é desmembrá-la, justamente porque suscita “um mundo de discordân-cias no diálogo e nos debates entre as pessoas” (HEIDEMANN, 2010, p. 28).

Diversas são as acepções para a palavra política95. Inicialmente, pode ser concebida como tudo aquilo “que diz respeito à vida coletiva das pessoas em sociedade e em suas organizações”. Em segundo lugar, trata do conjunto de processos, métodos e expedientes usados por indivíduos ou grupos de in-teresse para influenciar, conquistar e manter o poder. Em terceiro lugar, é a arte de governar e realizar o bem público96 (HEIDEMANN, 2010, pp. 28-29).

Em quarto lugar e em sua interpretação mais operacional, é entendida como ações, práticas, diretrizes políticas, fundadas em leis e empreendidas como funções de Estado por um governo para resolver questões gerais e es-pecíficas da sociedade97. E, finalmente, em um sentido mais abrangente, a política é percebida como a teoria política ou o conhecimento dos fenôme-nos ligados à regulação e ao controle da vida humana em sociedade, como também à organização, ao ordenamento e à administração das jurisdições

95 O estudo da política compreende um vasto leque de aspectos. Assim, a literatura inglesa estabeleceu três diferentes termos para designar as distintas dimensões da política: polity, politics e policy, que designam, respectivamente, a dimensão institucional, a processual e a material. A polity refere-se à ordem do sistema político, delineada pelo sistema jurídico, e à estrutura institucional do sistema político-administrativo; dessa forma, aspectos estrutu-rantes da política institucional, como sistemas de governo, estrutura e funcionamento do executivo, legislativo e judiciário, além do aparato burocrático, pertencem a essa dimensão. A politics abrange a dimensão dos processos que compõem a dinâmica política e a competição pelo poder, que lhe é inerente, sendo que pertencem a ela questões como as relações entre o poder executivo, legislativo e judiciário, o processo de tomada de decisão nos governos, as relações entre Estado, mercado e sociedade civil, a competição eleitoral e parlamentar, a atuação e relação dos partidos e das forças políticas com os governos, entre outros. A policy, por sua vez, compreende os conteúdos concretos da política, as políticas públicas, que são “o Estado em ação”, o resultado da política institucional e processual. Pertencem à dimensão da policy questões relativas às políticas de um modo geral: condicionantes, evolução, atores, processo decisório, resultados, entre outros. Assim, as relações entre polity, politics e policy são permanentes e as influências são recíprocas (SCHMIDT, 2008, pp. 2310-2311).96 Nesse sentido, a política é tida como o ramo da ética que trata do organismo social como uma totalidade e não apenas das pessoas como entidades individuais (HEIDE-MANN, 2010, p. 29).97 Nesse diapasão, o Estado passa a exercer uma presença mais prática e direta na sociedade, sobretudo por meio do uso do planejamento, que pressupõe políticas pre-viamente definidas tanto de alcance geral ou “horizontal” como de alcance ou impacto “setorial” (HEIDEMANN, 2010, p. 29).

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político-administrativas (HEIDEMANN, 2010, p. 29).O público, por sua vez, distingue-se do privado, do particular, do indivíduo

e de sua intimidade, mas também, por outro lado, diferencia-se do estatal por ser uma dimensão mais ampla, que se desdobra em estatal e não estatal, ou seja, o Estado está voltado ao que é público, mas há igualmente instâncias e organizações da sociedade que possuem finalidades públicas expressas, deno-minadas “públicas não estatais” (SCHMIDT, 2008, p. 2311).

Percebe-se, a partir das divergências conceituais, que não apenas os termos “política” e “público” são polissêmicos, mas a expressão “políticas públicas” também o é. Logo, a utilização da expressão “política pública” serve para de-signar não apenas a política do Estado, mas a política do público – de todos e para todos. Trata-se da política “voltada a fazer avançar os objetivos coletivos de aprimoramento da comunidade e da coesão – ou da interdependência – social”, isto é, a política direcionada para o desenvolvimento e efetivação dos direitos sociais (MASSA-ARZABE, 2006, p. 61).

Após essas breves distinções, é possível então definir claramente o que vem a ser política pública. É, pois, um programa ou quadro de ação governa-mental que visa a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados, cujo propósito é “movimentar a máquina do governo, no sen-tido de realizar algum objetivo de ordem pública ou, na óptica dos juristas, concretizar um direito” (BUCCI, 2006, p. 14).

Contudo, não obstante a conceituação de políticas públicas ter como elemen-tos-chave a ação e a intenção, no sentido de que somente haverá uma política positiva se houver uma ação que materialize uma intenção ou propósito oficial enunciado, a inação ou falta de ação, da mesma forma, pode ser considerada uma política, mesmo que de forma negativa (HEIDEMANN, 2010, p. 30).

Nessa senda, as políticas públicas podem ocorrer de forma negativa ou posi-tiva, referindo-se ao “agir” ou “não agir” do Estado. Exemplificando, quando o ente estatal não intervém nos preços do combustível e nas taxas de câmbio, atua de forma negativa, privilegiando as leis de mercado e, em tese, deixando de pro-teger faixas de sua população. Por outro lado, quando age de forma positiva, dire-ciona ações em benefício de determinado segmento social, independentemente de qual seja, visando um resultado que busca ou deveria buscar o desenvolvimento

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e inclusão social, isto é, objetiva a justiça social (RODRIGUES, 2007, p. 1905). Desse modo, sendo as políticas públicas “o conjunto de ações políticas

voltadas ao atendimento das demandas sociais, focadas nos resultados das decisões tomadas pelo governo” (GHISLENI; SPENGLER 2011, pp. 49-50), percebe-se que elas vão além dos aspectos das políticas de governo. Assim, necessário é tecer alguns comentários acerca das políticas de governo com o objetivo de distingui-las das políticas públicas propriamente ditas – também chamadas “de Estado”. Para tanto, será feita a diferenciação, levando-se em consideração três fatores principais: os objetivos, a forma de elaboração, pla-nejamento e execução, bem como a forma de financiamento da política.

Quanto aos objetivos, diz-se que, quando a política pública tiver como ob-jetivo a consolidação do Estado Democrático de Direito, a garantia da sobera-nia nacional e da ordem pública, bem como quando estiver voltada para estru-turar o Estado, no sentido de dispor de condições mínimas para a execução de políticas de promoção e proteção dos direitos humanos, ela será considerada uma política de Estado98. Quando, de outro lado, os objetivos forem promo-ver ações pontuais de proteção e promoção aos direitos humanos específicos, fala-se em política de governo (AITH, 2006, p. 235).

Outrossim, em relação à elaboração, planejamento e execução das políticas99,

98 Exemplificando, políticas que visem à consolidação do Estado Democrático de Direi-to, tais como as políticas de organização estrutural dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), bem como políticas de estruturação do Sistema Único de Saúde, que visam a oferecer para a população acesso integral, universal e gratuito à saúde, além das políticas de segurança pública, são tidas como políticas de Estado (AITH, 2006, pp. 235-236).99 Quando se fala em elaboração, planejamento e execução das políticas, o objetivo é identificar o ciclo político. A doutrina então identifica cinco fases no ciclo das políticas públicas: 1) percepção e definição de problemas: essa fase ocorre quando é transfor-mada uma situação de dificuldade em problema político capaz de gerar uma política pública; 2) inserção na agenda política: nessa fase o problema já identificado como tal é colocado na agenda política, a qual pode ser definida como o “elenco de problemas e assuntos que chamam a atenção do governo e dos cidadãos”, ou seja, não é um docu-mento formal ou escrito, mas sim o rol de questões debatidas pelos agentes políticos e sociais que tem forte repercussão na opinião pública e que ensejam uma política públi-ca; 3) formulação: é o momento da definição sobre a maneira de solucionar o problema político em pauta e a escolha das alternativas a serem adotadas; 4) implementação: é a fase da concretização da formulação, através de ações e atividades que materializam as diretrizes, programas e projetos, e, por fim, 5) avaliação: consiste no estudo dos êxitos e das falhas do processo de implementação, nela são olhados os aspectos de eficiência, eficácia, efetividade e legitimidade (SCHMIDT, 2009, p. 2315-2321).

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em geral fala-se que as políticas de Estado intentam uma análise mais aprofun-dada e criteriosa do tema em questão, envolvendo estudos técnicos, simulações, análises de impacto vertical e horizontal, efeitos econômicos e orçamentários, entre outros. Já as políticas de governo são aquelas que são decididas em um processo bem menos complexo, pois se referem a demandas referentes à agenda política interna100.

Importa ainda referir que a política de Estado exige uma continuidade, deve ser perene e não pode ser quebrada ao sabor da troca de governantes, enquanto a de governo pode ser interrompida e substituída por outro tipo de política voltada à consecução do mesmo objetivo da anterior (AITH, 2006, p. 237).

Finalmente, em relação ao financiamento, cabe salientar que as políticas de Estado são financiadas exclusivamente por recursos públicos oriundos dos tributos arrecadados pelo Estado. Já as políticas de governo podem con-tar com recursos privados para a sua implementação, desde que sejam regu-lados pelo ente estatal (AITH, 2006, p. 238).

Constata-se, em suma, que as políticas públicas de Estado diferen-ciam-se frontalmente das de governo, haja vista que aquela está ampla-mente institucionalizada, isto é, enraizada nas estruturas estatais (ins-tâncias legislativas, administrativas e judiciárias), de tal modo que, ao mudar o governo, não deixará de existir, nem tampouco será modificada abruptamente. Ao passo que a governamental é fruto de decisão do go-verno em exercício e depende da vontade política para que se mantenha vigente; o que varia, então, é o grau de institucionalização e sua conse-quente perspectiva de permanência, não significando que uma seja pior ou melhor que a outra.

O cerne, portanto, das políticas públicas de Estado é justamente o fato de serem responsáveis pela concretização de direitos através de ações estatais. Nesse sentido, a mediação comunitária pode ser considerada uma política pública de Estado, pois ela foi instituída justamente para

100 Características obtidas em artigo extraído do endereço eletrônico do Instituto Millenium de autoria de Paulo Roberto de Almeida, intitulado “Sobre políticas de go-verno e políticas Estado: distinções necessárias” Disponível em: http://www.imil.org.br/artigos/sobre-politicas-de-governo-e-politicas-de-estado-distincoes-necessarias/ Acesso em: 13.12.2013.

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garantir e tornar concreto o direito fundamental de acesso à justiça, bem como para ser um mecanismo de inclusão, desenvolvimento e harmoni-zação social, uma vez que oportuniza às próprias partes a faculdade de expressar e tratar seus conf litos sem a intervenção ou imposição de uma decisão por parte do ente estatal.

Isso apenas comprova que a sociedade está tomando as rédeas de sua vida, haja vista que não pode mais depender exclusivamente do governo e do Estado para lhe prestar os serviços públicos de que necessita com eficiência e rapidez. Os atores sociais, por conseguinte, “assumem funções de governança para re-solver problemas de natureza comum” (GHISLENI; SPENGLER, 2011, p. 50), o que acaba por legitimá-los como agentes fomentadores e implementadores de políticas públicas.

Tendo em vista, enfim, que se considera política pública “a busca racional de um objetivo graças à alocação adequada de meios que, mediante a uti-lização razoável, devem produzir consequências positivas” (SPENGLER, 2012, p. 229), é possível dizer que a mediação comunitária é sim uma políti-ca pública de suma relevância, que não apenas promove o desenvolvimento e a harmonia social, mas que legitima e auxilia o cidadão a participar ativa-mente da vida pública.

Assim, ao perceber que possui poder de construir suas próprias decisões e mudar os rumos não apenas de sua vida, mas também da história de sua comunidade e da humanidade como um todo (GHISLENI; SPENGLER, 2011, p. 56), o sujeito torna--se empoderado e emancipado, ou seja, passa a tomar as rédeas de seu destino. Esse é o tema a ser abordado a seguir.

3.2.2 Mediação comunitária como política pública de me-tamorfose social e de acesso à justiça

A mediação comunitária é um instrumento redentor do indivíduo. Através dela as pessoas tratam os conflitos que as perturbam de forma autônoma101,

101 Autonomia, nesse caso, “implica a consciência da participação na vida social, sua importância, o papel do sujeito no seu conjunto de relações, ou seja, no seu reconhe-cimento enquanto sujeito histórico e responsável pelos seus atos” (CUSTÓDIO; MA-NARIM, 2011, p. 22).

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democrática e consensual, sem o intermédio do Estado, contando apenas com a presença do mediador, que labora em prol da facilitação do diálogo e da harmo-nização dos interesses controvertidos.

Ela então se realiza “na”, “para” e “pela” comunidade, ensejando uma nova maneira de olhar e tratar as contendas, que partem da estagnação e do individualismo autista, rumo à participação e a uma vida compar-tilhada. Ela potencializa, portanto, a democracia, o desenvolvimento, a responsabilização, a inclusão e a harmonização social, mas, sobretudo, o exercício da cidadania102, que é a forma mais cristalina de empoderamento e emancipação, pois liberta o sujeito103 das amarras do poder104 e o torna protagonista de sua vida e destino.

O indivíduo, então, constitui-se como ator principal quando integra o pro-cesso de modificação de seu meio ambiente e transforma suas experiências de vida em provas de sua liberdade, ou seja, a pessoa torna-se sujeito não quando se identifica com a vontade geral e é herói de uma comunidade, mas quando se liberta das normas coercitivas e passa a decidir seu próprio futuro (TOU-RAINE, 1996, pp. 171-172).

Para Paulo Freire (2000, p. 33):

102 Cidadania é um termo de difícil definição, em face da ambiguidade e da ideolo-gia que o termo encerra. Porém, são três os elementos que compõem a semântica do vocábulo: 1) a garantia de certos direitos, assim como a obrigação de cumprir certos deveres para com uma sociedade específica; 2) pertencer a uma comunidade política determinada e 3) a oportunidade de contribuir na vida pública dessa comu-nidade através da participação (GORCZEVSKI, 2009, p. 39). Ela implica, portanto, “a superação da ideologia do individualismo e a convivência com regras universais” (CUSTÓDIO; MANARIM, 2011, p. 21).103 A ideia de sujeito combina três elementos cujas presenças são igualmente in-dispensáveis: o primeiro é a resistência à dominação; o segundo é o amor de si, pelo qual o indivíduo estabelece sua liberdade como condição principal de sua felicidade e como objetivo central; o terceiro é o reconhecimento dos outros como sujeitos e o consequente apoio às regras políticas e jurídicas, que proporcionam ao maior número possível de pessoas o máximo de oportunidades de viver como sujeitos (TOURAINE, 1996, p. 172).104 “O efeito de poder se impõe desvirtuando a relação de maneira farsante, a gosto das artimanhas do poder, tendo por resultado principal evitar que o marginalizado se confronte” (DEMO, 2002, p. 261), isto é, ele impede que o sujeito se emancipe e empodere.

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[...] Na medida em que nos tornamos capazes de transformar o mun-do, de dar nome às coisas, de perceber, de inteligir, de decidir, de escolher, de valorar, de, finalmente, eticizar o mundo, o nosso mo-ver-nos nele e na história vem envolvendo necessariamente sonhos por cuja realização nos batemos. Daí então que a nossa presença no mundo, implicando escolha e decisão, não seja uma presença neutra.

É inequívoco que a mediação comunitária é um mecanismo que promove a metamorfose social, na medida em que possibilita às partes envolvidas no litígio transformarem-se em verdadeiros sujeitos de si. Nesse sentido, cum-pre com duas finalidades básicas: primeiro, oferece um espaço de reflexão e busca de alternativas para o tratamento das contendas e, em segundo lu-gar, possibilita aos conflitantes resolverem autonomamente seus problemas. (SPENGLER, 2012, pp. 227-228).

Consequentemente, a importância da prática da mediação comunitária se deve ao fato de que ela oportuniza a auto-organização de segmentos que são marginalizados105, excluídos e que não conseguem acessar o Poder Judiciário de forma equânime; eles são, na realidade, verdadeiras vítimas da ingerên-cia do Estado na facilitação do acesso ao sistema judicial, incluindo-se aqui não apenas o acesso formal à justiça, mas também o acesso a outros direitos básicos, como moradia, saúde, educação, segurança, transporte e emprego (BUSTAMANTE, 2013, p. 83).

Não obstante a cidadania ser relegada a um segundo plano, são justamente essas dificuldades que produzem nos indivíduos a necessidade de uma identi-dade local, de pertencimento, que, por consequência, conduzirá a busca inter-minável de valorização da comunidade, de reconhecimento e desenvolvimen-to social e, enfim, da identificação daquele como um verdadeiro sujeito de si, capaz de lutar até o fim por melhores condições de vida.

Dessa forma, a construção de uma prática cidadã, como a mediação comunitária, depende da participação de todas as pessoas que são im-pedidas de exercer sua cidadania, pois esse mecanismo será tanto mais emancipatório quanto maior for a participação daqueles excluídos desse

105 “A exclusão, a pobreza, o desemprego, a situação econômica marginal presentes no pla-no econômico, somadas a uma crise de representação, os limites políticos para atender às demandas sociais, as condutas coletivas de violência no plano político e, ainda, no plano cul-tural, a massificação provocada pela mídia”, são apenas alguns elementos que demonstram a fragilidade do indivíduo em relação ao ente estatal (CUSTÓDIO; MANARIM, 2011, p. 20).

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processo. A mediação comunitária, por isso, estimula e auxilia os indi-víduos a expressarem-se e a dialogarem para que consigam descobrir os reais motivos que culminaram no conflito e, a partir daí, poder tratá-lo de maneira consensuada e pacífica.

É nesse sentido que se pode pensar no papel pedagógico que esse me-canismo exerce, isto é, na capacidade de fortalecimento dos recursos, responsabilidades e habilidades que a comunidade detém para tratar seus conflitos. Assim, a mediação comunitária empodera as partes, mostran-do-lhes que é possível que elas mesmas, com a ajuda de um mediador, possam encontrar uma boa solução para o problema que estão enfrentan-do (SILVA, 2010, p. 188).

Verifica-se na mediação comunitária, portanto, a possibilidade de trans-formação da realidade social, capaz de acarretar o empoderamento e o reco-nhecimento106 do sujeito como responsável pelo mundo que o cerca, a partir de uma ética de alteridade e da comunicação fraterna. Foley (2010, p. 106), compartilhando essa ideia, conceitua empoderamento como “a restauração do senso de valor do indivíduo, fortalecendo a sua capacidade de conduzir os problemas da vida”.

Importante esclarecer que empoderamento não significa o descom-passo de poder de uma parte em relação à outra ou a imposição de uma decisão por entender que um dos envolvidos é mais poderoso. Ao contrá-rio, o ato de empoderar ocorre justamente quando as partes se encontram em igualdade de condições, momento em que há a conjunção do forta-lecimento individual de lidar com as adversidades cotidianas à tomada de consciência da capacidade de ref letir, fazer escolhas e agir (FOLEY, 2010, p. 107).

As partes empoderam-se, destarte, quando conseguem perceber os reais motivos que desencadearam o processo conflitivo, as razões e interesses envolvidos, bem como quando reconhecem que têm o controle, do início ao fim, sobre as opções de que dispõe para a realização de suas metas e para o tratamento da contenda.

Logo, no âmbito comunitário há empoderamento no exato instante em que as pessoas “desenvolvem um senso de autovalor, segurança, autodeterminação e

106 Reconhecimento significa a consciência da situação e dos problemas do outro (FO-LEY, 2010, p. 106).

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autonomia” em prol do coletivo, através de um processo que se realiza “com o outro” e não “contra o outro”, razão pela qual não importa se a mediação107 re-sultou em um acordo ou não; o importante é que os participantes se entendam e sejam ativos nas decisões que afetam as suas vidas (FOLEY, 2010, p. 108).

Empoderamento

[...] não significa balancear as disparidades de poder dentro do processo de mediação a fim de proteger a parte mais fraca. Trata-se de um concei-to relacional e, como tal, praticado por ambas as partes. Da mesma for-ma, empoderamento não é atingir resultados que, em substância, pro-duzam redistribuição de recursos ou de poder (FOLEY, 2010, p. 109).

Percebe-se, dessa forma, que o processo de empoderamento somente obtém êxito porque a mediação comunitária tem como um de seus princí-pios basilares o diálogo. Assim, o agir comunicativo facilitado e auxiliado pelo mediador comunitário é o elo que liga o tratamento do conflito aos objetivos a serem perseguidos, que se consubstanciam na emancipação, no reconhecimento, no respeito às diferenças e no fortalecimento dos laços de amizade e fraternidade que unem os membros da comunidade.

O mediador comunitário108, nessa perspectiva, deve apenas suavizar os âni-mos, atuando como orientador imparcial da discussão e assegurando a todos a oportunidade de expor sua versão dos fatos, bem como deve ajudar a diferenciar os interesses das posições, laborando para cogitar soluções criativas e eficientes; do contrário, caso interfira no conteúdo do litígio em busca de um acordo, muitas vezes forçado, não estará atuando na busca pelo empoderamento e alteridade, mas tão somente na finalização abstrata do conflito (TARTUCE, 2008, p. 232).107 A mediação terá sucesso se as partes se conscientizarem das oportunidades de empodera-mento e reconhecimento apresentadas durante o processo; se as partes foram ajudadas a escla-recer as suas metas, opções e recursos para fazer escolhas livres; se as partes foram estimuladas ao reconhecimento em qualquer direção que a decisão tenha sido tomada (FOLEY, 2010, p. 109).108 Para que a atuação do mediador comunitário seja voltada para a promoção do em-poderamento e da transformação social, ele deve auxiliar a: 1) definir o problema. A cada parte envolvida no conflito é dada a oportunidade de expressar, de forma ininterrupta, sua percepção do tema e seus sentimentos; 2) entender um ao outro. Cada parte é encorajada a narrar ao outro o problema, segundo a sua óptica, a fim de mostrar seus receios, suas preocupações e sentimentos; 3) compartilhar responsabilidades em relação ao conflito e sua solução. Uma vez discutidos os aspectos individuais do conflito, as partes são direcionadas para o entendimento por meio da compreensão quanto à responsabilidade do conflito e da solução; 4) o acordo. O arranjo final é explicitado e consolidado (FOLEY, 2010, p. 113).

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Entretanto, apesar da mediação comunitária ocorrer dentro da comunidade por mediadores escolhidos entre seus membros, não significa que o Estado não partici-pe desse processo. Ele atua de uma forma diferenciada, contribuindo para o exercí-cio de uma democracia distributiva, na medida em que coordena e cria mecanismos de inclusão social. Trata-se da implementação de políticas públicas que surgem pela “emergência de novas formas de resolução de conflitos voltadas para o resgate da autodeterminação e da solidariedade”, as quais conferem ao cidadão o status de protagonista na construção de uma justiça participativa (FOLEY, 2011, p. 262).

Nesse sentido, é possível afirmar que a mediação comunitária, enquanto política pública, cumpre com seu objetivo, que é “tratar de maneira adequada os conflitos sociais pelos membros da própria comunidade” (SPENGLER, 2012, p. 230), haja vista que valoriza a dimensão emancipatória da controvérsia, criando estratégias voltadas para a construção da reciprocidade sob uma ética da alteridade (FOLEY, 2010, p. 121).

Dessa forma, quando a mediação ocorre na esfera comunitária, promo-ve a integração de táticas de fortalecimento da comunidade, pois privile-gia o exercício da liberdade, a capacidade de organização local, o diálogo assegurado na horizontalidade e a participação de todos como correspon-sáveis na celebração de compromissos mútuos que garantam um futuro de harmonização social dentro da diversidade (FOLEY, 2010, p. 124), isto é, a mediação trabalha para emancipar a vida em comunidade, uma vez que

o âmbito comunitário é, em si, um espaço de grande riqueza por sua apti-dão em difundir e aplicar os métodos pacíficos de gestão de conflitos ou tramitação de diferenças. A mediação, como instrumento apto a este pro-pósito, brinda os protagonistas – aqueles que compartilham o espaço co-munitário – com a oportunidade de exercerem uma ação coletiva na qual eles mesmos são os que facilitam a solução dos problemas que se apresen-tam em suas pequenas comunidades. Neste sentido, o desenvolvimento destes processos, assim como a transferência de ferramentas e técnicas específicas da mediação aos integrantes das comunidades, constitui um valioso aporte e um avanço concreto relativo à nossa maturidade como sociedade e colabora efetivamente em prol de um ideal de vida comunitá-ria mais satisfatória (NATÓ; QUEREJAZU; CARBAJAL, 2006, p. 109).

É por estes motivos que a mediação comunitária como política pública tem uma tarefa de extrema importância: “Devolver confiança às cidades e aos su-búrbios, estudando-se a fundo a sua realidade e potencialidades”, para que os

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indivíduos tornem-se cidadãos de fato, responsabilizando-se por sua cidade, co-munidade e pelas decisões que porventura tenham que tomar para tratar seus conflitos (SIX, 2001, p. 171).

Constata-se, assim, que a mediação comunitária para a emancipação abre a oportunidade para a geração e valorização de um saber local, pois, ao praticar a retórica dialógica, promove a ascensão da solidariedade109, da autonomia e da rein-venção da própria comunidade, que passa a ser organizada em redes. Estas, por sua vez, “permitem maximizar as oportunidades para a participação de todos e para o respeito às diferenças em um contexto de mútua assistência” (FOLEY, 2010, p. 127).

Ao criar uma cadeia circular entre o conflito, o diálogo, a solidariedade, a comu-nidade em rede e o Estado (FOLEY, 2011, p. 263), a mediação comunitária torna-se uma ferramenta hábil a proporcionar uma verdadeira transformação social, haja vista que não apenas pretende desafogar o Poder Judiciário, mas também tratar os conflitos de forma adequada em termos qualitativos, o que gera, por consequência, o acesso a uma ordem jurídica justa e eficaz.

O acesso à justiça, portanto, é alcançado quando os participantes, em igualdade de condições e através do restabelecimento da comunicação rompida, têm a opor-tunidade de tratar pacificamente suas divergências, de acordo com seus interesses, valores, sentimentos e concepções, isto é, ele é concretizado quando há a democra-tização desse processo e o sentimento de inclusão social nos cidadãos.

A mediação comunitária tem o condão de estimular o diálogo, a amizade, a fra-ternidade e a consciência de que a própria parte envolvida no litígio pode tratar o conflito de forma harmoniosa e consensual, sem que para isso dependa de um ente tão distante da realidade vivida, que é o Poder Judiciário.

A mediação, por conseguinte, é uma forma emancipadora de acesso à justiça, servindo não apenas como um instrumento de harmonização social, mas também como um meio para o exercício da cidadania e para a independência da comuni-dade. Porém, isso não significa que haverá o abandono ou a rejeição de normas jurídicas, mas que as partes terão autonomia e liberdade para tratarem seus pro-blemas (BUSTAMANTE, 2013, p. 98).

109 A solidariedade como manifestação do saber na emancipação é permeada pelo diálogo voluntário patrocinado pela mediação comunitária. Nela, os mediandos têm a possibilidade de compreender as razões do outro e a própria origem do conflito, abrindo espaço para o reconhecimento mútuo e para a compreensão da estrutura injusta às quais, muitas vezes, ambos são submetidos (FOLEY, 2010, p. 125).

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Há, com isso, uma real democratização do acesso à justiça, conquistada quando todos, mesmo aqueles que eram impedidos e até mesmo excluídos de alcançar os meios tradicionais, podem ter a chance de acessar de maneira igualitária a ordem jurídica justa e tratar as suas contendas de forma responsável e autônoma em um caminhar rumo à inclusão social.

O sentimento de inclusão, em vista disso, é verificado no momento em que as partes são chamadas a participar do procedimento de mediação comunitária, bem como quando os mediadores são escolhidos entre os integrantes da comunidade e oferecem a oportunidade de discussão e tratamento das controvérsias.

Ainda, ressalta-se que a mediação comunitária permite a prevenção do surgimen-to de novos litígios, uma vez que possibilita a responsabilização e conscientização das partes pela tomada de decisões que resolverão o conflito, mas, principalmente, porque faculta a possibilidade do diálogo, da reconstrução dos vínculos afetivos de amizade e fraternidade com base na solidariedade, ou seja, é o agir comunicativo, que leva ao entendimento e ao consenso, o responsável por obstar o nascimento de novas controvérsias.

O tratamento dos conflitos, destarte, alcançado pela mediação comunitária, con-duz à harmonia e à inclusão social, à possibilidade de as pessoas exercerem a capa-cidade de dialogar plenamente e, finalmente, ao fortalecimento dos direitos huma-nos, isto é, permite, por consequência, o efetivo e eficaz acesso à justiça, bem como que os indivíduos possam se descobrir como verdadeiros sujeitos empoderados.

Em suma, as vantagens que a mediação comunitária voltada ao empoderamento, à democratização do acesso à justiça e, por conseguinte, à transformação social ensejam são inúmeras, entre os quais se destacam o fornecimento de um local de transparência de normas e valores, além da construção de entendimentos compartilhados que ensejam a redução das tensões sociais. Ainda, o aprendizado individual e coletivo acerca das responsabilidades em quaisquer situações, inclusi-ve futuras; o desenvolvimento de habilidades individuais em problemas concretos que, sendo enfrentados coletivamente, fornecem um sentimento de autorrealização individual e crescimento de um senso coletivo; o estímulo à comunicação, à cons-trução do respeito às diferenças, e, finalmente, à neutralização da alienação e do isolamento (FOLEY, 2010, p. 97).

Enfim, a mediação comunitária possibilita uma verdadeira metamorfose social, na medida em que propõe um espaço no qual os problemas locais podem ser trata-

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dos por meio do diálogo, da identificação e da utilização de recursos comunitários, sem que para isso precise recorrer ao ente estatal. Ademais, proporciona o empo-deramento da comunidade e dos seus membros, tornando-os responsáveis pela de-liberação tomada.

Dessa forma, os benefícios que esse mecanismo acarreta como política pública estão sendo comprovados na prática por meio de um projeto desenvolvido pelo Mi-nistério da Justiça, o “Justiça Comunitária”, o qual contribui para a modificação da cultura da comunidade e da sociedade – assunto que será arrazoado no item a seguir.

3.3 A comprovação prática110 da eficácia da mediação co-munitária enquanto política pública em face do programa “Justiça Comunitária”111, desenvolvido pelo Conselho Na-cional de Justiça

Atualmente, em todo o vasto território nacional112, são inúmeras as expe-riências de mediação comunitária que contribuem tanto para a prevenção da violência quanto para a democratização do acesso à justiça e emancipação do sujeito, visando sempre o protagonismo social.

Além de iniciativas diretas de comunidades e organizações sociais, o ente esta-tal vem procurando implantar esse procedimento com vistas ao desenvolvimento de

110 A comprovação prática será demonstrada pela experiência do programa “Justiça Comunitária”, desenvolvido no Distrito Federal.111 Parte do conteúdo desse item foi extraído da obra Justiça comunitária: uma experiência. 2. ed. Brasília: Ministério da Justiça, 2008, cuja redação e organização é de responsabilidade de Gláucia Falsarella Foley. Disponível em: http://www.tjdft.jus.br/acesso-rapido/acoes/acesso-a-justica-e-cidadania/justica-comunitaria/justica_comunitaria2ed.pdf. Acesso em: 21.12.2013.112 No Brasil, no presente momento, quinze Estados receberam o “Justiça Comunitá-ria”, sendo que existem sessenta e quatro núcleos de mediação comunitária. Assim, os Estados da federação que implementaram o projeto são: Acre, com oito núcleos; Ala-goas, com dois núcleos; Bahia, com cinco núcleos; Ceará, com cinco núcleos; Distrito Fe-deral, com quatro núcleos; Espírito Santo, com três núcleos; Minas gerais, com dois nú-cleos; Pernambuco, com três núcleos; Piauí, com um núcleo; Paraná, com dois núcleos; Rio de Janeiro, com dez núcleos; Rio Grande do Norte, com um núcleo; Rio Grande do Sul, com quatorze núcleos; São Paulo, com três núcleos, e Tocantins, com um núcleo. (Fonte retirada do site do Ministério da Justiça: http://portal.mj.gov.br/reforma/main.asp?View=%7BDA9EC2A8-2D0D-4473-A4DD-DF9D33C8DE5D%7D&Team=&-params=itemID=%7BF85A2668-7541-4D7D-8FBF-08649EFC9BA7%7D;&UIPartUID=-%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D. Acesso em: 20.12.2013).

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novas competências e habilidades comunicativas no trato do conflito (VASCONCE-LOS, 2012, p. 161), o que faz através de uma política pública instituída em âmbito nacional pelo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – Pronaci113, vinculado ao Ministério da Justiça.

Dessa forma, tendo em vista a importância e relevância desse projeto, necessário é tecer alguns comentários acerca da sua estrutura e de alguns resultados estatísti-cos do programa instaurado no Distrito Federal, a fim de corroborar a tese de que a mediação comunitária é um instrumento de transformação social que possibilita o acesso de todo e qualquer cidadão à justiça e o empoderamento do mesmo ao gerir autonomamente seus conflitos. É o que se verá na sequência.

O projeto denominado “Justiça Comunitária” tem como objetivo contribuir para a democratização do acesso à justiça através da capacitação de cidadãos para a uti-lização da prática da mediação, isto é, visa conferir às partes envolvidas no litígio e à comunidade a oportunidade de gerir seus próprios conflitos com autonomia e responsabilidade, estimulando a divulgação e introdução em todas as regiões do país de Núcleos de Justiça Comunitária (BUSTAMANTE, 2013, p. 100).

Não obstante serem vários os estados que foram agraciados com o programa acima mencionado, o projeto piloto foi instituído no Distrito Federal em outu-bro de 2000 a partir da experiência advinda do Juizado Especial Cível Itinerante do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o qual busca atender comunidades do Distrito Federal que tenham dificuldades de acesso à justiça formal (FOLEY, 2010, p. 137).

Nesse sentido, para que o programa seja efetivado, conta com agentes comuni-tários membros da comunidade na qual atuam e que, por consequência, conhecem e partilham os mesmos valores, hábitos e linguagens, o que facilita a aproximação daqueles com as partes em litígio. Esses agentes são credenciados por meio de um

113 O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, Pronasci, é composto de 94 medidas divididas em Ações Estruturais e Programas Locais. As Ações Estruturais são rea-lizadas pela modernização das instituições de segurança pública e do sistema prisional, pela valorização dos profissionais de segurança pública e agentes penitenciários e enfrentamento à corrupção e ao crime organizado. Já os Programas Locais, que são desenvolvidos em regiões indicadas pelo Pronasci, constituem-se de projetos como: Território de Paz, Integração do Jo-vem e da Família e Segurança e Convivência. Informação disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={3FD1029C-C70B-4394=-81AE-52A2F42E259E&&BrowserType-NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D%7B76B55F10%2D6F33%2D4135%2D9692%-2D09AF5BA61EF4%7D%3B&UIPartUID=%7B2868BA3C%2D1C72%2D4347%-2DBE11%2DA26F70F4CB26%7D. Acesso em: 21.12.2013.

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processo de seleção levado a efeito por uma equipe multidisciplinar114 que dá supor-te técnico e administrativo às atividades desempenhadas, sendo composta por profissionais das seguintes áreas: direito, serviço social, psicologia, dramatur-gia, ciência política, entre outras (FOLEY, 2010, p. 155).

Assim, o processo de aprendizagem do agente comunitário é composto de uma capacitação inicial, que inclui conteúdos referentes aos princípios gerais do programa, suas ferramentas e técnicas de mediação comunitária, além de noções de direito e treinamento em direitos humanos, bem como por uma formação continuada que implica encontros para discussão de temas teóricos e práticos (FOLEY, 2010, pp. 157-158).

Portanto, a atuação desses agentes e as atividades desenvolvidas no programa “Justiça Comunitária” são regidas por três pilares de sustentação: 1) educação para os direitos; 2) animação em redes e 3) mediação comunitária. Articuladas de forma conjunta, essas bases impedem a imposição institucional verticalizada dos serviços à comunidade e proporcionam, em vista disso, a abertura de canais de comunicação para que seus membros se expressem e encontrem os meios mais adequados para resolver seus problemas (FOLEY, 2010, p. 156).

O primeiro sustentáculo tem sintonia direta com os obstáculos que impedem as pessoas de acessar a justiça. Nesse sentido, como mencionado no primeiro ca-pítulo, o desconhecimento do cidadão acerca de seus direitos e dos instrumentos disponíveis para sua concretização, além do formalismo exagerado e da comple-xidade dos procedimentos, são fatores que impedem a realização plena da justiça, razão pela qual esse pilar vem trazer à comunidade a democratização da informa-ção, a fim de promover a igualdade entre todos os envolvidos no conflito.

A educação para os direitos tem um caráter tridimensional, na medida em que previne que novas contendas venham a acontecer pela ausência de in-formações; emancipa, ao empoderar as partes em disputa para que possam dialogar e resolver os problemas em igualdade de condições, e é pedagógica, pois ensina ao cidadão como buscar a satisfação de seus direitos.

Ela é, portanto, realizada pela produção e apresentação de recursos pedagógicos,

114 A abordagem multidisciplinar é uma alternativa à fragmentação do saber, inerente à epistemologia positiva. Trata-se de uma ferramenta apropriada para a construção de um conhecimento integrado que rompa com as fronteiras e o hermetismo das discipli-nas. O diálogo entre as diversas áreas do conhecimento resultam de atitudes que im-plicam reciprocidade, compromisso mútuo e integração entre diferentes perspectivas acerca de um mesmo objeto (FOLEY, 2010, p. 154).

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tais como cartilhas, musicais, cordéis, filmes e peças teatrais. Assim, esse pilar não apenas promove a democratização do acesso à justiça, mas também aproxima os membros da comunidade através do fortalecimento de suas raízes culturais e do resgate de suas identidades. Tal escopo se torna possível pela tradução para uma linguagem menos complexa e formal de leis e demais normas jurídicas (FOLEY, 2010, p. 139).

O segundo pilar, animação em redes115, implica a identificação e o conhe-cimento da comunidade das carências e dificuldades existentes naquele am-biente, a fim de que reflitam sobre sua realidade e busquem modificá-la a partir de seus próprios recursos e talentos. Contribui, assim, para devolver à comunidade a capacidade de gerir autonomamente seus problemas.

A função dos agentes comunitários, em vista disso, é reintegrar o teci-do social fragmentado pela diversidade, criando uma teia de relações que interajam entre si, promovendo o desenvolvimento local. É na alteridade, na ref lexão conjunta, nas discussões sobre direitos humanos, na demo-cracia e no respeito ao próximo que esse suporte se constitui (FOLEY, 2010, p. 152).

A última coluna desse tripé é a mediação comunitária. Ela, por sua vez, procura atribuir sentido positivo aos conflitos, uma vez que estes são encara-dos como resultado natural da vida em sociedade, sendo moldados pela diver-sidade existente entre os seres que a compõe.

Diferentemente do processo judicial que enaltece o contraditório e di-vide as partes em ganhadores e perdedores, a mediação comunitária vem proclamar, por meio da comunicação, o consenso. Assim, quando os pro-tagonistas do litígio interagem em um ambiente sadio e sem coerção, ten-dem a construir uma solução sensata, justa e fundamentada na alteridade, ensejando, por consequência, respostas quantitativas e qualitativas melho-res para as controvérsias.

A mediação comunitária, além de fortalecer os laços de amizade e fraternidade, transforma o conf lito em oportunidade de crescimento e revigoramento. Assim, a mediação operada na, para e pela comunida-de usa o conhecimento local para solucionar seus problemas, tecendo

115 Para Castells (1999, p. 497), “redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e da experiência, poder e cultura”.

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teias sociais que se fortalecerão a tal ponto que não necessitarão de um terceiro, o juiz, para dizer quem tem mais ou menos razão. Em outras palavras, “a comunidade abre um canal para dar respostas comunitárias a problemas comunitários” (FOLEY, 2010, p. 150).

O acordo, nesse caso, é mera consequência do procedimento, pois o real objetivo desse instrumento é aperfeiçoar a comunicação e promover a participação de todos os integrantes da comunidade na construção de respostas aos problemas vivenciados, isto é, a mediação empodera os envolvidos no conf lito, proporcionando meios para que eles consigam administrá-lo pacificamente.

Nesse diapasão, será exitosa a mediação comunitária quando as partes se conscientizarem das oportunidades de empoderamento e reconheci-mento apresentadas durante o processo, bem como quando os envolvidos na disputa forem ajudados a esclarecer suas metas, opções e recursos para fazer escolhas livres e no instante em que as pessoas forem esti-muladas a reconhecer e a responsabilizarem-se pelas decisões tomadas (FOLEY, 2010, p. 150).

Dessa forma, o programa “Justiça Comunitária” visa a estimular, no seio da comunidade, a realização da justiça em seu formato mais amplo, de maneira solidária e pacífica, através da interlocução de seus próprios membros. Ocorre, assim, em um ambiente diferenciado, sendo conside-rada uma atividade prévia e externa à atividade jurisdicional que pre-tende transformar o tecido social esfacelado com a abertura de espaços abertos ao diálogo, à solidariedade, à alteridade e à paz.

Dessa forma, conclui-se que o programa é muito bem estruturado e alicerçado em atividades importantes para a implementação da media-ção comunitária, o que, por derradeiro, enseja resultados efetivos.

Inicialmente, para compreender a eficácia do projeto “Justiça Comunitária”116, é necessário traçar o perfil dos cidadãos que procu-ram atendimento. Assim, constata-se que 76% das pessoas que buscam o programa para tentar solucionar suas controvérsias são do sexo femi-nino, com idade que varia de vinte a quarenta anos, sendo que a maioria encontra-se empregada.

116 Tais dados são apresentados em forma de gráficos no anexo D deste trabalho.

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Quanto ao grau de escolaridade, a maior parte dos indivíduos possui segundo grau completo e procura o núcleo prioritariamente para resolver questões familiares. Tais dados demonstram que essas pessoas, mesmo estando empregadas e possuindo certo grau de estudo, estão paulatina-mente aprendendo a gerir seus problemas.

Assim, o primeiro resultado que demonstra que esse programa é efi-caz e proporciona a inclusão social refere que, no período compreendido entre os anos 2008 e 2012, 51.948 pessoas foram direta ou indiretamente beneficiadas com a atuação voluntária dos agentes comunitários, sendo que aproximadamente 25% declararam auferir renda de até dois salários mínimos mensais.

É inequívoco, destarte, que a mediação comunitária é um instrumento de acesso à justiça e inclusão social, haja vista que a maior parte das pessoas beneficiadas com o programa possui renda baixa e não têm aces-so fácil aos órgãos jurisdicionais, isto é, representam uma camada da sociedade que é marginalizada e excluída, principalmente “pela aposta no projeto global de mercado que prima pelo reinado do lucro” (LUCAS; BEDIN, 2013, p. 46).

Ademais, os resultados demonstram que, entre os anos 2001 e 2007, foram realizados 2.926 atendimentos, sendo que, desses, 441 resulta-ram em mediação, representando um total de 15% dos atendimentos re-alizados. Já no período compreendido entre os anos 2008 e 2012, dos 1.781 atendimentos, 950 resultaram em mediação, o que corresponde um aumento de 53,34% no número de pessoas que aceitaram participar do procedimento de mediação.

Apesar dos relatórios revelarem um aumento da aceitação prática da mediação comunitária, o que comprova o crédito do cidadão no método, se estes forem analisados de maneira comparativa é possível constatar uma diminuição no número de atendimentos, o que demonstra que a co-munidade está aprendendo a administrar e a gerir seus próprios conf litos de forma autônoma, ou seja, está cada dia mais empoderada.

Enfim, ao analisar os dados do programa “Justiça Comunitária”, per-cebe-se que atingiu suas metas, pois houve diminuição na procura de atendimentos prestados e, dos atendimentos realizados, a grande maioria

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resultou em mediação, o que comprova a mudança de cultura da comuni-dade e da sociedade como um todo.

Finalmente, é possível concluir que a mediação comunitária é uma verdadeira política pública, uma vez que apresenta concretamente os re-sultados de sua eficácia. Configura-se, portanto, como um instrumento de harmonização e democratização do acesso à justiça, haja vista que proporciona a possibilidade de acesso a todo e qualquer cidadão à or-dem jurídica justa, além de promover o tratamento dos conf litos através do diálogo e da compreensão mútua, fazendo transcender os laços de amizade e fraternidade que envolvem todos os indivíduos, e ensejar a prevenção da ocorrência de novos litígios.

A mediação comunitária é, pois, um mecanismo de transformação so-cial que, além de todos os benefícios que suscita, empodera e emancipa os sujeitos, tornando-os protagonistas de sua história atual e responsá-veis pelo seu futuro.

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CONCLUSÃO

A complexidade das relações sociais vinculada à explosão de litigiosidade dos conflitos são os principais motivos do aumento incomensurável do núme-ro de demandas que diariamente chegam ao Poder Judiciário. Assim, todo e qualquer problema que surja no seio da comunidade e da sociedade como um todo se transforma em processo judicial, que é levado ao crivo do ente estatal para que diga a última palavra.

Nesse sentido, torna-se cômodo ao cidadão entregar seus litígios a uma terceira pessoa com o intuito de que ela ponha um ponto final na situação, prolatando uma sentença que determinará quem tem mais ou menos direitos, ou quem está certo ou errado. Tal postura exime os envolvidos do comprome-timento na construção da decisão, do reconhecimento dos erros, bem como da consequente responsabilização.

Todavia, diante das crises que o ente estatal atravessa, nem todas as pesso-as conseguem ter acesso à justiça ou, quando o tem, nem sempre as respostas espargidas são adequadas e correspondem aos anseios e às necessidades. Na realidade, a maioria das decisões não coincide com a realidade das partes e, normalmente, quando são disponibilizadas, já passam a ser obsoletas em face da lentidão e da burocratização, entre outros fatores.

A morosidade, portanto, uma das maiores causas fomentadoras da crise, constitui um enorme problema social, uma vez que a resposta dada vem, em regra, quando a questão controvertida já se resolveu ou quando ela não tem mais relevância, ou seja, ela é uma ferida que aumenta na medida em que o Estado não consegue solucionar de forma adequada e eficiente os problemas sociais.

O descompasso entre a sociedade e a atuação jurisdicional é evidenciado também pela legislação desatualizada e obsoleta que, não obstante ser ultra-passada, continua sendo utilizada e aplicada discricionariamente, como se todas as adversidades pudessem ser condicionadas por um modelo normativo pré-estabelecido, o que demonstra cristalinamente que a demora, o formalis-mo excessivo e a burocracia são apenas alguns entraves que, somados ao mito criado pela ritualização processual – essencialmente pela figura do juiz, que é vista como um ser sagrado dotado de poder divino para julgar os “hereges” –, dificultam o Poder Judiciário de prolatar uma decisão eficaz e adequada.

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Ademais, impossível não mencionar as resistências criadas pela carência de fun-cionários, de estrutura física e de planejamento administrativo, como também da linguagem técnico-formal usada nos procedimentos, que demonstram tão somente a dificuldade de comunicação e de trabalho com novas posturas e realidades fáticas, entre os operadores jurídicos e a sociedade. Deve então ocorrer uma revolução na mentalidade e nas maneiras de tratar as demandas.

Constata-se, assim, que os conflitos direcionados ao ente estatal em forma de processos judiciais não são tratados, mas somente interpretados de maneiras diver-sas, mediante a simples aplicação de normas gerais e abstratas ao caso concreto. Isso acontece porque, quando se vai ao juiz, perde-se a face, isto é, as pessoas, ao ingressarem com uma ação, perdem a identidade, sendo relegadas a meros números de processos – um a mais no meio de tantos outros.

Todos esses fatores juntos promovem no cidadão o sentimento de abandono e descrédito no poder público, o que faz com que as decisões não sejam cumpridas e retornem àquele como novas demandas. A falta de credibilidade reflete, portanto, na cultura política, haja vista que, a partir do momento em que a sociedade tiver como sustentáculos a confiança, a alteridade e a participação, não precisará neces-sariamente de leis para ver seus direitos garantidos.

Porém, atualmente, mesmo descrente em relação às instituições e à justiça, o cidadão não consegue se desvincular do Poder Judiciário para tratar seus conflitos, momento em que aparecem perspectivas diferenciadas para superar os empecilhos sociais, culturais e econômicos do acesso à justiça.

Em vista disso, Mauro Cappelletti e Bryant Garth propuseram três ondas renovatórias de universalização do acesso à justiça. A primeira pretende via-bilizar o acesso à justiça aos chamados hipossuficientes: aqueles que não con-seguem arcar com as despesas advindas dos processos judiciais. A segunda refere-se à representação jurídica de interesses difusos e coletivos pelo combate ao sentido individualista do processo e da justiça. Finalmente, a terceira onda centra sua atenção no conjunto de instituições, mecanismos, pessoas e procedi-mentos utilizados para solucionar e prevenir disputas nas sociedades modernas.

Essa terceira onda objetiva dar ao acesso à justiça um enfoque mais huma-no, participativo e voltado para o tratamento das disputas através dos esforços conjuntos de ambas as partes sem, contudo, olvidar a importância do Poder Judiciário. Assim, os meios alternativos de resolução de conflitos surgem

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como uma proposta inovadora, pois querem tornar a justiça mais acessível por meio da simplificação dos procedimentos e, assim, estabelecer uma ordem consensuada, diferentemente daquela imposta pelo Poder Judiciário.

Os meios consensuais de tratamento das contendas objetivam, por derra-deiro, a quebra de paradigmas, alterando substancialmente a cultura da judi-cialização de litígios, tão enraizada na população. Pretende-se com eles sair do dissenso para o consenso, em busca da jurisconstrução. Esta, por sua vez, proclama a utilização de procedimentos informais, nos quais um terceiro de-verá atuar apenas no sentido de auxiliar no restabelecimento da comunicação rompida, pois são as partes os protagonistas que tentarão, pelo confronto de ideias, concretizar um acordo que seja satisfatório para todos os envolvidos.

É cediço, nesse ínterim, que toda a quebra de paradigmas é árdua e lenta. En-tretanto, os procedimentos consensuais são de suma relevância nessa caminhada, pois contribuem para a modificação da visão pessimista dos conflitos, que passam a ser enxergados como molas propulsoras do amadurecimento e desenvolvimento social, bem como auxiliam na composição apropriada dos litígios, gerando au-tonomia individual e maior confiança do cidadão em si e nos demais. Assim, a maior expressão da construção desse novo paradigma social é a mediação.

A mediação, ao contrário do que se pensa, é um método muito antigo e tradicional de solucionar conflitos, sendo usada por praticamente todas as ci-vilizações do mundo. Sua propagação, da mesma maneira, se deu em todos os continentes, porém, de forma incipiente e mais relevante, no século passado, nos Estados Unidos, onde foi utilizada para descongestionar os tribunais, di-minuir os gastos e acelerar as resoluções das disputas.

Ao demonstrar para o mundo todas as suas vantagens, ganha adeptos rapida-mente; inclusive o Brasil, que, apesar de não ter ainda instituído uma legislação es-pecífica sobre o tema, possui diversos movimentos que visam à regulamentação da técnica no sistema jurídico brasileiro, entre os quais se destacam: a Resolução 125, do Conselho Nacional de Justiça, publicada no ano de 2010, que institui uma polí-tica judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário, e os Projetos de Lei 166/2010, que propõe um novo Código de Processo Civil, 517/2011, que institui a mediação como instrumento para a prevenção e solu-ção consensual de conflitos, 405/2013, que dispõe sobre a mediação extrajudicial, e 434/2013, que disciplina a mediação, sendo os três últimos unificados em um único

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documento com o fito de serem aprovados e transformarem-se em lei.Entretanto, embora representem um grande avanço legislativo quanto ao

reconhecimento desse instrumento no ordenamento pátrio, tanto a Resolução 125, do Conselho Nacional de Justiça, quanto os demais projetos de lei apre-sentam inúmeras fragilidades, que deverão ser analisadas e alteradas para que a mediação seja efetivamente utilizada e contemplada na exata medida de suas características e peculiaridades.

Essas, por sua vez, revelam que a mediação é um instrumento consensual, demo-crático e que enseja a autonomia individual, pois permite às partes a construção de um acordo dialógico sem que haja a imposição de regras ou sentenças. Dessa forma, ao utilizarem a mediação como método de tratamento das controvérsias, as pessoas estarão desvinculando-se do ente estatal e responsabilizando-se pela decisão tomada.

Assim, essa forma diferenciada tem como pilares essenciais a amizade e a frater-nidade, que, unidas, superam os efeitos do individualismo e conduzem a uma vida compartilhada. O “outro” do conflito, por conseguinte, não é mais visto como um ini-migo, mas como uma pessoa diferente que merece todo o respeito e atenção, momento em que transcende o direito fraterno como uma opção que valoriza a comunhão dos destinos e supera todo e qualquer abismo existente entre as pessoas.

Nesse diapasão, o caminhar juntos e o resolver as controvérsias pelo mútuo con-sentimento guiam até a mediação comunitária. Essa nada mais é que um instrumento de justiça social que oportuniza a administração e o tratamento dos conflitos pela criação e fortalecimento dos laços de amizade e fraternidade que integram e ensejam a participação de todos na vida social.

A mediação, além de proporcionar o tratamento da contenda pelos membros da própria comunidade através do restabelecimento da comunicação rompida – nesse sentido é considerada uma estratégia do agir comunicativo –, potencializa e contex-tualiza o procedimento em uma dimensão local pelo auxílio do mediador, que é um membro da comunidade e, por isso, um conhecedor da realidade, dos anseios e angús-tias dos envolvidos, sendo considerado, portanto, uma espécie de mediador cidadão.

De outro lado, a mediação comunitária suscita a discussão sobre as políticas públicas de Estado e as de governo com o fito de esclarecer em qual das duas ca-tegorias ela se encaixa. Assim, a primeira é institucionalizada, consolidada nas es-truturas estatais a ponto de o governo mudar e ela permanecer vigorando sem ser modificada abruptamente. A segunda, por sua vez, é produto de decisão de governo

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em exercício e depende da vontade política para que se mantenha vigente.Dessa forma, considera-se a mediação comunitária uma política pública de Es-

tado, haja vista que promove o desenvolvimento e a harmonização social, indepen-dentemente do governo que esteja no poder. Sua implementação, portanto, provoca a organização social, o robustecimento das relações entre as pessoas e a participa-ção ativa do cidadão, na medida em que enseja o tratamento do conflito de forma adequada pelos membros da comunidade, permite o acesso à justiça e promove a inclusão social, isto é, ao estimular a comunicação, a amizade e a fraternidade, em-podera o cidadão a decidir suas controvérsias e a responsabilizar-se por isso.

Nesse ponto reside a importância do programa “Justiça Comunitária”, desenvol-vido pelo Ministério da Justiça. Trata-se de uma política pública que tem o condão de levar a justiça mais próxima da comunidade, a todas as pessoas que dela neces-sitem, fortalecendo a cidadania pela informação, a conscientização e a responsabi-lização na construção de respostas aos problemas.

Esse projeto concretiza todos os benefícios que a mediação comunitária propor-ciona, seja porque possibilita o tratamento adequado das controvérsias, seja porque possibilita a inclusão e a harmonização social pelo empoderamento e emancipação.

Toda a sua eficácia é demonstrada pelos relatórios de atendimento e participação ativa da comunidade na resolução de seus problemas. O programa “Justiça Comu-nitária” é eficaz, uma vez que comprovadamente faculta o acesso à justiça e permite o tratamento e a prevenção dos conflitos através do empoderamento do cidadão.

Portanto, a mediação comunitária promove uma verdadeira metamorfose social, pois devolve aos cidadãos a capacidade de lidar com os conflitos que lhes são ine-rentes, tornando-os verdadeiros sujeitos capazes de desenhar sua história presente e futura. É, assim, a melhor opção encontrada para superar os males do normati-vismo jurídico e da vida individualista trazida pela globalização, configurando-se como um mecanismo de exercício da cidadania, porquanto estimule a autonomia, a democracia e a participação social, empoderando as partes para que decidam sem coerção ou imposição de sentenças.

É, em vista disso, necessária uma quebra de paradigmas e a construção de uma nova cultura. Para que isso ocorra é imprescindível o acesso irrestrito, a toda e qualquer pessoa, à justiça, bem como a inclusão de todos os cidadãos na vida em sociedade – requisitos esses que podem ser alcançados pela utilização da mediação comunitária enquanto política pública através do programa “Justiça Comunitária”.

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ANEXO

Gráficos do programa “Justiça Comunitária”117

117 Tais gráficos e planilhas foram gentilmente cedidos por funcionário do Ministério da Justiça.

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