mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

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IX PRÊMIO SEAE– 2014 Tema 1. Defesa da Concorrência Inscrição: 37 CLASSIFICAÇÃO: MENÇÃO HONROSA Título da Monografia: Mecanismos de Proteção ao programa de Leniência Brasileiro: um estudo sobre a confidêncialidade dos documentos e a responsabilidade civil à luz do direito europeu Nayara Mendonça Silva e Souza (23 anos) Belo Horizonte - MG Graduada em Direito – UFMG Assistente - CADE

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Page 1: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

IX PRÊMIO SEAE– 2014 Tema 1. Defesa da Concorrência

Inscrição: 37

� CLASSIFICAÇÃO: MENÇÃO HONROSA Título da Monografia: Mecanismos de Proteção ao programa de Leniência Brasileiro: um estudo sobre a confidêncialidade dos documentos e a responsabilidade civil à luz do direito europeu

Nayara Mendonça Silva e Souza (23 anos)

Belo Horizonte - MG

Graduada em Direito – UFMG

Assistente - CADE

Page 2: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

MECANISMOS DE PROTEÇÃO AO PROGRAMA DE LENIÊNCIA

BRASILEIRO

Um estudo sobre a confidencialidade dos documentos e a responsabilidade

civil à luz do direito europeu

Resumo

Este trabalho tem como objeto a análise prospectiva do programa de

leniência brasileiro sob seus aspectos de maior relevo na atualidade: a

responsabilidade civil do signatário de leniência e a confidencialidade dos

documentos por ele fornecidos. Estes aspectos também encontram-se em

discussão na União Europeia por conta de um projeto de Diretiva sobre ações

de reparação de danos no domínio antitruste. Esta pesquisa realizou uma

análise de direito comparado, subsidiada por entrevistas realizadas com

integrantes e ex-integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e

de advogados que atuam na seara, verificou-se que propostas e iniciativas

europeias podem ser transpostas ao ordenamento brasileiro, com as devidas

adaptações ao quadro nacional. Propõe-se, em conclusão, que o direito

nacional seja aprimorado nos seguintes tópicos: (i) limitação da

responsabilidade civil do signatário de leniência aos danos causados somente

a seus adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos; (ii) exclusão da

responsabilidade solidária do signatário de leniência; (iii) promoção de cursos

de atualização em direito antitruste para juízes; (iv) restrição absoluta do

acesso aos documentos de leniência e impossibilidade de requisição judicial

destes no bojo de processo de reparação civil. Destarte, o enforcement privado

jusconcorrencial brasileiro terá uma evolução em direção a seus pares

estrangeiros.

Page 3: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

PALAVRAS-CHAVE: Direito Antitruste. Leniência. Reparação civil.

Page 4: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

IX PRÊMIO SEAE - 2014

TEMA 1: DEFESA DA CONCORRÊNCIA

MECANISMOS DE PROTEÇÃO AO PROGRAMA DE LENIÊNCIA

BRASILEIRO

Um estudo sobre a confidencialidade dos documentos e a

responsabilidade civil à luz do direito europeu

Page 5: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

2

Resumo

Este trabalho tem como objeto a análise prospectiva do programa de

leniência brasileiro sob seus aspectos de maior relevo na atualidade: a

responsabilidade civil do signatário de leniência e a confidencialidade dos

documentos por ele fornecidos. Estes aspectos também encontram-se em

discussão na União Europeia por conta de um projeto de Diretiva sobre ações

de reparação de danos no domínio antitruste. Esta pesquisa realizou uma

análise de direito comparado, subsidiada por entrevistas realizadas com

integrantes e ex-integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e

de advogados que atuam na seara, verificou-se que propostas e iniciativas

europeias podem ser transpostas ao ordenamento brasileiro, com as devidas

adaptações ao quadro nacional. Propõe-se, em conclusão, que o direito

nacional seja aprimorado nos seguintes tópicos: (i) limitação da

responsabilidade civil do signatário de leniência aos danos causados somente

a seus adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos; (ii) exclusão da

responsabilidade solidária do signatário de leniência; (iii) promoção de cursos

de atualização em direito antitruste para juízes; (iv) restrição absoluta do

acesso aos documentos de leniência e impossibilidade de requisição judicial

destes no bojo de processo de reparação civil. Destarte, o enforcement privado

jusconcorrencial brasileiro terá uma evolução em direção a seus pares

estrangeiros.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Antitruste. Leniência. Reparação civil.

Page 6: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

3

Sumário

Resumo ............................................ ............................................................ 2

Introdução ........................................ ........................................................... 5

Capítulo 1. A tensão entre a proteção da eficácia dos programas de

leniência e a efetividade do direito à reparação das vítimas de c artel na

União Europeia .................................... ............................................................. 6

I. A responsabilidade civil do beneficiário de imunidade na União

Europeia ......................................................................................................... 7

II. Em busca de uma uniformização do direito europeu para o

tratamento do beneficiário de acordo de leniência ....................................... 17

Capítulo 2. A responsabilidade civil do beneficiári o de acordo de

leniência no Brasil: estado da arte e propostas de aprimoramento .......... 22

I. Debates doutrinários sobre o instituto da leniência no Brasil ........... 29

II. Diagnóstico das fragilidades do programa de leniência brasileiro:

risco de vazamento de informações e ações complementares de indenização

31

A. Risco perverso de vazamento de informações relativas à leniência

Erro! Indicador não definido.

B. O perigo das ações complementaresErro! Indicador não

definido.

Capítulo 3. Sugestões de advocacy em direção ao fortalecimento do

programa de leniência brasileiro .................. ................................................ 37

I. Emergência de mudanças estruturais .............................................. 37

Page 7: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

4

II. Promoção de alterações interpretativas: um papel da advocacia da

concorrência ................................................................................................. 42

CONCLUSÃO ......................................... .................................................... 47

ANEXO A - ENTREVISTA COM INTEGRANTES E EX-INTEGRANT ES DO

CADE ............................................................................................................... 49

Bibliografia ...................................... .......................................................... 75

Page 8: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

5

Introdução

Este estudo visa identificar quais são os mecanismos que podem ser

buscados pelo Brasil no direito europeu para melhorar seu programa de

leniência no tocante à confidencialidade e à responsabilidade civil do

beneficiário de imunidade1.

Tanto na Europa2 quanto no Brasil3, existe o risco de o beneficiário de

imunidade responder a uma ação civil de reparação de danos pelo cartel

(follow-on actions ou ações complementares4). Se for o primeiro membro do

conluio revelado, o beneficiário torna-se alvo mais frágil a este tipo de

processo. Ademais, os documentos oferecidos pela empresa em troca do

benefício podem ser demandados para fins de instrução do processo de

reparação de danos.

O programa de leniência brasileiro é recente se comparado àquele das

autoridades mais maduras em disciplina da concorrência, e somente três casos

1 Neste trabalho, o termo “beneficiário de leniência” será utilizado para designar quem

recebeu imunidade ou redução de punição administrativa e de isenção de responsabilidade penal por força de lei, após acordo com autoridade antitruste. Há divergência doutrinária quanto ao uso do termo “leniente”, corrente no âmbito do direito antitruste brasileiro. Segundo Martinez (2013, p. 259-260), “leniente”, pelo significado do termo, é o Estado brasileiro que assina o acordo com um delator. Por esse motivo, optamos por também não utilizar o termo “leniente” para designar o candidato à leniência.

2 Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a certas regras que regem as ações de indenização no âmbito do direito nacional por infrações às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia (2013).

3 Nos Estados Unidos, os beneficiários de leniência ainda podem contar com a limitação de sua responsabilidade civil (civil leniency) caso cooperarem com o requerente em sua demanda de reparação de danos concorrenciais. Caso isso ocorra, o signatário de leniência pode contar com a detriplicação (detrebling) da indenização devida. Isto porque os EUA trabalham com a possibilidade do pagamento de danos punitivos (punitive damages), que no caso de infrações à concorrência é calculado em triplo (treble damages). Para maiores detalhes, veja Mahr e Lange (2010).

4 Na Proposta de Diretiva da União Europeia, a tradução utilizada para follow-on action foi ação de acompanhamento. No entanto, consideramos o termo “ação complementar” mais didático, por remeter claramente à complementaridade entre o processo na esfera administrativa e o processo civil de reparação de danos.

Page 9: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

6

de leniência foram julgados pelo CADE5. Esta razão e a recente cultura de

reparação de danos concorrenciais justificam a falta de discussão quanto às

ações complementares. A lei brasileira não trata da (im)possibilidade de

divulgação dos documentos obtidos por leniência em caso de solicitação

judicial. Outrossim, as falhas de confidencialidade demonstram que nosso

sistema jurídico concorrencial precisa de aperfeiçoamento.

Para iniciar as reflexões no Brasil sobre o tema, este trabalho apresenta a

perspectiva europeia e faz um diagnóstico das fragilidades do programa de

leniência brasileiro. Em conclusão, são apresentadas propostas para que seja

fortalecida a persecução de cartéis no país.

Capítulo 1. A tensão entre a proteção da eficácia dos programas de

leniência e a efetividade do direito à reparação das vítimas de c artel na

União Europeia

O sistema brasileiro de responsabilidade civil por danos concorrenciais

(private enforcement) guarda maiores semelhanças com o sistema europeu

continental, sobretudo pela influência do direito romano, do que com o sistema

anglo-saxão, que reconhece os danos punitivos como forma de dissuasão da

conduta causadora do dano. Como exemplo, tem-se o direito civil francês, em

que os requisitos para uma ação de responsabilidade civil são os mesmos

exigidos no direito civil brasileiro (a saber, ato ilícito, dano e nexo causal).

5 Trata-se do cartel dos vigilantes, dos peróxidos e das cargas aéreas. Essa informação

pode ser verificada ao checar a jurisprudência do Conselho por meio do site: www.cade.gov.br/jurisprudencia.

Page 10: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

7

Ademais, como o direito da concorrência brasileiro ainda centra suas

preocupações no public enforcement6, como pareceu ser a tendência do

modelo europeu7 até o início dos estudos das ações privadas, este trabalho se

dedicará a estudar com maior profundidade as discussões europeias sobre a

responsabilidade civil do signatário de leniência e seus desdobramentos.

Para tanto, é preciso apresentar o estado atual da responsabilidade civil por

ilícito concorrencial na União Europeia em caso de leniência e, em seguida,

verificar quais problemas dela já decorreram. A partir dessa apresentação

geral, será possível analisar as proposições oficiais europeias para solucionar

os problemas supracitados e as soluções paralelas nacionais que vigoram à

espera de uma uniformização do direito europeu nesse sentido.

I. A responsabilidade civil do beneficiário de imun idade na União

Europeia

Em direito europeu da concorrência, o fato de uma empresa beneficiar-se

de leniência não a protege das consequências na esfera civil pela infração ao

artigo 101 do Tratado de Funcionamento da União Europeia. (UNIÃO

EUROPEIA, 2006, item 39)

Por conta da falta de regulamentação específica sobre a responsabilidade

civil do signatário de acordo de leniência no direito europeu, esta segue a regra

geral de dever de reparação civil dos danos causados pelo infrator às regras

6 Neste trabalho public enforcement será traduzido, à inspiração de Amaro (2012), como

contencioso público, ou seja, aquele conduzido pelas autoridades de concorrência. Por conseguinte, o private enforcement será tido como contencioso privado.

7 Ainda não existe um regulamento vinculante de ações privadas no âmbito concorrencial (o que deve ser modificado, ainda em 2014, com a adoção da Diretiva). Este trabalho trata, de maneira geral, como modelo europeu, as proposições dos Livros Branco e Verde e certas tendências observadas nos modelos nacionais ao longo desta pesquisa.

Page 11: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

8

europeias de concorrência8. Cabe aos tribunais nacionais permitir o acesso das

vítimas à reparação civil9.

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) não é competente para

apreciar ações de reparação de danos, exceto nos casos de questões

prejudiciais. Dessa maneira, é dos tribunais nacionais europeus o dever de

aplicar as sanções civis no domínio antitruste (COMISSÃO DAS

COMUNIDADES EUROPEIAS, 2005, p. 4).

Conforme as decisões10 do TJUE, qualquer pessoa tem o direito de

reclamar uma indenização por danos causados por uma prática

anticoncorrencial.

As especificidades que regem a matéria estão dispostas no direito civil

nacional. Disso decorre, no caso de condutas anticoncorrenciais que abranjam

mais de um Estado europeu, o risco de forum shopping, ou seja, de que o

titular do direito à reparação civil por dano concorrencial escolha, para entrar

com um pedido judicial de indenização, um direito nacional mais favorável à

8 Notadamente, os artigos 101 e 102 do Tratado de Funcionamento da União Europeia

(TFUE). Os tribunais nacionais são competentes para aplicar esses artigos do TFUE referentes ao direito da concorrência, conforme o art. 6º do Regulamento(CE) n.º 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81 e 82 [101 e 102] do Tratado.

9“Contudo, na ausência de regulamentação comunitária na matéria, compete à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que para os cidadãos resultam do efeito direto do direito comunitário, desde que essas modalidades não sejam menos favoráveis do que as das ações análogas de natureza interna (princípio da equivalência) e não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade) (v. acórdão de 10 de Julho de 1997, Palmisani, C-261/95, Colect., p. I-4025, n.° 27)”. (Acórdão Courage v Creham, C-435/99, do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, parágrafo 92).

10 Decisões Courage (idem) e Manfredi e o., C‑295/04 a C‑298/04, Colect., p. I‑6619, de 13 de Julho de 2006, parágrafos 59 e 61.

Page 12: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

9

sua demanda. Na UE, os países mais favoráveis ao demandante de reparação

de danos concorrenciais são Holanda e Dinamarca (informação verbal)11.

Uma vez que não há, no direito europeu, regra que exclua a

responsabilidade civil do beneficiário de leniência, esse membro do cartel

encontra-se sujeito a uma demanda consecutiva de reparação de danos.

O principal objetivo do programa de leniência é o de descortinar uma

conduta ilícita ainda não conhecida pela autoridade de concorrência,

permitindo-a agir para resguardar a competitividade do mercado. Para tanto, o

signatário do acordo assume sua participação e apresenta à autoridade de

concorrência provas suficientes para a caracterização da conduta.

Sua posição como colaborador da autoridade de concorrência demanda

que ele entregue os documentos relativos à conduta que possua e descreva

detalhadamente como participou da prática. Nesses documentos, estarão

contidos certamente segredos de negócios, a data exata de início e fim da

prática pela empresa candidata ao benefício da leniência, a quantidade de

lucros gerada, entre outros. Esses dados não serão necessariamente obtidos

pela autoridade de concorrência com tanta precisão em casos em que não há

acordo de leniência. Nesses casos em que não houve colaboração de um

participante do conluio, a obtenção de documentos decisivos e detalhados

sobre a conduta estará condicionada a diversos elementos, tais como uma

busca e apreensão bem feitas, a colaboração da empresa investigada e a

competência da autoridade de concorrência na preparação do inquérito. Disso

decorre que, numa ação de reparação de danos em que se demande o acesso

11 Informação fornecida por Jean-Christophe Grall e Martine Behar-Touchais, em sua

palestra “L’action de groupe aux niveaux français et européen”, apresentada no “Atelier de la DGCCRF – La réparation : un outil au service de la politique de concurrence”, em Paris, no dia 4 de fevereiro de 2014. Disponível para acesso em: http://www.economie.gouv.fr/dgccrf/atelier-dgccrf-reparation-outil-au-service-politique-concurrence.

Page 13: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

10

aos documentos do processo administrativo relacionado, os dados do

signatário do acordo de leniência estarão mais vulneráveis que os dos outros

participantes da colusão. Por esse motivo, a quantificação dos danos

concorrenciais causados pelo beneficiário de leniência será, geralmente, mais

simples que o cálculo referente aos outros participantes da conduta.

A base dos programas de leniência deve residir na confiança da empresa

de que os documentos fornecidos para se beneficiar da imunidade não serão

utilizados de forma que ele fique em desvantagem com relação aos demais

cartelizados. Caso os documentos possam ser irrestritamente acessados por

terceiros que desejam propor ações de reparação civil contra os membros do

cartel, a leniência pode ser desencorajada. Esse quadro, no entender da

maioria da doutrina12, fragiliza o programa de leniência, uma vez que a

empresa candidata poderia ver-se intimidada a participar do programa pelo

risco de sofrer um impacto certeiro das demandas consecutivas de

responsabilidade civil. Além do mais, os documentos fornecidos pela empresa

tornariam mais precisa a complexa13 determinação do montante a ser pago por

ela àqueles que sofreram os reflexos de sua conduta anticoncorrencial.

Este dilema foi apresentado ao TJUE em um pedido de decisão prejudicial

no caso Pfleiderer14. O Tribunal de Bonn (Alemanha) questionou ao Tribunal de

Justiça da União Europeia se os dispositivos de direito europeu da

concorrência com relação a cartéis vedariam às vítimas que desejam obter

12 Com esta opinião, temos Idot e Zivy, Livros Verde e Branco da Comissão Europeia e

International Competition Network. Em oposição a esta ideia, tem-se o autor canadense Edward M. Iacobucci em seu artigo “Cartel class actions and immunity programmes”.

13 Sobre a complexidade da determinação do montante de danos concorrenciais, ver Comunicação da Comissão sobre a quantificação dos danos nas ações de indenização que tenham por fundamento as infrações aos artigos 101 e 102 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

14 TJUE (Grande Câmara), 14 de junho de 2011, Pfleiderer v. Bundeskartellamt, caso C-360/09, Rec., p. I-5161.

Page 14: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

11

reparação do prejuízo o acesso aos documentos obtidos sobre o seu caso no

quadro de um programa de leniência à autoridade de concorrência.

Neste processo, Pfleiderer, uma empresa adquirente de um cartel de papéis

decorativos condenado pelo Bundeskartellamt (autoridade de concorrência

alemã) em 2008, solicitou administrativamente o acesso aos documentos

recebidos pela autoridade no âmbito de uma negociação de leniência para

instruir um processo de pedido de reparação de danos concorrenciais.

O Bundeskartellamt, por sua vez, utilizando-se da prerrogativa legal de

negar o acesso das vítimas de condutas anticoncorrenciais em caso de

oposição de “interesses dignos de protecção, seja do arguido ou de outras

pessoas”, permitiu ao procurador de Pfleiderer o acesso somente a uma parte

do processo que condenou o cartel, notadamente as cartas de condenação das

empresas em versão anônima e uma lista dos meios de prova obtidos. Foram

excluídos os documentos referentes aos segredos de negócios dos cartelistas,

os documentos internos do Bundeskartellamt, todos os documentos recebidos

em razão do programa de leniência, e os documentos do processo

considerados confidenciais.

A empresa recorreu dessa decisão da autoridade de concorrência ao

Tribunal de Bonn, solicitando o acesso a todos os documentos obtidos para

que fossem utilizados em sua demanda de reparação de danos concorrenciais

contra os participantes do cartel em questão. O Tribunal de Bonn pediu

esclarecimento ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) para verificar

se sua decisão estava de acordo com o direito europeu. No aguardo da

resposta à sua questão prejudicial perante o TJUE, o Tribunal de Bonn

suspendeu a execução de sua decisão que permitia a divulgação dos

Page 15: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

12

documentos (exceto dos documentos internos e da correspondência redigida

no seio da Rede Europeia da Concorrência).

A Corte disse que, na falta de um documento vinculativo em vigor na União

Europeia sobre o assunto, cabe ao juiz nacional contrabalancear a efetividade

do programa de leniência e o direito à reparação civil segundo o caso concreto.

Depois do julgamento da questão prejudicial pelo TJUE em 2011, o

processo retornou ao Tribunal de Bonn para julgamento. Em 2012, este

Tribunal decidiu favoravelmente ao Bundeskartellamt e negou o acesso de

Pfleiderer aos documentos relacionados à leniência. O tribunal alemão alegou

que a autoridade germânica de concorrência havia prometido confidencialidade

ao signatário de acordo de leniência. Além disso, invocou o direito de a

empresa não produzir provas contra si mesma e de autodeterminação

informacional. Por fim, salientou que o direito à reparação de Pfleiderer não

seria subjugado, uma vez que o juiz tem um grande poder discricionário para

determinar o montante da indenização (BIEN, 2012, p. 175).

Ainda na Alemanha, no mesmo ano, outro caso teve solução parecida. O

Tribunal de Düsseldorf também negou acesso aos documentos obtidos pelo

Bundeskartellamt por meio de leniência a uma vítima de práticas

anticoncorrenciais. O argumento desta Corte foi de que o comunicado da

autoridade de concorrência alemã sobre seu programa de leniência promete

confidencialidade aos seus beneficiários. Caso essa confidencialidade fosse

quebrada pelo acesso das vítimas do cartel aos documentos fornecidos pelo

beneficiário de leniência, seriam afetadas não só a relação deste com a

autoridade, mas de todo o programa de leniência alemão (BIEN, 2012, p. 182).

Page 16: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

13

No plano europeu, outro caso avançou a concepção neste sentido. Trata-se

do caso Donau Chemie15, que chegou ao TJUE com fundamento parecido ao

Pfleiderer.

Uma união de empresas, Verband Druck & Medientechnik (“VDMT”),

solicitou ao tribunal da concorrência austríaco (Oberlandesgericht Wien) o

acesso a documentos do processo judicial intentado pela autoridade de

concorrência austríaca (Bundeswettbewerbsbehörde, a seguir, “BWB”) que

condenou a empresa Donau Chemie e outras por sua participação em um

cartel de produtos químicos para impressão gráfica. A VDMT foi criada para

defender o interesse dos seus membros, empresas de impressão gráfica,

vítimas do cartel.

Conforme a lei, a VDMT formulou o pedido de acesso aos documentos do

processo BWB v. Donau Chemie e outras com o fito de obter informações que

permitissem o cálculo do prejuízo causado pelo cartel à união de empresas, de

forma a preparar uma ação de indenização. Segundo o direito austríaco, o

acesso por terceiros a documentos relativos a processo perante o tribunal da

concorrência só pode se dar com o consentimento das partes envolvidas. O

tribunal da concorrência austríaco salientou que nem mesmo o juiz poderia

suplantar essa regra, uma vez que o ordenamento jurídico já teria feito a

ponderação dos valores envolvidos, decidindo pela confidencialidade dos

documentos.

Diante da oposição dessa regra do direito austríaco com a decisão tomada

no acórdão Pfleiderer (C-360/09) supramencionado, o Oberlandesgericht Wien

questionou ao TJUE se o direito da UE opõe-se a uma disposição nacional em

15 TJUE, 6 de junho de 2013, Donau Chemie , caso C-536/11.

Page 17: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

14

matéria de carteis que condiciona a concessão do acesso aos autos a terceiros

que visem instruir ações de reparação de danos à anuência de todas as partes

no processo de cartel. O TJUE respondeu que o direito de reparação conferido

às vítimas do cartel perderia seu efeito útil caso houvesse uma norma nacional

que vedasse de maneira absoluta seu acesso aos documentos que

comprovariam o dano sofrido. Desse modo, como já sustentado pelo TJUE no

acordão Pfleiderer, respondeu que cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais

ponderar os interesses em causa quando do pedido de acesso aos

documentos de um processo que condenou um cartel. Portanto, os

documentos obtidos por meio de leniência seriam protegidos de maneira

casuística, com base em interesse superior, e o direito de reparação das

vítimas de um cartel não seria impedido sem a ponderação entre os interesses

envolvidos, que deve ser feita caso a caso.

Recentemente, em fevereiro de 2014, o Tribunal de Justiça da União

Europeia manifestou-se, mais uma vez, sobre o tema do acesso aos

documentos. No caso, a empresa de distribuição de energia EnBW16 requereu

a Comissão Europeia o acesso, com base no Regulamento n. 1049/2001, aos

documentos que embasaram a decisão que condenou em 2007 um cartel no

ramo de comutadores com isolamento a gás. Esse pedido foi negado pela

Comissão, pois estes documentos enquadrar-se-iam nas exceções previstas

no Regulamento n. 1049/2001, artigo 4º, n. 2. 17 O TJUE entendeu que não

16 TJUE, Decisão C-365/12 P, de 27 de fevereiro de 2014. 17 “[...] 2. As instituições recusarão o acesso aos documentos cuja divulgação pudesse

prejudicar a proteção de: – interesses comerciais das pessoas singulares ou coletivas, incluindo a propriedade

intelectual, – processos judiciais e consultas jurídicas, – objetivos de atividades de inspeção, inquérito e auditoria, exceto quando um interesse público superior imponha a divulgação.

Page 18: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

15

basta uma negativa geral da Comissão como apresentada, mas que ela

deveria ser motivada tendo em vista o prejuízo que a divulgação poderia

causar a interesse protegido tratado no artigo. Acrescentou que compete ao

requerente das informações provar a necessidade de obtê-las para a instrução

de seu processo, para que se constitua interesse público superior digno de

permitir o acesso a documentos em princípio confidenciais. No caso, decidiu

que a EnBW não teria provado essa necessidade e

(...) limitou-se a afirmar que estava «imperativamente dependente»

do acesso aos documentos do processo em causa, sem demonstrar

que o acesso a esses documentos lhe teria permitido dispor dos

elementos necessários para fundamentar o seu pedido de

indenização, uma vez que não dispunha de nenhuma outra

possibilidade de obter esses elementos de prova. (TJUE, EnBW, C-

365/12, 27 de fevereiro de 2014, párágrafo 132)

O pedido da EnBW foi, portanto, julgado improcedente18. Desse caso,

apesar da improcedência do pedido da vítima, extrai-se que pedidos bem

fundamentados de acesso a documentos feitos por vítimas de cartel são uma

questão de interesse público no direito europeu, e que as ações de reparação

de danos concorrenciais não configuram interesse privado, conforme o Tribunal

Geral da União Europeia havia decidido anteriormente no caso Royaume des

Pays Bas v. Commission (T-380/08). (SAVOV, 2014, p. 2)

Em 05 de junho de 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu

mais uma decisão (C 557/12) relativa a ações de indenização contra 3. O acesso a documentos, elaborados por uma instituição para uso interno ou por ela

recebidos, relacionados com uma matéria sobre a qual a instituição não tenha decidido, será recusado, caso a sua divulgação pudesse prejudicar gravemente o processo de decisão da instituição, exceto quando um interesse público superior imponha a divulgação”. (CE) n.° 1049/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2001, relativo ao acesso do público aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão (JO L 145, p. 43) artigo 4º.

18 Pontos 132 e 133 do acórdão.

Page 19: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

16

beneficiário de leniência. Trata-se de decisão prejudicial relativa ao caso

austríaco de reparação de danos, em que a empresa ÖBB Infrastruktur AG (a

seguir, “ÖBB”) opôs-se às empresas membros de um cartel Kone AG, Otis

GmbH, Schindler Aufzüge und Fahrtreppen GmbH, Schindler

Liegenschaftsverwaltung GmbH e ThyssenKrupp Aufzüge GmbH (esta última

beneficiária de leniência), demandando a reparação dos danos causados por

este cartel. A questão que foi posta ao Tribunal europeu foi de saber se a ÖBB

teria legitimidade ativa para demandar a reparação do dano causado pelo

sobrepreço pago por ela a uma empresa que não participou do cartel, mas

beneficiou-se do aumento dos preços dos concorrentes para subir também o

seu preço (fenômeno chamado de umbrella pricing ou umbrella effect). Isto

porque o direito austríaco não permite esse tipo de indenização, por não

considerar que haja nexo causal entre o ato ilícito e o dano. As recorrentes

utilizaram, além do argumento da jurisprudência austríaca, também a

fundamentação de que tal pedido de indenização poderia dissuadir possíveis

candidatos a leniência.

Nenhum dos argumentos foi aceito pelo TJUE, que considerou que a ÖBB

poderia obter a reparação do dano sofrido, mesmo sem vínculo contratual com

as empresas cartelizadas, desde que sejam cumpridos os seguintes requisitos:

“que esse cartel, de acordo com as circunstâncias do caso concreto

e, especialmente, com as especificidades do mercado em causa,

podia ter como consequência a aplicação de um preço de proteção

por terceiros agindo de maneira autônoma e que essas circunstâncias

e especificidades não podiam ser ignoradas pelos membros do dito

cartel”.

Page 20: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

17

Quanto à proteção do programa de leniência, o TJUE ressaltou que este

“não pode privar os indivíduos do direito de obterem uma indenização, nos

tribunais nacionais, pelo dano sofrido por causa de uma violação do artigo

101.° TFUE”.

II. Em busca de uma uniformização do direito europe u para o

tratamento do beneficiário de acordo de leniência

Os casos citados acima, apesar de clarificarem em certa medida a questão

da responsabilidade civil do beneficiário de acordo de leniência, sobretudo no

que tange ao acesso aos documentos entregues por ele à autoridade de

concorrência, não oferecem soluções bem delimitadas, deixando a cargo do

juiz o cálculo de proporcionalidade dos interesses protegidos. Por esse motivo,

permanece a dúvida sobre qual deve ser a abordagem dos sistemas nacionais

de concorrência europeus para a manutenção da eficácia de seus programas

de leniência em equilíbrio com o sucesso das demandas de reparação civil.

A iniciativa europeia de tentativa de uniformização da aplicação das ações

privadas para reparação de danos concorrenciais data de 2005. Trata-se do

Livro Verde “Ações de indenização devido à violação das regras comunitárias

no domínio antitruste”, lançado pela Comissão Europeia. Seu objetivo foi de

identificar os principais obstáculos a um sistema mais eficaz para as

ações de indenização e apresentar diferentes pistas de reflexão e de

possível intervenção para melhorar o funcionamento das ações de

indenização, quer se trate de ações de seguimento (ou seja, casos

de instauração de uma ação civil na sequência da declaração de uma

infração por parte de uma autoridade de concorrência), quer de

ações independentes (ou seja, ações que não vêm na sequência de

uma decisão anterior de uma autoridade de concorrência relativa a

Page 21: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

18

uma infração ao direito da concorrência). (COMISSÃO DAS

COMUNIDADES EUROPEIAS, 2005, p. 4) (grifo nosso).

No que tange à coordenação entre a aplicação da legislação concorrencial

pelo poder público e pelos particulares, o Livro Verde fez três proposições.

Quanto ao acesso aos documentos relacionados a pedidos de leniência, foi

proposta sua confidencialidade absoluta nos casos em que a confissão tenha

sido feita por escrito e a empresa possua uma cópia. Seu documento de

trabalho ressalta que a proteção aos documentos fornecidos pela empresa não

deve abranger os documentos que a autoridade de concorrência possuía antes

da demanda (COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 2005, p. 80).

Em termos de responsabilidade civil, foi proposta a redução da indenização a

ser paga pelo beneficiário de leniência e a exceção a eles da regra geral de

responsabilidade solidária em caso de reparação de danos, de forma que

seriam responsáveis pelo pagamento de indenização proporcional à sua

participação de mercado no cartel condenado. (COMISSÃO DAS

COMUNIDADES EUROPEIAS, 2005, p. opções 28-30).

Em 2008, a União Europeia lançou um Livro Branco sobre as ações de

indenização por descumprimento das regras comunitárias no domínio

antitruste, no qual trata da interação entre os programas de leniência e as

ações de indenização. O Livro Branco propõe a proteção de todas as

declarações de empresas apresentadas à Comissão Europeia ou às

autoridades nacionais da Rede Europeia de Concorrência (“REC”) por qualquer

candidato à leniência, seja o pedido aceito ou não. Além disso, o Livro Branco

propôs a limitação da responsabilidade civil do beneficiário de leniência à

indenização de seus parceiros contratuais diretos e indiretos (empresas à

jusante da cadeia de produção). (COMISSÃO DAS COMUNIDADES

Page 22: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

19

EUROPEIAS, 2008, p. 13). No exemplo citado pelo Documento de Trabalho

deste Livro Branco, se somente 30% dos produtos comprados por uma vítima

direta de um cartel viesse do signatário de acordo de leniência, sua

responsabilidade seria de 30% do dano total sofrido pela vítima pelo aumento

de preço do produto advindo do cartel. (COMISSÃO DAS COMUNIDADES

EUROPEIAS, 2008, p. 88).

Como resposta ao caso Pfleiderer, e sem uma resposta legislativa europeia

a caminho, a Rede Europeia de Concorrência (“REC”) adotou, em 23 de maio

de 2012, uma Resolução sobre a “proteção de material de leniência no

contexto de ações de indenização”. 19 A Rede Europeia de Concorrência, por

meio desta Resolução, firmou o compromisso de proteger o material de

leniência o máximo possível para garantir a efetividade dos programas de

concessão de imunidades, sem no entanto restringir o direito das vítimas dos

cartéis de obter reparação civil. (EUROPEAN COMPETITION NETWORK,

2012, p. 3).

Para fechar o ciclo de propostas e estudos sobre a reparação civil de danos

concorrenciais, a Comissão Europeia lançou, em 11 de junho de 2013, uma

“Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a certas

regras que regem as ações de indenização no âmbito do direito nacional por

infrações às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da

União Europeia”. A proposta seguiu para análise do Parlamento Europeu, que

a adotou, com algumas modificações, em 17 de abril de 2014.

19 Tradução livre, Resolution of the Meeting of Heads of the European Competition

Authorities of 23 May 2012.

Page 23: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

20

Com relação à responsabilidade civil do beneficiário de imunidade, a

proposta abrange dois aspectos: (i) a proteção dos documentos provenientes

de acordos de leniência e (ii) a limitação da sua responsabilidade civil.

Quanto à proteção dos documentos, o artigo 6º, 6, veda, em qualquer

hipótese, a autorização pelos tribunais nacionais de divulgação das

declarações das empresas em matéria de leniência e de propostas de

transação. A única hipótese em que poderia haver acesso aos documentos de

leniência pelos tribunais nacionais seria para verificar se os documentos

considerados confidenciais pelas autoridades de concorrência cumprem as

definições estabelecidas pela Diretiva para serem colocados nessa categoria.

De qualquer maneira, mesmo que os tribunais tenham acesso a esses

documentos, as partes ou terceiros jamais o teriam.

A Diretiva aborda a responsabilidade civil do beneficiário de acordo de

leniência no artigo 11, 4. A regra geral imposta pelo artigo para aqueles que

cometeram infrações à concorrência é de responsabilidade solidária para os

participantes do ilícito. Portanto, a parte lesada teria o direito de exigir a

reparação integral dos danos sofridos de qualquer dos envolvidos num cartel

que a prejudicou, por exemplo. Em caso de beneficiários de imunidade, o dever

de reparação por responsabilidade solidária englobaria somente os adquirentes

ou fornecedores diretos ou indiretos. (UNIÃO EUROPEIA, 2014, p. art. 11,3,a).

A responsabilidade solidária do signatário do acordo de leniência só atingiria as

outras partes lesadas caso não possa ser obtida reparação integral das outras

empresas envolvidas na mesma infração. (UNIÃO EUROPEIA, 2014, art.

11,3,b).

Page 24: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

21

Ademais, quanto ao montante de recuperação de uma empresa infratora

que pagou a indenização, o beneficiário de leniência também terá vantagem.

O montante de sua contribuição ao valor da indenização será correspondente

exclusivamente ao montante dos danos que a empresa que beneficiou-se da

leniência tenha causado a seus próprios adquirentes ou fornecedores diretos

ou indiretos. (UNIÃO EUROPEIA, 2014, art. 11,4).

Com relação às outras pessoas lesadas pela infração concorrencial que não

tenham sido adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos das empresas

infratoras, o beneficiário de imunidade somente terá obrigação de reparar o

dano proporcionalmente à sua responsabilidade relativa aos danos causados a

essas vítimas. (UNIÃO EUROPEIA, 2014, art. 11,5).

A Diretiva encontra-se em fase final de aprovação. Resta o acordo do

Conselho de Ministros da União Europeia para que seja considerada um texto

cogente. Após sua adoção, os Estados-Membros terão dois anos para

implementar os dispositivos da Diretiva em sua ordem jurídica interna.

(COMISSÃO EUROPEIA, 2014).

Para fortalecer seus programas nacionais de leniência, alguns países

europeus vislumbraram a proteção do acesso aos documentos provenientes

deste tipo de acordo como a melhor alternativa.

A Alemanha, apesar de uma proposta de mudança na legislação, preferiu

deixar a cargo de seus juízes a proteção desses documentos. Em 10 de

novembro de 2011, o Ministério Federal da Justiça alemão apresentou um

projeto de revisão da lei de concorrência do país, que incluía um artigo que

impossibilitava o acesso ao material proveniente dos programas de leniência.

Todavia, essa ideia foi abandonada pelo projeto publicado pelo Governo

Page 25: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

22

Federal alemão em 28 de março de 2012, que preferiu deixar a cargo dos

juízes a ponderação sobre a necessidade de acesso aos documentos de

leniência e sua proporcionalidade relativa à eficácia das ações privadas de

reparação de danos concorrenciais. (BIEN, 2012, p. 176).

Na França, a lei n° 78-753, de 17 de julho de 1978, que trata das relações

entre a Administração e o público, foi modificada para proteger os documentos

de leniência. O artigo 6, 1°, da lei aponta que não são comunicáveis “os

documentos elaborados pela Autorité de la concurrence no âmbito do exercício

de seus poderes de inquérito, instrução e decisão”20. O dispositivo comportou

críticas da doutrina na medida em que (i) não cita explicitamente os

documentos de leniência como sendo excluídos de divulgação e (ii) impõe à

Autorité de la concurrence uma tarefa árdua na avaliação de quais documentos

podem ou não ser revelados. (LEMAIRE, 2011, p. 184).

Em Portugal, o diploma concorrencial prevê a confidencialidade dos

documentos de leniência, que só podem ser obtidos por terceiros mediante

expressa autorização do demandante21. (TAVARES, 2013, p. 40).

Capítulo 2. A responsabilidade civil do beneficiári o de acordo de leniência

no Brasil: estado da arte e propostas de aprimorame nto

O programa de leniência brasileiro foi instituído em 2000, com a lei n.

10.149, de 21 de dezembro, que incluiu, entre outros, os artigos 35-B e 35-C na

lei n. 8.884/94 (lei antitruste então em vigor no Brasil). O primeiro acordo de

leniência realizado no Brasil, por sua vez, é datado de 2003, e desde então o

20 Tradução livre, Loi n° 78-753 du 17 juillet 1978 portant diverses mesures d'amélioration

des relations entre l'administration et le public et diverses dispositions d'ordre administratif, social et fiscal, França.

21 “O acesso de terceiros aos pedidos, documentos e informações apresentados pelo requerente, para efeitos da dispensa ou redução da multa, carece de autorização deste”. Artigo 81 n. 3 da Lei n. 19, de 8 de maio de 2012.

Page 26: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

23

programa de leniência brasileiro vem se desenvolvendo. Três casos de cartel

descobertos por leniência já foram julgados pelo Tribunal do CADE, e

constituem uma rica fonte de pesquisa para desmitificar esse instituto do direito

concorrencial22 que ainda enseja desconfiança e estranheza.

Até 2011, na vigência da lei antiga, foram celebrados 23 acordos de

leniência. Só no ano de 2012, foram celebrados dez acordos. (CONSELHO

ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA., 2014). O gráfico abaixo

ilustra, segundo informações fornecidas pelo CADE (2014), a evolução do

número de acordos assinados no bojo do Programa de Leniência:

Gráfico 1 – A evolução dos acordos de leniência no Brasil (Fonte: Conselho Administrativo

de Defesa Econômica - CADE)

Em sua origem, o Programa de Leniência concedia imunidade

administrativa e penal aos beneficiários que trouxessem à então existente

Secretaria de Direito Econômico – SDE, informações e provas contundentes

sobre uma conduta desconhecida pela SDE.

Os requisitos para a celebração do acordo de leniência, nos termos da Lei

n. 8.884/1994, eram os seguintes: (i) a empresa deveria cessar a conduta

desde o momento da propositura do acordo; (ii) colaborar com a caracterização

22 Sobre a análise econômica da detecção de cartéis e acordo de leniência, ver Azevedo

(2012), p. 275-279.

0

5

10

15

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

(até

maio)

me

ro d

e a

cord

os

ass

ina

do

s

Ano

Evolução do Programa de Leniência

brasileiro

Page 27: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

24

da conduta e durante toda a investigação; (iii) deveria ser a primeira a delatar o

cartel; (iv) não poderia ser a líder do cartel; (v) os membros do cartel devem ser

identificados pelo delator e este deve fornecer documentos que comprovem o

cartel e o envolvimento das outras empresas e pessoas físicas, (vi) no

momento da propositura do acordo, a SDE não poderia ter informações

suficientes sobre o cartel para condená-lo (SECRETARIA DE DIREITO

ECONÔMICO, 2009, p. 20).

Ainda que não fosse a primeira a delatar determinado cartel, uma empresa

poderia beneficiar-se de redução de penalidade em uma conduta investigada

por fruto de leniência, desde que revelasse novo cartel. Trata-se da chamada

leniência plus, que persistiu após a edição da nova lei de defesa da

concorrência. (CORDOVIL, 2011, p. 192).

A negociação do acordo era realizada pelo Secretário de Direito Econômico

e por seu chefe de gabinete, e os outros órgãos do Sistema Brasileiro de

Defesa da Concorrência (“SBDC”) não tomavam conhecimento do acordo nem

de seus termos, por conta de seu caráter sigiloso. Caso a leniência não fosse

concedida, o SBDC ainda poderia, desde que de maneira independente do

acordo de leniência proposto, investigar e julgar o cartel.

Por força do diploma antitruste em vigor, os beneficiários do acordo de

leniência possuíam dois tipos de imunidade ou redução de penalidade:

administrativa e penal. No caso das pessoas jurídicas, que não são

condenadas pelo crime de cartel, poderia haver a isenção total da multa

imposta pelo CADE, caso a conduta revelada fosse desconhecida pelo SBDC,

ou a redução do valor da condenação, caso a conduta delatada já estivesse em

investigação (sem provas conclusivas) pela SDE. As pessoas jurídicas, por seu

Page 28: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

25

turno, possuíam o mesmo benefício administrativo que as pessoas jurídicas, e

também a imunidade na esfera penal quanto aos crimes contra a ordem

econômica previstos na Lei 8.137/1990. Essa imunidade, nos termos do artigo

35-C da Lei n. 8.884/1994, correspondia à suspensão do curso do prazo

prescricional do crime praticado e impedia o oferecimento da denúncia relativa

a ele. Não abrangia os crimes previstos na Lei n. 8.666/1993, relacionados a

cartéis em licitações e em contratos públicos, nem ao artigo 288 do Código

Penal (crime de quadrilha ou bando).

Atualmente, o acordo de leniência está previsto nos artigos 86 e 87 da Lei

n. 12.529/2011, e nos artigos 197 a 210 do Regimento Interno do CADE

(Resolução CADE n. 01/2012 – “RICADE”).

Poucas mudanças ocorreram no programa de leniência brasileiro após a

nova lei do CADE. Dentre as mudanças a serem elencadas, destaque-se a

nova comissão de negociação, que agora é formada por uma equipe da

Superintendência Geral do CADE e inclui o Superintendente-Geral, o

Superintendente-Geral Adjunto especializado em condutas, o chefe de

gabinete da Superintendência-Geral e alguns servidores do CADE designados

especialmente para a função.

Além disso, foi alargada a possibilidade de candidatura ao Programa:

também o líder de um cartel pode participar. Foi também expandida a

imunidade criminal abrangida pela assinatura do acordo: com a nova lei,

haverá imunidade também para os crimes previstos pela Lei n. 8.666/1993 e

para o crime de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal).

Importante salientar que, conforme salienta a Procuradoria Geral do CADE

(2007) no despacho relativo ao cartel dos vigilantes, não cabe ao CADE

Page 29: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

26

“qualquer análise a respeito da validade, cabimento e oportunidade na

celebração do acordo de leniência”23. O Tribunal deve ser encarregado

somente de aplicar a pena relativa à infração à ordem econômica.

A seguir, serão analisados os casos de cartel envolvendo leniência que já

foram julgados pelo CADE, para que sejam observadas as evoluções

interpretativas ao longo dos dez anos entre a primeira assinatura de acordo de

leniência e o último caso julgado.

Tabela 1 – Leniências julgadas no Brasil

Caso Período do cartel

Prazo de julgamento

Signatário de acordo de leniência / TCC

Busca e apreensão

Cartel internacional

Envolvimento do MP

Condenação aproximada

Judicialização

Vigilantes/ PA n. 08012.001826/2003-10

1990-2003 (13 anos)

2003-2007 (4 anos)

Vigilância Antares e pessoas físicas / sem TCC

2004 Não Não R$ 40mi

Sim

Peróxidos/ PA n. 08012.004702/2004-77

1995-2004 (10 anos)

2004-2012 (8 anos)

Degussa Brasil/ sem TCC

2004 Não MPF e MP-SP

R$ 150mi

Não

Cargas aéreas/ PA n. 08012.011027/2006-02

2003 a 2005 (3 anos)

2006- 2013 (7 anos)

Deutsche Lufthansa, subsidiárias e pessoas físicas / TCC: Air France-KLM (R$ 14mi)

2007 Sim MPF e MP-SP

R$ 293mi

Sim

O cartel dos vigilantes (Processo Administrativo n. 08012.001826/2003-10)

foi o primeiro caso descoberto por leniência julgado no Brasil. Trata-se de um

cartel organizado para fraudar licitações públicas e privadas destinadas à

contratação de serviços de vigilância no Estado do Rio Grande do Sul.

23 CADE. Processo n. 08012.001826/2003-10. Procurador-Geral Gilvandro Vasconcelos de

Araújo.

Page 30: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

27

Os delatores da conduta, em 2003, foram o proprietário e um funcionário da

empresa de vigilância Antares, que também se beneficiou da leniência como

pessoa jurídica. A busca e apreensão, realizada em 2004, abrangeu CADE,

Ministério Público e Polícia Federal e envolveu 80 pessoas desses órgãos

(SECRETARIA DE DIREITO ECONOMICO, 2009, p. 19).

O acordo celebrado entre CADE, Antares e pessoas físicas não contou com

a participação do Ministério Público e deu origem a inúmeros processos

judiciais questionando a legitimidade do procedimento de busca e apreensão. A

organização do cartel funcionou durante treze anos, e o valor aproximado da

condenação das empresas envolvidas foi de R$ 40 milhões.

O segundo caso de cartel descoberto por meio de leniência foi o cartel dos

peróxidos (Processo Administrativo n. 08012.004702/2004-77), julgado pelo

CADE em 2012. O caso tramitou pelo SBDC durante oito anos, enquanto o

cartel condenado teve duração de dez anos. Trata-se de um cartel que envolvia

o mercado de peróxido de hidrogênio (água oxigenada).

Ao contrário do cartel dos vigilantes, o acordo de leniência celebrado no

cartel dos peróxidos teve a assinatura, como intervenientes anuentes, do

Ministério Público do Estado de São Paulo e o Ministério Público Federal.

Ademais, algumas das partes envolvidas foram investigadas pelas autoridades

antitruste da União Europeia e dos Estados Unidos.

Questões que atualmente são mais aceitas pela comunidade jurídica foram

questionadas como preliminares no processo administrativo, tais como: a

interveniência do Ministério Público no acordo; a participação de funcionários

da empresa Degussa do Brasil (beneficiária da leniência) como signatários no

instrumento contratual de leniência; o fato de os beneficiários da leniência

Page 31: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

28

terem sido considerados como testemunhas; e a juntada dos documentos de

leniência aos autos.

No que concerne à juntada dos documentos provenientes do acordo de

leniência aos autos, houve questionamento das empresas denunciadas, que

alegaram que o acesso ao acordo de leniência assinado - confidencial até

mesmo para elas - seria essencial para garantir sua ampla defesa. O relator do

caso, o então Conselheiro Carlos Emannuel Joppert Ragazzo, refutou as

alegações com o argumento de que os termos do acordo de leniência contêm

“previsão de informações burocráticas que disciplinam a relação dos

beneficiários com a administração pública, em respeito às regras dos artigos

35-B e 35-C da Lei nº 8.884/94”. Acrescentou que o acordo de leniência não

foi revelado às empresas condenadas por não ser relevante para a defesa. Em

sua visão, o documento que seria relevante para a formação da defesa das

representadas seria o histórico de infrações juntado aos autos.

Até o presente momento, o cartel das cargas aéreas24 (PA n.

08012.011027/2006-02) representa o julgamento mais recente do CADE de

conduta denunciada por acordo de leniência. Julgado em 2013, tendo como

relator o então Conselheiro Ricardo Ruiz, o cartel era formado por companhias

aéreas que discutiam o sobrepreço a ser aplicado a seus clientes com o auxílio

de uma empresa de consultoria.

Os beneficiários da leniência foram a empresa Deutsche Lufthansa AG,

suas subsidiárias Deutsche Lufthansa Cargo AG e Swiss International Airlines,

e outras cinco pessoas físicas. Foi questionada a legalidade do acordo

celebrado, pois, segundo as empresas denunciadas, os beneficiários da 24 O mesmo cartel foi condenado na Europa e teve – antes da condenação pela Comissão

Europeia - uma ação de reparação de danos proposta na Holanda contra as empresas Air France-KLM e Martinair (GABAN e DOMINGUES, 2012, p. 816).

Page 32: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

29

leniência teriam sido os líderes do cartel, o que era expressamente vedado

pela Lei n. 8.884/94, em vigor quando da instauração da investigação. A

preliminar foi refutada pelo Conselheiro relator, que apontou indícios de que a

conduta teria tido liderança compartilhada entre os participantes do cartel.

O cartel das cargas aéreas ensejou a maior condenação por crime de cartel

no Brasil. Além da condenação penal de um gerente de carga internacional da

empresa Varig a dez anos e três meses de reclusão, o empregado foi

condenado com base no art. 387, IV, do Código de Processo Penal a reparar

os danos causados pelo cartel em 378,9 milhões de reais25. Essa decisão

apresenta aspectos positivos, como a contribuição para o enforcement de

crimes de cartel no Brasil e a preocupação com a reparação civil. Todavia, tem

a característica de ter condenado a indenizar um funcionário da empresa, que

certamente não recebeu a quantia estipulada na indenização como lucro pela

prática anticompetitiva: quem deveria pagar a indenização milionária seria a

empresa que dela beneficiou-se.

I. Debates doutrinários sobre o instituto da leniên cia no Brasil

A possibilidade de haver imunidade penal26 garantida pela lei aos

signatários do acordo é um dos itens de maior debate doutrinário no Brasil.

Como o inquérito penal por crimes contra a ordem econômica, previstos na Lei

n. 8.137/90, é instaurado pelo Ministério Público, que tem suas funções

determinadas pela Constituição Federal nos artigos 127 e seguintes, houve (e

muitas vezes ainda persiste) a discussão sobre se a imunidade penal conferida

pela lei aos beneficiários do acordo de leniência seria de fato legítima.

25 Sentença proferida em 29 de janeiro de 2014 pela juíza Fernanda Afonso de Almeida, da

27ª Vara Criminal de São Paulo. 26 Para uma discussão mais detalhada sobre a interface da leniência com a esfera penal,

ver Martinez (2013, p. 182-243).

Page 33: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

30

Com vistas a dirimir essa polêmica, ou ao menos minimizá-la, o SBDC

engendrou esforços para unir-se ao Ministério Público no combate aos cartéis.

No caso dos acordos de leniência, um representante do Ministério Público

(Estadual, Federal, ou ambos, a depender da abrangência do caso) passou a

ser convidado para assiná-los, comprometendo-se a não denunciar as pessoas

físicas pelos crimes em que a responsabilidade é eximida por conta do acordo

de leniência. Todavia, como os membros do Ministério Público gozam de

completa autonomia entre si, existe a possibilidade de um membro diferente

daquele que concordou com o acordo de leniência, denunciar o beneficiário de

leniência quanto aos crimes contra a ordem econômica relatados no acordo.

Apesar dessa possibilidade, a divergência de opiniões entre os membros da

mesma instituição, em que de plano houve anuência com relação ao acordo

celebrado por outra autoridade pública, reforça a qualidade e a necessidade do

acordo aos olhos do magistrado que for encarregado de analisar a causa.

Outra questão polêmica é a da confissão da conduta e o convencimento do

investigador. Ao procurar a autoridade concorrencial brasileira para delatar uma

prática de cartel, o candidato à leniência recebe um marker. Este constitui um

instrumento utilizado para garantir o lugar na fila obtido pelo candidato. Após o

período de negociações, caso o acordo de leniência não seja celebrado, a

empresa ainda pode ser investigada pela prática de cartel que tentou

denunciar. A proposta de acordo rejeitada “não importará em confissão quanto

à matéria de fato, nem reconhecimento de ilicitude da conduta analisada”, e

permanece confidencial, nos termos do § 10 do artigo 86 da Lei n.

12.529/2012. Entretanto, como as informações sobre a materialidade da

conduta são fornecidas a servidores da Superintendência-Geral, nada impede

Page 34: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

31

que essas pessoas utilizem as informações recebidas para iniciar

investigações, independentemente da celebração do acordo. A empresa

poderá, portanto, vir a ser condenada pela conduta delatada em decorrência da

autodenúncia, do que decorre que os candidatos à leniência devam confiar na

autoridade de concorrência para iniciar com ela uma negociação. (MARTINEZ,

2013, p. 266).

O artigo 86, II, da Lei 12.529/2011, requer a cessação da conduta

investigada, por parte da empresa signatária, até a propositura do acordo. No

entanto, o artigo não é claro quanto ao momento de propositura do acordo de

leniência: resta a dúvida se a cessação da prática deve ocorrer a partir da

denúncia da conduta, ou do fechamento do acordo. (CORDOVIL, CARVALHO,

et al., 2012, p. 191). Nesse ponto, o RICADE, em seu artigo 198, determina

somente poderem ser proponentes de acordo de leniência autores de infração

à ordem econômica aqueles que “cesse[m] sua participação na infração

noticiada ou sob investigação”. Destarte, entende-se que, no momento em que

propuser o acordo, o membro do cartel já deve ter deixado de participar dele.

Esse pressuposto está em consonância com a Súmula n. 145 do STF, em

que se desconsidera o crime detectado por flagrante preparado. (ANDERS,

PAGOTTO e BAGNOLI, 2012, p. 266).

II. Diagnóstico das fragilidades do programa de len iência

brasileiro: risco de vazamento de informações e açõ es

complementares de indenização

À luz dos entendimentos europeus e dos recentes deslizes ocorridos no

Brasil, verificou-se a necessidade de aperfeiçoamento da leniência no Brasil no

tocante à confidencialidade dos documentos, ameaçada pelo risco de

Page 35: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

32

vazamento de informações, e à responsabilidade civil do signatário do acordo

de leniência, que desestimula possíveis arrependidos a delatarem sua conduta

pelo temor das ações complementares de indenização.

O ordenamento jurídico brasileiro não confere proteção exaustiva aos

documentos provenientes de leniência, por apresentar respostas abertas à

interpretação judicial quanto à sua confidencialidade. Isto porque, conforme a

Constituição Federal, todos os atos processuais são públicos (art. 93, IX), salvo

em casos de defesa da intimidade ou interesse público (artigo 5º, LV). Já

segundo o Código de Processo Civil, o Judiciário pode, a pedido, abrir a

confidencialidade dos documentos provenientes da leniência. Outrossim, por

conta do princípio da publicidade dos atos da Administração Pública, refletido

na Lei n. 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação), os documentos referentes

à atividade do CADE são, em regra, de acesso público. Contudo, em virtude da

mesma lei, é possível que seja conferido acesso restrito a determinadas

informações quando sua divulgação “comprometer atividades de inteligência,

bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a

prevenção ou repressão de infrações”27. Dessa maneira, e também por força

da confidencialidade conferida ao acordo de leniência pela Lei n.

12.529/201128, é dever do Estado zelar pela sua preservação29. Infelizmente,

esse zelo tem tido alguns percalços divulgados na mídia.

Foi o caso do suposto cartel do metrô de São Paulo, em que o juiz federal

entendeu que a confidencialidade dos autos da medida cautelar de busca e

apreensão era devida até o momento de sua efetivação. Após o cumprimento

27 Artigo 23, VIII da Lei 12.527/2011. 28 A identidade do signatário e os documentos obtidos por meio do acordo de leniência são

sigilosos até o julgamento do processo em questão, conforme regulamentado pelo CADE. Regimento Interno do CADE, art. 207.

29 Art. 25 da Lei 12.527/2011.

Page 36: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

33

da diligência, foi revogado o sigilo total dos autos, permanecendo confidenciais

somente os documentos provenientes de busca e apreensão, sob o argumento

de que o sigilo seria uma exceção constitucional que não mais se fazia

presente no caso. O juiz considerou que deveria ser aplicada a regra geral da

Constituição, uma vez que a busca e apreensão realizada já havia sido

noticiada no site do CADE e o nome da empresa signatária do acordo de

leniência (Siemens) já teria sido revelado na imprensa30.

Após este incidente, a identidade de outro signatário de leniência (Grupo

Reichhold) foi exposta em publicação do Tribunal Regional Federal da 3ª

Região de 27 de maio de 2014, cinco dias após a realização de busca e

apreensão pelo CADE. Apesar do processo ter sido mantido em segredo de

justiça pelo magistrado31, a revelação parece ter ocorrido por descuido da

Secretaria do Tribunal, que não atentou para a necessidade do sigilo.

Estes fatos revelam o despreparo de alguns servidores da Justiça Federal32

na condução de processos cujo tema abarca o direito da concorrência, o que

prejudica o instituto da leniência, baseado primordialmente no sigilo da

identidade do arrependido.

Além dos dois últimos casos revelados, mais um signatário de leniência

veio à tona no dia 02 de setembro de 2014. Trata-se da empresa Bosch, que

delatou um cartel no mercado de produção de velas de ignição. Nesse caso,

30 Sentença proferida em 09 de agosto de 2013 nos autos do processo n.

0004196.2013.4.03.6114, pelo juiz federal Antônio André Muniz Mascarenhas de Souza, da 3ª Vara Federal em São Bernardo do Campo.

31O deslize foi percebido pela imprensa internacional, que publicou matéria revelando a identidade do leniente em 02 de junho de 2014 (PARR, 2014). Após, o Grupo Reichhold, em 04 de junho de 2014, resolveu tornar pública sua participação por meio de comunicado no site da empresa (disponível em https://www.reichhold.com/news-detail.aspx?newsID=111, acesso em 24 de agosto de 2014).

32 Conforme a tese de Doutorado (em fase de elaboração) de Gilvandro Araújo, o concurso de juiz federal só passou a exigir conhecimentos de direito da concorrência em 2008, pela Resolução n. 41 do Conselho de Justiça Federal.

Page 37: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

34

ainda não foi possível identificar de onde surgiu o vazamento. (O ESTADO DE

S.PAULO, 2014)

A quebra da confidencialidade pode ensejar diversos danos aos signatários

e revela os fatores de inibição a possíveis candidaturas de leniência. Esses

fatores incluem, além do prejuízo à imagem dos delatores, a possibilidade

(apesar de reduzida) de ações de indenização no Brasil, e a precipitação de

ações de reparação nos Estados Unidos e em outros países cujo private

enforcement seja mais ágil e desenvolvido33. Daí a necessidade de que a

importância da confidencialidade dos documentos de leniência no Brasil seja

disseminada.

Os artigos 86 e 87, caput, da lei n. 12.529/2011 dispõem que a colaboração

do beneficiário de leniência resulta em extinção (ou redução, a depender do

prévio conhecimento da prática pelo CADE) da ação punitiva da administração

pública e suspende o prazo prescricional, além de impedir o oferecimento da

denúncia relativa aos crimes relacionados à prática de cartel.

No entanto, não há na lei nenhuma menção à responsabilidade civil do

signatário do acordo de leniência. Tampouco há, na norma que autoriza o

direito de indenização das vítimas de uma conduta anticoncorrencial, qualquer

isenção de responsabilidade. Por esse motivo, depreende-se que o beneficiário

de leniência ainda pode ser alvo de ações de ressarcimento dos danos

causados pelo cartel delatado.

Ademais, conforme o artigo 60 da lei antitruste brasileira, as decisões do

CADE constituem título executivo extrajudicial. Entende-se que os acordos de

leniência e os Termos de Compromisso de Cessação celebrados pelo CADE

33 Os advogados entrevistados neste trabalho (Anexo A) apontaram este fator.

Page 38: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

35

também produzam os mesmos efeitos do título executivo, dispensando a

necessidade, numa ação de reparação de danos, da propositura de ação de

conhecimento para identificação dos pressupostos da responsabilidade civil

(autoria, ato ilícito, dano e nexo de causalidade), o que agilizaria o recebimento

de indenização (GABAN e DOMINGUES, 2012, p. 828).

No Brasil, esse problema esteve latente durante dez anos. Entre 2003 e

2013, os três casos de leniência julgados não ensejaram nenhuma ação de

indenização. Por esse motivo, ainda que no guia da SDE houvesse

expressamente a menção à possibilidade de que a empresa signatária ser alvo

de ações de indenização por conta da conduta que delatou, não tinha havido

qualquer propositura de ação originada de acordo de leniência. (SECRETARIA

DE DIREITO ECONOMICO, 2009, p. 31) É provável que os propositores de

acordo de leniência contabilizassem grande probabilidade de ação desse

gênero no cálculo do custo-benefício em propor tal acordo34.

Um marco nesse sentido foi o escândalo político ocasionado pela quebra do

sigilo do acordo de leniência referente ao cartel do metrô. O suposto

envolvimento de políticos do partido opositor ao da atual Presidência da

República na facilitação o cartel em licitações deu ampla divulgação à quebra

de sigilo da ação cautelar de busca e apreensão efetuada pelo juiz de São

Bernardo do Campo. 35

Como resposta, o governo de São Paulo foi responsável pelo primeiro

processo judicial com pedido de ressarcimento de danos a um beneficiário de

34 Segundo Gaban e Domingues (2012), no acordo de leniência “existe então uma troca: a

empresa fornece as informações e recebe benefícios em compensação”. 35 Processo n. 00041962820134036114, 3ª Vara Federal de São Bernardo do Campo, Juiz

Federal Substituto Antônio André Muniz Mascarenhas de Souza.

Page 39: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

36

leniência que possibilitou a descoberta do cartel em questão no Brasil36. A ação

contra a empresa Siemens não foi aceita, uma vez que somente a empresa foi

incluída no polo passivo, e que um processo que investigue os danos causados

por um cartel deve ser formado por seus outros membros. (CARVALHO e

CREDENDIO, 2013). Esse fato reforça a afirmação da União Europeia referida

no primeiro capítulo deste trabalho de que o beneficiário de imunidade

proveniente de acordo de leniência é o primeiro alvo do contencioso

complementar às condenações por cartel.

Além da ação proposta pelo Estado de São Paulo, o Ministério Público

Estadual, por meio do promotor Marcelo Camargo Milani, também propôs ação

de reparação de danos contra os onze membros do cartel do metrô de São

Paulo. Segundo o Jornal da Globo, em notícia de 26 de maio de 2014, a

extensão do valor do dano estimado pelo promotor é de 2,5 bilhões de reais.

(GLOBO, JORNAL DA., 2014).

Após esses acontecimentos, os advogados de potenciais signatários de

leniência passaram a alertar com mais vigor seus clientes dos maiores riscos

de virem a ser alvo de ações de reparação de danos concorrenciais tanto no

Brasil quanto no exterior, decorrente de divulgação precipitada de acordo de

leniência37.

No próximo capítulo, serão apresentadas soluções possíveis para a

superação das fragilidades encontradas no programa de leniência brasileiro, de

modo a se buscar mecanismos para seu fortalecimento.

36 Mais de vinte ações de indenização por danos concorrenciais já foram propostas no

Brasil. No entanto, até o presente momento, não houvera nenhuma ação de reparação de danos concorrenciais nos casos em que houve leniência. Sobre as ações de responsabilidade civil por danos concorrenciais no Brasil, veja Carvalho, 2011, p. 52-74.

37 Todos os advogados entrevistados nesta pesquisa confirmaram a afirmação.

Page 40: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

37

Capítulo 3. Sugestões de advocacy em direção ao fortalecimento do

programa de leniência brasileiro

I. Emergência de mudanças estruturais

Mesmo antes dos problemas relatados no capítulo anterior, a Consulta

Pública n. 17/2011 lançada pela SDE apresentou propostas de modificação da

lei concorrencial no tocante às ações de indenização por danos concorrenciais.

Uma Consulta Pública lançada pela Secretaria de Direito Econômico em 2011

apresentou propostas de modificação da lei concorrencial de 199438 no tocante

às ações de indenização por danos concorrenciais. A proposta modificava o

artigo 2939 da Lei n. 8.884/1994 para determinar que o ressarcimento dos

danos concorrenciais deveria ser realizado em dobro, salvo pelos signatários

de acordo de leniência. Além disso, o projeto tornava a decisão condenatória

do CADE um título executivo extrajudicial40, que permitiria aos consumidores o

recebimento de indenização por danos concorrenciais sem a necessidade de

propositura de ação judicial.

Entretanto, o projeto de lei não prosperou, e não houve modificações do

sistema de responsabilidade civil concorrencial, nem mesmo com o advento da

38 A Consulta Pública n. 17, de 28 de setembro de 2011, foi assinada pelo Secretário de

Direito Econômico, Vinícius Marques de Carvalho. 39 “Art. 29. Os prejudicados e os legitimados previstos no art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de

setembro, de 1990, poderão propor ação para obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica; o recebimento de indenização por perdas e danos e a execução da decisão prevista no art. 28-A.

§ 1º A propositura de ação judicial não suspenderá o curso de processo administrativo em tramitação junto ao CADE.

§ 2º Os prejudicados terão direito ao ressarcimento em dobro pelos prejuízos sofridos em razão de infrações à ordem econômica, sem prejuízo das eventuais sanções aplicadas na esfera administrativa e penal.

§3º Não se aplica o disposto no §1º aos co-autores de infração à ordem econômica que tenham assinado acordo de leniência cujo cumprimento tenha sido declarado pelo CADE, os quais responderão somente pelos prejuízos causados aos prejudicados”.

40 “Art. 28-A. A decisão de condenação proferida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE obrigará a empresa a indenizar as vítimas pelos prejuízos causados.

Parágrafo único. A decisão prevista no caput terá caráter executivo em relação aos consumidores prejudicados”.

Page 41: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

38

nova lei antitruste brasileira. Persistem as dificuldades enfrentadas no

tratamento do tema, e por esse motivo urge a necessidade de estudo de

soluções que ponham fim às questões debatidas.

Uma dessas questões é a responsabilidade solidária do beneficiário de

leniência, indicada na regra contida no artigo 32 do diploma concorrencial41. A

primeira proposta que pode ser enfrentada como solução legislativa ao tema

está presente na Consulta Pública citada, de inclusão de pagamento de

indenização em dobro em casos de prática anticoncorrencial, salvo nos casos

de leniência. Critique-se que a reparação civil em dobro pode ser considerada

como um pagamento com função punitiva, questão que não é uníssona no

direito brasileiro42.

Outras soluções que poderiam ser adotadas pelo Brasil decorrem da

experiência dos Estados Unidos43 e da União Europeia44: a limitação da

responsabilidade civil do signatário de acordo de leniência.

A transposição do modelo estadunidense, em que os praticantes de um

cartel devem repor em triplo o dano causado, passaria pela discussão

levantada sobre a aplicabilidade dos danos punitivos no Brasil e implicaria em

mudança legislativa que os aceitasse e pusesse fim à discussão. Caso

houvesse esta possibilidade, uma segunda mudança de lei deveria ocorrer

para que o Brasil, à luz do direito estadunidense, reconheça ao signatário de

41 Conforme aponta Martinez (2013, p. 275), a regra geral prevista nos artigos 275 e 942

do Código Civil brasileiro também é aplicada ao direito concorrencial. 42Para um estudo sobre a função punitiva no direito brasileiro, vide Martins-Costa e

Pargendler (2005). Ressalte-se que a proposta de Diretiva europeia (Considerando 12) não admitiu a indenização punitiva.

43 Uma breve explicação da leniência civil nos Estados Unidos foi realizada em nota de rodapé na Introdução deste trabalho. Para maiores detalhes, veja Mahr e Lange (2010).

44 Conforme abordado no Capítulo 2 desta pesquisa, o sistema jurídico em vigor na União Europeia ainda aceita a responsabilidade civil do leniente. Todavia, está em fase final de aprovação um projeto de Diretiva que reduzirá a responsabilidade civil do leniente, como forma de incentivar a leniência nos países europeus.

Page 42: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

39

acordo de leniência a “detriplicação” do pagamento do dano causado. Contudo,

essas mudanças levariam a duas desvantagens verificadas pelo ex-

Conselheiro Mauro Grimberg: a valorização da vítima do cartel em detrimento

de outras vítimas que possam demandar reparação de danos (como a vítima

de um acidente aéreo); e, considerando somente as vítimas do mesmo cartel, a

desvantagem do consumidor lesado pelo beneficiário de acordo de leniência

com relação àquelas vítimas que consumiram de outros membros do cartel.

Outra opção seria o Brasil adotar dispositivo semelhante ao europeu45, em

que o beneficiário de leniência só seria obrigado a reparar o dano que causou a

seus “adquirentes ou fornecedores diretos e indiretos”, e não teria

responsabilidade solidária dos danos causados pelos outros membros do

cartel46.

As críticas da doutrina civilista apontadas por Amaro (2012, p. 412) sobre a

proposta de leniência civil na Europa podem ser replicadas ao Brasil: (i) a

fragilidade normativa dos textos de suporte (sobretudo o Código de Processo

Civil no que tange ao acesso às provas47); (ii) os riscos da instrumentalização

da leniência pelo líder do cartel, que poderia organizá-lo tão somente para

45 Art. 11, 4 – “Os Estados-Membros asseguram que a empresa infratora possa recuperar

uma contribuição de qualquer outra empresa infratora, cujo montante será determinado em função da relativa responsabilidade pelos danos causados pela violação do direito da concorrência. O montante da contribuição de uma empresa a qual foi concedida imunidade de coimas por uma autoridade da concorrência no âmbito de um programa de leniência não excederá o montante dos danos que ela causou aos seus próprios adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos”.

46 No mesmo sentido da exclusão da responsabilidade solidária do leniente, veja Martinez (2013, p. 304). A autora propõe a inclusão de um §4º ao artigo 47 da Lei n. 12.529/2011, nos seguintes termos:

“Os signatários de acordo de leniência, nos termos desta Lei, não são solidariamente responsáveis com os demais coautores pelo ressarcimento das perdas e danos causados pelos demais, a menos que o CADE declare o não cumprimento do acordo por parte dos signatários”. Convergem Carvalho e Lima (2012, p. 246), para quem a questão do afastamento da responsabilidade solidária como recompensa negativa ao leniente é uma das possibilidades que deveriam ser verificadas para efetividade do sistema de reparação de danos no Brasil.

47 Na França, Amaro aponta o artigo 11 do Código de Processo Civil francês, que determina que o juiz pode determinar a uma parte que produza, sob pena de multa, um elemento de prova que a parte contrária não disponha e tenha solicitado.

Page 43: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

40

prejudicar seus concorrentes por meio de sua denúncia, que ficaria impune; (iii)

a eficácia discutível (e diferida) que a correção do mercado fornece ao

consumidor, enquanto a responsabilidade civil é uma garantia de reparação

mais imediata; (iv) os obstáculos constitucionais à modulação da reparação,

que excluiriam a aplicação dos princípios da igualdade perante a lei e de

reparação integral.

Outra adequação que poderia ser feita ao direito nacional seria compelir o

signatário de acordo de leniência a reparar apenas os danos individuais

causados pelo cartel do qual fez parte, e eximí-lo (a exemplo do que ocorre na

esfera administrativa) da reparação dos danos difusos (que já ocorreria por

meio da multa aplicada pelo CADE). Essa sugestão, apontada por Badin48,

representaria uma adequação, ao direito concorrencial brasileiro, da modulação

dos princípios defendida por Amaro no direito francês.

A alteração legislativa também parece a melhor solução para o tratamento

da confidencialidade do acordo de leniência no Brasil, e pode ser realizada das

maneiras tratadas a seguir.

A primeira delas estava presente na Consulta Pública da SDE n. 17/2011,

citada no tópico anterior, e propunha que a divulgação do acordo de leniência

sem justa causa fosse considerada crime, com pena de detenção e multa49.

Esse dispositivo, porém, tem um limitado poder de resolver a fragilidade

apontada, quando se estivesse diante de um pedido em juízo no sentido da

48 Entrevista no Anexo A deste estudo. 49 “Art. 35-D. Divulgar, sem justa causa, informações confidenciais relativas a acordo de

leniência, assim definidas por órgão do CADE. Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.

Page 44: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

41

divulgação dos documentos: é que seria difícil compreender que uma decisão

judicial devidamente fundamentada caracterizasse “justa causa” 50.

Uma segunda opção refere-se a uma alteração legislativa independente das

mudanças referentes à responsabilidade civil do beneficiário de leniência. É

possível que o acesso aos documentos provenientes de acordo de leniência

seja impedido por força de lei, como determinado pelo projeto de Diretiva da

União Europeia51, e que mesmo assim o beneficiário seja obrigado a indenizar

os prejudicados por sua conduta anticompetitiva. Desse modo, a Lei

12.529/2011 deveria conter um dispositivo que retirasse o poder do juiz de

determinar a divulgação de informações relativas a acordo de leniência que

fossem solicitadas por prejudicado ou seu substituto processual em ação de

reparação de danos.

Nesse caso, seria mais justo com o beneficiário de leniência que os

documentos por ele fornecidos não o auto-incriminassem, colocando-o em

igualdade de condições com os demais participantes do cartel. Desse modo, os

documentos fornecidos pelo beneficiário de leniência seriam excluídos do

cálculo do dano por ele causado, o que não acarretaria uma desproporção

entre a sua condenação e a dos demais cartelizados.

50 Martinez (2013, p. 306) concorda com a desnecessidade da criação de um tipo penal

para divulgação de documentos provenientes de leniência. Propõe a imposição de sanção administrativa pelo CADE, no valor entre R$ 5.000,00 (cinco mil reais) e R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) de acordo com a gravidade dos fatos e a situação econômica do infrator.

51 Art. 6º, 6 – “Os Estados-Membros asseguram que, para efeitos de ações de indenização, os tribunais nacionais não podem nunca ordenar a uma parte ou a um terceiro a divulgação das seguintes categorias de informação:

a) as declarações de empresa em matéria de leniência, e b) as propostas de transação”.

Page 45: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

42

No entanto, como aponta o Conselheiro Gilvandro Araújo, o acesso aos

documentos de leniência deve ser realizado no Brasil para “verificar elementos

da leniência para autorizar medidas invasivas, tais como buscas (solicitadas

pelo CADE), interceptações (solicitadas pelo MP)”.

II. Promoção de alterações interpretativas: um pape l da advocacia

da concorrência

A advocacia da concorrência é uma missão, dada pela lei antitruste ao

CADE e à Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), que pode

trazer benefícios consideráveis ao fortalecimento do programa de leniência. É

necessário que haja uma campanha de aproximação do direito concorrencial

das esferas civil e penal, nela contidos tanto os magistrados quanto o Ministério

Público que lidem com o tema.

A maneira mais utilizada no Brasil de conscientização dos juízes é o contato

direto dos procuradores federais junto ao CADE, com o fim de despachar

assuntos relativos a processos específicos em matéria concorrencial,

sobretudo em casos de busca e apreensão. Nesses casos, após a solicitação

da medida cautelar de busca e apreensão, o procurador federal responsável

encarrega-se de, representando a Superintendência-Geral, explicar ao juiz a

necessidade do deferimento da medida nos termos do artigo 13, VI, d, da Lei

12.529/2011. Já foram realizados também eventos para discussão do tema52 e

publicada uma Cartilha da SDE e do CADE (2010) cujo título é “Defesa da

52 Foi realizado nos dias 28 e 29 de agosto de 2014, em São Paulo, o seminário

“Compliance e a Defesa da Concorrência” com o apoio da Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região – Emag e da Associação dos Juízes Federais do Brasil – Ajufe. Em 03 e 04 de junho de 2013, um evento chamado “Defesa da Concorrência e o Poder Judiciário” foi realizado no auditório do Conselho da Justiça Federal. Essa iniciativa poderia ser replicada e aperfeiçoada a exemplo europeu.

Page 46: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

43

Concorrência no Judiciário”53 com o mesmo objetivo de aproximar os juízes do

enfoque jusconcorrencial.

Na União Europeia, existe um grande esforço para treinar os juízes

nacionais para julgamento de casos que envolvam o direito antitruste, como

parte da política de defesa da concorrência. Um programa de formação dos

juízes é patrocinado pelo bloco e em 2014 envolverá diversas atividades,

presenciais e online (UNIÃO EUROPEIA, 2014).

Seguindo o exemplo europeu, o Fundo de Direitos Difusos brasileiro poderia

ser utilizado como parte de um projeto para treinar os juízes que tratam ou

podem vir a tratar do tema em seus processos. A familiaridade com o assunto

aumentaria as chances de que o juiz tome uma decisão acertada em processos

de cunho tão técnico, e possa alertar suas Secretarias para a importância da

confidencialidade. Um problema que poderia advir dessa solução seria o de

saber quais juízes deveriam ser treinados, uma vez que a competência para

julgamento das questões concorrenciais enfrenta discussões ainda não

superadas54.

Uma outra maneira de encarar o problema seria a sugestão aos juízes de

uma nova interpretação do Código Civil no que diz respeito à indenização a ser

paga pelo signatário de acordo de leniência.

O artigo 944, do Código Civil de 2002, determina que a indenização seja

medida pela extensão do dano. Disso decorreria que, no caso do beneficiário

53 Para uma análise aprofundada da interface entre Direito da Concorrência e o Judiciário,

ver “O Direito da Concorrência e o Poder Judiciário”, de Amanda Flávio de Oliveira (2002). 54 Decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 627709, de 20 de agosto de 2014, definiu

que cabe ao autor optar pelo foro em que ajuizará demanda contra o CADE. Desse modo, o julgamento de casos em que a autarquia está no polo passivo pode ser realizada em qualquer comarca brasileira. Este aspecto fragiliza ainda mais o julgamento de questões concorrenciais, vez que dificulta a especialização dos juízes de todo país. Veja mais discussões sobre a competência de julgamento das questões concorrenciais em Cravo (2010, p. 604) e Carvalho, L. (2011, p. 26-27).

Page 47: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

44

de leniência, a indenização deveria ser equivalente ao dano causado por ele à

vítima do cartel do qual fez parte. Entretanto, conforme preceitua o parágrafo

único do mesmo artigo, o juiz tem discricionariedade para reduzir, de maneira

equitativa, a indenização, caso haja “excessiva desproporção entre a gravidade

da culpa e o dano”. Nesse passo, o próprio juiz que analisar o processo de

reparação de danos poderia reduzir o valor da indenização a ser paga pelo

beneficiário de leniência ao considerar que a gravidade de sua culpa – pelo fato

de ter sido o delator da prática - seria inferior à dos demais membros do cartel.

Essa abordagem dependeria do livre convencimento motivado de cada juiz e,

por esse motivo, pode ser de difícil aplicação prática em grande escala. Para

tanto, o trabalho de conscientização a ser feito com os juízes deveria ser

bastante extenso e respaldado por pareceres técnicos. Some-se a isto a

ressalva de que mesmo que o signatário de acordo de leniência tenha

confessado a prática anticoncorrencial, a reprovabilidade da conduta

continuaria existindo, bem como os danos dela decorrentes. Este argumento

poderia convencer alguns juízes da impossibilidade de diminuição da

indenização, mesmo que estejam conscientes dos benefícios do programa de

leniência. Por fim, deve ser acrescido à discussão da aplicação do parágrafo

único do artigo 944 o fato de que a responsabilidade civil concorrencial é

considerada pela maioria dos especialistas uma responsabilidade civil

objetiva.55 Por esse motivo, não poderia ser aplicado o raciocínio acima, já que

a culpa não poderia ser discutida no processo de reparação de danos.

55 GÂNDARA, L. Responsabilidade civil concorrencial: elementos de responsabilização civil

e análise crítica dos problemas enfrentados pelos tribunais brasileiros. Revista do IBRAC, São Paulo, n. 21, p. 331-350, jan-jun 2012.

Page 48: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

45

O envolvimento do Ministério Público56 nos casos em que haja leniência

pode ocorrer nos seguintes momentos: (i) na assinatura do acordo, que o

membro do Ministério Público pode assinar como interveniente anuente57; (ii)

na propositura de ação criminal contra os acusados, excluídos os beneficiários

da leniência; (iii) na promoção de ação civil pública contra os condenados pelo

cartel para obtenção de reparação dos danos por ela ocasionados.

No último caso, segundo a legislação em vigor, também o beneficiário de

acordo de leniência deverá indenizar os prejudicados por sua prática

anticoncorrencial. O papel do Ministério Público, legitimado para a propositura

de ação civil pública58, seria de demandar judicialmente a reparação dos danos

que o signatário de leniência causou à população de determinada região

brasileira. Porém, conforme abordado nesta pesquisa, este é um fator

desestimulante para possíveis candidatos a celebrar um acordo de leniência.

Sobretudo por conta do acesso que algum membro Ministério Público terá das

provas relacionadas ao cartel, fica mais simples para o órgão a instrução da

ação civil pública.

Uma solução possível para a questão seria, como aponta Milagres, ele

próprio um membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, a

celebração de Termos de Ajustamento de Conduta entre o Ministério Público e

os signatários de acordo de leniência. É possível que se estabeleçam estes

instrumentos de forma o signatário de acordo de leniência se comprometa a

56 Para a relação do Ministério Público e a Defesa da Concorrência, veja MILAGRES

(2005). Para a aplicação privada do direito concorrencial na defesa dos interesses dos consumidores em juízo, veja CAIXETA (2013). Em geral, a assinatura dos acordos de leniência tem a participação de um membro do Ministério Público Federal e do Ministério Público do estado em que a conduta ocorreu.

57 Quatro dos seis acordos de leniência públicos tiveram certamente a intervenção do MP: peróxidos, cargas aéreas, metrô de SP e velas de ignição. Presume-se que também tenha havido no cartel das resinas, pela tendência observada nos acordos mais recentes.

58 A competência do Ministério Público para a propositura de ação civil pública está prevista no art. 5º na Lei 7.347/1985.

Page 49: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

46

colaborar com o fornecimento de provas para mensuração da extensão do

dano, e em troca pague um valor inferior ao dano concorrencial ocasionado por

sua participação na conduta.

Em verdade, as instâncias administrativa, criminal e civil são

relativamente independentes, podendo, por exemplo, a celebração de

acordo de leniência, nos termos do art. 35-B da Lei n. 8.884/94,

impedir o oferecimento da denúncia-crime, mas tal ato negocial não

apresenta o efeito de prejudicialidade absoluta de outras possíveis

medidas ou respostas jurídicas. O acordo de leniência é um

instrumento que, mediante determinadas condições legais, atribui

benefícios ao agente econômico que confessa sua participação no

ilícito concorrencial e coopera, plena e permanentemente, com as

investigações.

A propósito, uma prática ilícita de cartel pode ser objeto do referido

acordo, impedindo a promoção, quanto aos infratores beneficiários,

da persecução penal. Contudo, ainda que o CADE não aplique

qualquer penalidade administrativa, cumpre ao Ministério Público a

promoção de termo de ajustamento da conduta ou mesmo de ação

civil pública, em razão da responsabilidade civil dos danos causados

a consumidores, pela prática dessa restrição horizontal do mercado,

e, para tanto, impende o estudo da análise econômica, para melhor

fundamentar sua pretensão e comprovação da materialidade do

indigitado ilícito e seu alcance. (MILAGRES, 2005, p. 201).

Importante destacar a dificuldade de quantificação do dano concorrencial, o

que poderia ser um obstáculo à assinatura deste tipo de termo, uma vez que a

mensuração dependeria de um cálculo complexo a ser realizado pelo Ministério

Público, e que poderia ter a legitimidade contestada.

Page 50: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

47

CONCLUSÃO

Este trabalho verificou quais são os novos mecanismos de proteção à

leniência na Europa e sua possível adequação ao ordenamento jurídico

brasileiro, que se concluiu pertinente.

Com relação à responsabilidade civil do signatário de acordo de leniência, o

novo modelo europeu nos parece adequado, com o fim da responsabilidade

solidária do delator. Ademais, a mudança legislativa deveria ser acrescida de

uma política de incentivo à leniência que teria duas vertentes. A primeira,

encabeçada pelo Ministério Público, visaria mitigar pagamento de indenização

civil pelo signatário de leniência ao Fundo de Direitos Difusos (por meio de

Termo de Ajustamento de Conduta, com anuência da Secretaria Nacional do

Consumidor ou do Procon da região que sofreu com a prática

anticoncorrencial). A segunda vertente, liderada pelo Ministério da Justiça, com

o auxílio do CADE e da SEAE, seria de advocacia da concorrência, com a

promoção de cursos de atualização sobre o direito concorrencial e a leniência

para juízes federais e dos estados que possuem demandas relativas à matéria.

Sobre a confidencialidade, uma alteração legislativa que impeça o acesso aos

documentos de leniência no âmbito dos processos de reparação civil deveria

ser adotada pelo Brasil. Somada à conscientização judicial (que poderia ser

incentivada por meio dos cursos de atualização em antitruste para juízes do

Ministério da Justiça), essa iniciativa poderia acabar com os fatores de inibição

à leniência.

Conclui-se que os mecanismos atuais de proteção à leniência no Brasil

estão desatualizados, e que o país precisa dedicar-se a evoluí-los a exemplo

Page 51: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

48

do recente engajamento europeu em um novo projeto de Diretiva apresentado

nesta pesquisa.

Page 52: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

49

ANEXO A - ENTREVISTA COM INTEGRANTES E EX-INTEGRANT ES DO

CADE

• Responsabilidade civil do beneficiário de leniência

1) Você considera a reparação civil de danos concorrenciais no Brasil

eficaz tal como prevista na lei? Acredita que a lei deve ser alterada de alguma

forma para se atingir maior eficácia no ponto?

2) Em sua opinião, o fato de o signatário de leniência, nos termos da

legislação, poder ser alvo de ações de reparação civil, é um desincentivo à

leniência no Brasil?

3) A Europa tem um projeto de Diretiva59 que diminui a indenização a ser

paga pelo beneficiário de leniência ao dano causado por ele. Em sua opinião,

essa seria uma boa alternativa para o Brasil?

4) Quais outras formas de incentivo à leniência, em sua opinião, deveriam

ser promovidas no Brasil?

• Confidencialidade dos documentos provenientes de le niência

5) Qual seria a melhor forma de tratamento da confidencialidade dos

documentos provenientes de leniência no Brasil?

6) Em sua opinião, a confidencialidade dos documentos fornecidos em

caso de leniência no Brasil alcança a esfera civil, no caso de uma ação de

indenização?

59 Art. 11, 4 – “Os Estados-Membros asseguram que a empresa infratora possa recuperar

uma contribuição de qualquer outra empresa infratora, cujo montante será determinado em função da relativa responsabilidade pelos danos causados pela violação do direito da concorrência. O montante da contribuição de uma empresa a qual foi concedida imunidade de coimas por uma autoridade da concorrência no âmbito de um programa de leniência não excederá o montante dos danos que ela causou aos seus próprios adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos”.

Page 53: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

50

7) No projeto de Diretiva europeu mencionado acima, também está prevista

a possibilidade de restrição do acesso aos documentos provenientes de

leniência60, mesmo ao juiz. O senhor considera que essa iniciativa poderia ser

aplicada no país?

A.1. ARTHUR BADIN (Ex-Presidente e ex-Procurador Ge ral do CADE.)

1) Não. A reparação civil dos danos concorrenciais no Brasil ainda é um

tema mal resolvido tanto na doutrina quanto na prática judiciária. Além da falta

de precedentes judiciais e da atuação errática dos Ministérios Públicos (e

omissão dos órgãos de defesa dos consumidores e indivíduos), diversas

questões estão em aberto.

2) Obviamente que sim, porém a lei não poderia dispor de forma diferente,

sob pena de prejudicar terceiros que não integram a relação jurídica do acordo

de leniência. O que a lei poderia fazer é deixar mais claro que a empresa não

pode sofrer ação de reparação por danos difusos após ser condenada pelo

CADE, mas apenas por danos individuais homogêneos. Entendo que a multa

do CADE, além de sancionatória, tem natureza reparatória, tanto que é

recolhida ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos. Por isso, não pode a

empresa ser obrigada a dois recolhimentos ao FDD.

3) Pelo texto transcrito no rodapé, não me entendi que o projeto “diminui a

indenização”.

4) O principal empecilho ao programa não são as reparações civis, mas

sim a persecução penal. A nova lei, ao agravar a sanção dos crimes do art 4 da

60 Art. 6º, 6 – “Os Estados-Membros asseguram que, para efeitos de ações de indenização,

os tribunais nacionais não podem nunca ordenar a uma parte ou a um terceiro a divulgação das seguintes categorias de informação:

a) as declarações de empresa em matéria de leniência, e b) as propostas de transação”.

Page 54: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

51

Lei 8147 (“ou” multa para “e” multa) impediu a suspensão condicional do

processo penal, paralelamente ao acordo de leniência.

5) Parece-me óbvio que todos os documentos e informações trazidos pelo

beneficiário do acordo de leniência e que venham a ser usados como prova

contra os acusados devem ser submetidos ao contraditório. Os demais, podem

ser preservados, porém com rígido controle do Ministério Público e do Tribunal

Administrativo.

6) Somente as informações e provas que forem efetivamente usadas

contra o acusado e que por isso, forem submetidas ao contraditório e ampla

defesa podem ser empresadas para o processo penal/civil.

7) Em princípio, não.

A.2. FERNANDO ANTÔNIO ALVES DE OLIVEIRA JÚNIOR (Pro curador

da República. Ex-Procurador Federal junto ao CADE e Coordenador da

Procuradoria do CADE.)

1) Não vejo “a falta de eficácia” da reparação civil de danos decorrentes de

infrações concorrenciais no Brasil como um problema legal. Acredito que a Lei

12.529/2012, assim como a Lei da Ação Civil Pública preveem mecanismos

interessantes para essa reparação. O problema, ao meu ver, está (i) na

dificuldade em mensurar o dano (decorrente da própria natureza difusa do

ilícito) e na (ii) inexistência da cultura da reparação no Brasil, fruto

provavelmente das dificuldades institucionais do Poder Judiciário (excesso de

processos, de recursos etc).

2) Não acho. O importante é que o leniente seja eximido de receber

quaisquer medidas de natureza punitiva (sanções penais ou administrativas).

Entretanto, as medidas reparatórias, embora também legitimadas em um viés

Page 55: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

52

punitivo, por visarem justamente à reparação de um dano causado a outrem,

não deveriam ser totalmente afastadas. Talvez pudesse ser criado algum

mecanismo de descontos, em razão da facilidade na reparação decorrente da

própria leniência.

3) Sim. Vide resposta anterior.

4) Ao meu ver, é extremamente importante dar mais segurança ao leniente

de que não será perseguido na esfera penal. A legislação não prevê, para o

acordo de leniência, a participação obrigatória do Ministério Público (embora,

na prática, sempre tenha sido firmado com a sua participação), o que pode

gerar dúvidas para o leniente se, efetivamente, haverá a isenção penal. Atentar

que a Constituição atribuiu ao Ministério Público a exclusividade da ação penal

e. em todo ordenamento jurídico brasileiro, o único instituto que prevê a

isenção penal a partir de uma medida administrativa, sem participação do

Ministério Público, é o acordo de leniência da Lei 12.529/2012. Alguns falam

até, neste ponto, que haveria inconstitucionalidade. Assim, seria um incentivo à

leniência uma reforma legislativa que não apenas previsse a participação do

Ministério Público (segurança jurídica), mas que solucionasse de maneira mais

objetiva o dilema da competência (se federal ou estadual) para os crimes

contra a ordem econômica.

5) Apenas deveria ser dada confidencialidade quando presentes os

requisitos corriqueiros já existentes no ordenamento jurídico (confidencialidade

por sigilo empresarial, em razão da intimidade etc.). Isso deveria ser exceção.

Além disso, essa confidencialidade não poderia ser oposta contra os

investigados, em razão do contraditório/ampla defesa. Ou seja, investigado

apenas poderia ser condenado com espeque em provas que possa ter amplo

Page 56: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

53

acesso, seja imediatamente, seja de maneira diferida. Para terceiros, apenas

deveria ser deferido o sigilo nas hipóteses legais, devendo as provas serem

compartilhadas para fins penais/cíveis, obedecido o grau de sigilo no órgão

responsável para a implementação da medida penal ou cível. Ou seja, em

regra, as provas deveriam ser compartilhadas entre Ministério

Público/Judiciário/outros órgãos governamentais para fins diversos.

6) Se a propositura da ação se der por um órgão/ente estatal, não. Se for

por um ente privado, apenas se os fundamentos já previstos no ordenamento

jurídico (exemplo, sigilo empresarial) puderem ser aplicados ao autor. Ainda

assim, deveria ser possível uma ponderação. A regra é que o material

probatório fornecido seja público para ampla condenação dos envolvidos, salvo

em casos excepcionais.

7) Não. O sistema ideal deveria dar total incentivo ao leniente, no sentido

de que este irá se isentar de penalidades administrativas ou penais caso

forneça provas. Entretanto, o material entregue deveria ser utilizado da maneira

mais ampla possível, para punir os demais envolvidos em todas as esferas.

A.3. GILVANDRO VASCONCELOS COELHO DE ARAÚJO (Consel heiro

do CADE. Ex-Procurador Geral junto ao CADE.)

1) A reparação civil no Brasil, seja por aspectos culturais ou mesmo pelas

dificuldades do nosso sistema judicial, não tem efetividade. São poucos os

casos em que o Ministério Público ou terceiro requereram a reparação, e

desconheço qualquer resultado efetivo de reparação. A lei já cumpre o seu

papel de prever a reparação. Agora, é preciso que o prejudicado ou seu

substituto legal sintam-se estimulados a buscar a reparação. Acho que é

necessário: i) melhorar a divulgação da possibilidade de persecução; ii)

Page 57: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

54

melhorar os sistemas administrativo e judicial quanto ao prazo de identificação

do ilícito recebimento dos valores da indenização).

2) Pode ser um desincentivo, mas temos o fato concreto de haver incremento

do número de leniência nos últimos anos. Isso significa que se os problemas

levantados na resposta 1 são um problema para a reparação, servem de

incentivo para o leniente celebrar o acordo sem se preocupar com uma

possível ação de reparação.

3) Sem dúvidas aumentaria o incentivo para celebrar a leniência.

4) Tenho refletido muito sobre a descriminalização das condutas

anticoncorrenciais. Ainda não tenho uma posição definitiva. Mas o fato é que o

maior impacto nos incentivos da leniência está na relação criminal que a

infração administrativa tem. Ter que interagir com diversos órgãos (CADE e

MP). E talvez o grande trade off no Brasil seja fazer uma ponderação sobre a

necessidade ou não de haver uma tripla sanção (penal, civil e administrativa),

ou apenas (civil e administrativa), como existe na Europa.

5) Acho que um encaminhamento semelhante ao dado pela Europa me parece

o mais acertado. A confidencialidade outorgada pela Administração ao histórico

da conduta e os seus documentos deve ser rigorosamente preservada. Os

documentos provenientes da busca ou outros documentos percebidos ao longo

do processo podem ser apresentados para terceiros, mas somente se

autorizados pelo Judiciário, e diante de um escrutínio firme que observe: i) a

necessidade de publicização (há outros meios, p. ex?); ii) quais partes são

essenciais (só fornecer trecho ou documentos indispensáveis).

6) Resposta abarcada pela anterior.

Page 58: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

55

7) Acho difícil no Brasil, porque o magistrado precisaria verificar elementos da

leniência para autorizar medidas invasivas, tais como buscas (solicitadas pelo

CADE), interceptações (solicitadas pelo MP). Acho que um apelo cultural de

demonstração da importância de se manter o sigilo (advocacy com o Judiciário)

para auxiliar o instituto da leniência pode ser mais efetivo. O que poderia

funcionar é dizer que só o Juiz pode ter acesso... E mais ninguém… Mas ainda

acho que a advocacy pode ter mais efeitos.

A.4. VINÍCIUS MARQUES DE CARVALHO (Presidente e ex- Conselheiro

do CADE. Ex-Secretário de Direito Econômico.)

1) Depende de qual tipo de reparação civil está sendo tratada. No Brasil, temos

dois tipos de ação de reparação civil: ação civil pública e ações de reparação

em sentido estrito, movida por pessoas físicas ou jurídicas diretamente lesadas

pelo cartel. Quanto à ACP, existem dificuldades relacionadas ao rito

processual. Já no caso das ações em sentido estrito, nas situações em que há

grandes consumidores envolvidos (como no cartel dos gases, em que há uma

ação da associação dos hospitais) não vejo muitos problemas, além daqueles

típicos da nossa estrutura judiciária. Ressalto a questão da estimação dos

danos como algo relevante e que deve ser aprimorada. Há também as ações

do Estado em casos de cartel em licitação: nelas, é menos difícil quantificar os

danos, pois o Estado possui técnicos qualificados que avaliam o preço e

podem estimar o valor do dano.

2) É difícil responder a esta questão. Em tese, olhando questões teóricas (de

teoria do incentivo), seria. Um advogado pode ponderar isso com a empresa

que apresentar a ele uma possível leniência. Porém, existem algumas

ressalvas: a primeira é que, na prática, não é possível saber em quantas

Page 59: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

56

possíveis leniências houve desistência por esse motivo; a segunda é que se

isso é indiferente para a empresa, ou seja, ou o risco dessas ações seja visto

como baixo, talvez o incentivo hoje seja inverso: a ausência desse tipo de ação

na prática pode estar incentivando a existência de acordos. Isso é algo que

deve ser averiguado numa pesquisa empírica e não em tese. Por fim, há o fato

de que a decisão sobre a existência do cartel é, no primeiro momento,

administrativa, e provavelmente ensejará uma ação judicial que visa anular a

decisão do CADE. Com isso, pode haver um conflito judicial entre a ação de

reparação de danos e aquela de anulação. Existirá a dúvida sobre se o juiz

competente para a ação de reparação de danos poderá fazer juízo de

conhecimento sobre a existência do cartel ou não.

Insisto, diante dessas reflexões, acredito que não seja possível responder a

esta questão de maneira teórica, e sim prática. A pergunta poderia ser

formulada de maneira inversa: a pequena cultura de reparação civil no Brasil

pode ser, ou tem sido, um incentivo à celebração de acordos de leniência?

3) Depende. Em tese, sim, para favorecer o signatário da leniência. Por outro

lado, se a lei prever que o leniente terá que ajudar a estimar e reparar o dano

no próprio acordo de leniência, isso pode ser um desincentivo, pois na ação de

reparação de danos ainda existiria para ele, ao menos em tese, a possibilidade

de questionar a amplitude do dano. Se o problema da efetividade do processo

de reparação de danos não for resolvido, qualquer incentivo pode se tornar

contrário. Se a decisão do CADE fosse final (o que é inconstitucional por conta

do princípio da inafastabilidade da revisão judicial) e desse 30 dias, por

exemplo, para o leniente pagar o dano que causou, e os outros membros do

cartel devessem pagar o dobro do dano no mesmo momento, aí sim poderia

Page 60: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

57

ser um incentivo. Para sanar o problema da constitucionalidade, poderia

também existir a possibilidade legislativa de o leniente reparar o dano causado

enquanto os outros membros do cartel o reparassem em dobro, após decisão

transitada em julgado do processo judicial.

Outra discussão que pode surgir é sobre quem seria o consumidor legitimado

para receber a reparação dos danos. Também é possível discutir o seguinte: a

reparação de danos é privada. A leniência faz parte de um enforcement

público. Para mim, a legislação e política antitruste deve se priorizar o

enforcement público ao invés do privado, se houver uma contradição entre

ambos.

4) A leniência pode ter seu maior incentivo com o desenvolvimento de

instrumentos de detecção de cartéis de ofício. Dessa forma, o risco de

detecção dos cartéis aumenta e com isso as empresas percebem a

necessidade de correr para fazer o acordo de leniência. Talvez se hoje o CADE

tivesse mais funcionários, mais recursos administrativos, condições de fazer

um número maior de buscas e apreensões por exemplo, haveria maiores

incentivos para a leniência.

Há também questões paralelas que podem acarretar um incremento à

leniência: decisão sobre qual é o Ministério Público competente para a

persecução penal em caso de cartéis; aperfeiçoar a garantia da

confidencialidade dos documentos; maior comprometimento do Judiciário no

tratamento dos documentos relacionados à leniência.

5) Não houve resposta.

6) Não houve resposta.

7) Seria adequado que isso fosse feito.

Page 61: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

58

A.5. PAULO FURQUIM (Ex-Conselheiro do CADE. Economi sta.)

1) Praticamente não há casos de reparação civil de danos concorrenciais

no Brasil, embora haja alguns importantes processos em andamento,

referentes aos cartéis de gases industriais e de laranja, entre outros. Portanto,

embora a reparação civil não tenha representado qualquer papel no Brasil, há

perspectivas positivas de que venha a ser uma peça importante no

enforcement da defesa da concorrência no Brasil. Esse papel nunca será

equivalente ao observado nos EUA, cuja indenização é fixada em triplo do valor

do dano, com o intuito de garantir incentivos fortes para os plaintiffs

reclamarem seus direitos.

2) Sim. Embora a reparação civil ainda não tenha se consolidado no Brasil,

há uma incerteza jurídica sobre quais serão as consequências de um processo

de cartel em início no SBDC, que, pode, ao final, resultar ou não em

reparações substanciais. O problema, nesse momento, é predominantemente

de incerteza jurídica.

3) Creio que sim. Mas é um problema complexo do ponto de vista concreto.

Isso porque não se trata de um direto difuso. Aquele que sofre o dano é

claramente identificado e deve ter direito a ressarcimento. A imunidade de

indenização para o beneficiário da leniência tiraria o direito de indenização dos

clientes desta (lesados pelo cartel), que podem ser diferentes dos clientes dos

demais participantes do cartel. Poderia haver uma situação indesejável, de

alguns lesados serem ressarcidos e outros não (clientes do beneficiário da

leniência).Nos EUA, há um desconto de 1/3 na indenização, que passa a ser

em dobro, em nome da celeridade e certeza do final do processo. Essa é uma

Page 62: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

59

proporção que me parece apropriada. Mas certamente não indicaria a plena

imunidade na reparação civil.

4) Os dois maiores incentivos para a leniência é o cumprimento do contrato

de leniência e, sobretudo, a punição severa aos demais acusados. Em termos

de benefícios de imunidade, os incentivos já são imensos.

* Ponto sem dúvida importante. O beneficiário da leniência deve ser preservado

de exposição pública e prejuízos comerciais que possam decorrer da

investigação. É isto o que chamei, lato sensu, de cumprimento do contrato de

leniência.

6) Esta questão já foge um pouco de minha expertise. Arrisco-me dizendo que

deve-se equilibrar dois princípios, a confidencialidade dos documentos e o

direito a ampla defesa e contraditório dos demais investigados. Some-se um

terceiro princípio, caro ao Cade, a transparência a accountability pela

sociedade. São princípios que podem ser conciliados com um bom desenho

institucional. A fase de investigação deve ser conduzida em pleno sigilo; a fase

de defesa (PA instaurado) deve-se dar plena vista aos representados dos

documentos que lhe dizem respeito. É fácil dizer, mas essa é uma tarefa

bastante complexa. Finalmente, com a decisão, deve ficar absolutamente claro

ao público em geral o motivo da condenação, o papel de cada um dos

participantes do cartel, inclusive do beneficiário da leniência, e a pena aplicada.

Deve-se evitar a divulgação de qualquer informação que não seja necessária

para fundamentar essas decisões (motivo, participação e pena).

7) Considero a separação dos processos administrativo, criminal e de

reparação civil em diferentes esferas um defeito do desenho institucional da

Page 63: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

60

política de defesa da concorrência no Brasil. Isso gera diversos tipos de

problema, como empréstimo de prova e confidencialidade de documentos, ao

menos potencialmente. Entendo, como princípio, que a confidencialidade dos

documentos deva ser estendida às ações de reparação civil. Caso contrário, a

confidencialidade em esfera administrativa seria inócua. Mas, dada a

separação de processos, isso gera efeitos práticos que podem ser de difícil

solução.

8) Tenho dúvidas sobre a pertinência da medida. Se a leniência for estendida à

reparação civil, o juiz tem de ter acesso aos documentos. Não parece fazer

sentido um juiz ser privado da informação que fundamenta o cartel e, ao

mesmo tempo, conceder imunidade a um dos representados, apenas porque a

autoridade administrativa decidiu. Situação equivalente aplica-se à revisão

judicial de decisões administrativas. Não me parece concebível privar o juiz de

qualquer documento do processo. Imagine que um procurador do MP ou um

plaintiff considere que o Cade foi excessivamente leniente com os

representados e conteste a decisão do órgão na justiça. Seria, no meu

modesto entendimento de economista, inconcebível o juiz decidir sem acesso à

totalidade dos documentos.

Page 64: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

61

A.6. RICARDO MACHADO RUIZ (Ex-Conselheiro do CADE. Economista.)

1) Não visitei extensivamente o assunto, mas durante os anos que estive

no CADE não fui informado de nenhum movimento consistente na reparação

de danos concorrenciais de qualquer natureza. Tenho somente notícias

dispersas sobre tentativas de reparação relacionadas ao caso do cartel de

gases industriais.

A lei já indica esta potencial reparação, mas é necessário difundir na sociedade

a visão da conduta anticoncorrencial como um ilícito. Em geral, as condutas

anticoncorrenciais são vistas como “estilos de negócios” e não como ilícitos, o

que desincentiva a busca de reparações.

Acredito que é necessário informar a sociedade em geral sobre esta

possibilidade de reparação de danos de correntes de condutas

anticoncorrenciais. O Ministério Público poderia ser um importante ator nesta

tarefa.

No que se refere ao leniente, a situação é ainda mais dramática, pois a figura

do leniente é ainda mais distante do conhecimento dos envolvidos

indiretamente no caso, ou seja, não estão no polo passivo e sofreram os efeitos

da conduta.

2) Concordo com a tese. A possibilidade de o leniente ser alvo de ações de

reparação civil é um desincentivo à leniência.

3) Sim. A proposta poderia ser incorporada ao Brasil.

4) Manter a confidencialidade dos envolvidos, dos documentos e dos

depoimentos. Entendo ser este um aspecto básico. Outro aspecto que corre

em paralelo ao instituto da leniência e que considero potencialmente benéfico

seria a conexão da leniência com acordos (TCCs). A nova resolução do CADE

Page 65: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

62

sobre TCC foi um passo importante nesta direção, mas esta possibilidade é

muito pouco divulgada e ainda não foi explorada. Além do mais, a

criminizalização das condutas colusivas desincentiva esses acordos, o que faz

com que a leniência fique “isolada” no processo.

5) Acredito que a forma ideal seria ter as decisões sobre o processo

concentrado em um único centro jurídico decisório capaz de definir como e

quais documentos seriam divulgados. A dispersão de documentos em várias

instituições ou instâncias decisórias coloca em risco a confidencialidade.

6) Sem comentários

7) No caso específico da proposta citada, tendo a concordar com a

concentração das informações em um único centro jurídico decisório. A

dispersão de decisões e de informação aumentaria significativamente a

possibilidade de toda sorte de conflitos e de uma variedade quase inimaginável

de critérios de divulgação que poderiam colocar em risco todo o processo.

A.7. CÉSAR MATTOS (Ex-Conselheiro do CADE. Economis ta.)

1) Não tive nenhuma experiência concreta sobre reparação civil. Também

não conheço como funciona a legislação neste aspecto.

2) Não tenho conhecimento jurídico suficiente para saber o alcance do art.

87 da Lei 12.529, de 2011 sobre isto. Não havendo tal proteção, pode

atrapalhar a leniência com certeza.

3) Sim. Afinal, não interessa de onde vem a punição. O potencial leniente

avaliará o valor esperado de sua punição para avaliar se opta ou não pela

leniência.

4) Não sei.

Page 66: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

63

5) Associado com a possibilidade de reparações civis de lenientes, a não

confidencialidade seria um golpe de morte no instituto da leniência no Brasil.

Assim, o escopo da confidencialidade deve ser realmente grande na leniência.

A extensão ideal da confidencialidade depende do caso a caso.

6) Não faço ideia.

7) O acesso do juiz é mais uma janela aberta para vazar informações. Ao

mesmo tempo é importante check and balance da ação da autoridade.

Ponderando os dois acredito que o segundo é relativamente mais importante e

NÃO deve haver restrição de acesso para todos os juízes (a depender do caso

em que está).

A.8. MAURO GRIMBERG (Ex-Conselheiro do CADE. Advoga do.)

1. A reparação civil por danos concorrenciais no Brasil reconhecidamente não é

eficaz, como não é eficaz qualquer tipo de reparação de dano no Brasil. A lei

brasileira, como todas as leis do mundo ocidental, prevê a reparação de danos,

sejam eles decorrentes de acidente aéreo, imperícia médica, formulação errada

de medicamentos, prejuízos por cartéis, etc. Todos cabem na vala comum e

não se pode dizer que um é mais grave do que o outro (por exemplo: o

consumidor que pagou mais pela gasolina não pode ser priorizado em relação

à viúva que perdeu o marido em um acidente aéreo). As indenizações passam

pelo Poder Judiciário e só nele podem ser resolvidas. Assim, a única solução é

tornar o Poder Judiciário mais eficiente e rápido.

2. O fato do leniente também poder ser alvo de indenização pode ser um

desincentivo para a leniência porque esta inclui necessariamente a confissão.

Por isso os lenientes devem ter provas sólidas para não serem os únicos a

sofrer ações de indenização.

Page 67: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

64

3. A possibilidade de diminuir a indenização paga pelo leniente (que existe

também nos Estados Unidos) é fundamentalmente injusta para com os

credores. O que comprou do leniente terá menos do credor que comprou do

outro participante do mesmo cartel. A injustiça é ainda mais flagrante quando o

cartel inclui a alocação de mercados. Essa diminuição só pode funcionar sem

injustiça se parte da multa devida ao CADE for destinada a complementar a

indenizações ao credor do leniente.

4. Os incentivos à leniência já existem e são bem conhecidos. Um único

incentivo deve ser acrescentado: a atuação eficiente e rápida dos órgãos de

defesa da concorrência.

5. A confidencialidade no Brasil é boa; apenas precisa de mais treinamento

para evitar acidentes de percurso.

6. Nenhuma confidencialidade no Brasil está a salvo de ordem judicial; esta,

contudo, pode ser objeto de pedido de reconsideração e recurso.

7. Qualquer restrição de acesso a dados confidenciais só pode ocorrer por lei

mas assim mesmo as ordens judiciais (que admitem pedido de reconsideração

e recurso) devem ser cumpridas.

A.9. MARCELO CALLIARI (Ex-Conselheiro do CADE. Advo gado.)

1) A premissa básica, por mais que representemos lenientes, é que quem

sofreu um dano tem direito a ser reparado. A outra consideração que o CADE

tem acenado é que a reparação civil é uma vertente de todo um mecanismo de

dissuasão, por aumentar o custo de violar-se a lei.

A lei relacionada à reparação de danos no Brasil hoje não é eficaz, mas em

parte ocorre por desconhecimento. Esse quadro tem mudado: uma série de

Page 68: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

65

ações de reparação está em andamento contra empresas condenadas, a

exemplo do cartel dos gases.

O limitador é que o grande motor nos EUA disso são as class actions. A

maioria dos casos é de consumidores, pois uma empresa pode ter dificuldades

de processar sua fornecedora por questões comerciais.

O mecanismo brasileiro, que não tem uma class action, tem um alcance mais

limitado. Na Alemanha, empresas podem inclusive comprar os direitos de ser

reparado por danos concorrenciais.

No Brasil não se sabe quantas ações existem, e há um incentivo para entrar

com ações que não passaram nem no CADE, por não existir a necessidade de

análise administrativa anterior.

Não sou favorável ao modelo americano. Um consumidor lesado no Brasil tem

pouco incentivo para entrar com ação de reparação civil por ela ser muito cara,

o que faz com que o sistema não proteja o consumidor. A ação civil pública no

Brasil não repara os consumidores, pois a indenização é endereçada ao Fundo

de Direitos Difusos, para onde também vão as multas administrativas impostas

pelo CADE. Pode-se discutir o bis in idem, pois a imputação de mais uma multa

ao membro do cartel não afeta a reparação do consumidor. Este é um grande

risco potencial que as empresas devem levar em conta (no caso do cimento,

por exemplo). É um desincentivo para a leniência e não resolve o problema do

dano dos indivíduos. Não há um incentivo mágico sem os problemas que os

EUA enfrentam (a indústria da reparação civil). O Brasil tem também outro

problema a enfrentar: a atuação do Ministério Público em ações de reparação

de danos só piora, e não melhora a ação civil pública.

Page 69: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

66

2) Sim, não tem como negar. É uma conta que a empresa faz, e os advogados

passaram a ressaltar esse fator na conta há aproximadamente 3 ou 4 anos. O

caso do metrô deu muita atenção para isso, o que por um lado é saudável e

por outro entra na conta dos aspectos negativos que uma empresa pode

enfrentar ao firmar acordo de leniência, o risco da ação de reparação. Isso tem

ligação direta com a questão da leniência também porque o leniente sabe que

um eventual autor de uma ação de reparação, no Brasil ou no exterior, pode ter

acesso aos documentos fornecidos com muita rapidez.

Há mais tempo a decisão de fazer um acordo de leniência era mais simples.

Porém, temos que lidar com isso pois se queremos que a pessoa tenha direito

à reparação, ela deve ser estimulada.

Quanto à atuação do Judiciário nesse sentido, é difícil que haja previsibilidade.

Como comparação, podemos citar que existem dúvidas sobre como é

calculada a multa do CADE, que foi complicada por conta da questão do ramo

de atividade.

Nesse caso específico, das ações judiciais, não se sabe quão maior é o risco e

como as multas serão calculadas, pois o Judiciário brasileiro é desorganizado.

Não se sabe quanto será a quantificação dos danos, discussão que lá fora é

muito avançada. Aquilo que o CADE faz, de usar o estudo da OCDE (2003) de

que presume o sobrepreço causado por um cartel entre 10-20%, não leva em

conta o caso concreto, o que é temerário. É possível que o juiz use essa

mesma premissa, como o CADE utilizou no caso do cimento. No voto do

Conselheiro Alessandro Octaviani, não foi utilizado nenhum fundamento sólido

para a dosimetria da multa. Se isso for aceito, terá muito impacto no Brasil.

Entendo a preocupação do CADE de fazer isso, mas no mundo ninguém

Page 70: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

67

usaria. Óbvio que há muita dificuldade de prova, e a Diretiva europeia tenta

endereçar isso para o juiz. Pode haver uma condenação de cartel em mercado

que o preço tenha caído, pode-se discutir que o preço cairia mais, mas o caso

é que deve ser bem analisado. O standard para quantificar o dano é

complicado. Na falta de legislação, isso será feito jurisprudencialmente, o que

no Brasil é complicado, pois qualquer juiz pode decidir diferente até mesmo das

Cortes Superiores. A incerteza quanto aos parâmetros de demonstração do

dano efetivamente causado e sobre o juiz vai aceitar como prova, algo que

será crucial.

O CADE no primeiro cartel do aço teve uma discussão se o aumento que uma

certa hora foi informado pelas empresas era justificado por um acordo feito

entre elas. Havia um anúncio mais ou menos simultâneo e no mesmo preço

que não era justificável. O CADE fez um estudo sobre isso e viu que os fatores

levantados pelas empresas para aumentar o preço, e o Conselheiro foi

descartando economicamente o but for. Tememos que no Brasil a

quantificação não seja precisa, e o CADE estimulou isso no caso do cimento.

Exigir demonstração mais rigorosa do dano tem efeito de desestimular ações

de reparação. Achar esse equilíbrio é complicado, e a Diretiva tenta endereçar

esta questão. Algum tipo de previsão juris tantum que facilite o cálculo deve

acontecer para reduzir um pouco o ônus para quem entra com a ação de

reparação de danos.

Não houve nenhum caso em que atuei em que a empresa desistiu

especificamente por conta da reparação, pois o risco de encarar este tipo de

ação no Brasil ainda não deixou de ser pequeno.

Page 71: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

68

O que houve foi que em 2005 não era uma preocupação. Foi passando a ser

por conta dos raros casos em que ocorreu a propositura de ação de reparação

por danos concorrenciais. Há indicação por conta do caso do metrô de que os

casos que envolvam órgãos públicos haja uma pressão maior para que ações

de reparação sejam propostas.

A mudança da legislação é bastante interessante, pois a incerteza quanto a

esses aspectos é muito problemática.

3) Acredito que seja uma boa alternativa. Tem um problema jurídico, pois o

cliente que comprou da leniente ou de outra empresa do cartel não tem

responsabilidade pela escolha, e não deve ter seu valor reduzido. O caminho

escolhido pelos EUA foi o de agravar a indenização a ser paga pelos outros

membros. Haveria, no limite, um enriquecimento ilícito nesse caso de trebble

damages. Fazer a diferenciação não é muito simples. Permitir que o leniente

tenha uma diminuição é razoável, mas há a questão da reparação integral de

quem vai receber as indenizações.

A solidariedade também é uma questão importante, que os EUA retiraram para

os lenientes.

4) Dois aspectos que motivam o acordo de leniência são a transparência e a

previsibilidade. Um problema que o Brasil tem sempre é a questão criminal. Dar

imunidade criminal para quem faz a leniência é muito importante. Uma questão

complicada é que só se beneficiam do acordo os funcionários das empresas

que o assinaram. Ex-funcionários, que muitas vezes não são contatados para

manter a confidencialidade da busca, ficam fragilizados em relação à

persecução penal. Na maioria dos países, a leniência é um guarda-chuva que

protege as outras pessoas físicas. Esta preocupação o CADE conhece e a SG

Page 72: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

69

tem a perspectiva de que com a nova lei poderiam ser incluídas como

beneficiárias de imunidade outras pessoas que não assinaram o acordo de

leniência num primeiro momento.

O metrô é um divisor de águas também neste ponto. É o primeiro caso na

história do Brasil em que promotores foram atrás de estrangeiros residentes no

exterior por conta de crime de cartel. Antes, este risco não era apresentado.

Essas questões de previsibilidade: criminal, do CADE, e de julgamento mais

rápido no Brasil devem ser aprimoradas. Em parte no Brasil o acordo de

leniência demora mais por causa dos indivíduos. Nos outros países, anda mais

rápido pois se acharem outras pessoas físicas que trabalharam com o leniente

depois do acordo celebrado não é um problema. No Canadá, por exemplo, o

acordo de leniência é bem mais rápido. Há também questões processuais: os

indivíduos estrangeiros devem vir ao Brasil para depor? Diretores, por

exemplo? Antigamente nunca acontecia, mas se os Representados pedirem e

a SG negar, pode ser considerado cerceamento de defesa. Há questões

incertas com relação a isso.

É obvio que, no limite, multas altas são incentivo à leniência, bem como a

possibilidade de haver processo criminal contra diretores por conta do cartel. A

previsibilidade na reparação civil também seria um incentivo à leniência.

5) É um enorme elemento de consideração a confidencialidade para proposta

de acordo de leniência. No início do procedimento, o Brasil tem um sistema

muito bom, que facilita a decisão de pegar o marker e não ter isso usado contra

você. Isso é feito confidencialmente, e caso a leniência não vá pra frente isso

não pode ser usado contra o leniente. O risco de pedir o marker não é grande,

e pode haver desistência.

Page 73: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

70

No momento de fornecimento dos documentos, a questão do MP é sempre

uma incógnita, pois ao assinar ele tem acesso ao material também e pode

divulgar. A interação entre CADE e MP deve melhorar. Os documentos da

leniência e da busca são compartilhados, por isso a conscientização do MP

torna-se primordial.

6) A falta de segurança dos documentos apareceu mais com o caso do metrô.

A postura do CADE foi boa quanto a isso, por não ter fornecido qualquer

documento para reparação de danos antes de ter decisão judicial. Ainda assim,

deve haver um tratamento mais claro: vai ser usado? Quando? A minha

preferência é na linha que a Diretiva adotou, que protege o material de

leniência. O ideal seria que não houvesse acesso mesmo depois do acordo,

pois há impacto na reparação civil não só aqui ou lá fora. O cálculo de

reparação civil nos EUA pode aumentar se os documentos daqui forem

acessados.

Se fosse um cartel internacional, o acesso a isso no início da investigação seria

um fator de desincentivo muito grande. O fato é que abrir acesso para

reparação de danos logo no começo impacta não só no Brasil, mas também lá

fora. Do jeito que está hoje, há muita incerteza. O CADE quer proteger o

material, mas se o juiz não ajudar, é complicado. É claro que o caso do metrô

tinha especificidades políticas que podem ter influenciado. Basta que um juiz

em onze que autorizaram a busca e apreensão revele os documentos. O CADE

deve mostrar mais ainda a necessidade da confidencialidade dos documentos.

Isso prejudica a reparação de danos? Mas se houver a condenação do CADE

depois, já há muito pra usar.

Page 74: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

71

Ninguém defende que o leniente não pague a reparação, o que não se quer é

que ele seja colocado em posição pior que o resto dos membros do cartel. Isso

ocorreu no metrô, e o desdobramento disso, em que o Estado de São Paulo

entrou contra a Siemens não podia ter acontecido. Esta ação do Estado foi

muito negativa. Esse pensamento não ocorreu ao Estado, mas seria uma

questão de política pública proteger o instituto da leniência. Houve um efeito

muito negativo.

7) Sim. Não é necessário o material de leniência para a instrução da ação de

reparação, basta a condenação do caso pelo CADE.

A.10. MARIA EUGÊNIA NOVIS (advogada)

1) Considero que as ações de responsabilidade por danos causados por

infração da ordem econômica no Brasil sujeitam-se a enormes dificuldades,

decorrentes principalmente da determinação da dimensão do dano, ou seja, da

mensuração os danos emergentes ou os lucros cessantes; de entraves

processuais e da consequente morosidade do Poder Judiciário; e ainda de

questões culturais.

Não me parece que uma alteração da Lei de Defesa da Concorrência poderia

conferir mais eficácia a ações desta natureza. O longo percurso que essas

ações enfrentam no Judiciário continuaria a desencorajar os prejudicados a

buscar a reparação.

2) Sim. Isto ocorre especialmente nos casos de cartel internacional, diante do

risco de que os documentos provenientes de uma leniência no Brasil possam

servir como base para uma ação de reparação civil no exterior, em países onde

tais ações são mais frequentes do que no Brasil.

Page 75: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

72

3) Acredito que, para os casos de cartel tipicamente nacional, o incentivo mais

poderoso seria a garantia de imunidade contra ações de reparação civil, que se

somaria à imunidade na esfera na criminal e à imunidade administrativa total ou

parcial. Na ausência de imunidade, o beneficiário da leniência continuaria

teoricamente sujeito a um longo período de discussão do caso em juízo, com

resultados incertos diante da inexperiência de juízes e peritos em lidar com

casos desta natureza.

Em casos de cartel internacional, além da imunidade contra ações de

reparação civil no Brasil, é importante adotar mecanismos que dificultem a

propositura de ações no exterior baseadas no acordo de leniência celebrado no

Brasil e na documentação dele decorrente, como Histórico da Conduta e prova

documental, como mencionado abaixo.

4) A confidencialidade dos documentos provenientes de leniência seria, sem

dúvida, um grande incentivo para que empresas envolvidas em práticas

colusivas buscassem um acordo com as autoridades concorrenciais no Brasil.

5) Acredito que a melhor alternativa seja a limitação de acesso a tais

documentos única e exclusivamente aos representados para fins de defesa no

Processo Administrativo, aliada a uma proibição legal de utilização desses

documentos para fins de ações de reparação civil no Brasil ou no exterior.

6) Desconheço norma legal que de fato proíba, no Brasil, a utilização de

documentos provenientes da leniência para fins de ações de reparação civil.

7) Sem dúvida seria uma medida bastante interessante. Mas é necessário

avaliar em maior profundidade se tal restrição de acesso conflitaria com direitos

assegurados aos litigantes em nosso ordenamento jurídico.

Page 76: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

73

A.11. MARIANA TAVARES (advogada e ex-Secretária de Direito

Econômico)

Respostas gerais:

O número de ações privadas no Brasil é baixo, assim como são limitados a

jurisprudência e a doutrina.

O sistema de detecção/dissuasão de cartel inclui a responsabilidade civil.

Temos alguns desafios em relação a isso no Brasil, em especial no Judiciário

(mas a dificuldade com o Judiciário é comum a outras esferas do direito).

A peça central de uma política de repressão a cartéis é a leniência.

As ações de reparação são um desincentivo por entrarem no cálculo do custo

da leniência. Porém, não são um obstáculo, pois ter que pagar indenizações

ainda não é uma realidade: não existe nenhuma decisão final em ação de

reparação de danos concorrenciais.

Um fato que pesa bastante na questão da reparação civil é a solidariedade do

beneficiário de leniência com os outros membros do cartel para pagamento da

indenização. Se o signatário de leniência pagar a indenização por todo o cartel,

a efetivação do seu direito de regresso demorará anos. É importante que seja

corrigida essa falha estrutural no ordenamento jurídico brasileiro.

Ao lado disso, existe a questão da confidencialidade. Apesar do CADE estar

trabalhando para garantir que a identidade do beneficiário de leniência seja

preservada, ainda é um risco que a empresa corre. Os juízes até determinam o

sigilo dos processos de busca e apreensão, mas as secretarias ainda não

estão acostumadas com isto. Esse risco terá um peso maior ou menor a

depender da abrangência do cartel, ou seja, se o acesso aos documentos

ensejará ações de reparação em outros países.

Page 77: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

74

No caso de cartéis nacionais, a decisão de se candidatar a um acordo de

leniência é mais simples. Apesar de haver o custo de negociar com os clientes

lesados pelo cartel, do outro lado da balança está a atuação eficiente do CADE

na detecção de cartéis e as altas multas cobradas.

Já para os cartéis internacionais, a questão é mais complexa, pois o risco de

vazamento pode ter como consequência diversas ações de reparação no

exterior, e as indenizações a serem pagas podem ser milionárias (como é o

caso dos EUA, com os trebble damages). Nesses casos, a empresa leva em

conta para fazer o acordo de leniência no Brasil o risco de vazamento de seu

nome; as ações de indenização que podem decorrer no Brasil e também

aquelas que podem existir no exterior, referentes ao mesmo cartel.

Page 78: Mecanismos de proteção ao programa de leniência brasileiro

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Acesso em: 19 junho 2014.

ENTREVISTAS REALIZADAS:

� Arthur Badin, em 27 de junho de 2014.

� Bruno Lana, em 12 de agosto de 2014.

� César Mattos, em 15 de julho de 2014.

� Fernando Antônio Oliveira Júnior, em 1º de julho de 2014.

� Gilvandro Araújo, em 30 de junho de 2014.

� Marcelo Calliari, em 07 de agosto de 2014.

� Maria Eugênia Novis, em 11 de agosto de 2014.

� Mariana Tavares, em 13 de agosto de 2014.

� Mauro Grimberg, em 03 de agosto de 2014.

� Paulo Furquim, em 29 de julho de 2014.

� Ricardo Ruiz, em 10 de julho de 2014.

� Vinícius Carvalho, em 25 de julho de 2014.