mayombe - pepetela

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  • 2

    PEPETELA

    MAYOMBE

    5.a edio

    Publicaes Dom Quixote

    Lisboa, 1993.

    Obras de Pepetela no catlogo das Publicaes Dom Quixote:

    Mayombe (1980) 5.a ed.

    O Co e os Caluandas (1985) 2.a ed.

    Yaka (1985) 2.a ed.

    Lueji, o Nascimento dum Imprio (1990)

    A Gerao da Utopia (1992) 2.a ed.

    Biblioteca Nacional Catalogao na Publicao

    Pepetela, pseud. Mayombe 5.a ed.

    (Autores de lngua portuguesa)

    ISBN 972-20-1116-2

    Publicaes Dom Quixote, Ltda.

    Rua Luciano Cordeiro, 116 2.o 1098 Lisboa Codex Portugal

    Reservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigor

    c 1980, Pepetela

    5.a edio: Novembro de 1993

    Depsito Legal n.o 68 475/93

    Fotocomposio: Atelier de Imagem, Publicaes e Artes Grficas, Ltda.

    Impresso e acabamento:

    Grfica Manuel Barbosa & Filhos, Ltda.

    Notas de reviso:

    1. Termos entre colchetes correspondem a inseres da reviso, cuja presena no do texto

    original incerta;

    2. Colchetes com o contedo vazio indicam uma possvel lacuna no texto cujo preenchimento

    seria inapropriado.

  • 3

    MMaayyoommbbee Aos guerrilheiros do Mayombe,

    que ousaram desafiar os deuses

    abrindo um caminho na floresta obscura,

    vou contar a histria de Ogun,

    o Prometeu africano.

  • 4

    Captulo I

    A Misso

    O rio Lombe brilhava na vegetao densa. Vinte vezes o tinham atravessado. Teoria, o

    professor, tinha escorregado numa pedra e esfolara profundamente o joelho. O Comandante

    dissera a Teoria para voltar Base, acompanhado de um guerrilheiro. O professor, fazendo

    uma careta, respondera:

    Somos dezasseis. Ficaremos catorze.

    Matemtica simples que resolvera a questo: era difcil conseguir-se um efetivo

    suficiente. De mau grado, o Comandante deu ordem de avanar. Vinha por vezes juntar-se a

    Teoria, que caminhava em penltima posio, para saber como se sentia. O professor escondia

    o sofrimento. E sorria sem nimo.

    hora de acampar, alguns combatentes foram procurar lenha seca, enquanto o

    Comando se reunia. Pangu-Akitina, o enfermeiro, aplicou um penso no ferimento do professor.

    O joelho estava muito inchado e s com grande esforo ele podia avanar.

    Aos grupos de quatro, prepararam o jantar: arroz com corned-beef. Terminaram a refeio

    s seis da tarde, quando j o Sol desaparecera e a noite cobrira o Mayombe. As rvores

    enormes, das quais pendiam cips grossos como cabos, danavam em sombras com os

    movimentos das chamas. S o fumo podia libertar-se do Mayombe e subir, por entre as folhas

    e as lianas, dispersando-se rapidamente no alto, como gua precipitada por cascata estreita que

    se espalha num lago.

    Eu, O Narrador, Sou Teoria.

    Nasci na Gabela, na terra do caf. Da terra recebi a cor escura de caf, vinda da me,

    misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante portugus. Trago em mim o

    inconcilivel e este o meu motor. Num Universo de sim ou no, branco ou negro, eu

    represento o talvez. Talvez no, para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera

    ouvir no. A culpa ser minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinaes? Sou

    eu que devo tornar-me em sim ou em no? Ou so os homens que devem aceitar o talvez? Face

    a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniquestas

    e os outros. bom esclarecer que raros so os outros, o Mundo geralmente maniquesta.

    O Comissrio Poltico, alto e magro como Teoria, acercou-se dele.

    O Comando pensa que deves voltar ou esperar-nos aqui. Dentro de trs dias

    estaremos de volta. Ficar algum contigo. Ou podes tentar regressar Base aos poucos.

    Depende do teu estado.

    O professor respondeu sem hesitar:

    Acho que um erro. Posso ainda andar. Temos pouca gente, dois guerrilheiros a

    menos fazem uma diferena grande. O plano ir por gua abaixo.

    pouco, mas talvez chegue.

  • 5

    Posso discutir com o Comando?

    Vou ver.

    O Comissrio voltou para junto do Comandante e do Chefe de Operaes. Momentos

    depois, fazia sinal a Teoria. O professor levantou-se e uma dor aguda subiu-lhe pelo joelho at

    ao ventre. Sentiu que no poderia ir muito longe. A escurido relativa escondia-lhe as feies e

    ningum se apercebeu da careta. Procurou andar normalmente e aproximou-se dos trs

    responsveis.

    O Comandante Sem Medo contemplou-o fixamente, enquanto o professor se sentava,

    gritando calado para esconder as dores insuportveis. Estou arrumado, pensou.

    intil armares em forte disse Sem Medo. Topa-se bem que ests rasca,

    embora tentes esconder. No vejo qual o mal de reconheceres que no podes continuar. Sers

    um peso-morto para ns.

    Teoria esboou um gesto de irritao.

    Eu que sei como me sinto. Afirmo que posso continuar. J fui tratado e amanh

    melhoro. evidente que nada est partido, s um esfolamento sem gravidade. Mesmo o

    perigo de infeco est afastado.

    Se amanh encontramos o inimigo disse o Comissrio e for necessrio retirar

    rapidamente, tu no poders correr.

    Querem que corra aqui para provar que poderei?

    Sou contra a tua participao repetiu o Comissrio. No vale a pena insistir.

    O Chefe de Operaes contemplava as sombras das rvores, deitado na lona. Ouvia a

    conversa dos outros, pensando na chuva que iria cair dentro de momentos e na casa quente de

    Dolisie, com a mulher a seu lado.

    evidente que a razo objetiva est do lado do Comissrio disse o Comandante.

    No entanto, eu compreendo o camarada Teoria... Por mim, se ele acha que pode

    continuar, no me oponho. Mas objetivamente o Comissrio tem razo...

    E subjetivamente? perguntou o Comissrio.

    Subjetivamente... sabes? H vezes em que um homem precisa de sofrer, precisa de

    saber que est a sofrer e precisa de ultrapassar o sofrimento. Para qu, porqu? s vezes, por

    nada. Outras vezes, por muita coisa que no sabe, no pode ou no quer explicar. Teoria sabe e

    pode explicar. Mas no quer, e acho que nisso ele tem razo.

    O problema que se trata duma operao de guerra e no dum passeio. Num

    passeio, um tipo pode agir contra toda a razo, s porque lhe apetece ir pela esquerda em vez

    de ir pela direita. Na guerra no tem esse direito, arrisca a vida dos outros...

    Neste caso? No, aqui s arrisca a sua, e mesmo isso... Sei que se for necessrio bater

    o xangui, Teoria parecer um campeo. No tem a perna partida, tambm no exageremos. O

    enfermeiro diz que a coisa no grave, s dolorosa. Passar depressa.

  • 6

    Porque no dar-lhe uma possibilidade?

    Mas possibilidade de qu? Isso que no compreendo!

    Pois no! Possibilidade de... sei l! Ele que sabe. Mas com certeza no querer dizer,

    e concordo com ele. O camarada Teoria tinha duas hipteses: ir ou no ir. Escolheu a primeira.

    Talvez mal, talvez sem muito refletir, mas escolheu. E ele homem para no voltar atrs na sua

    escolha. Se foi por teimosia ou no, isso s ele o sabe. O que sei que os homens teimosos

    so-no geralmente at ao fim, sobretudo quando h um risco. Se quer partir a cabea, se

    escolheu partir a cabea, devemos dar-lhe a liberdade de partir a cabea.

    Isso liberalismo!

    L vens tu com os palavres! possvel que seja liberalismo. Mas eu no sou

    Comissrio Poltico. a ti que compete politizar-nos e defender a posio poltica justa.

    Posso ser liberalista de vez em quando, pois tenho-te sempre como anjo-da-guarda para

    me guiar.

    O Comissrio sorriu. Dez anos mais velho do que ele, o Comandante comportava-se

    agora como um mido para desviar a discusso. Era claro que Sem Medo j tinha uma ideia na

    cabea.

    E tu, camarada Chefe das Operaes, o que pensas? perguntou o Comandante.

    Penso que tem razo respondeu distraidamente o outro.

    Bem, estou em minoria disse o Comissrio. A responsabilidade tua,

    Comandante. Espero que no suceda nada.

    Mais uma ou menos uma responsabilidade! disse Sem Medo.

    Nada suceder replicou Teoria, sem saber se devia estar contente ou no: no se

    perguntara.

    O Chefe de Operaes adormeceu. Teoria foi deitar-se. Em breve acordariam com a

    chuva miudinha que primeiro s molharia a copa das rvores e comearia a cair das folhas

    quando j tivesse parado de chover. Tal o Mayombe, que pode retardar a vontade da

    Natureza.

    O professor pouco dormiu. A perna molhada doa-lhe atrozmente. Para que insistira? A

    sua participao no modificaria em nada as coisas. Sabia que no era um guerrilheiro

    excepcional, nem mesmo um bom guerrilheiro. Mas insistira.

    Era o seu segredo. Da mesma maneira que impusera ao Comando a obrigatoriedade de

    ele fazer guarda como os outros guerrilheiros, embora o seu posto de professor da Base o

    libertasse dessa tarefa. Teoria era mestio e hoje j ningum parecia reparar nisso. Era o seu

    segredo. Segredo doloroso, de que o Comissrio se no apercebia, de que o Chefe de

    Operaes se no interessava. S Sem Medo, o veterano da guerra e dos homens, adivinhara.

    Sem Medo, guerrilheiro de Henda. Antes chamava-se Esfinge, ningum sabia porqu.

    Quando foi promovido a Chefe de Seo, os guerrilheiros deram-lhe o nome de Sem Medo,

  • 7

    por ter resistido sozinho a um grupo inimigo que atacara um posto avanado, o que deu tempo

    a que a Base fosse evacuada sem perdas. Uma das muitas operaes em que rira do inimigo,

    sobre ele lanando balas, gracejos e insultos.

    Teoria sentia que o Comandante tambm tinha um segredo. Como cada um dos outros.

    E era esse segredo de cada um que os fazia combater, frequentemente por razes longnquas

    das afirmadas. Porqu Sem Medo abandonara o curso de Economia, em 1964, para entrar na

    guerrilha? Porqu o Comissrio abandonara Caxito, o pai velho e pobre campons arruinado

    pelo roubo das terras de caf, e viera? Talvez o Comissrio tivesse uma razo mais evidente que

    os outros, sim. Porqu o Chefe de Operaes abandonara os Dembos? Porqu Milagre

    abandonara a famlia? Porqu Muatinvua, o desenraizado, o marinheiro, abandonara os barcos

    para agora marchar a p, numa vida de aventura to diferente da sua? E porqu ele, Teoria,

    abandonara a mulher e a posio que podia facilmente adquirir? Conscincia poltica,

    conscincia das necessidades do povo! Palavras fceis, palavras que, no fundo, nada diziam.

    Como age em cada um deles essa dita conscincia?

    Os companheiros comeavam a mexer-se, despertando, e o professor no tinha afastado

    esses pensamentos. O Mayombe no deixava penetrar a aurora, que, fora, despontava j. As

    aves noturnas cediam o lugar no concerto aos macacos e esquilos. E as guas do Lombe

    diminuam de tom, espera do seu manto dourado. frente, descendo o Lombe, a menos de

    um dia de marcha, devia estar o inimigo.

    Eu, O Narrador, Sou Teoria.

    Manuela sorriu-me e embrenhou-se no mato, no mato denso do Amboim, onde

    despontava o caf, a riqueza dos homens. O caf vermelho pintava o verde da mata. Assim

    Manuela pintava a minha vida.

    Manuela, Manuela onde ests tu hoje? Na Gabela? Manuela da Gabela, correndo no

    mato do Amboim, o mato verde das serpentes mortais, como o Mayombe, mas que pare[ce] o

    fruto vermelho do caf, riqueza dos homens.

    Manuela, perdida para sempre. Amigada com outro, porque a deixei, porque Manuela

    no foi suficientemente forte para me reter no Amboim e eu escolhi o Mayombe, as suas lianas,

    os seus segredos e os seus exilados.

    Perdi Manuela para ganhar o direito de ser talvez, caf com leite, combinao, hbrido,

    o que quiserem. Os rtulos pouco interessam, os rtulos s servem os ignorantes que no veem

    pela colorao qual o lquido encerrado no frasco.

    Entre Manuela e o meu prprio eu, escolhi este. Como dramtico ter sempre de

    escolher, preferir um caminho a outro, o sim ou o no! Porque no Mundo no h lugar para o

    talvez? Estou no Mayombe, renunciando a Manuela, com o fim de arranjar no Universo

    maniquesta o lugar para o talvez.

  • 8

    Fugi dela, no a revi, escolhi sozinho, fechado em casa, na nossa casa, naquela casa onde

    em breve uma criana iria viver e chorar e sorrir. Nunca vi essa criana, no a verei jamais. Nem

    Manuela. A minha histria a dum alienado que se aliena, esperando libertar-se.

    Criana ainda, queria ser branco, para que os brancos me no chamassem negro.

    Homem, queria ser negro, para que os negros me no odiassem. Onde estou eu, ento? E

    Manuela, como poderia ela situar-se na vida de algum perseguido pelo problema da escolha,

    do sim ou do no? Fugi dela, sim, fugi dela, porque ela estava a mais na minha vida; a minha

    vida o esforo de mostrar a uns e a outros que h sempre lugar para o talvez.

    Manuela, Manuela, amigada com outro, dando as suas carcias a outro. E eu, aqui,

    molhado pela chuva-mulher que no para, fatigado, exilado, desesperado, sem Manuela.

    Sem Medo foi lavar-se perto do Comissrio. Admirou o torso esguio mas musculado do

    outro.

    Ests em forma. Eu comeo a ficar com barriga.

    a vida do exterior disse o Comissrio. H quase seis meses que no fazes uma

    ao... O que me chateia avanar sem saber ao certo o que se vai fazer. O plano no me

    agrada.

    O Comandante sentou-se numa pedra.

    Esperemos que o Das Operaes tenha razo. Ele que fez o reconhecimento...

    Reconhecimento! disse o Comissrio. Desceu o rio, encontrou a picada de

    explorao de madeira. Chamas a isso um reconhecimento? Nem sequer sabe se os tugas tm

    tropa na explorao.

    Vamos saber agora. O que preciso comear. Metemos a Base no interior, j foi

    um passo em frente. Acabada a guerra de fronteira! Agora vamos estudando as coisas no

    terreno e decidindo aos poucos. De qualquer modo, esta operao est dentro das tuas teorias:

    ao poltica mais que militar. No sei de que te queixas...

    No isso, Comandante. Se impedirmos essa explorao de continuar a roubar a

    nossa madeira, um golpe econmico dado ao inimigo, est porreiro. Alm disso, vamos atacar

    num stio novo, o que bom em relao ao povo, que nem sequer pensa em ns... pelo menos,

    aparentemente. Mas o lado militar que me preocupa. No sabemos onde est o inimigo e qual

    o seu efetivo. Somos to poucos que no podemos permitir-nos o luxo de sermos

    surpreendidos. Nenhuma outra vitria justifica essa derrota.

    O Comandante ensaboou a cara e mergulhou-a na gua fresca do rio. Depois ficou a

    observar os primeiros peixes que apareciam.

    Como sempre, tens razo. Pois esse lado ignorado da operao que me agrada. No

    gosto das coisas demasiado planificadas, porque h sempre um detalhe que falha. Reconheo

    ser um erro, que queres? a minha natureza anarquista, como dirias. Como conhecer o

    inimigo? S fazendo-o sair dos quartis, pois que informaes no temos. Esta inrcia, esta

    apatia, tm de acabar. preciso dinamizar as coisas. J estivemos parados demasiado tempo,

  • 9

    espera de instrues. a ns de tomarmos a deciso. S a ao pode pr a nu as faltas ou os

    vcios da organizao. Porque que nas outras Regies a guerra progride e aqui no cessa de

    recuar? Porque no temos estado altura, ns, o Movimento. Culpa-se o povo, que traidor.

    Desculpa fcil! o povo daqui que traidor ou somos ns incapazes? Ou as duas coisas? Para

    o saber, temos de agir, fazer mexer as coisas, partir as estruturas caducas que impedem o

    desenvolvimento da luta.

    O Comissrio vestiu a camisa. Sentou-se numa pedra e ficou a observar Sem Medo.

    Outros guerrilheiros lavavam-se mais adiante.

    Estou de acordo que preciso agir. No acredito nessa estria de que o povo

    traidor, a culpa foi nossa. Mas acho que preciso estudar mais as coisas, no agir toa.

    Sobretudo agora que fazemos uma guerra sem povo, que estamos isolados...

    Nufragos numa ilha que se chama Mayombe disse Sem Medo.

    Sobretudo agora que somos fracos, que temos um efetivo ridculo, devemos ser

    prudentes. Os nossos planos tm de ser perfeitos. Ao sim, s ela agudiza as contradies que

    fazem avanar, mas ao consciente. Somos cegos, pois no temos os olhos e as antenas, que

    so o povo.

    Se somos cegos, ento apalpemos o caminho antes de avanar, seno camos num

    buraco.

    Tinham acabado de se lavar. Sem Medo acendeu um cigarro. At eles chegava o cheiro

    de matete para o mata-bicho. O Comissrio tossiu e disse:

    Tu s o Comandante, o que quiseres lei...

    Somos trs no Comando, camarada. Se vocs os dois no estiverem de acordo, eu

    inclino-me. No sou ditador, bem sabes.

    Somos trs? Vocs so dois!

    Sem Medo fixou-o. Uma ruga cavou-se-lhe entre os olhos.

    Que queres dizer?

    Simplesmente que, desde que tu e eu no estejamos de acordo, vocs so dois e eu

    um: O Das Operaes vai sempre pelo teu lado. At parece que nunca reparaste!

    Sim, reparei. Porque faz ele isso?

    No tens ideia?

    Tenho duas: ou porque sou o Comandante, ou porque tu s o Comissrio.

    Ests a gozar!

    No estou nada. Ou porque sou o Comandante e deve apoiar-se para estar bem

    comigo e poder subir... ou porque tu s o Comissrio, cargo logo a seguir ao dele, e deve estar

    contra ti, destruir-te, mostrar os teus erros, para apanhar o teu lugar.

    Pensas assim?

    E certo!

  • 10

    Tambm me parece que sim disse o Comissrio. pena! um bom militar, no

    meu entender. Sobretudo quando eu no participo numa operao e, assim, as suas boas ideias

    no podem vir ajudar o meu prestgio. Quando eu estou, ele comete erros s para me

    contradizer. No porque eu tenha sempre razo, mas s vezes tambm tenho...

    O Comandante deu-lhe uma palmada no ombro.

    Tens de te habituar aos homens e no aos ideais. O cargo de Comissrio espinhoso,

    por isso mesmo. O curioso que vocs, na vossa tribo, at esquecem que so da mesma tribo,

    quando h luta pelo posto.

    O que no quer dizer que no h tribalismo, infelizmente. Alis, no me venhas dizer

    que com os kikongos no se passa o mesmo.

    Eu sou kikongo? Tu s kimbundo? Achas mesmo que sim?

    Ns, no. Ns pertencemos minoria que j esqueceu de que lado nasce o Sol na sua

    aldeia. Ou que a confunde com outras aldeias que conheceu. Mas a maioria, Comandante, a

    maioria?

    o teu trabalho: mostrar tantas aldeias aos camaradas que eles se perdero se, um

    dia, voltarem sua. A essa arte de desorientao se chama formao poltica!

    E foram tomar o matete.

    Eu, O Narrador, Sou Teoria.

    Os meus conhecimentos levaram-me a ser nomeado professor da Base. Ao mesmo

    tempo, sou instrutor poltico, ajudando o Comissrio. A minha vida na Base preenchida pelas

    aulas e pelas guardas. Por vezes, raramente, uma ao. Desde que estamos no interior, a

    atividade maior. No atividade de guerra, mas de patrulha e reconhecimento. Ofereo-me

    sempre para as misses, mesmo contra a opinio do Comando: poderia recusar? Imediatamente

    se lembrariam de que no sou igual aos outros.

    Uma vez quis evitar ir em reconhecimento: tivera um pressentimento trgico. Havia to

    poucos na Base que o meu silncio seria logo notado. Ofereci-me. a alienao total.

    Os outros podem esquivar-se, podem argumentar quando so escolhidos. Como o

    poderei fazer, eu que trago em mim o pecado original do pai-branco?

    Lutamos no estava de acordo com a proposta do chefe de grupo Verdade. Mal o

    Comandante surgiu, Lutamos disse:

    Camarada Comandante, o camarada Verdade acha que devamos apanhar os

    trabalhadores da explorao e fuzil-los, porque trabalham para os colonialistas. Diz que isso

    o que se decidiu fazer.

    O Comandante sentou-se e meteu a colher na tampa da gamela, sem responder. O

    Comissrio encostou-se a uma rvore, comendo, observando o grupo.

    Deixa l, p! disse Muatinvua. Esses trabalhadores so cabindas, por isso que

    te chateias. Mas so mesmo traidores, nem que fossem lundas ou kimbundos...

  • 11

    Como ? disse Lutamos, nervoso. E os trabalhadores da Diamang? E os da

    Cotonang? So traidores? Tm de trabalhar para o colonialista...

    So, sim, p disse Muatinvua. Depois de tanto tempo de guerra, quem no est

    do nosso lado contra ns. Estes aqui esto mesmo perto do Congo. Talvez mesmo que

    ouvem a nossa rdio. Veem que h explorao. Ento porque no se juntam a ns? Deixa! s

    varrer, p!

    Milagre esperou a reao de Lutamos. Como este, ofendido, no respondia, Milagre

    falou para o Comissrio:

    Que que o camarada Comissrio pensa?

    Penso que devemos partir, por isso no h mais papos. Discutiremos depois. Mas ai

    de quem tocar num trabalhador ou num homem do povo sem que se d ordem. Ai dele!

    O Muatinvua est a brincar com o Lutamos disse o Comandante. Estes lumpens

    gostam sempre de brincar com coisas srias...

    Muatinvua riu, acendendo um cigarro. Piscou o olho para Lutamos.

    Mas o aviso do Comissrio srio continuou Sem Medo. Quem vier fazer

    tribalismo contra o povo de Cabinda ser fuzilado. Fuzilado! No estamos a brincar.

    O silncio pesado que seguiu a afirmao de Sem Medo no foi afastado para trs, como

    as lianas que nos batem na cara. O silncio era o Mayombe, sempre ele, presente, por muitas

    lianas que se afastassem para trs.

    Caminharam a direito, atravessando constantemente o rio, para encurtar caminho. Os

    primeiros minutos foram o inferno para Teoria. Agora ia melhor. Vencera o primeiro combate,

    o mais duro. Sabia que vencera mesmo todo o combate. Avanaram distanciados uns dos

    outros, em fila indiana, por entre as folhas largas de xikuanga, onde vivem os elefantes. O

    cheiro de elefante era persistente. Pena que no viemos caar, pensou Ekuikui, o caador; daria

    comida para muito tempo. E, ao atravessarem de novo o rio, depararam com uma manada de

    elefantes. Instintivamente, Ekuikui levantou a arma.

    Ningum dispara! gritou o Chefe de Operaes.

    Ekuikui contemplava os elefantes que se afastavam calmamente, agitando as trombas e

    as enormes orelhas, nada alarmados por aquela fila de homens de verde que saam do verde

    imenso do Mayombe. O Comissrio bateu-lhe no ombro:

    - Viemos procurar o tuga. Se fazemos fogo, o tuga pode ouvir e ficar de preveno.

    Ekuikui, o caador do Bi, abanou tristemente a cabea.

    - Eu sei, camarada Comissrio.

    Lutamos meditava no que discutira com os camaradas. O Comandante dissera que era

    brincadeira. De Muatinvua, sim; mas Verdade no brincava. Lutamos ia distrado, frente da

    coluna, guiando-a numa zona praticamente desconhecida. Em breve chegariam picada que

    servia para o transporte das arvores derrubadas. Tambm esse povo que no apoia! S mesmo

  • 12

    fuzilando. O pai dele, a me, os irmos? Todos fuzilados? O povo no apoiava, porque a guerra

    no crescia. O povo no apoiava, porque vieram fazer a guerra em Cabinda sem explicar bem

    antes por que a faziam, era ainda Lutamos uma criana.

    Ao dobrarem uma montanha, o zumbido duma serra mecnica fez-se ouvir, atravs dos

    mil zumbidos do Mayombe. O rudo vinha da direita, muito perto deles. Mas Lutamos, dentro

    de si, continuava a avanar.

    Que que ele tem? segredou o Comandante a Ekuikui.

    Lutamos distanciava-se do resto do grupo, que tinha estacado ao ouvir o rudo. O

    Comissrio correu atrs dele, evitando fazer demasiado barulho.

    Est a fazer de propsito disse Milagre.

    Vai avisar os homens disse Pangu-Akitina.

    Vai sabotar a misso disse Verdade.

    Calem-se, porra! disse o Comandante. Esperem saber para falar.

    O Chefe de Operaes tinha ido atrs do Comissrio. Lutamos parara ao ouvir o seu

    nome chamado atrs. Espantou-se ao ver o Comissrio com cara de caso e, mais atrs, o Chefe

    de Operaes. A um gesto do Comissrio, apercebeu-se do zumbido forte.

    Porque que avanaste?

    Estava distrado. Os outros?

    Vamos voltar atrs. E presta ateno.

    O Chefe de Operaes nada disse; deixou-os passar por ele e limitou-se a segui-los. Os

    guerrilheiros olhavam Lutamos com desconfiana, mas ele no notou.

    Que houve? perguntou Sem Medo.

    Estava distrado e no reparou em nada disse o Comissrio.

    O Comandante esboou um sorriso, que logo desapareceu.

    Temos um guia s dimenses da Regio! Bem. Verdade e Muatinvua vo pela

    esquerda, com o Comissrio. Milagre, Pangu-Akitina e o Das Operaes vo pela direita. Ns

    ficamos aqui. Vejam o que h e voltem. Cuidado, nada de tiros! preciso saber se h soldados.

    Sem Medo sentou-se, logo imitado por alguns companheiros. Teoria esfregava o joelho.

    Ekuikui estudava as rvores, procurando vestgios de macacos. Fazia-o por hbito, o seu

    passado de caador nos planaltos do Centro tinha-o marcado. Mundo Novo, sentado, limpava

    as unhas com o punhal. As mos eram finas e as unhas compridas. Um perfeito intelectual,

    pensou Sem Medo. Lutamos alheara-se do grupo, os ouvidos atentos. O zumbido da serra

    continuava a cortar o ar. De repente, a serra parou e ouviram-se gritos.

    Os guerrilheiros levantaram-se, em posio. Rudos de ramos partidos e, em seguida, um

    fragor que cobriu todo o tumulto do Mayombe e ficou a ressoar nas copas das rvores, at se ir

    diluindo, aos poucos, pelos vales do Lombe.

    Foi a rvore que caiu disse o Comandante.

  • 13

    E voltou a sentar-se. Os outros permaneceram de p, salvo Teoria. Pouco depois, o

    zumbido da serra chegava de novo at eles.

    Est tudo normal disse Mundo Novo. E sentou-se tambm.

    Lutamos est nervoso, inquieto, notou Sem Medo. O Teoria est a sofrer, mas finge que

    no. O Ekuikui... esse sempre o mesmo. Ingratido est desconfiado do Lutamos. Mundo

    Novo deve estar a pensar na Europa e nos seus marxistas-leninistas. Os pensamentos do

    Comandante no iam mais longe. Eram fotografias que tirava aos elementos do grupo e que

    classificava num ficheiro mental, sem mais se preocupar. Quando necessrio, servia-se dessas

    informaes para ter uma imagem fiel de cada guerrilheiro e saber que tarefa dar a cada um.

    O primeiro grupo a chegar foi o do Chefe de Operaes. Chegou-se ao Comandante e

    disse:

    Vimos seis trabalhadores. Nenhum soldado.

    Foram eles que abateram a rvore?

    No. Estes tm machados. A serra est no grupo da esquerda. Atrs deles h uma

    picada para o transporte da madeira.

    Bem.

    Comandante, penso que melhor vigiar o Lutamos.

    Porqu?

    No acredito na distrao dele. Ele ia mas avisar os trabalhadores, afugent-los... O

    Comandante olhou-o em silncio. Franziu a boca. O outro continuou:

    - H momentos que ele tem um comportamento estranho. Os olhos dele no so

    bons. O Comissrio no v essas coisas, acreditou logo nele. Acho que se tem de fazer um

    interrogatrio.

    O Comandante no respondeu. Pensou que tinha uma vontade louca de fumar. Ali no

    podia, o cheiro de cigarro penetrava na mata.

    Quando o grupo do Comissrio chegou, Sem Medo ps-se de p.

    Ento?

    So oito trabalhadores, mais um branco que guia o camio. No h soldados vista.

    E o camio?

    Est l, parado, com o ngueta a fumar e a ouvir rdio. Mais ao lado deve haver um

    buldozer para carregar os troncos no camio. Que que se faz?

    O Comandante chamou o Chefe de Operaes. Reuniram-se os trs.

    Que pensas que se deve fazer? perguntou Sem Medo ao Das Operaes.

    Acho que devemos fazer uma curva, para apanharmos a picada mais frente e

    chegarmos estrada.

    E tu, Comissrio?

  • 14

    O Comissrio mediu as palavras, antes de falar.

    Penso que deveramos aproveitar esta ocasio. Podamos apanhar os trabalhadores,

    recuperar a serra, que leve de transportar, destruir o buldozer e o camio. Era uma ao que

    fazia efeito e era esse o nosso objetivo. Porqu mudar?

    O Chefe de Operaes interrompeu:

    Ns somos militares. Ns devemos combater o inimigo. Por isso penso que a

    primeira ao nesta rea devia ser militar. Os soldados devem andar vontade na estrada. Esta

    picada vai de certeza dar estrada. Uma emboscada era muito melhor. Os trabalhadores? No

    vejo qual o interesse. Se ainda fosse para os fuzilar... Mas no. Para os politizar! Vocs

    acreditam que vamos politizar alguma coisa? Aqui s a guerra que politiza.

    O Comandante disse:

    Comissrio, sei que uma operao poltica e econmica tem interesse. O problema

    o seguinte: se destrumos estes aparelhos, a ao militar est estragada, pois os tugas ficaro

    prevenidos de que andamos por aqui...

    Claro cortou o Comissrio. Mas isso ser mais uma razo para que eles andem na

    estrada. So forados a aumentar as patrulhas, pois aqui h populao e eles querem cortar-nos

    dela. Eles andaro ainda mais e teremos pois mais oportunidade de lhes dar porrada. Qual o

    problema? No mataremos vinte na primeira emboscada, pois estaro mais atentos? Bem,

    mataremos dez. A guerra popular no se mede em nmero de inimigos mortos. Ela mede-se

    pelo apoio popular que se tem.

    Esse apoio s se consegue com as armas disse o Das Operaes.

    No s. Com as duas coisas. Com as armas e com a politizao. Temos de mostrar

    primeiro que no somos bandidos, que no matamos o povo. O povo daqui no nos conhece,

    s ouve a propaganda inimiga, tem medo de ns. Se apanharmos os trabalhadores, os tratarmos

    bem, discutirmos com eles e, mais tarde, dermos uma boa porrada no tuga, ento sim, o povo

    comea a acreditar e a aceitar. Mas um trabalho longo. De qualquer modo, esta ao pode no

    impedir que se faa tambm uma emboscada.

    Questo de tempo e de comida disse Sem Medo.

    Os camaradas aceitaro passar um pouco de fome, se lhes explicarmos o interesse da

    coisa.

    Bem disse o Comandante , vamos fazer como tu queres. Vamos rodear os grupos,

    aprision-los, destruir o que se puder, apanhar a serra, etc. Depois recuamos com os

    trabalhadores e estudaremos a possibilidade de se voltar estrada para fazer a emboscada. Eu

    vou com dois camaradas pr-me na picada, para l do camio. Se ele fugir, ns varremo-lo. Se

    aparecer tropa, vinda da estrada, ns travamo-la. Vocs vo cada um do lado que

    reconheceram. Evitem fazer barulho. Cerquem-nos e, s dez em ponto, prendam-nos. Acertem

    os relgios. O lugar de encontro aqui, se no houver novidade. Se o tuga aparecer,

    encontramo-nos onde dormimos ontem.

  • 15

    O Lutamos com quem vai? perguntou o Das Operaes.

    Comigo disse Sem Medo.

    O grupo do Chefe de Operaes afastou-se imediatamente. Os outros dois grupos

    foram juntos at prximo dos trabalhadores. O Comandante, Lutamos e Teoria avanaram

    ento ao longo da picada, para fecharem o cerco. A serra zumbia e cobria os rudos das folhas

    pisadas. Mesmo os pssaros estavam desorientados e no fugiam.

    O Comissrio avanou prudentemente, seguido dos seus homens. As folhas secas

    estalavam sob as botas, mas os estalidos eram abafados pelo rudo da serra devastando o

    Mayombe. Os guerrilheiros encavalitaram-se num enorme tronco cado. Deixara de respirar,

    monstro decepado, e os ramos cortados juncavam o solo. Depois de a serra lhe cortar o fluxo vital, os machados

    tinham vindo separar as pernas, os braos, os plos; ali estava, lvido na sua pele branca, o gigante que antes

    travava o vento e enviava desafios s nuvens. Imvel mas digno. Na sua agonia, arrastara os rebentos, os

    arbustos, as lianas, e o seu ronco de morte fizera tremer o Mayombe, fizera calar os gorilas e os leopardos.

    Os guerrilheiros dispersaram para avanar. A serra mecnica abelha furando um morro

    de salal continuava a sua tarefa. Havia o mecnico, que acionava a serra, e o ajudante, com a

    lata de gasolina e de leo; mais atrs, quatro operrios com machados. Todos to embebidos na

    tarefa que no repararam nas sombras furtivas. Nem protestaram, quando viram os canos das

    ppchs virados para eles. Os olhos abriram-se, o imenso branco dos olhos comendo a cara

    toda, a boca aberta num grito que no ousou sair e ficou vibrando interiormente. O Comissrio

    e Ekuikui avanaram para a serra. Ekuikui encostou o cano da arma s costas do mecnico:

    No mexe!

    O mecnico olhou por cima do ombro e compreendeu rapidamente a situao. Fez

    parar a serra. O silncio que se seguiu furou os ouvidos dos guerrilheiros, subiu s copas das

    rvores e ficou pairando, misturado neblina que encobria o Mayombe.

    Todos para aqui, vamos! ordenou o Comissrio.

    Juntaram os prisioneiros, revistaram-nos para procurar armas: retiraram dois canivetes.

    H outros? perguntou o Comissrio.

    Ali murmurou o mecnico, apontando o stio para onde se dirigira o Chefe de

    Operaes.

    Soldados?

    S no quartel. A dez quilmetros.

    O branco?

    Est no camio.

    Vamos. E no tentem fugir, ningum vos far mal.

    O cortejo partiu em direo ao ponto de encontro. Muatinvua vigiava o mecnico, que

    carregava a serra. Os outros trabalhadores tremiam.

  • 16

    Quando a serra parou de zumbir, o grupo do Chefe de Operaes ainda no tinha

    cercado os trabalhadores que, a grupos de dois, atacavam a machado os colossos do Mayombe.

    Pangu-Akitina, que ia frente, travou logo: estavam a dez metros do primeiro par de

    trabalhadores; os outros pares estavam distanciados uns dos outros. O silncio chamou a

    ateno dos operrios, que se fizeram sinais, esperando a queda da rvore.

    Os guerrilheiros esperavam, o corao apertado, que eles retomassem o trabalho. Mas o

    fragor da queda da rvore no vinha e o mais velho dos trabalhadores disse:

    H qualquer coisa. O motor parou toa.

    Todos espetavam as orelhas. Os guerrilheiros pararam de respirar, enroscados ao verde

    da mata. Um dos trabalhadores mais afastado abandonou o machado e dirigiu-se para o par que

    estava mais prximo dos guerrilheiros. O Chefe de Operaes avaliou a situao: tinha de agir

    rpido.

    No se mexam! gritou, saltando para perto do trabalhador velho.

    A surpresa gelou os mais prximos. Mas os outros abandonaram os machados e

    correram para o mato. Alguns guerrilheiros perseguiram-nos.

    No disparem! gritou Mundo Novo, correndo atrs dos fugitivos.

    Mas o Chefe de Operaes, para assustar os trabalhadores, fez uma rajada para as folhas.

    Milagre, voando sobre os troncos cados, aproximou-se dum trabalhador. De repente,

    uma baixa e um regato. O trabalhador lanou-se de mergulho e foi rastejando sobre as pedras

    do rio pouco profundo. Milagre levava a bazuka e hesitou: gastaria um obus no ar para o

    travar? O trabalhador desapareceu na curva do regato, rasgando o ventre nas pedras, e Milagre

    voltou para trs, trazendo como trofu a catana que cara da cintura do homem.

    Mundo Novo fez fogo para o ar e o trabalhador que perseguia parou, as pernas

    trementes. Era um rapaz. Com afeio, quase carinhosamente, Mundo Novo conduziu-o para o

    grupo dos trs outros prisioneiros.

    Onde est o buldozer? perguntou o Das Operaes.

    O mais velho dos trabalhadores apontou a direo. Tinha uma perna torta. Deve ter sido

    uma rvore que lhe caiu em cima, pensou Mundo Novo.

    Leva-nos l.

    O grupo foi avanando para o stio da picada, onde devia estar Sem Medo. O silncio da

    serra parando subitamente no interrompeu as reflexes do portugus, que se sentava ao

    volante do camio. Acendera mesmo um cigarro, segundo se pde aperceber Sem Medo. Mas,

    quando a primeira rajada soou, o tuga acordou do torpor e tudo nele se ps a vibrar. Sem

    querer saber o que se passava, ps o camio em marcha e arrancou. A vinte metros dele,

    emboscados, os guerrilheiros visavam-no.

    Sem Medo viu que o branco suava e fazia caretas, acelerando.

    No atirem! gritou Sem Medo.

  • 17

    Lutamos ia protestar.

    Atirem s para as rodas!

    Foi nesse momento que se ouviu a segunda rajada, feita por Mundo Novo, que se

    confundiu com a rajada de Lutamos.

    Um pneu estoirou, mas o camio j passara e continuava a rolar sobre a junta. O tuga

    esmagava o acelerador, as duas mos aduncas eram tenazes sobre o volante.

    Lutamos virou-se para Sem Medo.

    Porqu?...

    Era um civil.

    E o buldozer? lembrou Teoria.

    Correram os trs para o stio onde devia estar o buldozer.

    Encontraram-se ento com o grupo do Chefe de Operaes.

    Deixaram fugir o ngueta? perguntou este.

    Sim. E demos-lhe mesmo uma Guia de Marcha disse Sem Medo, de mau humor.

    O motorista do buldozer tinha-se metido no mato, ao ouvir a primeira rajada. Os

    guerrilheiros rodearam o buldozer.

    Bazukem-no e depois metam fogo ordenou o Comandante.

    Um trabalhador pediu timidamente a Mundo Novo autorizao para ir um pouco para o

    lado. E apertava o ventre.

    Caga a! disse Mundo Novo.

    O estoiro da bazuka rivalizou com o de um gigante desmoronando-se. Depois de o

    fumo dispersar, viu-se o motor do buldozer completamente destrudo. Ao cheiro da plvora

    veio misturar-se um cheiro mais caracterstico. Mundo Novo olhou Sem Medo e este olhou o

    trabalhador que pedira para se afastar.

    Este gajo... s teve tempo de exclamar Sem Medo.

    Subitamente, dobrou-se numa gargalhada que atroou sobre o Mayombe. A gargalhada

    de Sem Medo era uma ofensa incomensurvel ao deus vegetal que obrigava as vozes a sarem

    ciciadas. Os guerrilheiros, a princpio, pensaram que a bazukada, disparada de perto, tivesse

    dado a volta cabea de Sem Medo. Mas depois viram o trabalhador de p, as pernas afastadas,

    o ricto bestificado em xtase e as fezes a deslizarem-lhe pelas coxas, e a pingarem sobre o cho.

    O Comandante, acabando por dominar-se, fez uma cara de desgosto e ordenou que se

    lanasse fogo ao buldozer, visto que nada podiam recuperar. Apanharam lenha seca,

    empilharam-na sobre a mquina, regaram a lenha de gasolina e pegaram fogo. As chamas

    elevaram-se, numa lambidela rpida, aos ramos mais prximos das rvores. Dois guerrilheiros

    levaram os quatro trabalhadores para um stio mais afastado, donde nada pudessem ver,

    enquanto Ingratido do Tuga colocava trs minas antipessoais perto do buldozer. Quando as

    minas estavam bem camufladas, Sem Medo escreveu num bocado de papel:

  • 18

    Sacanas colonialistas, vo merda, vo para a vossa terra. Enquanto esto aqui, na terra dos

    outros, o patro est a comer a vossa mulher ou irm, c nas beras!

    E deixou o bilhete bem vista, no meio do terreno minado. Os guerrilheiros sorriam.

    O sacana que quiser ler, vai pelo ar disse o Das Operaes.

    Foi pena no reforar as minas com dinamite disse Ingratido do Tuga mas no

    d tempo.

    Vamos disse Sem Medo.

    O grupo avanou pelo Mayombe, a caminho do ponto de recuo, os prisioneiros no

    meio.

    No ponto de recuo, contaram os prisioneiros feitos pelos dois grupos: dez. Sem Medo

    reparou no mecnico, que tinha ar mais instrudo que os outros. Perguntou-lhe:

    Aonde vai dar a picada?

    estrada.

    Qual estrada?

    Entre Sanga e Caio Nguembo. A estrada est a uns cinco quilmetros.

    Quantos soldados h no quartel?

    O mecnico hesitou. Olhou os companheiros. Destes no vinha nenhuma ideia.

    No sei. Talvez cem...

    Tugas?

    E angolanos. Tropas Especiais...

    O interrogatrio continuou e alargou-se aos outros prisioneiros. O mido capturado por

    Mundo Novo tinha catorze anos e chamava-se Antnio. Falava mais vontade que os outros.

    O mecnico estava desconfiado, os olhos inquietos passavam de uns a outros, fixando-se mais

    em Sem Medo. Lutamos pedira autorizao para falar com eles em fiote, mas o Das Operaes

    respondeu que no valia a pena. O Comissrio ia intervir. Sem Medo pegou-lhe no brao,

    exigindo silncio. E Sem Medo mantinha o interrogatrio em portugus, lngua que todos

    falavam, bem ou mal.

    O Comando reuniu em seguida. Decidiu guardar os trabalhadores por um dia,

    caminhando em direo ao Congo. Depois libertariam os trabalhadores e voltariam para o

    mesmo stio, entre a picada e a estrada. Nesse dia, os tugas no ousariam aproximar-se. No dia

    seguinte, os trabalhadores iriam dizer que os guerrilheiros tinham voltado ao Congo e os

    soldados cairiam, sem contar, numa emboscada. O que faria pensar que vrios grupos atuavam

    ali.

    Habituados a que ns faamos uma ao e depois recuemos para o Congo, nunca se

    apercebero de que o mesmo grupo disse Sem Medo. E isso influir no esprito do povo,

    a quem mostraremos uma fora desconhecida, e no do tuga, que ficar certamente

    desorientado. O que preciso no fazer erros.

  • 19

    Foi pena o tuga ter escapado disse o Das Operaes.

    Que amos fazer? Disparar sobre ele e mat-lo, como faz a UPA? um civil. Tinha

    uma tal cara de medo! No devemos mostrar coragem assassinando civis, mesmo que

    colonialistas... Tentmos apanh-lo vivo, mas fugiu. Assim at foi melhor! Que amos fazer

    dele? Libert-lo como aos outros? Haveria uma revolta dos guerrilheiros. Lev-lo para o

    Congo? Com que pretexto?

    Acho que fizeste bem disse o Comissrio. No devemos ir contra a populao

    civil, embora ela seja hostil. Para qu dar argumentos ao Governo?

    O Chefe de Operaes nada disse. Levantou-se e foi mata.

    Falaste do bilhete que deixaste no buldozer, mas no disseste qual o teor dele,

    Comandante.

    Sem Medo explicou-lhe o que dizia o bilhete. O Comissrio riu e depois disse:

    Muito pouco poltico!

    Que querias? Que copiasse uma citao de Marx? A nica poltica que esses tugas

    compreendem essa.

    Almoaram ali mesmo, os guerrilheiros e os trabalhadores. As gamelas foram passadas

    de mo em mo. Um trabalhador tinha um mao de cigarros, que distribuiu pelos guerrilheiros.

    As palavras soltaram-se, deitados perto do Lombe, e s ento os trabalhadores descobriram que

    Lutamos tambm era de Cabinda.

    Pronto, pensou Sem Medo, viram que h um deles entre ns, j tm confiana. O

    tribalismo s vezes ajuda. Mas que tem o Das Operaes que est to atento conversa? Ah!

    Tenta captar o que diz Lutamos, espiar se no trai. Com que prazer este tipo no comeria o

    Lutamos, frito com leo de palma...

    Eu, o Narrador, Sou Milagre.

    Nasci em Quibaxe, regio kimbundo, como o Comissrio e o Chefe de Operaes, que

    so dali prximo.

    Bazukeiro, gosto de ver os camies carregados de tropa serem travados pelo meu tiro

    certeiro. Penso que na vida no pode haver maior prazer.

    A minha terra rica em caf, mas o meu pai sempre foi um pobre campons. E eu s fiz

    a Primeira Classe, o resto aprendi aqui, na Revoluo. Era miado na altura de 1961. Mas

    lembro-me ainda das cenas de crianas atiradas contra as rvores, de homens enterrados at ao

    pescoo, cabea de fora, e o trator passando, cortando as cabeas com a lmina feita para abrir

    terra, para dar riqueza aos homens. Com que prazer destru h bocado o buldozer! Era parecido

    com aquele que arrancou a cabea do meu pai. O buldozer no tem culpa, depende de quem o

    guia, como a arma que se empunha. Mas eu no posso deixar de odiar os tratores, desculpem-

    me.

    E agora o Lutamos fala aos trabalhadores. Talvez explique que os quis avisar antes, mas

    que foi descoberto. E deixam-no falar! O Comandante no liga, ele no estava em Angola em

  • 20

    1961, ou, se estava, no sofreu nada. Estava em Luanda, devia ser estudante, que sabe ele disso?

    E o Comissrio? Nestas coisas o Comissrio um mole, ele pensa que com boas palavras que

    se convence o povo de Cabinda, este povo de traidores. S o Chefe de Operaes... Mas esse

    o terceiro no Comando, no tem fora.

    E eu fugi de Angola com a me. Era um miado. Fui para Kinshasa. Depois vim para o

    MPLA, chamado pelo meu tio, que era dirigente. Na altura! Hoje no , foi expulso. O MPLA

    expulsa os melhores, s porque eles se no deixam dominar pelos kikongos que o invadiram.

    Pobre MPLA! S na Primeira Regio ele ainda o mesmo, o movimento de vanguarda. E ns,

    os da Primeira Regio, forados a fazer a guerra aqui, numa regio alheia, onde no falam a

    nossa lngua, onde o povo contra-revolucionrio, e ns que fazemos aqui? Pobre MPLA,

    longe da nossa Regio, no pode dar nada!

    Caminharam toda a tarde, subindo o Lombe. Pararam s cinco horas, para procurarem

    lenha seca e prepararem o acampamento: s seis horas, no Mayombe, era noite escura e no se

    poderia avanar.

    A refeio foi comum: arroz com feijo e depois peixe, que Lutamos e um trabalhador

    apanharam no Lombe. Os trabalhadores no tentavam fugir, se bem que mil ocasies se

    tivessem apresentado durante a marcha. Sobretudo quando Milagre caiu com a bazuka e os

    guerrilheiros vieram ver o que se passara; alguns trabalhadores tinham ficado isolados e

    sentaram-se, espera dos combatentes, sem escaparem. A confiana provocava conversas

    animadas.

    Aproveitando algumas informaes colhidas, o Comissrio falou para os trabalhadores,

    enquanto os garfos levavam o arroz com feijo ao seu destino.

    Vocs ganham vinte escudos por dia, para abaterem as rvores a machado,

    marcharem, marcharem, carregarem pesos. O motorista ganha cinquenta escudos por dia, por

    trabalhar com a serra. Mas quantas rvores abate por dia a vossa equipa? Umas trinta. E quanto

    ganha o patro por cada rvore? Um dinheiro. O que que o patro faz para ganhar esse

    dinheiro? Nada, nada. Mas ele que ganha. E o machado com que vocs trabalham nem sequer

    dele. vosso, que o compram na cantina por setenta escudos. E a catana dele? No, vocs

    compram-na por cinquenta escudos. Quer dizer, nem os instrumentos com que vocs

    trabalham pertencem ao patro. Vocs so obrigados a compr-los, so descontados do vosso

    salrio no fim do ms. As rvores so do patro? No. So vossas, so nossas, porque esto na

    terra angolana. Os machados e as catanas so do patro? No, so vossos. O suor do trabalho

    do patro? No, vosso, pois so vocs que trabalham. Ento, como que ele ganha muitos

    contos por dia e a vocs d vinte escudos? Com que direito? Isso explorao colonialista. O

    que trabalha est a arranjar riqueza para o estrangeiro, que no trabalha. O patro tem a fora

    do lado dele, tem o exrcito, a polcia, a administrao. com essa fora que ele vos obriga a

    trabalhar, para ele enriquecer. Fizemos bem ou no em destruir o buldozer?

    Fizeram bem responderam os trabalhadores.

  • 21

    E esta serra mecnica, a quem que ela pertence verdadeiramente? O patro

    comprou-a aos alemes, mas onde arranjou dinheiro para compr-la? Quem explorou ele para

    comprar esta serra? Respondam.

    Aos trabalhadores respondeu o jovem Antnio.

    Esta serra pertence-vos, pertence ao povo. Por isso no pode voltar para o

    colonialista. A gente dava-a a vocs, porque vossa, mas que vo fazer com ela? Podem vend-

    la? Podem utiliz-la?

    No. melhor levarem a serra respondeu o trabalhador mais velho, o que tinha as

    pernas tortas. Ns no podemos utilizar isso.

    O que vosso, os machados, as catanas, os canivetes, os relgios, o dinheiro, tudo o

    que vosso, vocs vo levar convosco. E vo levar os machados e catanas dos que fugiram,

    para lhes entregar. Mas o que do colonialista fica connosco. Os tugas dizem que somos

    bandidos, que matamos o povo, que roubamos. Fizemo-vos mal? Matmos algum? Mesmo o

    branco, podamos mat-lo, no quisemos. No somos bandidos. Somos soldados que estamos a

    lutar para que as rvores que vocs abatem sirvam o povo e no o estrangeiro. Estamos a lutar

    para que o petrleo de Cabinda sirva para enriquecer o povo e no os americanos. Mas como

    ns lutamos contra os colonialistas, e como os colonialistas sabem que, com a nossa vitria,

    eles perdero as riquezas que roubam ao povo, ento eles dizem que somos bandidos, para que

    o povo tenha medo de ns e nos denuncie ao exrcito.

    A conversa prolongava-se, ora em portugus com o Comissrio e Teoria, ora em fiote

    com Lutamos. Os trabalhadores contaram o que sabiam dos quartis da Regio, das condies

    de vida, do que pensavam as populaes. Sem Medo escutava, mas estava tambm atento aos

    comentrios do resto dos guerrilheiros. Estes dividiam-se grosso modo em dois grupos: os

    kimbundos, volta do Chefe de Operaes, e o grupo dos outros, os que no eram kimbundos,

    os kikongos, umbundos e destribalizados como o Muatinvua, filho de pai umbundo e me

    kimbundo, nascido na Lunda. Mundo Novo era de Luanda, de origem kimbundo, mas os

    estudos ou talvez a permanncia na Europa tinham-no libertado do tribalismo. Mantinha-se

    isolado, limpando a arma luz da fogueira.

    Quando se deitaram, o Comissrio perguntou a meia voz:

    Ento, que pensas desta operao?

    Falas que nem um padre disse Sem Medo. Se no acreditaram em ti, pelo menos

    so suficientemente bem educados para no o mostrarem... Penso que sim, que preciso

    repetir aes deste gnero, este povo pode ser mobilizado. Se tivssemos aqui uma organizao

    slida, sim. Mas que queres? Com a organizao que temos, com a bandalheira que h, estas

    aes lembram-me demasiado as promessas do Seminrio. Por isso te falei em padres. como

    se prometesses a vida eterna no Alm, quando na Terra fazes o mximo por tornar a vida

    insuportvel.

    No percebo o que queres dizer.

  • 22

    Quando estava no Seminrio, uma coisa sempre me intrigou, era uma nota

    discordante. Foi essa nota discordante que me empurrou para o sacrilgio e, mais tarde, para o

    atesmo. Porque que os padres, to puros, to castos, to bondosos e to santos, que nos

    preparavam para servir Deus, para merecer Deus, prometendo-nos as delcias da vida celestial,

    nos faziam a vida negra no Seminrio, eram to arbitrrios, to cruis, to sdicos nos

    tormentos que inventavam em nossa inteno. Isso levou-me a desejar o que os horrorizava, a

    querer conhecer o que eles temiam, a procurar o que eles nos proibiam de ver ou ouvir ou

    sentir. Foi com um misto de terror sagrado, de prazer carnal e de prazer de vingana que tive a

    primeira mulher. Em pleno Seminrio, num anexo; era uma criada que aliviava os seminaristas

    e, quem sabe?, alguns padres. Eu tinha 14 anos. Confessei-me na manh seguinte e escondi o

    fato, pois seria expulso: j no acreditava no segredo da confisso. E comunguei em pecado

    mortal, pois, se o no fizesse, notar-se-ia que qualquer coisa se passava. E continuei a

    confessar-me, sem coragem de lavar o sacrilgio. E continuei a encontrar-me com a criada nos

    anexos e a ter cada vez maior prazer no amor e, sobretudo, no fato de ser um amor perverso,

    envenenado pelo sacrilgio que nunca corrigiria. At que, aos 16 anos, j fora do Seminrio

    donde finalmente fui expulso por ameaar de bater num padre branco que fazia racismo aberto

    , tornou-se intolervel o medo do Inferno, senti-me danado, perseguido por mil crimes e por

    todos os prazeres ignbeis que praticara. A certeza de que estava perdido foi to grande que

    decidi que o Inferno no existia, no podia existir, seno eu estaria condenado. Ou negava,

    matava o que me perseguia, ou endoidecia de medo. Matei Deus, matei o Inferno e matei o

    medo do Inferno. A aprendi que se devem enfrentar os inimigos, a nica maneira de se

    encontrar a paz interior.

    No vejo a relao disse o Comissrio.

    Eu tambm no. A princpio via-a, agora j nem sei porque falei nisso. Mas tu a falar,

    a prometer liberdade, fizeste-me lembrar o Seminrio, que queres?

    E tapou a cabea com o cobertor, caindo imediatamente em sono profundo.

    O Comissrio ficou a pensar nas palavras de Sem Medo, a olhar as chamas da fogueira

    que modificavam as feies dos homens e das coisas, e abriam as confidncias.

    Depois do mata-bicho, despediram-se dos trabalhadores, devolvendo-lhes tudo o que

    lhes pertencia. Tudo no, pois foi impossvel encontrar a nota de cem escudos que tinham

    retirado dos bolsos do mecnico, e que Ekuikui guardara. Tinham revistado os bolsos, a roupa,

    o sacador de Ekuikui, e no a encontraram. Ekuikui chorava, dizendo que ainda noite estava

    no seu bolso, quisera entreg-la ao Comissrio, este dissera que no valia a pena, que ficasse

    com Ekuikui e que, de manh, seria restituda ao dono. Durante a noite desaparecera, algum a

    roubara, protestava o ex-caador. Mas ele no a escondera, nunca roubaria um homem do

    povo, sabia o que isso significava para o Movimento. Despediram-se dos trabalhadores, o

    mecnico dizendo que no tinha importncia, era pouco dinheiro. O que queria era ver-se livre

    e o problema da nota atrasava a partida e a liberdade.

  • 23

    Quando os guerrilheiros avanaram cerca de um quilmetro, subindo o rio, o

    Comandante mandou estacar.

    Reunio. Vamos sentar.

    Os guerrilheiros obedeceram. Sem Medo continuou:

    Vamos voltar para trs e fazer uma emboscada na estrada. Os trabalhadores vo dizer

    que voltmos para o Congo e os tugas no esperaro encontrar-nos na estrada. Mas preciso

    tomarmos um bom avano. Claro que no temos comida suficiente para estes dias a mais que

    passaremos longe da Base. Teremos de fazer sacrifcio. Mas, se a operao for bem sucedida, o

    Comando pensa que vale a pena passar uns dois dias sem comer. Se os camaradas estiverem de

    acordo. Esto de acordo em aguentar mais um bocado e dar uma porrada valente no tuga?

    Os guerrilheiros, sem exceo, aprovaram entusiasticamente. H muito no tinham

    encontro com o exrcito colonial.

    Bem disse Sem Medo, sorrindo , ento temos de deixar os trabalhadores

    ganharem um bom avano. Entretanto, vamos aproveitar para ver este caso dos cem escudos.

    Isto grave, pois pode desmentir tudo o que dissemos. Quer dizer que, afinal, somos mesmo

    bandidos, que roubamos o povo. O sacana que ficou com o dinheiro um contra-

    revolucionrio, alm de ser um ladro barato, pois sabotou toda a boa impresso que podamos

    ter causado aos trabalhadores. melhor que ele diga j onde est o dinheiro... Quanto mais

    tarde, pior!

    Ningum falou. O Comissrio reforou as palavras do Comandante. Ningum se

    manifestou. O Comandante mandou ento vir um por um junto dele, para ser revistado. Foi

    nesse momento que o Chefe de Operaes disse:

    Mas, que eu saiba, o Ekuikui que tinha o dinheiro. Porque se pensa que no foi ele

    e que foi outro? Pode ter enterrado a nota, ou escondido atrs dum pau, para que no se visse

    ao ser revistado. Alis, tudo devia ter ficado com o Comissrio, ele que devia guardar. Agora,

    revistar toda a gente... uma desconfiana, ofender!

    J sei que a culpa minha explodiu o Comissrio. certo que a culpa foi minha

    por no ter ficado com o dinheiro, como fiquei com os relgios. Sim, a culpa minha. Mas

    agora o que h a fazer revistar todos. J revistmos o Ekuikui, vamos faz-lo a todos. No

    ofensa nenhuma, mas por um pagam todos.

    Entretanto, Sem Medo no olhava a cara exaltada do Comissrio ou os olhos frios do

    Chefe de Operaes. Sem Medo estudava as reaes de cada um dos guerrilheiros.

    Eu no estou de acordo com a desconfiana que existe contra os guerrilheiros disse

    o Das Operaes, o que fez soltar das gargantas de alguns combatentes murmrios de

    aprovao. Se um responsvel erra, por que que esse erro se torna numa desconfiana em

    relao aos guerrilheiros? Por que que todos os guerrilheiros so envergonhados, todos, s

    por causa de um? E se o erro vem dum responsvel?

  • 24

    Chega! gritou Sem Medo. O erro dum responsvel no justifica um roubo, um

    roubo de merda de cem paus, dum miservel sabotador. Vamos passar revista. As guerras no

    se ganham com demagogias, s para se ter apoio das bases! Lutamos, aproxima-te.

    Mas Sem Medo no olhava Lutamos, que se aproximou com o sacador aberto. Sem

    Medo fixava o grupo do fundo. Lutamos foi revistado pelo Comissrio e mais o sacador, e tudo

    onde se poderia meter uma nota de cem escudos. Lutamos estava a vestir-se, quando Sem

    Medo deu um salto terrvel, rugindo, sobre o grupo do fundo. Segurou um brao de Ingratido

    do Tuga, que tentou libertar-se, e a nota de cem escudos caiu no cho.

    Sacana! disse Sem Medo, arquejando. Desconfiava de ti desde o primeiro

    momento.

    Arrastou Ingratido para o meio do grupo e disse:

    Foi ele que dormiu ao lado do Ekuikui. Agora, estava a tentar enterrar a nota, para

    depois a recuperar. Mas eu estava atento. Fala, como apanhaste essa nota?

    Era intil esconder, perigoso mesmo. Ingratido do Tuga confirmou que dormira ao

    lado de Ekuikui e tinha visto em que bolso o ex-caador tinha guardado a nota. Roubara-a

    durante a noite. Os guerrilheiros no diziam nada, uns estavam a favor de Ingratido, outros

    contra.

    Sers julgado ao chegar Base. A tua arma fica com Ekuikui, que te vai guardar.

    Cuidado se ele foge! Sers tu julgado no seu lugar. Que raio de guerrilheiro me saste tu, que te

    deixas roubar? No dormes s com um olho?

    Ontem estava muito cansado, camarada Comandante. Dormi de mais...

    Comandante, como vamos fazer para reencontrar os trabalhadores? disse Lutamos.

    Agora devem j estar muito longe, impossvel.

    Eu penso que o melhor depois do ataque tentarmos contatar o povo props

    Teoria. Estudaremos calmamente a maneira. Temos o nome dele e do kimbo, talvez

    consigamos l chegar e entregar-lhe.

    Muito arriscado disse o Das Operaes.

    Eu sou voluntrio para l ir disse o Comissrio: Fui o responsvel do que se

    passou, sei qual a importncia da coisa no aspecto poltico e...

    Vamos estudar isso depois disse Sem Medo. Agora vamos avanar. Mas com

    cuidado. Se, por acaso, o tuga nos perseguiu e quer ver at onde vamos, podemos dar encontro

    cara a cara. E melhor mesmo irmos por outro caminho, no temos pressa de chegar.

    Lutamos ps-se frente da coluna e esta l seguiu, levando no meio um Ingratido do

    Tuga desarmado, o que era um risco, pois o inimigo podia aparecer dum momento para o

    outro.

    Os homens comeavam a dar mostras de fadiga, j tinham sado da Base h quatro dias

    e as provises em breve faltariam, pois tiveram de as repartir com os trabalhadores. Eram

    dados que se tinha de ter em conta, pensava Sem Medo, a AKA segura pelo cano e atirada

  • 25

    negligentemente sobre o ombro, o chapu cubano escondendo o risco da bala na pele da testa

    (daquela vez que fora surpreendido pelo inimigo no rio, quando tomava banho; tivera de fingir

    estar morto, o que era confirmado pelo sangue que lhe corria da testa e tingia a gua do rio;

    quando os camaradas reagiram, ele pde esconder-se entre as pedras e voltar Base, nu; fora

    castigado pelo Comando, por Henda, pois o cantil e o cinturo foram recuperados pelo

    inimigo; no a arma, que os companheiros tinham trazido). Depois de uma hora de marcha,

    Sem Medo mandou parar.

    Vamos pescar, temos de poupar comida.

    A maior parte das provises eram conservas (corned-beef, sardinhas, um pouco de leite), o

    resto era arroz e xikuanga.

    Lutamos trazia sempre anzis e linha. Ele e Mundo Novo encavalitaram-se numa pedra,

    enquanto os outros se espalhavam em grupos pelo Lombe, lavando-se ou conversando. Sem

    Medo gostava destas pausas numa marcha, em que filosofava consigo, contemplando as

    rvores, ou em que auscultava a maneira de ser dos companheiros. Vendo Teoria isolado,

    esfregando o joelho, o Comandante aproximou-se e sentou-se a seu lado.

    Est a doer?

    Ligeiramente. Est a melhorar.

    Sem Medo acendeu um cigarro, um dos ltimos que lhe restavam. Fechou os olhos, para

    melhor saborear a baforada.

    Quando era mido, antes de ir estudar para o Seminrio, aconteceu-me um caso.

    Devia ter uns oito anos. Meti-me com um mais velho e o gajo surrou-me mal. Fugi de medo.

    Abandonei o combate. Durante dias, senti-me um tipo nojento, um covarde, um fraco, sentia

    que um mido qualquer me bateria e eu fugiria...

    Calou-se um momento, observando o professor: Teoria ouvia, o ar impenetrvel. Sem

    Medo continuou:

    Decidi ento que, para ter respeito por mim mesmo, s havia uma coisa a fazer:

    procurar a desforra. Provoquei o outro novamente, no imaginas o medo que eu tinha, sabia

    que ia levar uma surra, no tinha a mnima possibilidade. O outro era muito mais forte e

    treinado nas lutas do muceque. Defendi-me como pude, mais do medo que ele me inspirava

    que propriamente dos murros que recebia. Afinal no doa tanto assim. Sangrava do nariz, foi

    da que fiquei com o nariz ligeiramente torto, como podes ver. Afinal no doa. Foi o outro que

    parou, cansado de bater. Eu iria at ao fim, morreria se fosse necessrio, mas no me rendia.

    Ele acabou por dizer: ganhaste, desisto. Depois disso ficmos amigos... A partir da compreendi

    que no so os golpes sofridos que doem, o sentimento da derrota ou de que se foi covarde.

    Nunca mais fui capaz de fugir. Sempre quis ver at onde era capaz de dominar o medo.

    Porque me falas nisso? perguntou Teoria.

    Havia qualquer coisa que ele queria descobrir em Teoria, qualquer coisa que lhe

    escapava. Respondeu com nova pergunta:

  • 26

    Tens sempre medo?

    O outro contemplou-o, assustado. Sim, assustado, reparou Sem Medo. Assustado, mas,

    no fundo, como que aliviado. Num rompante inconsciente, como a libertar-se, Teoria disse:

    Sim, tenho sempre medo. O medo persegue-me. No sei porque to digo, mas a

    verdade. Tenho medo de fazer guarda noite, tenho medo do combate, tenho medo mesmo de

    viver na Base...

    Desconfiava disso. E porque no o mostras?

    Mostrar? Um mestio mostrar o medo? J viste o que daria? Tenho procurado

    sempre dominar-me, vencer-me... compreendes? como se eu fosse dois: um que tem medo,

    sempre medo, e um outro que se oferece sempre para as misses arriscadas, que apresenta

    constantemente uma vontade de ferro... H um que tem vontade de chorar, de ficar no

    caminho, porque o joelho di, e outro que diz que no nada, que pode continuar. Porque h

    os outros! Sei que, sozinho, sou um covarde, seria incapaz de ter um comportamento de

    homem. Mas quando os outros esto l, a controlar-me, a espiar-me as reaes, a ver se dou um

    passo em falso para ento mostrarem todo o seu racismo, a segunda pessoa que h em mim

    predomina e leva-me a dizer o que no quero, a ser audaz, mesmo demasiado, porque no

    posso recuar... duro!

    Sem Medo passou-lhe o cigarro que fumara at meio. Teoria agarrou-se ansiosamente a

    ele e fumou-o at ao fim, sem parar, tremendo. Sem Medo disse docemente:

    H coisas que uma pessoa esconde, esconde, e que difcil contar. Mas, quando se

    conta, pronto, tudo nos aparece mais claro e sentimo-nos livres. bom conversar. Esse dos

    tais problemas que pode destruir um indivduo, se ele o guarda para si. Mas podes ter a certeza

    de que todos tm medo, o problema que os intelectuais o exageram, dando-lhe demasiada

    importncia. realmente aqui uma origem de classe social... Todos pensamos ter duas

    personalidades, a que covarde e a outra, que no chamamos corajosa, mas inconsciente. O

    medo... o medo no problema. A questo conseguir dominar o medo e ultrapass-lo. Dizes

    que o ultrapassas quando os outros te observam, ou quando pensas que te observam, que o

    mais verdico... mas que, se estiveres sozinho, no s capaz. Talvez. Ds demasiada importncia

    ao que os outros pensam de ti. Hoje, tu j no tens cor, pelo menos no nosso grupo de

    guerrilha ests aceite, completamente aceite. No dum dia para o outro que te vais libertar

    desse complexo de cor, no. Mas tens de comear a pensar que j no um problema para ti.

    Talvez sejas o nico que tem as simpatias e o respeito de todos os guerrilheiros, isso j o notei

    vrias vezes. No podes viver nessa angstia constante, seno os nervos do de si. E hoje j no

    h razo.

    Os meus nervos j estoiraram tantas vezes...

    Ainda no. Foram s ameaos! bom falar, bom conversar com um amigo, a

    quem se abre o corao. Sempre que estiveres atrapalhado, vem ter comigo. A gente papeia.

    Guardar para si no d, s quando se escritor. A um tipo pe tudo num papel, na boca dos

    outros. Mas, quando se no escritor, preciso desabafar, falando. A ao outra espcie de

  • 27

    desabafo, muitos de ns utilizam esse mtodo, outros batem na mulher ou embebedam-se. Mas

    a ao como desabafo perde para mim todo o seu valor, torna-se selvtica, irracional. As outras

    formas so uma covardia. S h a conversa franca que me parece o melhor, a mim que no sou

    escritor. No foi por acaso que os padres inventaram a confisso, ela corresponde a uma

    necessidade humana de desabafo. A religio soube desde o princpio servir-se de certas

    necessidades subjetivas, nasceu mesmo dessas necessidades. Por isso o cristianismo foi to

    aceite. H certas seitas protestantes, no sei se todas, em que a confisso pblica. Isso

    corresponde a um maior grau de sociabilidade, embora leve talvez as pessoas a serem menos

    profundas, menos francas, na confisso. Corresponde melhor hipocrisia burguesa... E da no

    sei, pois eu nunca fui muito franco nas minhas confisses individuais de catlico...

    Lutamos tinha apanhado um grande peixe e os outros aplaudiram, esquecidos do stio

    onde se encontravam. O Comissrio mandou-os calar.

    Mas ser que o medo passa? perguntou Teoria. Eu nunca fui um mido muito

    combativo, nunca me tinha experimentado. Ser que ficarei sempre em pnico?

    O teu problema principal o complexo racial. Esse que condiciona o outro, penso

    eu. Se ficares libertado dele e compreenderes que tirar o xangui de vez em quando no te vai

    rebaixar aos olhos dos outros, que o fazem constantemente e sem remorsos, ento deixars de

    ter pnico e reagirs normalmente, com medo umas vezes, sem medo doutras. De qualquer

    modo, j combateste frequentemente, j altura de te habituares...

    E tu? Nunca sentes medo?

    Eu? s vezes sinto, sim. O pulso acelera-se, tenho frio, mesmo dor de barriga.

    Outras vezes, no. Geralmente, nos momentos de maior perigo, fico calmo, lcido. Penso

    sempre que assustar-me pior. Isso ajuda. Mas procuro sempre o medo, isso verdade. No

    tenho propriamente medo da morte, assim, a frio. Tenho medo de me amedrontar quando vir

    que vou morrer, e perder o respeito por mim prprio. Deve ser horrvel morrer com a sensao

    que os ltimos instantes de vida destruram toda a ideia que se tem de si prprio, toda a ideia

    que se levou uma vida inteira a forjar de si prprio.

    O Chefe de Operaes aproximou-se deles, mas, como os viu conversando baixo,

    afastou-se. Sem Medo chamou-o.

    H alguma coisa?

    melhor preparar-se o almoo, no?

    Sim, sim, aproveita-se.

    Sem Medo e Teoria foram ajudar a preparar o almoo.

    Depois de comerem, voltaram a avanar. Encontraram uma montanha pela frente, que

    atacaram s duas da tarde. A primeira parte da montanha estava coberta de folhas de xikuanga,

    o que dificultava a ascenso. As mochilas pesavam nos ombros, as pernas vergavam-se.

    Paravam frequentemente, para retomar o flego. Quando parecia que se aproximavam do

    cume, surgia nova elevao. As folhas de xikuanga foram substitudas por mata espessa, que era

  • 28

    preciso cortar catana, para abrir caminho. s quatro horas, comeou a chover. A gua descia

    pela montanha, ensopava o solo. As botas tornaram-se dez vezes mais pesadas, com o peso da

    lama. As escorregadelas eram frequentes e Pangu-Akitina, o enfermeiro, ao escorregar, deixou

    cair a ppch, que foi preciso ir buscar vinte metros mais abaixo. As cinco horas atingiram o

    alto da montanha, exaustos. Depois de curto descanso, principiaram a descida, pois noite era

    impossvel dormirem na montanha, por causa do frio. A descida, embora mais rpida, era mais

    perigosa que a subida. O Comissrio escorregou e rebolou na lama, at se conseguir agarrar a

    uma liana. As pernas tremiam, pelo esforo de se aguentarem. Os joelhos doam. Os sacadores

    impeliam os homens para a frente, para o abismo. A chuva continuava a cair. s seis horas

    escureceu totalmente e eles ainda no tinham descido a montanha. O resto foi feito quase de

    rastos, na escurido da montanha traioeira, a chuva fustigando o rosto. Quando algum caa, os

    outros no tinham esperana de o reencontrar. Chegaram finalmente ao rio. A noite no

    permitia procurarem um stio mais ou menos seco para acamparem. Deixaram-se cair numa

    espcie de clareira, controlaram o grupo para ver se estavam todos. Felizmente, ningum

    faltava. Abriram os sacadores, onde tudo estava molhado, o pano de dormir, a comida, as

    munies, tiraram latas de leite e beberam o leite frio, pois no se poderia acender fogo com

    aquela chuvada.

    Ao cair, Teoria voltara a esfolar o joelho. O sangue agora j estancara. Pangu-Akitina

    olhou a ferida, alumiada pela lanterna a pilhas, e deixou-a ficar assim. Como trat-lo, se todos

    os pensos estavam molhados? Limitou-se a deitar-lhe um bocado de lcool sobre o ferimento.

    Teoria apertou os lbios, o que no impediu um gemido teimoso de lhe sair da boca.

    Houve quem estendesse a lona no cho molhado para dormir. A maior parte, porm,

    deitou-se mesmo diretamente no cho, tapando-se com o pano j molhado.

    De vez em quando mexe os braos e as pernas disse Sem Medo ao Comissrio.

    Seno podem ficar fixos ao cho, pois o clima aqui to frtil que, com a chuva, se criam razes

    dum dia para o outro. Boa noite, sonhos cor-de-rosa!

    Como pode ele ainda brincar?, perguntou-se o Comissrio, meio escandalizado.

    Eu, o Narrador, Sou Milagre, o Homem da Bazuka.

    Viram como o Comandante se preocupou tanto com os cem escudos desse traidor de

    Cabinda? No perguntam porqu, no se admiram? Pois eu vou explicar-vos.

    O Comandante kikongo; embora ele tenha ido pequeno para Luanda, o certo que a

    sua famlia veio do Uje. Ora, o fiote e o kikongo so parentes, no fundo o mesmo povo. Por

    isso ele estava to furioso por se ter roubado um dos seus primos. Por isso ele protege

    Lutamos, outro traidor. E viram a raiva com que ele agarrou o Ingratido? Porqu? Ingratido

    kimbando, est tudo explicado.

    Os intelectuais tm a mania de que somos ns, os camponeses, os tribalistas. Mas eles

    tambm o so. O problema que h tribalismo e tribalismo. H o tribalismo justo, porque se

    defende a tribo que merece. E h o tribalismo injusto, quando se quer impor a tribo que no

    merece ter direitos. Foi o que Lenine quis dizer, quando falava de guerras justas e injustas.

  • 29

    preciso sempre distinguir entre o tribalismo justo e o tribalismo injusto, e no falar toa.

    verdade que todos os homens so iguais, todos devem ter os mesmos direitos. Mas nem todos

    os homens esto ao mesmo nvel; h uns que esto mais avanados que outros. So os que

    esto mais avanados que devem governar os outros, so eles que sabem. E como as tribos: as

    mais avanadas devem dirigir as outras e fazer com que estas avancem, at se poderem

    governar.

    Mas, o que se v agora aqui? So os mais atrasados que querem mandar. E eles vo

    apanhando os lugares-chave, enquanto h dos nossos que os ajudam. como esse parvo do

    Comissrio, que no percebe nada do que se passa. Deixa-se levar pelo Comandante, est

    sempre contra o Chefe de Operaes. Um tipo que inteligente, poas!, ele l muito, e, afinal,

    deixa-se levar assim. Ou ser que faz de propsito? s vezes penso que ele tem um pacto com

    os outros contra ns, os do seu sangue.

    Eu sofri o colonialismo na carne. O meu pai foi morto pelos tugos. Como posso

    suportar ver pessoas que no sofreram agora mandarem em ns, at parece que sabem do que

    precisamos? contra esta injustia que temos de lutar: que sejam os verdadeiros filhos do

    povo, os genunos, a tomar as coisas em mos.

    Choveu durante toda a noite. Alguns guerrilheiros, entre os quais Sem Medo,

    conseguiram dormir. A maior parte, porm, no pregou olho, tremendo de frio e recebendo a

    chuva em todo o corpo.

    De madrugada, as feies encovadas demonstravam o cansao de dias seguidos de

    esforo e sofrimento. S beberam leite. A comida estava molhada, a xikuanga desfizera-se com

    a gua. Restava-lhes o arroz e as latarias, alis raras. A mata estava hmida, pingando ainda das

    folhas. O cho era um pntano escorregadio. Avanaram sempre a corta mato, at que s dez

    horas reencontraram o Lombe. Uma patrulha subiu a uma elevao, para se orientar.

    Estavam perto da estrada. Retomaram a marcha, tendo esquecido o cansao. Ao

    alcanarem a estrada, ouviram duas exploses surdas, logo seguidas de uma outra: os tugas

    tinham saltado nas minas perto do buldozer. Os guerrilheiros riram, segurando com mais

    firmeza as armas.

    Passados momentos, o Chefe de Operaes foi fazer um reconhecimento, procura do

    melhor stio para se fazer a emboscada. Era j meio-dia. Quando o Chefe de Operaes voltou,

    avanaram todos para o local escolhido. Sem Medo apreciou o stio, aprovou com a cabea e

    disps os homens ao longo da estrada. Ningum comera, s chuparam um pouco de leite das

    latas. Os guerrilheiros tinham de estar prontos para tudo, pois os soldados podiam voltar dum

    momento para o outro, transportando os feridos das minas.

    Passaram altas horas. Nada. Sem Medo foi ter com o Comissrio e o Chefe de

    Operaes.

    Levaram os feridos para o outro quartel, certamente disse o Comandante. Mas

    h-de vir uma patrulha por aqui. Temos de aguentar.

  • 30

    A ltima vez que comemos foi ontem ao meio-dia disse o Comissrio. Os

    camaradas no aguentam muito mais, com o esforo de ontem... O melhor retirarmos para

    podermos acender fogo e cozinhar. Amanh eles passaro.

    No disse o Chefe de Operaes , eles vo passar hoje. impossvel que no

    mandem reforos do Sanga. Portanto, os reforos vo voltar, eles no aceitam dormir na mata.

    Os camaradas aguentam, querem combater. E esperar mais um dia pior, ento acaba a comida

    de vez.

    Tens razo, Das Operaes. Vamos esperar at s cinco horas disse o Comandante.

    Se at l no vierem, ento retiramos para acampar e procurar lenha seca. D tempo! O

    Comissrio ficou contrariado, mais pelo brilho dos olhos do Chefe de Operaes. Mas no

    replicou. Voltaram a tomar posio.

    Havia guerrilheiros que adormeciam, as armas em posio e o dedo no gatilho. O

    Comandante percorria constantemente a fila de combatentes, acordando-os suavemente para

    no os assustar, perguntando coisas insignificantes, sussurrando estrias e anedotas, para

    levantar o moral. Os guerrilheiros sorriam, piscavam-lhe o olho, demonstrando confiana.

    engraado, pensava Sem Medo, ao ir de um para outro, mesmo os que no me gramam nada

    parece que me adoram. a solidariedade do combate!

    Tinham devolvido a arma a Ingratido do Tuga, mas Ekuikui recebera misso de o vigiar

    de perto. Ekuikui cumpria, muito compenetrado, o seu papel.

    O Comandante deitou-se ao lado de Teoria. O professor lanou-lhe uma rpida mirada,

    mas nada disse. Sabia porqu Sem Medo viera. Sem Medo tambm sabia por que viera.

    Ento? perguntou o Comandante.

    O meu segundo eu prevalece disse Teoria. No te preocupes.

    No estou preocupado. Sabia disso.

    Sem Medo levantou-se e avanou ao longo da estrada, para saber como estava o guarda,

    colocado a duzentos metros da emboscada e encarregado de dar o sinal, quando o inimigo

    aparecesse.

    Vamos embora, camarada Comandante?

    No. Eles vo vir.

    Tenho fome, camarada Comandante.

    E eu que ainda no fumei hoje? respondeu Sem Medo.

    Voltou para o stio da emboscada. Placou no seu lugar e esperou, numa sonolncia leve,

    interrompida pelo gesto de ver as horas. s quatro, o Sol j no se vislumbrava, tapado pelas

    rvores do outro lado da estrada.

    A espera era o pior. Depois de o inimigo surgir, acabavam os problemas, os fantasmas

    ficavam para trs, e s a ao contava. Mas, na espera, as recordaes tristes da meninice

    misturavam-se saudade dos amigos mortos em combate e mesmo (ou sobretudo) ao rosto de

  • 31

    Leli. Sem Medo notou que tinham passado mais de seis meses sem pensar em Leli. Desde o

    ltimo combate. Ao irem atacar o Posto de Miconje, a imagem de Leli viera confundir-se com a

    chuva que formava torrentes de lama, resvalando pela encosta que subiam para atingirem o

    inimigo. Tinham progredido na noite, debaixo do aguaceiro constante, para atingirem o ponto

    de ataque s seis da manh. A lama e a chuva cegavam-nos, asfixiavam-nos, ofegantes pelo

    esforo de subirem de rastos uma montanha coberta de mata densa. Fora a, na cegueira da

    floresta e da chuva, que Leli viera, se impusera de novo. A angstia perseguiu-o at dar a ordem

    de fogo. O grito de fogo sara-lhe como uma libertao, um urro de animal fugindo da

    armadilha. O grito ferido de Sem Medo afugentara a imagem de Leli.

    Mais uma vez Leli voltava e se impunha. Os olhos de Leli acusavam-no de mil crimes,

    vingativos e meigos; havia tal abandono e solido nos olhos dela que Sem Medo quis gritar,

    afastando o fantasma. Mas era demasiado cedo, o inimigo no aparecera, e ele no podia dar

    ordem de fogo. Quatro e um quarto. A angstia ganhara-lhe o ventre, sentia clicas. Esquecera

    onde estava, o corpo no se fazia sentir sobre os cotovelos dormentes, as mos encravadas na

    AKA, os olhos teimosamente fixos na estrada, no princpio da curva. Leli suplicava e acusava,

    muda, as palavras eram inteis, ele conhecia-as, no as esquecera. Foi essa a tua vingana,

    reconquistares-me para me abandonares ao saberes que eu estava de novo presa a ti. O teu

    orgulho, tudo pelo teu orgulho, um orgulho sem limites, que tudo sacrifica. Ele conhecia as

    palavras, as palavras que mil vezes lhe martelaram a memria, por isso s os olhos de Leli

    falavam agora.

    Ela corria na praia branca. Os coqueiros inclinavam-se para a cumprimentar. Nua, resplandescente

    luz da Lua, o corpo castanho perlado de gotas de gua que refletiam o brilho da Lua. Ela corria pela praia

    branca ao seu encontro. Abraavam-se, nus, sombra confidente dos coqueiros, e deixavam-se cair na areia.

    O suor manchava-lhe a camisa. Sentia-se mal, a angstia irradiara do ventre para o peito

    e a respirao tornava-se ofegante. O teu orgulho, um orgulho sem limites... Sem Medo quis

    levantar-se para correr, correr at ao stio onde estava o inimigo, despejar todos os carregadores

    at apagar a imagem de Leli. Mas o guarda apareceu, fazendo sinais, e Leli sumiu.

    Pelos sinais, Sem Medo compreendeu que os soldados vinham a p, o que dificultava a

    operao. A notcia correu rapidamente pelos guerrilheiros. Momentos depois, ouviram as

    primeiras vozes. Os tugas vinham alegres por regressarem ao quartel, barulhentos,

    despreocupados, convencidos que os guerrilheiros j estavam no Congo. Sem Medo percebeu

    mesmo a aluso gritada dum soldado aos hbitos da irm de outro. O tuga sempre o mesmo,

    em todas as circunstncias, pensou. Ser o que fala que tombar com a minha rajada, ou o

    outro, cuja irm foi ofendida?

    Os primeiros soldados apareceram na curva da estrada. Depois, aos poucos, o resto da

    companhia. Vinham sem ordem, aos grupos, desatentos, as armas sobre o ombro. O grupo da

    frente entrou na zona de morte, avanou at passar pelo comandante. Sem Medo ia contando

    os soldados inimigos. Contou at setenta. Os guerrilheiros esperavam a rajada do Comandante,

  • 32

    sinal de abrir fogo. A vanguarda inimiga aproximava-se do ltimo guerrilheiro, enquanto os da

    cauda entravam na emboscada.

    Est lindo, entraram que nem patinhos! pensou Sem Medo. E disparou, visando os

    que estavam sua frente, a menos de quatro metros. Imediatamente crepitaram as ppchs

    com o seu barulho de mquina de costura. Dois segundos depois, Milagre erguia-se e bazukava

    sabiamente o grupo avanado. Os soldados, apanhados na mais completa surpresa, s placaram

    ao solo ou cambalhotaram, quando j muitos tinham cado. Os gemidos confundiam-se com o

    cacarojar das ppchs e o estrondo das granadas. Finalmente, os primeiros soldados

    comearam timidamente a responder ao fogo, para permitir que os que estavam na estrada

    pudessem ganhar a mata protetora.

    Sem Medo mudou o carregador, no momento em que apercebeu o soldado sua frente,

    deitado na borda da estrada, tentando febrilmente desencravar a culatra da G3. O soldado

    tinha-o visto, mas a arma encravara. Sem Medo apontou a AKA. O soldado era um mido

    aterrorizado sua frente, a uns quatro metros, as mos fincadas na culatra que no safava a bala

    usada. Os dois sabiam o que se ia passar. Necessariamente, como qualquer tragdia. A bala de

    Sem Medo abriu um buraquinho na testa do rapaz e o olhar aterrorizado desapareceu.

    Necessariamente, sem que qualquer dos dois pensasse na possibilidade contrria.

    Os soldados que se encontravam na estrada estavam mortos ou feridos. Os outros

    disparavam agora furiosamente, visando as rvores. Tinham ficado muitos vivos, era impossvel

    passar ao assalto. Sem Medo deu ordem de retirar. Era o mais difcil: as balas silvavam acima

    das cabeas, cortando os ramos ou cravando-se nos troncos das arvores. Milagre, expondo-se

    perigosamente, bazukou uma moita donde vrios inimigos faziam fogo nutrido. A ao de

    Milagre fez parar o fogo inimigo e os guerrilheiros aproveitaram para recuar, rastejando, at

    ficarem ao abrigo dos tiros adversrios. Grande combatente, esse Milagre, pensou Sem Medo,

    enquanto rastejava. A dez metros do stio onde se encontravam, j puderam erguer-se um

    pouco e afastarem-se, pois tinham rvores interpostas. Os soldados colonialistas aumentaram o

    volume de fogo. Os guerrilheiros recuaram at ao ponto de encontro. Os soldados lanavam

    insultos, de mistura com balas, certos agora que os guerrilheiros j tinham partido. Do Sanga

    comearam a cair os primeiros obuses de morteiro, atirados toa, s para desmoralizar.

    No ponto de recuo, os responsveis controlaram os combatentes: Alvorada tinha um

    ferimento ligeiro no ombro e Muatinvua ainda no tinha chegado. Esperaram Muatinvua,

    enquanto Pangu-Akitina tratava do ferido. Muatinvua no aparecia.

    Deve ter apanhado disse o Comissrio. preciso ir busc-lo.

    No pode disse Milagre. Eu estava ao lado dele e no o vi apanhar.

    Viste-o recuar? perguntou o Comandante.

    No.

    Ento, pode ter apanhado no recuo. Quem voluntrio para o ir buscar?

  • 33

    Os guerrilheiros contemplaram-se, hesitando. Os soldados continuavam a fazer fogo e

    era arriscado voltar ao stio da emboscada, mais perigoso que fazer a emboscada. Lutamos e

    Ekuikui ofereceram-se. Teoria no se ofereceu, notou Sem Medo. Est a fazer progressos,

    noutra altura teria de ser voluntrio, por afirmao. O Comandante deixou partir os dois

    voluntrios e depois disse:

    Ningum se queria oferecer, porque Muatinvua um destribalizado. Fosse ele

    kikongo ou kimbundo e logo quatro ou cinco se ofereceriam... Quem foi? Lutamos, que

    cabinda, e Ekuikui, que umbundo. Uns destribalizados como ele, pois aqui no h outros

    cabindas ou umbundos... assim que vamos ganhar a guerra?

    O soldado aterrorizado que deixara encravar a arma devia ser minhoto ou

    transmontano. E os outros minhotos ou transmontanos disparavam raivosamente para o

    cobrir. Ao situarem de onde viera o tiro de Sem Medo que fizera desaparecer o olhar

    aterrorizado, todos os minhotos ou transmontanos dispararam raivosamente na sua direo.

    No havia grande diferena!

    Os dois voluntrios no precisaram de chegar emboscada, pois encontraram

    Muatinvua, que se dirigia tranquilamente para o stio de recuo.

    Que ficaste l a fazer? perguntou Sem Medo.

    A contar os mortos, para o Comunicado de Guerra! Havia 16 corpos na estrada,

    mortos ou feridos, quem sabe? Os outros estavam zangados, insultavam mal...

    Quando mando recuar, para recuar! gritou Sem Medo, para se convencer. Fizera

    um dia a mesma coisa e fora criticado e louvado ao mesmo tempo. Mudou logo o tom de voz:

    Dezasseis, dizes tu? No foi nada mau. Vamos embora.

    E avanaram a corta mato, Lutamos frente abrindo caminho com a catana. At s seis

    horas, momento em que voltaram a encontrar o Lombe. Acamparam a. Os soldados tinham

    parado de fazer fogo, certamente sem mais munies, mas a artilharia do Sanga continuava a

    gastar inutilmente obuses. Seria assim toda a noite. O combate durara dois minutos, constatou

    Sem Medo.

    Voltaram a retirar a arma a Ingratido do Tuga. No fizeram guarda. noite, na mata, o

    melhor guarda era a impenetrabilidade do Mayombe. O inimigo no sabia o lugar para onde

    tinham retirado, por isso os obuses de morteiro caam a uns cinco quilmetros para a direita.

    Os morteiros, alis, no eram utilizados como arma ofensiva, mas apenas para levantarem o

    moral dos soldados tugas, cercados numa mata desconhecida e temvel, que escondia monstros

    aterrorizadores. O barulho acalmava-os, dava-lhes conscincia do seu poderio, protegia-os do

    seu prprio medo.

    O Comissrio veio sentar-se ao lado do Comandante, a testa jovem cortada por uma

    ruga. O Chefe de Operaes tambm se encontrava ali ao lado.

    Camarada Comandante, vamos pensar no dinheiro do trabalhador? Como fazer para

    o devolver?

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    Deixa l isso! disse Sem Medo.

    No deixo, no. importante. Tratmos bem os trabalhadores, h muito tempo que

    no tnhamos um contato to importante com o povo do interior, as consequncias podem ser

    muito positivas. Mas houve uma sombra. Um trabalhador foi roubado e soube-o. Os outros

    tambm souberam. Que que o povo vai dizer? Os do MPLA trataram bem os trabalhadores,

    verdade, mas foi s para os mobilizar. Logo que puderam, roubaram o que de valor levavam.

    Que interessa fazer aes assim, se ficamos sujos?

    Bem. Que propes?

    Eu vou com dois camaradas. Tentaremos chegar aldeia onde o mecnico mora e

    deixamos o dinheiro num papel. Algum apanhar o papel e