matrix e o despertar do heroi
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões. Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazeTRANSCRIPT
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Usando a mitologia e a psicologia do
inconsciente, Kelmer nos oferece uma
visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em
todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de
admiradores e instigando intensas discussões.
Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo
de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo
individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do
despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o
renascer.
Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência
do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os
passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o
grande herói de nossas próprias vidas.
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RICARDO KELMER
e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
1ª edição impressa: jul/2005 - 3ª edição para PDF: jun/2012 Capa: Miragem
São Paulo-SP - Brasil - Terra, 3ª Pedra do Sol
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O filme Matrix chegou aos cinemas em 1999,
ou seja, é um filme do século passado.
Entretanto, as ideias que ele trouxe estão cada
vez mais vivas no mundo do século 21:
tecnologia, dominação, liberdade, a natureza da
realidade...
Este livro, porém, põe de lado os aspectos mais
óbvios nas discussões sobre Matrix e foca
naquilo que, para o autor, é o grande motivo do
sucesso do filme: os fundamentos mitológicos
de seu enredo, mais especificamente o mito da jornada do herói.
Contado durante séculos ao redor de fogueiras, esse mito continua a
ser contado e recontado, agora nos livros e nas salas de cinema, para
que sua mensagem principal nunca se perca: o herói é aquele que se
realiza a si mesmo.
Em que parte do roteiro de sua jornada você se encontra agora? A
sociedade já sabe que você é o Escolhido? Onde estão o Morfeu e a
Trinity para ajudá-lo? O traidor já apareceu?
Seja bem-vindo novamente à fascinante aventura de Neo. Dessa vez,
porém, você o acompanhará sob a luz da mitologia e da moderna
psicologia do inconsciente. E verá que, na verdade, o herói está do
outro lado da tela. É o mesmo que agora lê estas palavras.
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Então os deuses, após criarem a raça humana, entraram numa discussão a respeito de onde esconder as respostas para as questões da vida, para que os seres humanos se vissem forçados a procurá-las. "Podemos escondê-las no topo de uma montanha de difícil acesso" – disse um deus. "Não" – disseram os outros. "Eles logo as encontrarão". "Podemos ocultá-las no centro da Terra" sugeriu outro deus. "Não" replicaram os outros. "Eles logo as encontrarão". Outro deus propôs escondê-las no fundo do mar. "Lá também eles logo as encontrarão" disseram os outros. Todos se calaram... Depois de algum tempo outro deus sugeriu: "Devemos colocar as respostas às questões da vida dentro dos seres humanos. Eles nunca irão procurar lá". E assim fizeram. A você que um dia também
se fez a perguntinha safada
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ÍNDICE
Apresentação 07
I - Cinema, mito e psicologia 09 II - Toc, toc, toc... Acorde, Neo! 29
III - Não existe colher ... 45 IV - Morrendo para vencer ... 69
V - Matrix Reloaded e Matrix Revolutions 90
VI - Os personagens 100 VII - Quadro comparativo 104
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APRESENTAÇÃO
Maio de 1999. O filme Matrix estreia no Brasil e eu, com
quinze minutos de exibição, encontro-me atônito, como se uma força
emanasse da tela e me espremesse contra a poltrona. Apesar da su-
pervalorização dos efeitos especiais e das armas, sinto que estou di-
ante de muito mais que um grande filme de aventura e ficção futuris-
ta. Percebo que o enredo tem profundas bases mitológicas e é forma-
do por importantes arquétipos do inconsciente coletivo. Saio do ci-
nema atordoado, envolto em mil pensamentos, preciso ver este filme
de novo...
De fato, voltei mais vezes ao cinema e vi e revi o filme na TV.
Um dia deu-se o clarão: a história de Matrix podia perfeitamente ser
compreendida como metáfora do processo de individuação (neste li-
vro chamarei de autorrealização) de que nos fala a psicologia jungui-
ana. Se os irmãos diretores tinham ou não ciência disso quando cria-
ram o enredo, não importa. O processo todo está lá, camuflado em
obra de ficção.
O sucesso mundial reforçou minha primeira impressão: Matrix
é mesmo um fenômeno cultural, lotando cinemas, influenciando
comportamentos e provocando discussões sobre tecnologia, domina-
ção cultural, controle social, religião e natureza da realidade. Jamais
uma obra artística unira entretenimento, tecnologia e filosofia em tais
dimensões e provocara tanto a mente das pessoas no mundo inteiro. Decidi expressar minha interpretação da obra e, ainda em
1999, comecei a escrever artigos para jornais e sites na internet, pro-
curando discutir aspectos sobre os quais o filme nos fazia pensar co-
mo mitologia, psicologia, filosofia, religião, misticismo e tecnologia.
Em 2000 fui convidado a falar sobre Matrix durante o Encon-
tro da Nova Consciência*. Falei sobre a aventura de Neo para um
público de quinhentas pessoas, comparando-a ao mito da jornada do
herói e ao processo de autorrealização do ser humano, que Jung, o
notável pesquisador da alma, descobriu em seus estudos e no aten-
dimento psicológico a seus pacientes e denominou “processo de in-
dividuação”. Desde então recebo convites de variados lugares para
falar sobre o filme dentro dessa visão mitológico-psicológica, o que
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confirma que Matrix exerce um notável fascínio sobre muitas pesso-
as, jovens e adultos, não apenas fãs de ficção futurista ou maníacos
por computadores.
Como o segundo e o terceiro filmes da série não trouxeram
muitos elementos novos para a análise que faremos aqui, nós nos
concentraremos mais no filme inicial pois ele contém os elementos
principais da ideia sobre a qual fala este livro.
Minha intenção é utilizar a estrutura mitológica do enredo de
Matrix (a jornada do herói) para falar de um tema que considero im-
prescindível nas discussões mais profundas sobre o ser humano: a
questão do autoconhecimento psicológico como fator indispensável
para a verdadeira realização pessoal. Pretendo, dessa forma, mostrar
às pessoas que podemos sim, cada um de nós, sermos os grandes he-
róis de nossas próprias vidas, ou seja, nos realizarmos da forma mais
íntima e verdadeira possível. Para isso, porém, precisaremos fazer
como Neo em Matrix: despertar, conhecer nossas possibilidades e as-
sumir nosso destino.
Usando um filme que é sucesso mundial, além de ser conside-
rado um marco na história do cinema, creio que fica mais fácil levar
esta questão ao grande público e não somente aos que se interessam
por mitologia e psicologia.
Espero que meu livro possa lhe ser útil.
RK
Rio de Janeiro, maio de 2005
* Festival multicultural que acontece anualmente nos dias de carnaval em Campina Grande, Paraíba, e que reúne representantes de diversas áreas da ciência, da arte, da filosofia e das tradições espirituais.
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I
Cinema, mito e psicologia
resumo do filme
No futuro a Inteligência Artificial, uma avançada geração de máquinas pen-santes, entra em guerra contra os humanos e vence. Como praticamente não há mais fontes de energia no planeta, os corpos dos humanos sobrevi-ventes são usados para manter as máquinas funcionando. Para que eles não percebam o que acontece, a Inteligência Artificial faz uso da Matrix, um superprograma de realidade virtual ao qual são conectadas as mentes dos humanos. Dessa forma, adormecidos e indefesos, os humanos dormem e vivem um sonho coletivo onde o mundo é como era no final do século 20. Um grupo de humanos, porém, despertou e mantém-se fora da realidade virtual. Eles se escondem das máquinas, invadem o sistema e tentam fazer as pessoas despertarem. Esses rebeldes creem na profecia do Oráculo que diz que o Predestinado um dia virá para destruir a Matrix e libertar a espécie humana de sua prisão mental. Eles acreditam que Neo, um jovem que vive na Matrix, é o Predestinado. Neo de fato desconfia que há algo errado com a realidade mas não pode aceitar que ele seja o tão aguardado salvador. Começa então sua guerra, contra a Matrix e contra si próprio.
escravos da própria criação
O filme Matrix entra para a história como uma das obras que
mais simbolizam o espírito de nossa época, onde a espécie humana
festeja e glorifica a suprema tecnologia mas ao mesmo tempo come-
ça a despontar no horizonte uma ameaça que nos aterroriza: a possi-
bilidade de nos tornarmos escravos de nossa própria criação.
De certa forma já somos escravos. A tecnologia atual nos faz
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depender das máquinas para quase tudo no dia a dia, desde o mo-
mento em que acordamos até a hora de dormir. Muitos inclusive só
conseguem dormir se houver ar condicionado, ventilador, calefação,
música no rádio ou com a TV ligada.
Faça um teste: da próxima vez que faltar energia elétrica, per-
ceba como as pessoas se comportam. É como se de repente a vida fi-
casse suspensa. Muitos simplesmente não sabem o que fazer e andam
de um lado para outro feito zumbis, como se aguardassem uma or-
dem para voltar a funcionar. Outros saem no escuro à procura de fós-
foros ou isqueiros, praguejam por ter esquecido onde guardaram a-
quele resto de vela e chegam ao cúmulo de pressionar o interruptor
de luz quando entram na cozinha para procurar fósforos, tão automá-
tico esse gesto se tornou.
Panes elétricas geram sérios contratempos, é verdade, mas até
mesmo elas podem trazer benefícios. Lá em casa, por exemplo,
quando faltava luz, íamos para o quintal e deitávamos no chão para
olhar o céu e procurar estrelas cadentes. Meu pai e eu discutíamos
sobre o Universo ser ou não infinito, a velocidade da luz, as galá-
xias... A imensidão do Cosmos nos inspirava certa reverência, nos
fazendo lembrar do quão pequenos somos. Quando a energia voltava
eu sempre estava mais calmo. Às vezes, naqueles poucos minutos,
conversávamos mais que durante o mês inteiro. A pane elétrica, iro-
nicamente, forçava a família a se reunir.
O desenvolvimento tecnológico é importante. A espécie hu-
mana só sobreviveu até os dias de hoje porque desenvolveu tecnolo-
gia suficiente para superar todas as dificuldades que surgiram, desde
a necessidade de fabricar machadinhas de pedra até a criação de va-
cinas e satélites que viajam além do sistema solar. O problema é que
a tecnologia ocupa cada vez mais espaço em nossas vidas. Transfor-
mamos a ciência numa espécie de deus e nos convencemos religio-
samente de que a tecnologia pode nos salvar de todo perigo. Infeliz-
mente não pode. Aliás, é justamente por causa dela que a espécie
ameaça destruir o planeta e se extinguir. O desequilíbrio ecológico e
as guerras biológicas estão aí para confirmar o perigo do uso descon-
trolado do saber científico.
Como tudo que existe tem dois lados, a tecnologia tanto pode
criar como destruir. Em Matrix os avanços tecnológicos chegaram a
tal ponto que as máquinas se tornaram independentes e escravizaram,
literalmente, a mente dos humanos, algo que, de certo modo, já ocor-
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re hoje. Podemos fazer algo para essa possibilidade sombria não se
tornar realidade?
Sim. Podemos, por exemplo, lidar com a tecnologia de um
modo menos dependente, equilibrando necessidades e facilidades
tecnológicas com uma vida mais ligada à Natureza (inclusive a natu-
reza humana) e às coisas simples. Podemos também, desde já, ensi-
nar às nossas crianças que a tecnologia existe para nos servir e não
para nos escravizar. E podemos também dar mais atenção às necessi-
dades da alma, entendendo que o sentido da vida é nos autorreali-
zarmos, da forma mais verdadeira possível, nos tornando pessoas
mais livres e harmonizadas com a vida. Isso a tecnologia não pode
fazer em nosso lugar.
A verdadeira autorrealização é uma conquista individual, uma
jornada mítica que cada um deve empreender em sua própria vida. É
aqui, neste ponto, que podemos aprender com os mitos, essa coisa
tão arcaica e que a mentalidade racional trata com tanto desdém, re-
petindo sempre que “é só um mito”, desprezando sua importância e
vendo-os apenas como histórias exóticas de povos primitivos ou co-
mo religiões estranhas que insistem em sobreviver junto à nossa reli-
gião. É como se disséssemos: “Somos mais evoluídos. Não precisa-
mos de mitos”.
Mitos jamais serão “apenas” mitos pois são eles que formam a
estrutura da alma e também das sociedades. Assim como os ossos
sustentam o corpo físico, os mitos sustentam a psique humana. En-
tender como eles agem em nossas vidas é fundamental para compre-
endermos melhor a nós mesmos e ao mundo que nos cerca.
o mito
Mitos são formas de interpretação da realidade, compostas de
narrativas simbólicas e imagens metaforizadas, que estruturam e ori-
entam as sociedades e guiam os indivíduos no crescimento psíquico.
Eles não são deliberadamente criados por alguém mas nascem espon-
taneamente da alma coletiva da espécie, a psique, que os faz emergir
das profundezas do inconsciente geral da espécie e se sedimentar, ge-
ração após geração, na cultura dos povos, para conduzi-los a novos
níveis em sua relação com o mistério da vida e em sua organização
social, assim como na evolução de toda a espécie humana.
A mentalidade atual costuma entender os mitos como mentiri-
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nhas ingênuas. Mito não é mentira, é metáfora. Uma metáfora não é
uma mentira mas um modo simbólico de expressar uma verdade. Por
esse motivo a metáfora é a língua nativa dos mitos pois por trás deles
há sempre um símbolo carregado de mistério e numinosidade e a me-
lhor forma de expressá-lo será sempre a linguagem figurada.
A fotografia é tão-somente um processo químico usado para
captar e expressar visualmente a realidade e nem por isso uma foto é
uma mentira. Assim como a ciência e a arte, o mito expressa a reali-
dade à sua maneira própria, metaforicamente, que não é nem mais
nem menos verdadeira. Se a ciência usa a razão lógica para explicar
a vida e a arte usa a beleza e a harmonia para expressar o que senti-
mos, o mito se utiliza dos símbolos para nos provocar e nos ligar aos
mistérios da existência, que estão além da linguagem da ciência, da
arte e da filosofia. As explicações dos mitos não podem satisfazer ao
intelecto, nem deveriam, mas os símbolos que eles contêm possuem
o poder de nos situar no contexto geral do Cosmos, alinhando nossas
vidas com uma ordem maior e ligando a consciência individual a um
sentido mais amplo e coletivo.
Podemos dizer que, além de fornecer explicações para o misté-
rio da vida e da criação do mundo, o mito exerce duas funções prin-
cipais, sendo uma de ordem social e outra individual. Como nos en-
sinou Joseph Campbell, o famoso mitologista irlandês-estadunidense
que ajudou a reacender o interesse pela mitologia no século 20 e nos
incentivou a olhar para dentro e seguir nossa bem-aventurança, os
mitos não só expressam a realidade: eles são o fundamento de toda
sociedade. Não seria nenhum exagero afirmar que toda nossa vida,
desde os menores detalhes até questões como arte, ciência, política e
economia, tudo são formas rituais baseadas nos símbolos que os mi-
tos expressam. Não há nada que não esteja sob uma espécie, digamos
assim, de jurisdição simbólica dos mitos pois, explicando a vida, eles
estão também endossando e justificando todos os aspectos culturais
de uma sociedade, desde instituições como casamentos, ritos como
funerais até o padrão de comportamento de homens e mulheres e a
criação de religiões.
No plano individual o mito atua guiando o indivíduo pelas di-
versas fases de sua vida, fornecendo-lhe imagens e narrativas ricas
de significado para auxiliá-lo em sua jornada rumo à maturidade psi-
cológica. Sim, os mitos descrevem ocorrências exteriores, referentes
a algum tempo e lugar distantes – no entanto isso é só aparência pois
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o plano real dos acontecimentos é interior, é justamente a dimensão
psicológica humana. É na alma e não no mundo externo que se de-
senrolam os dramas metaforizados pelos mitos.
Dessa forma, o mito grego de Saturno, que devora os próprios
filhos, nos ensina sobre o perigo da estagnação e o eterno medo da
renovação, e o mito cristão da expulsão de Adão e Eva do Paraíso
nos diz sobre as dores inerentes ao despertar da autoconsciência, ao
crescimento psicológico. Infelizmente o desprezo da mentalidade ra-
cional pelo mito nos impede de captar esses importantes significados,
tão úteis à vida.
o mito da jornada do herói
Um dos motivos pelos quais o filme Matrix fez e continua fa-
zendo um sucesso danado pelo mundo inteiro é o seu enredo: ele tem
profundas bases mitológicas e as pessoas se identificam com essas
obras porque elas vivem, em sua própria vida, os temas contidos no
filme. O mito é como o leito de um rio antigo e eu, você e todas as
pessoas somos a água que corre por ele: é através da experiência de
nossas vidas individuais que o mito está sempre se renovando.
Existem muitos e muitos mitos, cada um relativo a um deter-
minado aspecto da existência, e mesmo sem conhecê-los (e às vezes
mesmo pertencendo a outra cultura), nós os vivemos, cada um de
nós, em diversos momentos da vida. Nossas águas estão sempre a
percorrer o leito de algum mito, embora quase sempre estejamos in-
conscientes disso. Conhecendo os mitos e olhando-os pela ótica da
psicologia do inconsciente, podemos compará-los com nossas vidas,
perceber de que modo os vivemos e, assim, saber para onde se diri-
gem nossas águas, evitando possíveis desastres.
A história de Neo, que procura incessantemente uma resposta
para a pergunta que o move (o que é a Matrix?) nos lembra Percival,
o jovem cavaleiro do Rei Artur, buscando saber para quem serve o
cálice do Graal. Neo e Percival são versões modernas do mito da jor-
nada do herói, presente há milhares de anos na cultura e religião dos
diversos povos da Terra. As histórias variam mas a essência é a
mesma: o herói é alguém que larga a segurança de sua terra ou famí-
lia e parte em busca de algo difícil e precioso, enfrentando incerte-
zas, sofrimentos, perigos e arriscando a própria vida para, no fim, re-
tornar transformado e vitorioso, mais forte, experiente e seguro, para
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guiar ou salvar seu povo, casar-se com a princesa ou substituir um
velho rei injusto ou doente.
Com algumas variações este tema se repete em nossas lendas,
contos de fada, religiões e obras artísticas desde que aprendemos a
contar histórias ao redor das fogueiras. Esse é o modo pelo qual os
humanos conseguem, através de metáforas e sem muita consciência
disso, passar para as gerações seguintes algo vital para a sobrevivên-
cia da espécie: os segredos da autorrealização.
Nossos ancestrais escutavam as histórias dos heróis com res-
peito e assombro, envolvidos por rituais que se transmitiam pelas ge-
rações. E hoje, no terceiro milênio da era cristã, nós continuamos re-
passando o mesmo costume, com a diferença que, em lugar das fo-
gueiras nos reunimos no escuro dos cinemas, compenetrados e reve-
rentes, para escutar a mesma história, para não esquecermos que a
vida tem um segredo: cada um de nós precisa realizar a si próprio.
Por isso quando o segredo é recontado nos filmes, disfarçado em
dramas, romances, aventuras e comédias, nós nos identificamos, algo
dentro de nós se agita e de repente a vida faz mais sentido: é o mági-
co efeito que os mitos provocam.
Em algum momento da vida o mito da jornada do herói (o mi-
to da autorrealização) é reativado na psique individual, em toda sua
força. Vemo-nos então como o herói de Matrix, insatisfeitos com os
velhos papéis reservados para nós pela sociedade e em conflito com
nós mesmos. Despertamos da letargia, somos obrigados a largar as
certezas de nossos valores atuais e partimos rumo ao desconhecido
em busca de algo que nos completará, arriscando a segurança e en-
frentando medos, dúvidas, sofrimentos e até a autossabotagem. Se
persistirmos na jornada interior alcançaremos nossa essência e atingi-
remos novos níveis de autoconhecimento e harmonia com a vida, re-
alizando nosso potencial, alcançando a bem-aventurança e, inclusive,
gerando benefícios para a sociedade. É assim que vivemos o mito da
autorrealização em nossas vidas, encarnando em nós a antiga jornada
do herói.
Como vivemos em grupo, toda vez que alguém alcança a ver-
dadeira realização pessoal, de algum modo seu exemplo influencia
outras pessoas e assim a espécie como um todo também avança. Por
isso se diz que a autorrealização é a melhor forma de contribuirmos,
individualmente, para o desenvolvimento coletivo da humanidade.
E é justamente por essa razão que continuamos a contar para
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as novas gerações, nos cinemas, nos livros e teatros, com roupagem
moderna e efeitos especiais, as aventuras míticas dos heróis. Faze-
mos isso para não esquecer que o sentido da vida é seguirmos a nos-
sa bem-aventurança e realizarmos quem verdadeiramente somos.
Uma aventura heróica, sim, mas ao alcance de cada um. Ao seu al-
cance.
Jesus Cristo super-herói
Matrix tem muitos elementos que remetem à literatura, à cul-
tura pop e ao próprio cinema, a diversas tradições religiosas, místicas
e filosóficas, assim como analogias a teorias ligadas a vários ramos
da ciência como psicologia, antropologia e sociologia. Pouquíssimas
obras de ficção despertaram tantas interpretações diferentes envol-
vendo tantas áreas do conhecimento humano. Alguns argumentam
que Matrix não passa de um borrão de tinta no qual cada um vê o que
quer ver, um argumento que também mostra a riqueza da história e
de seus fundamentos arquetípicos pois poucas obras artísticas forne-
cem tantas e diversas visões.
Na filosofia as analogias são muitas. É óbvia a parábola da ca-
verna de Platão (parábola ou alegoria, e não mito), onde as pessoas
veem apenas as sombras da realidade e as tomam como a própria rea-
lidade, tornando suas vidas limitadas. Muitos abordam o filme usan-
do ideias de Sócrates, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Descartes,
Kant, Laplace, Nietzsche, Sartre, Dostoievski, Marx e Baudrillard
para discutir coisas como natureza da realidade, metafísica da mente,
materialismo, tecnologia, livre-arbítrio, destino e onisciência.
No campo das tradições místicas e religiosas pode-se ver em
Matrix a ideia hinduísta de maya, ou seja, a ilusão na qual vivemos e
que nos cega para a verdade maior. Pode-se ver também a ideia tao-
ísta da unicidade de tudo que existe, de se tornar uno com o mundo e
assim harmonizar-se com os ritmos naturais da vida. A iluminação
de que nos fala o budismo, com sua ênfase na libertação da mente
dos padrões a que ela se acorrentou, é uma constante durante toda a
história. Pode-se falar também da ideia gnóstica do demiurgo, o ar-
quiteto deste mundo, um falso deus que governa a realidade humana.
Os planos astrais e suas entidades, ideias presentes em tantas corren-
tes espiritualistas, também podem ser vistas no filme.
A mitologia grega é representada na história pelo nome de
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personagens como Morfeu (o deus dos sonhos), que auxilia Neo a
despertar de seu sono na Matrix. Há também Perséfone, esposa de
Hades e rainha do submundo, que ajuda os humanos quando esses
descem ao inferno, e que em Matrix é esposa de Merovíngio e tam-
bém dá uma forcinha aos humanos.
A mitologia cristã também está lá, emprestando sua rica sim-
bologia. A trajetória de Neo tem tantos pontos em comum com a vi-
da de Cristo que é improvável que sejam apenas coincidências. Co-
mecemos pelo nome de Neo na Matrix, Thomas Anderson. Ander-
son, de procedência nórdica, significa originalmente “o filho do ho-
mem”, uma das expressões que Cristo utiliza para se referir a si. No
início do filme o amigo que faz uma visita a Neo se refere a ele, lite-
ralmente, como “Jesus Cristo” e “meu salvador pessoal”. Assim co-
mo Cristo, Neo é tentado e torturado, morre, ressuscita e sobe aos
céus. O nome da personagem Trinity remete à trindade cristã (Pai,
Filho e Espírito Santo). Merovíngio, o poderoso chefe dos programas
rebeldes, é uma referência aos reis merovíngios, da idade média, que
se acreditavam descendentes da linhagem real proveniente de Cristo.
A nave Nabucodonossor traz a inscrição MARK III, no 11, que pode
ser uma referência ao evangelho de Marcos, capítulo 3, versículo 11:
“Os espíritos imundos, quando o viam, prostravam-se diante dele, e
gritavam, dizendo: Tu és o filho de Deus.”
No entanto, e é isso que mais nos interessa, há algo além das
religiões e filosofias que liga a história de Neo com a vida de Cristo e
no qual ambas se inspiram. Este elo é justamente o mito da jornada
do herói, bem mais antigo que os dois e que pode funcionar como
uma espécie de roteiro para entendermos, psicologicamente, suas tra-
jetórias. Jesus Cristo é o grande herói da mitologia cristã. Não é rele-
vante aqui se ele de fato existiu ou não ou se era ou não o legítimo fi-
lho de Deus. Para o estudo da psicologia do inconsciente aplicada à
mitologia, o que importa é o que sua história tem a nos oferecer em
termos psicológicos. O que vale é o leito do rio, a estrutura do mito,
e de que modo as pessoas o preenchem com as experiências de suas
vidas.
Cristo viveu, a seu modo, a clássica trajetória do herói. Aban-
donou a segurança do lar e das tradições, empreendeu uma longa e
difícil jornada de autoaceitação, sofreu as dúvidas, tentações e dores
inerentes aos conflitos de quem reluta em assumir seu destino e, por
fim, submeteu-se à sua verdade mais íntima, ao seu destino, ou seja,
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ao fato de que, sim, ele era o filho enviado por Deus Pai para redimir
a humanidade.
Igual a Cristo, muitas lendas em variadas culturas, até mesmo
mais antigas, contam histórias muito parecidas, com personagens de
trajetórias similares, contadas e recontadas através dos séculos. O
que torna a história de Cristo tão especial é o fato dela ter inspirado o
nascimento de uma religião que atualmente, incluindo suas subdivi-
sões, é seguida por aproximadamente um terço da população do
mundo. Não fosse isso, talvez a história do galileu que obrava mila-
gres, arrebanhou seguidores, incomodou líderes políticos e religiosos
e morreu crucificado chegaria à nossa época como apenas uma lenda,
da mesma forma que tantas outras.
Quinhentos anos antes da era cristã, na Índia, um príncipe
muito rico abdicou do conforto de sua vida e foi para a floresta viver
de esmolas e meditar sobre o sentido da existência. No momento em
que a compreendeu, tornou-se um iluminado, um Buda, perfeitamen-
te integrado à Natureza, capaz de fazer milagres e de ensinar as pes-
soas a encontrarem também a iluminação e se libertarem das prisões
mentais. A mitologia cristã possui tantas semelhanças com a vida do
Buda e com outros mitos de outras culturas que é como se uma única
história estivesse sendo contada em variadas sociedades sob diversas
versões, sob as características próprias de cada cultura e baseada em
suas necessidades espirituais específicas. De fato, é sempre a mesma
história: o mito da jornada do herói.
Neo, Buda e Cristo, assim como Percival, são heróis porque
realizaram a si mesmos, concretizando seu potencial, vivendo pro-
fundamente seu mito pessoal e cumprindo seu destino. Cada um de-
les viveu, a seu modo, o roteiro que marca a jornada mítica do herói.
herói e sociedade: um motocontínuo
Tudo que existe já traz em si a semente daquilo que o destrui-
rá. A sociedade instintivamente sabe dessa lei universal e por isso
sempre verá com desconfiança o indivíduo, ele e seu perigoso poten-
cial de transformá-la. Mais cedo ou mais tarde ele a transformará e
os dois prosseguirão num novo nível, ela tentando manter as coisas
como estão, ele a desafiando com sua diferenciação. É um motocon-
tínuo.
Assim como o impulso evolutivo faz com que a consciência
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individual evolua numa espiral, passando pelos mesmos pontos em
novos níveis, a consciência da espécie também age assim, tendo de
um lado da espiral a sociedade e do outro a individualidade. Nasce-
mos imersos na sociedade e durante a vida inteira ela exerce sua for-
ça coesiva sobre nós – mas do outro lado da espiral a individualidade
nos atrai. Para os que a alcançam, ela fornece a diferenciação e a for-
ça necessária para prosseguir no caminho legítimo da alma. Seu im-
pulso, porém, obviamente conduz o indivíduo ao outro lado da espi-
ral, de volta à sociedade. Isso significa que a mesma sociedade que
segurou o quanto pôde o impulso diferenciador do indivíduo e o re-
jeitou, mais tarde assimilará os novos valores que ele traz e assim ela
se enriquece, se renova e forma novos indivíduos que, por sua vez,
serão também atraídos para o outro lado da espiral e, caso prossigam,
levarão a sociedade a novos níveis de evolução. É assim que a espé-
cie evolui, fazendo com que o conflito entre individualidade e socie-
dade seja o motor do movimento contínuo.
Atualmente a autorrealização psíquica não se contenta apenas
em se diferenciar do bando, como nos dias em que éramos semima-
cacos, ou adquirir identidade própria, como nos estágios seguintes da
história humana. A autorrealização agora exige mais, exige que al-
cancemos o ponto mais verdadeiro do que somos para que o potenci-
al que está lá, adormecido, possa se realizar em toda sua plenitude. O
novo nível de individualidade que temos de alcançar determina que
atinjamos nosso centro mas para isso precisamos, é claro, conhecer o
nosso todo e o todo inclui não só a superfície mas o que está dentro.
Isso significa que temos de conhecer o interior de nós mesmos, pro-
fundamente, do modo mais verdadeiro possível, se quisermos alcan-
çar nosso centro mais legítimo.
Quando Neo finalmente consegue compreender quem ele é,
entende seu papel no contexto da existência humana e faz o que deve
fazer. É assim que ele salva a humanidade e renova as esperanças do
planeta que agora, suspenso o conflito entre humanos e máquinas,
pode enfim se recuperar.
monitorando Neo
O enredo de Matrix será aqui utilizado para ilustrar o processo
de autorrealização do ser humano e mostrar que podemos deixar de
ser meros personagens para ser os grandes heróis de nossas próprias
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vidas. Para isso usaremos como guia o primeiro filme da trilogia, on-
de mora a essência da história, e alguns trechos dos outros dois. Se-
guiremos cronologicamente, descrevendo as cenas mais importantes
e comparando-as com a referida etapa do processo, usando exemplos
da vida cotidiana, sempre dentro do contexto do processo de autorre-
alização.
Agiremos mais ou menos como os agentes da Matrix, que
prenderam Neo e lhe implantaram um rastreador para não perdê-lo
de vista. Em nosso caso, seguiremos Neo durante sua perigosa e e-
mocionante jornada porque sua história é a história de cada um de
nós. A aventura do guerreiro cibernético vivido pelo bonitão Keanu
Reeves é uma metáfora de nossa jornada pessoal rumo à mais verda-
deira realização de nós mesmos. A diferença é que Neo é um perso-
nagem de ficção e só existe nas telas, enquanto nós, eu e você, exis-
timos aqui no mundo real, na tridimensionalidade do dia a dia, pe-
gando ônibus lotado, suando para pagar as contas, sofrendo por nos-
sos relacionamentos e pelo time que vai mal no campeonato, bata-
lhando arduamente pelo que acreditamos e ainda procurando um sen-
tido maior no meio desse grande caos da existência. Ufa! Merecemos
um Oscar pelo conjunto da obra, não?
Monitoraremos Neo para, através de sua trajetória mítica, ver
como nós mesmos nos comportamos em nosso processo de autorrea-
lização. Será como um jogo onde o que virmos na tela será transplan-
tado para a vida prática. Definiremos as regras do jogo a seguir mas
não há nada de muito complicado. Lidaremos com noções de mitolo-
gia e psicologia do inconsciente mas tudo será feito de forma leve e
descontraída.
Bem, de fato não é fácil traduzir em simples palavras e rápidas
explicações o profundo, complexo e misterioso universo da alma. É
como traduzir em linguagem racional e científica coisas que são do
reino dos sonhos e da intuição. Porém, felizmente existe a arte e seu
poder mágico de tocar as pessoas. Existem filmes como Matrix, que
já trazem em si, metaforicamente, muito daquilo que os profissionais
da psicologia e psicoterapia se esforçam para explicar em seus livros,
palestras e consultórios. A metáfora facilita as coisas, levando ao en-
tendimento imediato e instintivo do que realmente interessa, o centro
da questão, o símbolo. Por esse motivo é que a psique faz uso da me-
táfora dos mitos para comunicar suas verdades.
Pois bem. O plano é usar esse incrível filme como instrumento
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para que nós mesmos apliquemos as verdades mitológicas em nossas
vidas e, assim, possamos nos compreender melhor e nos libertarmos
um pouco mais.
Mas... libertar-se de quê? Libertar-se daquilo que nos mantém
presos e que nos impede de ser quem verdadeiramente somos e de
seguir a nossa bem-aventurança. E isso somente cada um de nós será
capaz de descobrir o que seja. Esta é a nossa missão, a sagrada mis-
são de cada um de nós.
você se conhece?
Já vimos que, em termos psicológicos, a aventura de Neo pode
ser entendida como uma reedição moderna da jornada humana rumo
à autorrealização. Certo. Mas o que exatamente vem a ser isso?
Autorrealização é a efetivação do que há de mais profundo e
verdadeiro em cada um de nós. Feito uma potencialidade existente
no mais profundo do eu, ela nos impulsiona a um processo contínuo
de autoconhecimento onde integramos os conteúdos do ser e ruma-
mos para a mais íntima realização pessoal: a concretização da perso-
nalidade total.
Autorrealizar-se significa desenvolver o potencial adormecido
e nos tornarmos quem somos destinados a ser porque é isso o que
sempre fomos: a semente que já traz em si a árvore futura. É impos-
sível autorrealizar-se sem conhecer as próprias possibilidades e tor-
ná-las reais. Seria impossível para Neo fazer tudo o que fez sem an-
tes se convencer que, de fato, podia fazê-lo. Você lembra quando ele
decide voltar à Matrix para resgatar Morfeu, mesmo sabendo que
jamais alguém fez isso antes? Pois é. Nesse momento Neo está, pela
primeira vez, convencido de seu potencial e, por isso, consegue fazer
o impossível.
Uma pessoa autorrealizada é uma pessoa equilibrada, física e
psicologicamente, que se conhece a fundo e por isso é senhora de
seus atos. Está consciente das necessidades do corpo e da mente, da
linguagem das emoções e do espírito. Em outras palavras, todas as
dimensões de seu ser estão harmonizadas. Por conta desse elevado
grau de autoconhecimento, é alguém que sabe de seu potencial e o
utiliza do melhor modo, sem desperdícios nem autoenganações. É
alguém que, mesmo vivendo em meio ao grande caos do mundo, está
em harmonia com ele e não se abala facilmente com imprevistos e
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derrotas. Uma pessoa autorrealizada venceu os desafios mais impor-
tantes que a vida lhe impôs e não mais precisa lutar contra seus de-
mônios internos pois um dia teve a coragem de encará-los, conse-
guindo assim que eles passassem para o seu lado, herdando deles a
força contra a qual tanto lutava.
Para atingir esse ponto, porém, a pessoa tem antes de despertar
e se diferenciar da mentalidade comum, como Neo despertou da Ma-
trix, como nossos antepassados peludos se diferenciaram do bando e
inauguraram o novo ramo evolutivo que seria a espécie humana. Isso
é necessário para que a individualidade se manifeste e a pessoa possa
realmente conhecer quem é, buscando suas verdades dentro de si
mesma. Quem sou eu? tudo começa com essa perguntinha safada.
Nada disso é fácil ou rápido. Mas aqui precisamos entender
algo muito importante: o que verdadeiramente interessa não é alcan-
çar a meta. Parece contraditório empreender uma jornada onde não
há chegada mas é assim que funciona pois o que interessa realmente
nessa jornada é estar no caminho. A essência da autorrealização não
é chegar mas manter-se em movimento, até porque talvez não exista
uma chegada definitiva na evolução psíquica. É mais ou menos como
encontrar um grande amor: quando isso acontece, não importa o que
exatamente vamos fazer ou até onde estaremos com a outra pessoa.
Fixar-se nisso é perder a noção do mais importante, que é estar junto
e viver o amor a cada dia, sem se preocupar mais que o necessário
com o seu futuro.
A alma é a dimensão interna da vida, uma dimensão absoluta-
mente fascinante e também libertadora. Porém, a maior parte das
pessoas nunca chega realmente a se aventurar pelo universo de sua
alma, preferindo a experiência de vida em níveis mais superficiais do
ser. O motivo disso é que a nossa cultura não nos incentiva a olhar
para dentro e, além disso, lá dentro é escuro e, você sabe, do escuro
sempre podem vir coisas perigosas...
Geralmente na primeira metade da vida gastamos a maior par-
te de nossa energia correndo de um lado para outro em busca de em-
prego, aceitação social, conquistas sexuais, brincadeiras e aventuras
por toda parte. Mesmo que o mundo interno nos chame a atenção, ele
frequentemente é relegado a segundo plano. Algumas pessoas sen-
tem cedo esse chamado mas a maioria só vai escutá-lo a partir da
metade da vida, quando começa a fazer falta um sentido maior. Mui-
tas percebem que o tudo que conquistaram não as fez realizadas –
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nem livres. Aliás, é comum as pessoas chegarem a esse ponto se sen-
tindo sufocadas: pelo tempo, pelo trabalho, pela família, pelas exi-
gências sociais e até por suas próprias ideias e atitudes que durante
muito tempo foram úteis mas agora não têm mais o mesmo valor. É
em momentos assim que a vida nos faz lembrar que temos uma mis-
são sagrada e que só poderemos cumpri-la se nos voltarmos para a
dimensão interna da nossa vida.
A história de Neo é a nossa história: alguém que um dia se in-
comoda com a vida que vive, não se conforma e busca uma verdade
maior. Assim sendo, a partir de agora olhemos para o filme com ou-
tros olhos. Para monitorar o herói em sua jornada de autorrealização,
precisamos ver o filme sob um ângulo psicológico, onde Matrix pas-
sa a ser a história de uma pessoa, apenas uma pessoa, no caso Neo, e
onde todas as situações do filme se referem diretamente ao herói, à
sua psique. Por isso todos os personagens, a partir de agora, repre-
sentarão aspectos psicológicos do próprio Neo.
Acho que não entendi bem..., você pode estar pensando. Não
se preocupe. Vamos treinar nosso olhar um pouco mais antes de co-
meçarmos o monitoramento de Neo. Vamos falar sobre essa coisa
misteriosa e fascinante que é a psique.
o organismo psíquico
A cada dia novas descobertas tornam menos precisas as fron-
teiras entre mente e corpo, mostrando que as duas coisas talvez não
sejam tão distintas como julgamos. Mas, para efeito didático, ainda
precisamos explicar separadamente essas dimensões do ser.
Assim como possuímos um conjunto de órgãos, um organis-
mo, que age dentro de leis físicas, químicas e biológicas, possuímos
também um “organismo psicológico” que atua seguindo suas pró-
prias leis. Esse segundo organismo é a psique e, assim como o corpo
físico, ela também regula a si mesma, podendo adoecer mas também
promover a própria cura. Para entendermos melhor a psique, temos
de vê-la como algo vivo e possuidor de uma espécie de inteligência
própria e capaz de se autorregular. Nesse ponto ela é como a Terra,
um superorganismo que mantém a vida em si através do equilíbrio
entre seus órgãos minerais, vegetais e animais. Bem, é verdade que o
Homo sapiens, um dos órgãos animais, ultimamente tem se esforça-
do bastante para desequilibrar tudo mas isso é outra história.
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A psique é formada pela consciência e pelo inconsciente. A
consciência é a área superficial da psique, ou seja, o nosso conheci-
mento imediato sobre nós mesmos. O centro da consciência é o ego e
é através dele que manifestamos nossa vontade, articulamos os pen-
samentos e analisamos as coisas. Por ele ser o centro da personalida-
de consciente, é justamente através do ego que temos consciência do
que somos ou não somos. Mal comparando, o ego é como a pele pois
ela é o elemento de comunicação mais visível e imediato do corpo
com o ambiente externo. Mas a pele não é o corpo inteiro: do lado de
dentro há outros elementos que atuam o tempo todo, estruturando o
corpo, mantendo-o vivo e influenciando nosso comportamento,
mesmo que não o percebamos. Ver o ego como a personalidade total
equivale a confundir a pele com o corpo inteiro.
O conhecimento do ego sobre a psique ou a personalidade to-
tal, da qual ele é apenas uma parte, só alcança que está na consciên-
cia, aquilo que se pode distinguir com a luz do discernimento da per-
sonalidade consciente. O que está além da fronteira da consciência,
ou seja, o que faz parte do inconsciente, está na escuridão e não pode
ser percebido pelo ego. Por conta do posto que ocupa, de “represen-
tante autorizado” da psique para o mundo externo, o ego tende sem-
pre a se considerar o eu psíquico total. Mas não é. Esta é a sua velha
ilusão: ele acha que está sempre no controle da situação. Não está
porque os elementos do inconsciente influenciam no comportamento
da pessoa. E influenciam sem o ego se dar conta pois ele só admite a
existência do que está em sua área, a consciência. Para o ego, reco-
nhecer o inconsciente é reconhecer que não está sozinho no controle
e isso é sempre um golpe no orgulho egóico.
Às vezes dizemos: “Eu tenho umas coisas que não entendo...”
ou “Não sei o que deu em mim para fazer aquilo...” ou “Eu estava fo-
ra de mim.” Em momentos assim estamos pressentindo que não so-
mos apenas o ego, ou seja, que somos algo mais que apenas a nossa
percepção consciente de nós mesmos. Estamos quase admitindo que
existem outros aspectos de nós e que não os conhecemos muito bem
nem temos controle total sobre eles. Quando surgem essas incertezas
é sinal que conteúdos do ser, antes totalmente inconscientes, se apro-
ximam da fronteira da consciência. O ego já os pressente e se inco-
moda. Esses conteúdos estão saindo das sombras do inconsciente e
forçam saída rumo à luz da consciência, querendo ser integrados à
personalidade consciente. O melhor a fazer é ir ao encontro deles an-
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tes que esses danados imprevisíveis provoquem confusões maiores.
Isso é investigar-se psicologicamente, dar atenção ao mundo interno.
Isso é autoconhecimento.
O ego, portanto, é uma espécie de gerente da psique, incumbi-
do de facilitar o fluxo de conteúdos entre a consciência e o inconsci-
ente, fluxo este que visa enriquecer a ambos e manter o equilíbrio
psíquico, vital para a saúde do indivíduo. Um ego imaturo, porém,
está sempre tão preocupado em manter a ilusão de se achar mais do
que é no contexto geral da empresa que não consegue perceber a e-
xistência de certos problemas na empresa. É exatamente por causa
dessa negligência que os problemas se acumulam, ou seja, o fluxo
entre consciência e inconsciente fica travado. Para esse gerente infla-
do de orgulho, a prioridade não é o crescimento psíquico (crescimen-
to da empresa) mas segurar seu cargo, manter as coisas como estão,
empurrando com a barriga, adiando, fingindo não ver.
Se o ego não desempenha bem sua função gerenciadora da
psique total, ignorando o inconsciente e fazendo a pessoa viver a si
mesma de modo unilateral, os interesses egóicos se chocam com os
interesses do eu total e as forças autorreguladoras da psique interve-
em, queira o ego ou não. E aí surgem as crises.
o inconsciente
Mas... e o inconsciente, de que é feito exatamente? Podemos, a
princípio, resumi-lo como o conjunto de tudo aquilo que não sabe-
mos sobre nós mesmos. No inconsciente vivem, vamos chamar as-
sim, complexos energéticos que possuem certo grau de independên-
cia, como se fossem entidades de vontade própria dentro de nós
mesmos. Enquanto esses conteúdos inconscientes não forem perce-
bidos e devidamente assimilados pelo ego, estarão sempre agindo na
surdina, influenciando o comportamento, nos impedindo de sermos
melhor do que somos, levando-nos muitas vezes a fazer coisas das
quais nós mesmo nos envergonhamos e ocasionando males diversos.
É um monstro terrível esse inconsciente, um Godzilla que
sempre destrói os planos da personalidade consciente? Não é bem as-
sim. O inconsciente é imenso como o mar, é escuro como a noite
mas não é bom nem mau. Ele não tem moral e tudo que deseja, e vai
conseguir de um modo ou de outro, é se manifestar, assim como a
consciência, no mundo externo do indivíduo. O inconsciente possui
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conteúdos positivos e negativos, que podem ajudar ou prejudicar,
dependendo da atenção que lhes dê o ego. Se o ego for um bom ge-
rente, o inconsciente se tornará um importante aliado da personalida-
de consciente vida afora.
Você já comeu o corpo de um inimigo vencido? Não? Eu tam-
bém não. Mas algumas tribos guerreiras tinham esse hábito de, após
vencer uma batalha, comer os corpos dos inimigos mais valentes.
Nojento? Para nós pode ser mas, agindo assim, eles acreditavam in-
corporar a coragem e a destreza do inimigo e, com isso, tornavam-se
guerreiros mais fortes. Você pode não agir assim com seus inimigos
de carne e osso, porém é isso que ocorre quando vencemos os desa-
fios internos de nossa personalidade: o que antes era um inimigo
traiçoeiro a nos emboscar no escuro do inconsciente finalmente jun-
ta-se a nós e nos engrandece, nos equilibra e nos faz mais fortes e
capazes.
hoje tem espetáculo
Talvez a analogia com as tribos guerreiras não tenha feito bem
a seu estômago. Tentemos então pelo lado da arte.
Imaginemos a psique como um grupo teatral, composto de vá-
rios atores. Quando a cortina se abre, porém, no palco há somente
um único ator sob um facho de luz concentrada. O ator é o ego e a
luz é a consciência. A consciência ilumina tudo o que toca, permitin-
do que o ego, que está sempre em seu centro, veja, descrimine o que
existe e decida o que fazer com o que descobriu. O próprio ego dirige
o foco de luz da consciência, formando com ela quase que uma só
entidade. Quase pois em certos momentos ela ilumina um pouco
mais do que ele gostaria de ver.
O ego acha que está só no palco, realizando seu monólogo
mas, atrás dele, na penumbra do fundo do palco, existem outros ato-
res, uns quietos, outros a se movimentar, mexer na cortina. São os
outros aspectos do ser. Estão lá, no escuro, porque lá a luz da consci-
ência ainda não chegou e o ego, por isso, não reconhece sua existên-
cia. São aspectos da personalidade que ainda não foram devidamente
integrados à consciência. São conteúdos inconscientes porque o ego
está inconsciente deles. Pode ser a agressividade ou um grande medo
não reconhecido, pode ser um trauma da infância, uma grande culpa
ou a sexualidade não assumida. Pode ser muita coisa mas o ego
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não sabe desses aspectos ou finge não saber pois em algum momento
decidiu que seria melhor não conviver com eles.
Esses atores da escuridão sabem que o ego é o ator principal
mas eles também querem participar mais ativamente do espetáculo.
Mesmo que não sejam oficialmente reconhecidos pelo ego, eles se
movimentam na penumbra e isso mais cedo ou mais tarde acabará in-
terferindo no andamento da peça. Quando isso ocorrer o ego terá a
primeira noção de que não está sozinho no palco. Mas poderá insistir
em continuar desprezando os colegas, fingindo que nada aconteceu.
Quanto mais os desprezar, mais eles se esforçarão para aparecer, po-
dendo forçar a barra e chegar ao cúmulo de se adiantar no palco e di-
vidir a luz do refletor com o ego, para surpresa e embaraço deste. O
ego, coitado, que em nenhum momento teve controle total sobre os
rumos da peça, agora é obrigado a admitir abertamente que existe ou-
tros outros atores e terá forçosamente de incluí-los em sua própria
história.
Isso é apenas uma comparação, claro, mas é o que ocorre dia-
riamente em nossas vidas. Pensamos que estamos agindo sozinhos
mas outros aspectos que fazem parte de nosso eu total estão atuando
também, algumas vezes contribuindo e outras vezes atrapalhando e
até mesmo sabotando os planos de nossa personalidade consciente. A
necessidade de autoconhecimento leva o ego a ampliar a luz da cons-
ciência a fim de atingir outros pontos da psique total, à procura do
que mais possa estar ali. É um trabalho delicado e custoso pois re-
quer a coragem de encarar o que não se conhece em si próprio. Isso
trará mudanças, inevitavelmente, e o ego não é muito chegado a mu-
danças, preferindo sempre manter as coisas como estão. Mas não há
outra forma da psique se equilibrar e da personalidade consciente ter
mais controle sobre a própria vida. O ego precisará se transformar e,
para isso, terá de ter grande honestidade consigo mesmo, paciência e
perseverança.
Jogar a luz da consciência sobre nossos conteúdos inconscien-
tes significa assumir outras partes de nós mesmos. Significa chamar
os outros atores da peça para a luz dos refletores. Algumas dessas
partes já suspeitamos que existem e, bem ou mal, convivemos com
elas em nosso cotidiano. Outras partes, porém, por algum motivo, em
algum momento da vida decidimos mantê-las na escuridão – são es-
sas as mais difíceis de lidar pois, se por um lado essa decisão permi-
tiu ao ego levar a vida como se essas partes não existissem, por outro
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lado lhes proporcionou a oportunidade de crescer e se desenvolver
sem serem incomodadas. Por conta disso o ego sempre se assusta ao
vê-las sair das sombras, crescidas e cheias de vontade, e vir dividir
com ele a atenção da plateia.
tornar-se o próprio herói
Uma pessoa consciente de seu caminho de autorrealização sa-
be perfeitamente que o processo exige um contínuo transformar-se e
toda transformação traz algum tipo de crise. Essa pessoa sabe que di-
alogar com suas outras partes e reconhecer que elas fazem parte do
eu total não é trabalho fácil pois traz incertezas e angústias. Mas o
processo de autorrealização da psique exige que a consciência se
amplie para que a pessoa pare de brigar com seu próprio inconscien-
te, ou seja, com ela mesma. Deixando de brigar com o que reprime
dentro do ser, a pessoa se torna mais autoconsciente e equilibrada.
Mais ou menos como Neo que, à medida que conhece seu potencial,
vai treinando suas capacidades e assim consegue se movimentar me-
lhor na Matrix.
Por outro lado, se a pessoa tem medo do que possa vir do es-
curo do ser e continua reprimindo a própria natureza, a psique cedo
ou tarde cobrará tal negligência, atrapalhando os planos do ego, for-
çando-o a gafes e atitudes cada vez mais constrangedoras ou até
mesmo provocando insucessos, acidentes e doenças – isso tudo para
forçar o ego a parar um pouco e olhar para dentro. Esses mecanismos
psíquicos fazem parte da capacidade de autorregulação do eu total,
que só tem um único objetivo: realizar-se em sua inteireza, tornar-se
a árvore futura. Mas isso será impossível se consciência e inconsci-
ente não estiverem em harmonia.
O processo de autorrealização leva a consciência, necessaria-
mente, a se ampliar. O que antes era um fio de superfície se trans-
forma numa área maior, trazendo à luz conteúdos inconscientes que
levavam vida independente mas que agora estão bem integrados à
consciência. Ao longo do processo a pessoa lidará mais harmonio-
samente com o mundo, com as outras pessoas e consigo mesmo. Será
como Neo que, a partir do momento em que entende verdadeiramen-
te quem é, deixa de ser iludido pela Matrix e percebe que, em vez de
ser manipulado, pode fazer o que bem quiser.
O nosso objetivo é o mesmo de Neo: tornarmo-nos os grandes
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heróis de nossas próprias vidas. Devemos descobrir quem somos e o
que devemos fazer – isso é o processo de autorrealização. E ele é
como as melhores aventuras do cinema: tem um enredo criativo e
cheio de reviravoltas, um herói cativante, inimigos terríveis, perigos
e armadilhas por todo lado, suspense de arrepiar, romances... E o que
é mais incrível: é real! Não está acontecendo na tela mas em nossas
próprias vidas!
Mas antes é preciso despertar. Abrir a porta que dá para o
mundo interior. Seguir o coelho branco.
Bem, acho que basta de treinamento. Já estamos prontos para
monitorar nosso herói. Então vamos lá. As luzes já foram apagadas.
Desligue o celular e se acomode na poltrona. O filme vai começar.
29
II
Toc, toc, toc... Acorde, Neo!
seguindo o coelho branco
A primeira cena de Neo o mostra em seu pequeno apartamento, adormeci-do sobre a mesa. Um ruído no computador chama sua atenção. Sonolento, ele observa que alguém tenta se comunicar. A mensagem na tela diz: “A-corde, Neo...” Ele não entende. Surge outra mensagem: “Siga o coelho branco”. Intrigado, hesita ante o teclado e lê a mensagem seguinte: “Toc, toc, toc...”. Neo escuta batidas na porta e, confuso, vai abrir. São amigos que foram buscar uma encomenda e o convidam para uma festa. Ele pensa em recu-sar mas vê um coelho branco tatuado nas costas da garota e aceita. Na festa uma desconhecida chamada Trinity se aproxima e, sussurrando em seu ouvido, diz que sabe de suas noites mal-dormidas, de suas dúvidas e da pergunta que o move. Neo escuta surpreso. Como ela sabe tanto sobre sua vida?
O processo de autorrealização é um impulso natural da psique.
De modo geral, ele se manifesta primeiramente através de algum tipo
de curiosidade, dúvida ou insatisfação pessoal. É preciso que haja al-
gum incômodo para que o indivíduo se sinta impulsionado a agir. Es-
ta é a isca que a psique utiliza para atrair a atenção do ego, a persona-
lidade consciente, para a questão. Um ego acomodado em seu mun-
dinho de interesses imediatistas jamais terá motivação para buscar
outros níveis do eu total. É necessário que uma força maior que o e-
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go, justamente o eu total, agite as águas do fundo do oceano incons-
ciente e faça com que as ondinhas cheguem até a superfície da cons-
ciência, incomodando o ego. É preciso sacudir o ego e despertá-lo. É
hora de ação. É preciso transformação!
No caso de Neo, ele desconfia que há algo errado com a reali-
dade. Em suas buscas na internet, colhe pistas vagas sobre a existên-
cia de uma tal Matrix e tem curiosidade sobre um sujeito chamado
Morfeu, que é considerado um perigoso fora-da-lei. Algo o atrai e
fascina nesse homem: ele parece ser forte, inteligente e destemido e
desafia as autoridades em ações ousadas, sempre desaparecendo em
seguida. Depois surgem aquelas mensagens no computador, a coin-
cidência do coelho branco tatuado... E agora essa intrigante garota
Trinity que sabe muita coisa sobre ele. Afinal, o que está acontecen-
do?
A curiosidade em relação ao que seja essa tal Matrix traz in-
quietação à vida de Neo. É a imagem do Graal que surge para os ca-
valeiros de Artur, impelindo-os a buscá-lo na floresta. É o início do
processo. E é assim que também ocorre com todos nós. As mensa-
gens de Trinity no computador representam, no processo de autoin-
vestigação psicológica, o primeiro contato com o inconsciente. Todo
início é assim, confuso e feito de pistas e indícios sem consistência.
São ideias sobre nós mesmos e nossas vidas que surgem no pensa-
mento e ficam a nos instigar. Se até então o ego nunca precisou vol-
tar a atenção a outros aspectos do ser, agora, porém, ele tem de aban-
donar seu mundo seguro se quiser descobrir o que o inquieta.
É bastante significativo o fato de que a primeira cena de Neo o
mostra em seu quarto, pequeno e fechado, um ambiente escuro e
claustrofóbico. Em nossas vidas é exatamente assim que o ego se
comporta, fechado e acomodado em si mesmo. O ego tende a ser e-
gocêntrico. O processo do despertar, porém, exige que o ego aban-
done a segurança do quarto em que sempre viveu e saia para conhe-
cer o mundo, ou seja, outros aspectos do ser total. Visto por este ân-
gulo, torna-se bem emblemática a primeira frase dirigida ao nosso
herói: “Acorde, Neo!”
Então começam as transformações para o ego. De repente a
vida não é mais tão tranquila como antes, as certezas já não são tão
certas e algumas coisas não funcionam tão bem quanto funcionavam.
De repente nos sentimos incomodados, agindo de modo estranho e
desconfiando de certas ideias que sempre foram indiscutíveis. A no-
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ção que temos de nós mesmos, segura e inquestionável, começa a se
mostrar não tão verdadeira assim. De repente parece que há algo er-
rado com o mundo.
Na verdade nada está errado com o mundo. O mundo é o que
é. Nós é que estamos diferentes e, exatamente por isso, começamos a
entender o mundo de maneira diferente. É bom nos acostumarmos
logo: cada vez que nos transformamos, o mundo também se trans-
forma. Nada mais natural, afinal fazemos parte do mundo, não é? É
como se tudo fossem espelhos a se refletirem o tempo todo: por me-
nor que seja nossa mudança pessoal, ela será refletida pelos outros.
Uma vez que o processo de autorrealização começa a se mani-
festar, será impossível prosseguir sem se transformar pois para atin-
gir novos níveis de realização, teremos de descobrir quem na verdade
somos. Não poderemos mais nos enganar em relação a nós mesmos.
Quem se descobre, naturalmente se transforma.
Em certos casos é uma relação amorosa que provoca esse in-
cômodo inicial pois o parceiro parece possuir uma certa capacidade
de nos fazer descobrir coisas desagradáveis sobre nós mesmos. Isso
nos indispõe com ele mas por mais que arrumemos um culpado para
nosso mal-estar, já não é mais possível fazer de conta que ele não e-
xiste. O incômodo está lá, feito um espinho em algum lugar da alma,
e é uma questão de tempo entendermos que o que verdadeiramente
incomoda está em nós mesmos e não em outra pessoa ou em certas
situações.
Você já experimentou uma sensação parecida com essa, lem-
bra? Foi na adolescência, quando começou a deixar de ser criança e
estava se transformando em algo diferente. Tudo mudava em você,
seu corpo, suas ideias, as atitudes e a própria maneira de ver o mun-
do. Era como se você estivesse deixando de ser você para ser um ou-
tro você, sem no entanto deixar de ser você mesmo.
A adolescência é um bom exemplo do tipo de transformação
que aguarda aqueles que seguirão o coelho branco em suas vidas. A
diferença é que enquanto na adolescência estamos construindo ver-
dades e conceitos que a partir daí nortearão nossas vidas, agora o
chamado interior do autoconhecimento exige que nos desfaçamos de
nossas próprias verdades se quisermos prosseguir.
A pessoa precisa reconhecer outros aspectos do ser mas se o
fizer deixará de ser quem sempre foi. Isso soa como morte para o e-
go. Exatamente por esse motivo é que nunca aceitamos muito bem a
32
própria transformação.
primeiras repressões
Na manhã seguinte Neo acorda tarde e chega atrasado ao trabalho. Seu superior o repreende e o aconselha a se adequar às normas da empresa. Ele o acusa de se achar melhor que os outros e ter problemas com a autori-dade e o ameaça de demissão. Neo escuta e, temeroso, nada responde. Na janela, pelo lado de fora, um funcionário limpa a vidraça.
O processo já foi iniciado. As águas profundas do inconsciente
já foram agitadas e as ondinhas alcançaram a praia da consciência.
Incomodado, o ego agora terá de abandonar sua antiga e tranquila
posição caso deseje satisfazer a curiosidade, dissipar suas dúvidas ou
parar com seu sofrimento.
Se a autorrealização é um impulso natural da psique, por outro
lado existe uma força que vem da própria sociedade e que sempre
tenta barrar esse impulso, desaconselhando, a princípio sutilmente,
aqueles que começam a se diferenciar e agir fora do padrão.
Mas que amiga da onça! Por que ela faz isso? Por uma questão
de sobrevivência da própria sociedade pois é melhor que todos ajam
e pensem de forma parecida, feito uma boiada assim é mais fácil se
organizar. Tal estratégia repressora é natural e eficiente para a sobre-
vivência de qualquer espécie mas tem um custo: a anulação do indi-
víduo e a negação de sua singularidade. Para a sociedade o que im-
porta é que o indivíduo se comporte como uma peça da engrenagem
social e cumpra com seu papel para que ela funcione perfeitamente e
se mantenha a si mesma.
Quando ocorre o impulso da diferenciação temos então um en-
contro de forças, uma vindo do indivíduo e a outra da sociedade, em
forma de cultura, leis e padrões de comportamento. O conflito é ine-
vitável. O indivíduo que tenta se diferenciar age como o náufrago
que quer escapar da correnteza do mar: ele deve alcançar as ondas
que o levarão à terra firme mas a tarefa é difícil pois terá que lutar
contra o oceano que o puxa para si, contra o medo de desafiar algo
tão grande e contra seu próprio cansaço.
Aqui, mais uma vez, nos lembramos da adolescência quando
usávamos roupas e penteados diferentes para, inconscientemente, de-
safiar os mais velhos. Queríamos ser diferentes deles e, ao mesmo
tempo, precisávamos ser iguais aos da nossa turma. Essa procura por
identidade leva os adolescentes a criar padrões de comportamento
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que os ajudam a se estabelecer no meio cultural em que vivem. É um
tipo de diferenciação, sim, mas ainda não se trata da diferenciação
psíquica de que estamos falando.
O adolescente está construindo sua identidade própria e para
isso precisa copiar dos outros, de preferência de seus amigos e seus
ídolos, o que faz com que ele entre para uma turma que se veste, fala
e se comporta igual, um grupo que o aceita e se reforça com sua pre-
sença uma onda a qual o adolescente se une. Por outro lado, a pes-
soa adulta que, obedecendo ao primeiro impulso rumo à autorrealiza-
ção, tenta se diferenciar da massa, não tem como prioridade construir
uma identidade pois, bem ou mal, já a possui. Seu objetivo é escapar
do movimento quase hipnótico da massa para poder, com calma, ava-
liar melhor o que está ocorrendo em sua alma e analisar suas inquie-
tações. Por isso é que ela precisa fugir da correnteza que a faz girar e
girar sem se questionar.
A correnteza é a cultura. Nascido dentro dela, o indivíduo está
impregnado, até o último fio de cabelo, de leis, ideias padronizadas e
modelos de comportamento. Para se dedicar mais a seu mundo inter-
no e dar atenção ao que inquieta seu espírito, ele terá necessariamen-
te de sair da onda, se afastar um pouco do mundo exterior. Para isso,
terá de mudar de hábitos. Terá de se transformar.
Mas não será fácil. Aqui surgem as primeiras dificuldades pois
a sociedade age como a Matrix, acionando suas forças repressoras e
detectando com rapidez aqueles indivíduos que começam a se dife-
renciar e se movimentar fora do movimento padrão da massa. É co-
mo se eles representassem um perigo para o funcionamento normal
da engrenagem o que é verdade.
A repressão, a princípio, costuma vir em forma de recados su-
tis: são os olhares desconfiados, as desaprovações e as censuras. É
como se sociedade nos repreendesse: “Para que fazer diferente se até
agora a coisa vem funcionando?” Se continuarmos, os recados volta-
rão mais fortes. Podemos desafiá-los abertamente ou sermos mais su-
tis. Neo prefere a segunda opção. Isso não significa que ele desistiu,
apenas que entendeu as regras do jogo. O herói começa a enxergar o
mundo através de janelas mais limpas.
Dessa vez o herói se safou, o preço a pagar não foi tão alto.
Mas o impulso da diferenciação continuará, cada vez mais forte. E o
preço subirá.
34
seguindo a intuição
Após escutar a ameaça de seu superior, Neo vai para sua sala e recomeça o trabalho. Um funcionário lhe entrega uma encomenda. É um celular que, para sua surpresa, logo toca. Neo atende e descobre que quem fala é Mor-feu, por quem tem tanta curiosidade e fascínio. Morfeu o avisa do perigo que corre e o orienta para que possa fugir dos a-gentes. Neo está confuso mas obedece. Morfeu explica que ele tem duas opções: ou tentar escapar pela janela ou se entregar aos agentes. Angusti-ado, Neo anda pelo parapeito mas olha para baixo e a vertigem o domina. O celular cai de sua mão. De repente percebe a grande loucura que está fa-zendo e se entrega, sem saber por que estão à sua procura.
Durante a jornada de autorrealização nos encontraremos mui-
tas vezes em situações onde é a intuição que nos aponta o caminho a
seguir. O caminho é novo e desconhecido e olhamos para ele com
medo pois jamais o percorremos antes. De um lado a sociedade nos
aconselha com suas regras tradicionais mas, por outro lado, a intui-
ção sussurra que nosso caminho é outro.
O ego se vê num dilema. Estamos em conflito com nós mes-
mos pois uma parte de nós sabe que precisamos arriscar e a outra
parte tem medo. Intuímos o que temos de fazer mas nos faltam for-
ças. Nesse momento crucial o ego está sendo testado: uma viagem,
uma troca de curso ou emprego, um término de relacionamento, uma
atitude diferente... O ego se encontra diante de um portal e a intuição
lhe diz que deve cruzá-lo, que isso é muito importante... Muitos até
que tentam, pondo em risco coisas importantes, mas, da mesma for-
ma que Neo, sentem uma espécie de vertigem e recuam, preferindo
voltar.
Vertigem é medo de altura. É isso que ocorre nesses momen-
tos: temos medo de nos soltar das amarras das seguranças já conquis-
tadas e, com isso, não alçamos vôo. O ego está inseguro no início da
jornada e desiste logo às primeiras dificuldades, preferindo não arris-
car o novo e desconhecido. A pessoa retorna aos afazeres cotidianos
e tenta esquecer a sensação de derrota, abrigando-se na segurança do
que já conhece. O portal se abriu mas o vislumbre da liberdade que
esse momento oferece às vezes nos é assustador. Liberdade requer
responsabilidade e é por isso que a maioria desiste pois ser livre tem
seu preço e nem todos estão dispostos a pagar. Mas o portal se abrirá
outra vez.
35
Neo não vê quem lhe fala. É apenas uma voz misteriosa mas
que soa amigável e parece querer orientá-lo – uma analogia perfeita
para a intuição e seu modo de trabalhar. A intuição é uma das fun-
ções psicológicas de que dispomos para nos guiar vida afora, nos
permitindo perceber as possibilidades inerentes à situação. É uma
função irracional pois apreende a realidade instintivamente, através
do inconsciente, sem a participação do pensamento lógico conscien-
te. É a intuição que nos fornece súbitas revelações, perspectivas dife-
rentes sobre a realidade. De repente intuímos, sem uma lógica apa-
rente, que é melhor seguir por aqui e não por ali e isso, depois, se re-
vela a decisão correta. Qual foi a sensação, o pensamento ou o sen-
timento que nos levou a tomar tal decisão? Nenhum deles. Foi outra
coisa. Foi um entendimento súbito e instintivo da totalidade da ques-
tão.
Diante da necessidade de escolha, geralmente decidimos se-
guindo a lógica do pensamento racional: irei por esta calçada pois as-
sim caminharei na sombra. Às vezes, porém, algo parece nos impelir
na direção contrária à lógica racional, como se uma parte de nós cap-
tasse algum aspecto importante, mas invisível, da questão. Se a razão
enxerga parte por parte, separando, discriminando e julgando, a intu-
ição apreende o todo de uma vez. É como se ela estivesse em contato
com todos os aspectos da questão mas não pudesse explicar um por
um: ela passa um entendimento instantâneo e geral.
Podemos dizer que a intuição é uma função psicológica de ca-
ráter holístico pois nos conecta com o todo, ou seja, a totalidade ao
redor (pessoas, coisas, fatos etc.) e também a totalidade de nós mes-
mos. Ao redor, a intuição percebe aspectos que o pensamento, as
sensações ou os sentimentos não captam e nos fornece dados valio-
sos para a nossa decisão. E em relação a nós mesmos, a intuição nos
faz considerar aspectos do ser que estão além da percepção do ego,
da mente racional. Dessa forma, pensamos e agimos de acordo com
tudo o que somos, consciência e inconsciente. Isso significa que a in-
tuição nos ajuda a ser mais abrangentes e verdadeiros com nós mes-
mos e, assim, nos faz agir mais harmoniosamente com o mundo ao
redor.
Confiar e agir seguindo a intuição não significa desprezar o
pensamento lógico, os sentimentos e as sensações pois eles também
são importantes. O que ocorre é que às vezes essas funções são insu-
ficientes e, por isso, nos levam a tomar a decisão errada, ou se con-
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tradizem, nos deixando em cruéis dilemas. É nesses momentos que a
intuição pode ajudar, ainda que pareça um salto no escuro. Infeliz-
mente nossa cultura supervaloriza o pensamento racional e desdenha
da intuição, atrofiando-a a cada dia e nos fazendo guardá-la quietinha
no porão da psique, feito um objeto sem serventia quando, na verda-
de, ela precisa ser desenvolvida para podermos sempre reconhecer
sua voz e segui-la.
Neo está metido numa situação incrivelmente estranha. De um
lado está sendo perseguido por policiais e sujeitos estranhos, com jei-
tão de mafiosos, sem ter a mínima ideia do motivo. De outro lado um
tal Morfeu, que ele nunca viu antes, aconselha-o, pelo telefone, a se
esconder e arriscar a vida no alto do prédio. Neo fica dividido mas
algo lhe diz que deve obedecer a Morfeu. Logo depois, porém, sente
medo de cair e desiste, preferindo se entregar a seus perseguidores.
Sim, o herói deve sempre seguir sua intuição mas isso requer uma
coragem que nem mesmo os maiores heróis possuem o tempo intei-
ro.
repressão e tortura Neo está numa espécie de sala de interrogatório e os agentes mostram que sabem praticamente tudo sobre sua vida. Eles querem sua cooperação para capturar Morfeu. Mas Neo se nega a ajudar. Os agentes o torturam e lhe in-serem um aparelho rastreador para que ele, sem saber, os leve até Morfeu.
O que teria acontecido se Neo continuasse seguindo as reco-
mendações de Morfeu? Teria escapado dos agentes? Ou teria des-
pencado do alto do prédio e morrido na contramão, atrapalhando o
tráfego? Não podemos saber. Sabemos apenas que o medo o faz de-
sistir de seguir as orientações da voz. Ele de repente dá por si e per-
cebe a loucura que está fazendo, como se estivesse possuído por algo
insano que o leva a se arriscar e seguir uma voz interior que quer
conduzi-lo para... para onde mesmo?
Neo prefere se entregar do que continuar seguindo a tal voz.
Mas, por não aceitar entregar Morfeu, ele é torturado. O primeiro
preço a pagar pela diferenciação foi apenas um sermão e uma amea-
ça de demissão, nada que impedisse o herói de continuar seguindo a
intuição. Agora, porém, o preço a pagar pelo nível seguinte de indi-
vidualidade é bem mais alto. A sociedade age parecido, exigindo que
desprezemos a intuição e desistamos daquilo que tanto buscamos. É
37
um tipo de acordo, muito comum: nós entregamos os nossos sonhos
mais íntimos e em troca a sociedade nos deixará em paz. Será que
você alguma vez na vida não aceitou esse acordo?
Diferenciar-se custa caro. Tentar ser livre sempre nos levará a
situações arriscadas pois a sociedade, através de seus agentes repres-
sores, dificultará o caminho. Ela nos interrogará e humilhará, tentan-
do nos convencer a seguir suas regras. A sociedade nem sempre é tão
direta quanto os agentes da Matrix mas é igualmente eficiente. Cabe
a nós decidir: compactuamos com ela ou continuamos seguindo o
impulso da diferenciação?
Os que seguem o impulso devem estar preparados para retalia-
ções – é o jeitinho que a sociedade tem de punir seus membros re-
beldes. Assim, aquele que, em vez de se acomodar num emprego se-
guro, busca um trabalho mais condizente com seus interesses e habi-
lidades, certamente terá dificuldades financeiras. Aquele que assume
sua sexualidade ou um estilo de vida diferente da maioria sofre com
o preconceito. Aquele que questiona o modo como as coisas funcio-
nam é visto com desconfiança e pode ter seu trabalho sabotado. A-
quele que tenta apresentar novos modos de entender o mundo sofre
resistência por parte de amigos, familiares, colegas, professores, che-
fes, líderes religiosos e autoridades e pode ter problemas com a lei.
Os agentes repressores da diferenciação psíquica não são ne-
cessariamente pessoas cruéis: são geralmente pessoas comuns que
não têm consciência do papel que representam, são apenas seres hu-
manos inseridos numa cultura que os leva a agir assim, sem questio-
nar. No final deste livro, quando analisarmos a reinserção do Predes-
tinado na Matrix, veremos que até mesmo os que se diferenciam es-
tão, com isso, contribuindo também, mesmo que a princípio não pa-
reça, para o fortalecimento da cultura.
Trinity, o princípio yin
Neo acorda em sua cama, assustado com o pesadelo que teve, onde ho-mens lhe prendiam e lhe metiam um bicho nojento barriga adentro. O tele-fone toca. É Morfeu. Ele diz que foi sorte os agentes terem-no subestimado e marca um encontro. Na cena seguinte está chovendo e Neo, sob uma ponte, vê o carro preto dos rebeldes parar à sua frente. Ele entra e senta ao lado de Trinity, sempre desconfiado. Do banco da frente Switch lhe aponta uma arma e ele se assusta. Neo pede que parem o carro pois está farto dis-so tudo. Trinity olha para ele com ternura e gentilmente o convence a ficar. Neo é submetido a uma rápida e delicada operação para retirada do rastre-
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ador de seu corpo. Agora ele já não pode mais ser localizado pelos agentes.
O portal se abre novamente para Neo, o novo lhe concede uma
segunda chance. Ele segue sua intuição e vai ao encontro. Dentro do
carro o medo o domina mais uma vez e ele quase desiste. Quase pois
a doçura com que Trinity lida com a situação o faz superar o medo e
a desconfiança e assim ele prossegue rumo ao novo que o chama.
Trinity é uma personagem feminina e ao longo do filme vere-
mos que ela representa os aspectos femininos da psique do herói que
ele deve reconhecer em si mesmo e assimilar, integrando-os à perso-
nalidade consciente. Trinity é o princípio yin de que fala a filosofia
oriental. Intuição, sentimento, cuidado, paciência, maleabilidade, do-
çura e amor esses são os valores que Neo precisa reconhecer e de-
senvolver em sua própria personalidade, caso contrário não se trans-
formará suficientemente e não conseguirá vencer os desafios. Isso
também é válido se o herói é uma mulher pois as mulheres também
possuem sua contraparte masculina e necessitam conhecê-la e equili-
brá-la dentro de si.
Durante o processo de autoconhecimento do homem, a contra-
parte feminina vai ensiná-lo a ser doce, paciente e sutil nos momen-
tos em que a força e a pressa nada resolvem. Vai ensiná-lo a expor
seus sentimentos e não ter vergonha deles. Vai ensiná-lo que o amor
é importante e é como uma flor que deve ser cuidada dia a dia. Vai
fazê-lo entender que os relacionamentos devem sempre ser valoriza-
dos pois o crescimento pessoal passa necessariamente pelo tipo de
relações que se desenvolve na vida.
Quando, porém, os valores yin ocupam mais espaço do que
deveriam na psique masculina, ocorre o desequilíbrio e o homem fica
como que tomado por humores instáveis, torna-se melindroso, faz-se
de vítima e apela para chantagens emocionais quando tem seus inte-
resses contrariados. É como se estivesse possuído por uma entidade
interna que o tiraniza sem ele ter consciência disso, uma entidade que
o faz parecer uma bisonha caricatura da mulher, prejudicando-o em
seus relacionamentos, nos negócios e em outros aspectos da vida. Ela
só deixará de prejudicá-lo quando ele, conscientemente, se voltar pa-
ra seu interior e buscar um diálogo com esses conteúdos sobre os
quais ainda não tem controle um desafio de todos os homens.
39
a pílula vermelha
Trinity leva Neo a um prédio. Ele é apresentado a Morfeu, que lhe fala sobre a Matrix, sobre ser escravo, e que ninguém pode dizer o que é a Matrix. ”Você tem que vê-la por seus próprios olhos”, Morfeu diz e, por fim, lhe ofe-rece duas pílulas, uma azul e outra vermelha. A azul fará com que Neo a-corde em seu apartamento, seguro, e aquela estranha aventura terminará. A vermelha o levará adiante. Neo escolhe a pílula vermelha.
Quando começamos a nos interessar por nosso mundo interior,
é comum que surja a curiosidade por temas ligados a psicologia e es-
piritualidade. Há pessoas que entram para seitas esotéricas, escolas
místicas e leem livros e frequentam palestras e cursos.
A curiosidade é normal pois o mundo interior, em toda sua
vastidão, é realmente fascinante e envolvente. Porém aqui há outra
armadilha do caminho. Por mais livros e cursos que acumulemos,
nada disso terá muito valor se a transformação não for vivida na pró-
pria carne. Em outras palavras, não adianta se tornar especialista em
algum assunto, fazer curso de xamanismo, entrar para uma seita eso-
térica, contatar extraterrestres ou guias espirituais, lembrar de vidas
passadas ou desenvolver capacidades paranormais se tais coisas não
contribuem para que a pessoa se conheça melhor e se relacione me-
lhor com o mundo, com os outros e consigo mesma. A espiritualida-
de que não gera o sadio intercâmbio entre consciência e inconsciente
tende apenas a inflar o ego. Aliás, o mundo da espiritualidade e da
religião às vezes mais parece um espetáculo de enormes balões colo-
ridos a desfilar no céu...
O mundo interior é como uma caverna escura e cheia de labi-
rintos. O explorador pode facilmente ser seduzido por qualquer um
de seus encantos e mistérios e esquecer que precisa prosseguir e vi-
ver os desafios seguintes de sua transformação pessoal. É justamente
assim, seduzida pelos conhecimentos que as religiões, seitas e os
mais diversos ismos e logias oferecem, que a pessoa se acomoda em
algum tipo de explicação da realidade e “autoriza” que alguma ideo-
logia faça o trabalho por ela.
A própria pessoa é quem tem de percorrer seu caminho e viver
em si mesma a alquimia que a transformará num novo ser. Saberes
intelectuais e dons paranormais, por si só, nada valem na jornada do
verdadeiro autoconhecimento e não significam necessariamente per-
correr o caminho interior. Morfeu certamente concorda com isso pois
40
em certo ponto da história ele diz a Neo: “Há uma diferença entre
conhecer o caminho e trilhar o caminho”.
Assim como Neo terá que ver a Matrix com os próprios olhos
e entendê-la por si mesmo, nós também teremos que ver a verdade
através de nossa própria vivência individual, que se parece com o
convite para aquela festa chique: é pessoal e intransferível. Ninguém
pode viver nossa própria verdade por nós e nem podemos verdadei-
ramente compreendê-la sem passar pela experiência. Livros e cursos
explicam com detalhes mas tudo fica no plano do entendimento inte-
lectual. Esse tipo de conhecimento muitas vezes é uma casca bonita
que nada contém – não é isso que transforma. É mais ou menos como
planejar uma viagem e estudar a região pelo guia, decorando pontos
turísticos, preços de pousadas e nomes de ruas. Tanta preparação só
valerá mesmo se a viagem for posta em prática. E, ainda assim, a
gente sabe que na prática a coisa geralmente não sai como planeja-
da...
É só o que tem por aí: frequentadores de cursos e catedráticas
dos assuntos da alma. Muitos têm gurus, sabem botar cartas. Muitos
até escrevem livros. Mas não vivenciam em suas próprias vidas a
transformação necessária que os conduzirá ao nível seguinte de auto-
conhecimento e realização pessoal. Estão empacados em algum pon-
to de seu crescimento interior, repetindo fórmulas e orações decora-
das. Têm na ponta da língua o versículo para cada ocasião, conhecem
a hierarquia dos seres ascensionados e recitam suas vidas passadas
como quem narra as férias em Canoa Quebrada. Putz, de que vale
mesmo tudo isso?
Assim como Morfeu não explica para Neo o que é a Matrix,
nenhum livro, curso, religião ou guru pode viver por nós aquilo que
nós mesmos temos de viver. Se desejamos avançar no conhecimento
do mundo interior e, com isso, nos libertar do que nos escraviza, só
há um jeito: tomar a pílula vermelha. E ver a verdade com nossos o-
lhos, vivê-la na própria pele. Mesmo que doa.
o despertar
Depois de tomar a pílula vermelha, Neo é conectado aos aparelhos para fi-nalizar seu processo de desligamento da Matrix. Ele estica a mão e o espe-lho à sua frente engole seus dedos. De repente a superfície do espelho so-be pelo seu braço, feito um gel prateado, envolvendo cada vez mais seu corpo. Ele entra em pânico e desmaia.
41
Então Neo desperta. Está numa espécie de casulo, imerso num líquido a-vermelhado, e de seu corpo nu saem cabos conectores. Ele olha impressio-nado para as enormes construções ao redor, centenas delas, cada uma com milhares de casulos como o dele, cada casulo abrigando um corpo hu-mano. De repente um robô se aproxima, observa-o e desconecta os cabos, fazen-do Neo escorregar por um longo tubo e cair num esgoto, de onde é resgata-do pelos rebeldes.
Esta cena tem forte carga dramática e certamente é a mais im-
pressionante de todo o filme. Mostra o momento exato em que Neo
desperta para o mundo real, acordando de um sonho no qual viveu
durante toda a vida.
Em nossas vidas não acordamos em casulos gosmentos, ainda
bem, mas o drama do despertar da consciência é sempre intenso e
carregado de fortes sensações e emoções. O mito do despertar da
consciência está espalhado em diversas culturas. Na mitologia cristã
ele aparece na metáfora da árvore do bem e do mal cujo fruto faz
com que Adão e Eva adquiram consciência de si próprios. Despertos,
eles são expulsos do Paraíso e daí em diante terão de trabalhar duro
para se sustentar. Em linguagem psicológica isso significa que o in-
divíduo atingiu um certo grau no conhecimento de si mesmo e já não
pode mais permanecer na comodidade em que estava, com as velhas
ideias e atitudes perante a vida. Nesse momento as forças psíquicas
forçam o ego a deixar seus limites de autopercepção e a ele não res-
tará outra alternativa senão buscar novos níveis de compreensão de si
mesmo.
Mas o despertar não é um processo que ocorre magicamente
de um momento para o outro: ele é feito de acontecimentos que pre-
cedem as revelações transformadoras. Para Neo, o despertar começa
com o estranhamento que sente em relação à realidade e com as in-
críveis façanhas de um tal homem chamado Morfeu. Depois vêm as
estranhas mensagens no computador, o encontro com Trinity, o tele-
fonema de Morfeu, o encontro com os agentes, mais um encontro
com Trinity e, por fim, com Morfeu. O herói precisa ser devidamente
iniciado e passar por pequenos testes para que possa suportar a gran-
de revelação que terá.
Não pensemos também que o despertar é uma experiência úni-
ca, no sentido de que uma vez desperto, sempre desperto. Não é as-
42
sim. O processo de autorrealização é feito de muitos despertares, ca-
da um levando o indivíduo a um novo nível de autoconhecimento
que, por sua vez, o leva a um novo nível de relação com mundo e is-
so força sua consciência a nova mudança e assim por diante.
Em nossas vidas o despertar acontece quando passamos por
uma experiência forte o bastante para mexer com nossa noção da rea-
lidade ou de nós mesmos. Experiências fortes existem aos montes:
basta ir ao parque de diversão, ao futebol, a uma festa, tomar alguma
droga ou receber a fatura do cartão de crédito do fim do ano. Porém,
a experiência que leva ao despertar é especial porque transforma a
pessoa para sempre, mudando sua autoimagem. O terremoto interno
que o despertar provoca muda a pessoa para sempre.
Se na adolescência precisávamos construir uma imagem de
nós mesmos, agora precisamos desconstruir. Precisamos matar o que
éramos para que o novo eu possa nascer, com outros valores. Preci-
samos passar pelo fogo da transformação e isso envolve dor, confli-
tos internos, insegurança e medo. Separações, insucessos, acidentes,
doenças e até a morte podem servir de catalisador para o despertar
porque fornecem o choque necessário para que a pessoa pare e se
concentre um pouco mais em seu mundo interno, repense os valores
que até então a guiaram e perceba finalmente que a vida está lhe exi-
gindo uma nova postura diante dela.
Na jornada de autodescoberta nós despertamos um pouco mais
cada vez que assumimos certas coisas sobre nós mesmos. Podem ser
boas ou ruins mas sempre são coisas que não sabíamos ou não admi-
tíamos. Neo precisa acordar de um longo sonho senão jamais se tor-
nará o Predestinado de que fala a profecia. Nós precisaremos acordar
também, não exatamente de um sonho, mas de uma falsa ou limitada
compreensão de nós mesmos. Precisaremos nos desconectar dos va-
lores que nos guiaram até agora mas que não são mais úteis ao cres-
cimento pessoal, assim como Neo teve que se desconectar dos cabos
que o mantinham preso ao casulo.
O verdadeiro autoconhecer-se dói porque implica necessaria-
mente enfrentar o que se teme, tornar-se o que se evita ser, entrar no
fogo dos piores medos. Dói admitir que estávamos errados, que as
coisas não são bem como sempre pensamos e que nós mesmos não
somos quem sempre consideramos ser. A sensação de desamparo e
solidão nos atinge como um raio. Sentimo-nos impotentes, humilha-
dos e não vemos saída para nosso sofrimento. Se pudéssemos, aper-
43
taríamos um botão, desceríamos pelo ralo e morreríamos no esgoto.
E tudo estaria finalmente terminado, a dor, a decepção, a solidão.
Ponto final.
Bem, de fato todo despertar da consciência exige uma morte.
Mas aqui trata-se de uma morte simbólica: a morte do ego. O velho
ego morre, ele e seus valores ultrapassados, para que um novo ego
possa tomar seu lugar, mais forte, mais sábio e capaz de mediar os
mundos interno e externo do indivíduo, gerenciando as necessidades
dos dois lados. Um ego que possa conduzir o herói adiante em sua
jornada.
os sonhos e a morte
Se nós tivéssemos o hábito de atentar e registrar nossos so-
nhos, veríamos que durante todo o tempo eles refletiam o próprio
processo que vivíamos. É assim, através dos sonhos, que a psique in-
dividual retrata a si mesma, seus movimentos, suas transformações.
Além de servir de espelho para a realidade psíquica do sonhador, os
sonhos também podem orientar, mostrando o caminho que se deve
tomar.
Por virem diretamente do inconsciente, os sonhos falam a
mesma linguagem do mito, ou seja, falam pela imagem, pelos símbo-
los. Por isso é que eles têm fama de incompreensíveis e até mesmo
de absolutamente ilógicos. Os sonhos têm uma lógica, sim, mas para
captá-la precisamos ser mais íntimos de sua linguagem simbólica.
Sim, é verdade que ainda temos muito que aprender sobres os sonhos
mas já sabemos que as situações que eles trazem podem se referir a
aspectos do ser, cada figura representando algo em nós mesmos, em
nossa vida. Se quisermos compreender mais os nossos sonhos e, con-
sequentemente, a nós mesmos, temos que olhar para eles como esta-
mos olhando agora para o filme Matrix, monitorando o personagem
principal através de seus vários aspectos, analisando as situações pe-
las quais ele passa como metáforas de seu próprio processo interior
de autorrealização.
Infelizmente no corre-corre do cotidiano não sobra tempo su-
ficiente para nos dedicarmos ao nosso mundo interno. Acordamos já
apressados e os nossos sonhos se dissipam no ar, levando embora as
importantes mensagens que a psique elaborou durante a noite, men-
sagens que poderiam facilitar a vida, fornecendo respostas para ques-
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tões difíceis e apontando o melhor caminho. Certamente gostaríamos
de saber o que nossa parte mais sábia tem a nos dizer mas infeliz-
mente estamos atrasados, um monte de coisa a resolver, o aluguel es-
tá vencido, não há tempo.
Um psicólogo experiente, que sabe reconhecer as nuances do
processo de autorrealização, pode facilitar nosso contato com os so-
nhos e suas mensagens. Para isso temos também de fazer nossa parte,
registrando os sonhos e nos mantendo vigilantes em relação a nós
mesmos, comprometidos com o processo, sendo honestos com nos-
sas verdades interiores. Desconfie dos livros que oferecem fáceis in-
terpretações dos sonhos pois apesar de certos símbolos serem coleti-
vos, sempre haverá detalhes do universo onírico estreitamente liga-
dos à vida individual do sonhador, à sua história.
Se, nesse ponto decisivo do processo, o herói se torna mais ín-
timo de seu mundo onírico, ele capta a mensagem e entende que a
morte está se anunciando em seus sonhos, sim, mas representa a pro-
funda transformação pela qual ele passa. Imagens de mares revoltos,
catástrofes, documentos perdidos ou desorientação na floresta indi-
cam, em metáforas, o que está ocorrendo em sua vida: o herói está
perdido pois sua noção de si mesmo, sua preciosa identidade, ruiu
feito um prédio que desaba e agora ele se sente acuado por forças
que ameaçam matá-lo.
Mas a morte é simbólica e o herói não precisa ter tanto medo
assim. Nós também não precisamos temer. Veja o exemplo das ser-
pentes: elas se tornaram símbolos da vida que se renova. Por quê?
Justamente porque trocam de pele de tempos em tempos e com isso
se tornam mais resistentes.
Encarar nosso sofrimento como uma troca de pele, um sacrifí-
cio necessário, pois não há crescimento possível sem dor. Grandes
conquistas exigem grandes sacrifícios. E o que de maior podemos
entregar senão a nossa própria noção de eu?
45
III
Não existe colher
crises do despertar
Neo é resgatado pelos rebeldes. Pela primeira vez em toda a vida sua men-te está fora da Matrix, no mundo real. Muito debilitado pelos anos em que seu corpo ficou imobilizado no casulo, cedendo energia para as máquinas, Neo dorme e a tripulação cuida dele. Ele acorda e pergunta por que seus olhos doem. Morfeu responde que é porque ele nunca os usou. E finaliza: “Descanse, Neo. As respostas estão vindo”.
O indivíduo jamais sai impune de sua diferenciação da socie-
dade pois a conquista da individualidade sempre cobra seu preço. As
crises que envolvem o despertar deixam o ego fragilizado pois pode
ser bem doloroso encarar a verdade sobre nós mesmos. É comum que
tais descobertas abalem tanto o ego que a pessoa, num primeiro mo-
mento, adoeça, precisando de um tempo para se recuperar e retomar
os afazeres normais do dia a dia. A psique, em sua capacidade autor-
reguladora, força a pessoa a diminuir o ritmo e cuidar de si nessa fase
delicada.
Em certos casos o corpo segue a mente e expressa o sofrimen-
to do ser, somatizando o conflito interno e refletindo fisicamente o
que se passa na dimensão da alma. Vêm daí certas doenças que de-
vem ser entendidas num contexto mais amplo, como sintomas da cri-
se psíquica.
Infelizmente a maioria dos nossos médicos ignora essa dimen-
são psíquica do ser e por isso se concentra nos cuidados físicos e
neurológicos, comprometendo o processo de cura com sua compre-
ensão restrita da natureza humana. Nessas ocasiões o médico geral-
46
mente não encontra causa alguma para a doença. Ora, não encontra
porque procura no lugar errado. A doença física, aqui, é um sintoma
localizado do desequilíbrio psíquico pois o ego está sendo confronta-
do por conteúdos inconscientes e isso ocorre porque o ego precisa
evoluir, a pessoa precisa se tornar mais adulta. Por ignorar a realida-
de objetiva da psique, o médico também ignora que esse doloroso
confronto é vital ao desenvolvimento do ego e, consequentemente, à
saúde do ser total. Quando o médico desconhece que a doença já faz
parte da cura, suas tentativas de exterminá-la a todo custo poderão
também anular o potencial curativo que a doença oferece.
Esta noção mais ampla da saúde ainda é rara entre médicos,
enfermeiros e psiquiatras, profissionais formados por escolas que
tendem a ignorar a dimensão psíquica do ser. Felizmente já existem
profissionais que levam a sério essa dimensão, compreendendo o ser
de um modo holístico, o que os torna mais capacitados para ajudar as
pessoas a entender melhor as razões de seus males. Isso nos dá espe-
rança de que num futuro próximo as crises do despertar da consciên-
cia (e as crises psíquicas em geral) possam ser tratadas não como me-
ras doenças, à base de comprimidos, mas como manifestações físicas
e psicológicas de um processo de cura e crescimento que envolve to-
do o ser.
os olhos veem
Estamos num momento decisivo do processo. No começo e-
ram indícios vagos e confusos, mensagens sutis vindas do inconsci-
ente que inquietaram o ego, forçando-o a sair de seu quartinho. O
ego começou a desconfiar que havia algo além do que sabia sobre si
mesmo e passou a se investigar. Vieram daí as dificuldades mas o
ego persistiu em seu caminho de autodescobertas. Vieram novas difi-
culdades e a coisa ficou mais séria. É como se a vida dissesse: “Não
era você quem queria ver o que há do outro lado de sua dúvida? Pois
agora veja.”
Diante do perigo, o ego hesita. Ele pode recuar, levando a pes-
soa a se convencer de que essas coisas não têm importância, que é
melhor não mexer na ferida... Infelizmente, às vezes basta um vis-
lumbre do que estamos por descobrir sobre nós para nos afastar do
caminho.
A jornada da autorrealização não é para fracos. Somente os
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que vencem o medo de se conhecer podem realizar a si próprios. Neo
já sentiu esse medo quando tentou andar pelo parapeito e quase caiu.
Sentiu pavor quando foi torturado pelos agentes. E, diante da estra-
nha proposta de Morfeu, parou para avaliar se valeria mesmo a pena
prosseguir...
O herói decidiu pagar para ver. E tomou sua pílula vermelha.
O ego decidiu prosseguir e aceitou ver o que vinha do escuro do in-
consciente. Isso fez o herói finalmente se confrontar com a realidade.
E a visão dela foi tão dolorosa que o ego não resistiu e começou a
morrer. E não poderia ser de outro jeito. Da mesma forma que os o-
lhos de Neo doem por ele nunca ter usado antes, nós também sofre-
mos por estarmos, pela primeira vez, olhando diretamente para den-
tro. Mas o que exatamente pode ser tão doloroso assim em nós mes-
mos? Tudo aquilo que incomoda e envergonha – mas que agora so-
mos forçados a admitir como parte integrante de nossa personalida-
de.
Assumir que somos fracos, mesquinhos, mentirosos, medro-
sos, covardes, ciumentos, violentos, desonestos, enfim, assumir coi-
sas que sempre julgamos inexistentes em nós é tarefa das mais difí-
ceis. O ator principal tem de descer do pedestal de sua autoimportân-
cia, desculpar-se com a plateia e apresentar a ela os outros atores da
peça, que ele antes desprezava. O ator se sente humilhado.
Na vida real a plateia não são as pessoas ao redor mas a nossa
própria consciência. Podemos até enganar os outros mas agora já não
podemos seguir mentindo para nós mesmos. O ego está frente a fren-
te com outros aspectos do ser e é impossível prosseguir ignorando-os
pois agora eles se comportam feito funcionários em greve que sim-
plesmente paralisam as atividades e impedem o funcionamento nor-
mal da empresa, levando o ego-gerente ao desespero. A pessoa estará
impossibilitada de viver sua vida normal enquanto se mantiver o caos
psíquico.
Só há uma saída: o ego tem de assimilar o que vem do incons-
ciente e integrar essas novidades à consciência. No início é doloroso
mas logo os conteúdos assimilados fazem o ego mais forte e a psique
finalmente se equilibra.
Por isso que é difícil para o indivíduo se desgarrar da socieda-
de: a floresta lá fora é escura. Poucos avançam quando o ego é cha-
mado ao confronto com seus aspectos sombrios. O comum é tomar a
pílula azul e tratar de esquecer certos assuntos. Os horizontes de
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quem não arrisca são menores, sim, mas no mundo das ilusões ao
menos não temos de encarar a incômoda verdade sobre nós mesmos.
No entanto sempre há quem tome a pílula vermelha, testando
seus limites e assumindo todos os riscos da aventura de se conhecer.
Fazem isso porque têm coragem, sim, mas também porque sentem
que não podem deixar de fazê-lo, que morrerão frustrados se desisti-
rem nesse ponto. Então dão o passo à frente.
Você já ouviu falar de Alexandre o Grande? Ele foi rei da Ma-
cedônia (atual região da Grécia) e viveu no século 4 antes da era cris-
tã. À frente de seus soldados conquistou reinos da Europa, África e
Ásia, promovendo uma intensa troca cultural entre Ocidente e Orien-
te. Alexandre é considerado um dos maiores estrategistas militares da
história. Uma das lendas a seu respeito diz que ele desembarcava seu
exército na praia inimiga, retirava dos navios as armas e a comida,
reunia os soldados à beira-mar e mandava atear fogo nos próprios
navios. Então, diante das chamas, gritava para a tropa: “Se quiserem
voltar para casa e rever suas famílias, só temos uma opção: vencer a
guerra e voltar nos navios do inimigo.”
História interessante... Mas o que isso tem a ver com o proces-
so de autorrealização? Tudo. Alexandre, ao queimar os próprios na-
vios, tomava sua pílula vermelha, ou seja, tomava uma atitude drásti-
ca em relação a seu destino, obrigando a si mesmo a avançar e dar o
melhor que pudesse. Para voltar para casa, seus soldados não tinham
outra opção a não ser dar tudo de si, lutar com todas as forças que ti-
vessem e algo mais. Eles eram obrigados a se superar. Por isso ven-
ciam.
Neo, ao aceitar a pílula vermelha, não age com excesso de
confiança ou soberba. É justamente o contrário: ele está assustado e
tem medo. Se soubesse o que o aguarda, talvez preferisse a pílula a-
zul, como logo veremos. Nada lhe garante sucesso mas ele, sentado
naquela poltrona, parece escutar a intuição lhe sussurrar ao ouvido
que sim, ele deve prosseguir, que somente assim saberá onde vai dar
a toca do coelho. Somente dando esse terrível salto no escuro é que o
herói conhecerá o fim de sua própria história.
mais crises
Neo acorda de seu sono profundo. Sente-se melhor. Morfeu lhe explica: “Você acredita que o ano é 1997 mas é mais provável que estejamos em 2197.” Neo diz que isso é impossível. Morfeu continua: “Eu prometi a verda-
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de a você e a verdade é que o mundo em que você vivia era uma mentira”. Neo e Morfeu são conectados a um programa de realidade virtual onde Neo fica sabendo sobre a Inteligência Artificial, a guerra, a Matrix e o que acon-teceu com o planeta. Neo reluta em aceitar que toda sua vida foi apenas um sonho gerado e mantido por máquinas pensantes. Angustia-se e é retirado do programa. Ele vomita e vai para seu aposento descansar. Aos poucos se recupera do choque e começa, finalmente, a aceitar a verdade.
Os acontecimentos que nos fazem encarar a verdade sobre nós
mesmos têm força suficiente para desestruturar a vida. A verdade es-
tá à frente e não podemos mais fingir que ela não existe. Ou pode-
mos?
Assim como Neo, mesmo desperto da Matrix, ainda reluta em
aceitar a verdade, nós às vezes demoramos a reconhecer aquilo que
já é evidente. Por quê? Simplesmente porque o velho ego ainda não
morreu de todo e seus espasmos continuam.
Neurose. É o nome dessa tensão entre nossa verdadeira natu-
reza e os interesses superficiais do ego ou os papéis a que sociedade
nos obriga. As neuroses se manifestam porque já não é mais possível
manter no inconsciente certos aspectos do ser e, ainda assim, a per-
sonalidade consciente insiste em não reconhecê-los. Quanto mais
tempo se prolongar essa tensão, mais a Pessoa sofrerá até tornar a vi-
da algo muito difícil de suportar.
Devemos ver a neurose com olhos mais otimistas – ela é um
sinal de que estamos lidando com nossos conteúdos inconscientes,
com a nossa própria natureza. Isso quer dizer que a psique está ten-
tando se equilibrar entre seus opostos. Passamos maus bocados toda
vez que o ego demora a reconhecer o que precisa ser reconhecido
mas tudo isso faz parte do processo. O ego necessita de tempo para
assimilar o que descobriu. Os mecanismos autorreguladores da psi-
que têm sua sabedoria própria e por isso as descobertas do mundo in-
terior se fazem aos poucos, para podermos digerir bem as novas in-
formações, cada uma em seu devido tempo.
Morfeu tem de aguardar Neo se recuperar do choque causado
pelo desligamento da Matrix para só então levá-lo a um programa de
realidade virtual a fim de que ele entenda o que houve com o planeta
e a humanidade. E ainda assim, com todos esses cuidados, Neo sofre
bastante e precisa de mais tempo para aceitar, chegando a perguntar a
Morfeu se ainda pode voltar à Matrix.
Nós também demoramos a aceitar o que somos. O mundo, po-
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rém, sempre trata de nos mostrar a verdade. Certos comentários a
nosso respeito nos irritam? Aí está uma boa pista a seguir. Se tais
comentários nos tiram do sério, talvez eles queiram nos dizer algo
importante sobre quem somos mas nós receamos admitir. Quem está
seguro em seu caminho não tem porque se incomodar com o que fa-
lam mas, por outro lado, quem esconde algo de si mesmo será cons-
tantemente lembrado disso através de outras pessoas que, de alguma
maneira, conscientes ou não, porão o dedo bem na ferida.
Outra boa pista é atentar para o que nos incomoda profunda-
mente nos outros. Como projetamos inconscientemente aquilo que é
incômodo dentro de nós, é nos outros que o veremos claramente e
não em nós mesmos. Ter de conviver com essas pessoas parece um
castigo mas, na verdade, é uma ótima oportunidade para reconhecer
nossas falhas. A agressividade que não reconhecemos em nós mes-
mos, nós a detectaremos em alguém e isso poderá nos incomodar a
tal ponto que não conseguiremos conviver com tal pessoa pois ela é
muito agressiva, ou seja, ela sempre nos faz lembrar do que somos
mas queremos esquecer.
O ego imaturo não permite que esses conteúdos inconscientes
sejam reconhecidos pela consciência e assim eles prosseguem agindo
na surdina, influenciando a personalidade. Mas um ego maduro es-
quece o orgulho e reconhece, através de suas projeções, as falhas de
sua própria personalidade. O autoconhecimento faz com que todas as
pessoas sejam mestres para nós, nos ensinando o que precisamos sa-
ber sobre nós mesmos. Mas para isso precisamos de autocrítica e
humildade em relação a nós e de paciência e compreensão em rela-
ção aos outros. Precisamos treinar essas capacidades em nós para
podermos praticá-las naturalmente sempre que a vida exigir que a-
vancemos ao nível seguinte de autorrealização.
Neo treina com Morfeu
Após finalmente aceitar a verdade e se recuperar, Neo inicia seu treinamen-to para saber agir na Matrix. Ele é inserido num programa que simula a rea-lidade da Matrix e lá consegue superar o mestre Morfeu. Depois, aprenden-do a saltar prédios, falha e cai, despencando sobre o asfalto.
O percurso rumo à autorrealização envolve várias situações
em que será preciso admitir que o que se vivia era apenas uma ilusão.
Para evitar lidar com a verdade, nós fugimos de nós mesmos. Essa
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fuga constante requer muita energia por parte do ego: ele se esforça a
cada minuto do dia para manter as aparências, não somente para os
outros mas principalmente para si mesmo.
Nós fingimos que somos o que não somos e reprimimos o que
na verdade sempre fomos. Ignoramos a voz interior que nos chama
para uma conversa e quanto mais ela insiste, mais abafamos sua voz
com qualquer coisa que estiver à mão: trabalho, diversão, consumo
desenfreado, sexo, drogas e ocupações superficiais. Para não olhar
para onde realmente interessa, construímos um mundo ao nosso re-
dor feito de coisas agradáveis.
A energia que o ego gasta com tudo isso é enorme. Com o
tempo, essa tática acabará obstruindo o fluxo natural do crescimento
e a crise virá num vendaval que arrancará as máscaras que o ego
construiu com tanto esmero para si. O mundo de superficialidades se
mostrará um cenário de papelão, os relacionamentos perderão a graça
e muitas coisas que ocupavam tanto espaço na vida deixarão de fazer
sentido. Teremos de admitir que vivíamos uma mentira, uma grande
Matrix criada e mantida por nós mesmos, em nossa ânsia de fugir do
que nos chamava.
É um momento perigoso para o herói. Para se proteger dos es-
combros de seu mundo que desmorona, muitos se refugiam em qual-
quer lugar que lhes acene com segurança. Muitos recorrem à religião
ou procuram as drogas. Há também aqueles que sucumbem ao ci-
nismo e adotam uma postura sarcástica perante a vida, como se tives-
sem sofrido uma grande decepção amorosa. Há também aqueles que
perdem o prumo e têm sua vida desorganizada a tal ponto que nunca
mais a organizam de forma satisfatória. Há os que enlouquecem. E
há os que desistem de viver.
Descobrir que a própria vida é uma mentira pode ser insupor-
tável. Mas muitos conseguem assimilar a descoberta e prosseguir
com suas vidas sem se entregar a novas mentiras. Buscam e encon-
tram dentro de si mesmos o sentido maior para o sofrimento por que
passam e assim superam a crise. A experiência da dor e da superação
os torna mais fortes e mais capazes e eles prosseguem cada vez mais
firmes rumo à concretização de suas potencialidades.
Neo aprende a lutar nos programas de simulação e termina por
vencer o próprio mestre. Após nos livrarmos das mentiras que só
consumiam nossa energia, podemos agora, como Neo, fazer o que
realmente importa, nos capacitando a viver de modo verdadeiro, in-
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vestindo em nossas vocações e lutando pelos sonhos mais íntimos.
Sem o peso das mentiras que usávamos para nos proteger de nós
mesmos, agora somos mais ágeis, nos movimentamos melhor pela
vida. Estamos mais preparados. Mas o aprendizado não terminou.
Falta, por exemplo, saber saltar prédios.
Morfeu, o princípio yang
Se Trinity representa valores mais femininos, Morfeu é a per-
sonificação do masculino na psique do herói. Morfeu é o princípio
yang da personalidade: força criativa, liderança, incentivo, agressivi-
dade e capacidade de realizar. Morfeu é o líder da tripulação e foi ele
quem libertou os colegas. Foi ele quem descobriu Neo na Matrix e
primeiramente acreditou que ele era o Predestinado. Foi Morfeu
quem enviou Trinity para contatar Neo. Foi ele quem mostrou a do-
lorosa realidade para Neo. Agora é ele quem o treina para lutar con-
tra a Matrix.
O herói precisa desse aspecto Morfeu do ser. Todos nós preci-
samos crer que somos capazes senão nada conseguiremos realizar.
Precisamos buscar nossa própria força para fazer o que devemos fa-
zer. É esse importante aspecto da psique que nos mantém acreditan-
do em nossos sonhos, por mais improváveis que sejam. Às vezes,
quando tudo diz que não conseguiremos, é justamente o Morfeu que
existe em nós que temos de localizar e fazer agir pois ele não medirá
esforços em lutar por nós. Ele é feito de fé, a inabalável fé que diz
que nós somos predestinados.
A natureza agressiva do aspecto yang é bem visível nos ho-
mens, criados desde bebês para lidar com valores como força, lide-
rança e empreendorismo. Mas eles precisam equilibrá-los com os va-
lores femininos de sua psique senão se tornam seres psicologicamen-
te desajustados, incapazes de levar adiante o processo de autorreali-
zação.
Com as mulheres ocorre o mesmo, de modo inverso. Elas pre-
cisam de sua contraparte masculina para se equilibrar e serem mais
coesas. A vida moderna exige das mulheres força e capacidade de li-
derança nos negócios mas, infelizmente, muitas se deixam seduzir e
ficam possuídas pelos valores masculinos. O que se vê então são mu-
lheres exageradamente competitivas, cheias de opiniões e posturas
rígidas demais, obcecadas em ter razão, sedentas de poder, superva-
53
lorizando o dinheiro, desprezando os sentimentos e surdas aos me-
lhores conselhos. De tão masculinizadas tornam-se caricaturas do
homem. Nelas a feminilidade foi reprimida e será preciso resgatá-la
através do autoconhecimento para que a psique se reequilibre.
Confiar na vida e no próprio processo de crescimento é uma
qualidade vital, forjada principalmente nos fracassos pois são as der-
rotas que revelam os que são dignos de prosseguir no caminho. Nas
situações difíceis, quando as incertezas e o sofrimento nos abatem,
quando nada dá certo, lembre-se das lendas e dos mitos: as terríveis
provas do herói jamais são à toa. É justamente o sofrimento que faz o
herói amadurecer e se transformar, conseguindo assim, mais tarde,
realizar o que antes lhe seria impossível.
É preciso confiar no processo e isso inclui confiar inclusive no
sofrimento pessoal pois ele tem um propósito que mais adiante sabe-
remos entender. É esta a lição de Morfeu: confie na vida, acredite em
você e faça.
negar os instintos
Os tripulantes estão reunidos para comer. Dozer explica que as refeições da nave não são gostosas mas são feitas de proteína unicelular, combinada com aminoácidos, vitaminas e minerais sintéticos e que isso é tudo que o corpo precisa. Mouse, o mais novo, discorda: “Não é tudo o que o corpo precisa.” A seguir Mouse comenta com Neo sobre a mulher de vestido ver-melho do programa de simulação da Matrix. Afirma que foi ele quem o cons-truiu e pergunta se Neo não gostaria de um encontro a sós com a mulher. Trinity graceja: “O cafetão digital em ação...”. “Não ligue. São hipócritas”, prossegue Mouse. “Negar nossos instintos é negar o que nos faz humanos”.
A espécie humana é apenas uma ramificação da longa cadeia
evolutiva que teve início com organismos minúsculos e se diversifi-
cou pelo planeta em milhões de espécies. A maioria desapareceu pe-
lo caminho e entre as que chegaram vivas nos dias de hoje está o
Homo sapiens, descendente direto de outras espécies de hominídeos
que, por sua vez, descenderam dos macacos. Nossa espécie adquiriu
elevado grau de autoconsciência e, por isso, deixou de ser guiada u-
nicamente por seus instintos, construindo cultura. Sua mente refinou-
se e adquiriu habilidades que levaram-na a dominar outras espécies e
agora seu impulso de conquistas segue rumo ao espaço sideral.
54
O Homo sapiens é o maior conquistador da história mas não
tem poder sobre toda a Natureza e sequer consegue controlar a si
mesmo. Nossos cientistas desvendam os segredos do Cosmos e nós
não sabemos quem somos. Apesar de todo o conhecimento adquiri-
do, o ser humano permanece um grande mistério para si próprio.
A mentalidade científica nos fez pedantes e hoje nos cremos
separados da Natureza, olhando para tudo ao redor com ar de superi-
oridade. Mas o buraco é mais embaixo. Apesar de toda a cultura que
construímos e de todos os avanços tecnológicos, ainda somos ani-
mais e, por isso, feitos de instintos. Continuamos fazendo parte da
Natureza, assim como nossos peludos antepassados milhões de anos
atrás.
Ironicamente é a própria ciência que nos faz cair desse pedes-
tal de soberba. Primeiro descobrimos que somos todos descendentes
de macacos e formamos com eles uma única família chamada prima-
ta. Depois as pesquisas revelaram que 97% de nossa constituição ge-
nética é igual a de alguns deles. Isso tudo contradiz nosso sentimento
de superioridade e a crença que, por sermos dotados de razão e pen-
samento abstrato, não mais fazemos parte da Natureza nem somos
guiados por instintos como os bichos.
Os instintos são nossa ligação direta com a Natureza, inclusive
a natureza humana. Negá-los é negar as nossas raízes, é fugir do que
somos. Em Matrix os humanos rebeldes resistem a fazer parte do
mundo das máquinas e, assim, valorizar as características humanas
faz parte da resistência. Máquinas não têm instintos (pelo menos ain-
da) e, como veremos quando o agente Smith expuser suas opiniões
sobre os humanos, elas de certa forma se orgulham dessa autonomia
em relação aos impulsos naturais. Para Mouse, porém, admitir os
próprios instintos é justamente um modo de se diferenciar do mundo
mecânico e previsível das máquinas e elevar a categoria humana.
Reconhecer a própria humanidade é uma questão de sobrevivência.
Para que haja equilíbrio psíquico é preciso reconhecer a di-
mensão instintiva do ser e assimilar o que é natural em nós, aquilo
que herdamos e transmitiremos a nossos descendentes, queiramos ou
não. Se, ao contrário, reprimimos os instintos no inconsciente, nas
regiões escuras que a luz da consciência não alcança, os instintos se
desenvolvem sem o olhar crítico da consciência e ganham força para
influenciar o comportamento de modo negativo e até destrutivo.
A discussão entre Mouse e os outros tripulantes pode ser vista
55
como mais uma edição da velha discussão sobre corpo e espírito.
Apoc, Switch e Dozer criticam a sexualidade do jovem Mouse, cer-
tamente pensando que um humano liberto da Matrix deve concentrar
sua energia no trabalho de salvar outros humanos, nas missões dentro
do sistema e na luta contra as máquinas. É como se o interesse pelo
sexo pudesse lhes desviar da prioridade e demonstrasse fraqueza de
caráter.
Ideias desse tipo são comuns nos caminhos do autoconheci-
mento, principalmente quando há algum tipo de religiosidade envol-
vida. Para alguns a energia sexual deve ser reprimida para que a pes-
soa se concentre apenas no caminho da salvação. Mas, afinal, que di-
abo de salvação é esta que exclui algo tão natural e legítimo como o
sexo?
Não podemos cair no erro de ter vergonha do corpo e dos ins-
tintos apenas porque almejamos nos tornar pessoas mais equilibradas
ou espiritualizadas. Corpo e espírito são dimensões através das quais
o ser atua e reprimir um ou outro sempre traz problemas. A consci-
ência, mesmo ampliada, não deve se desgarrar de sua base instintiva
sob o risco da psique se desequilibrar. O corpo tem suas necessidades
e elas devem ser atendidas de forma saudável, caso contrário ele a-
doece. Não podemos nunca esquecer que também somos corpo e te-
mos de entender sua linguagem, suas necessidades e nos tornarmos
íntimos dele.
Sidarta também teve de entender isso antes de se tornar o Bu-
da. Após anos de jejuns e privações numa severa vida de austeridade,
ele arrasta seu fiapo de corpo sujo e mal-cheiroso até o rio e se ba-
nha. Depois aceita a tigela de arroz que lhe oferecem. Seus discípu-
los o abandonam, julgando-o traidor da causa ascética. Sidarta limpa
seu corpo, aplaca sua fome e tem prazer nisso. Ele então entende que
se sua antiga vida de príncipe era um exagero, a vida de negação ao
corpo era o outro extremo do exagero. Para atingir a iluminação, ele
precisou transcender aos dois extremos.
A sexualidade é um instinto que nos liga à nossa natureza a-
nimal. Se a reprimirmos, cedo ou tarde ela nos cobrará tal negligên-
cia, podendo se manifestar de forma descontrolada, irrompendo do
inconsciente e fazendo o indivíduo se comportar “como um animal”.
Devidamente reconhecida e assimilada pela consciência, a sexuali-
dade pode ser vivida de forma sadia e equilibrada, ampliando ainda
mais a consciência de si, o mesmo ocorrendo com outros instintos
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como a fome, a autopreservação, o impulso religioso, a busca de sig-
nificado e o instinto criativo, que leva à arte. É possível usar até
mesmo a sexualidade para alcançar novos níveis do espírito.
A energia sexual nos faz sentir mais vivos, mais integrados
com as leis naturais. Enquanto há sexo, há vida. Por isso é um alívio
ver sexo em Matrix. Aplausos para Mouse e sua linda loira de ver-
melho. Um brinde à dança sensual dos corpos na festa de Zion. Viva
o tesão urgente de Neo e Trinity no elevador!
o Oráculo
Mas que diabos um oráculo, coisa tão arcaica e misteriosa, es-
tá fazendo num filme como Matrix, num ambiente tão moderno e
tecnológico? O Oráculo é um dos personagens mais instigantes do
filme. Sua participação na trama é fundamental e por isso vale a pena
nos debruçarmos um pouco mais sobre ele.
Oráculo é um instrumento (ou alguém ou um lugar) através do
qual formulamos perguntas e recebemos respostas para as mais vari-
adas questões. Mas de quem ou de onde vêm as respostas? De algu-
ma divindade, de algum aspecto mais sábio de nós mesmos ou da
própria Natureza, conforme a crença do consulente. Eles são comu-
mente usados para esclarecer fatos do presente, para previsões do fu-
turo ou como instrumento de autoinvestigação psicológica. Concen-
tra-se, formula-se a questão e obtém-se a resposta. Enquanto proces-
samos a ritualística do oráculo, qualquer que seja ele (tarô, I Ching,
runas etc.), o silêncio age em nossa mente, isolando-nos das preocu-
pações cotidianas, e nos põe em contato com o essencial da questão.
Oráculos são utilizados por diversas culturas há milhares de
anos. Como surgiram? Não se sabe ao certo mas, olhando para a evo-
lução histórica da consciência, é óbvio que não há necessidade de o-
ráculo enquanto a espécie humana ainda está no estágio de indiferen-
ciação psíquica, ou seja, ainda não existe a autoconsciência e, por is-
so, não há a separação conceitual entre o “eu” e o mundo exterior.
Nesse ponto do processo evolutivo hominídeos e Natureza coexistem
num estado de total comunhão mística e tudo é uma coisa só, um i-
menso inconsciente. Como não existe ainda um “eu” para avaliar e
entender o mundo, também não há necessidade de comunicação.
Entretanto, à medida que a espécie evolui, a consciência emer-
ge e se diferencia do profundo oceano inconsciente, feito uma frágil
57
ilhota, e a realidade se divide entre o eu e o não-eu. A espécie come-
ça a se entender de forma distinta da Natureza e, consequentemente,
pela primeira vez “olha” para o mundo e o interpreta. A Natureza,
em suas diversas formas e manifestações, é para esses hominídeos
algo imenso e assombroso, muito além da compreensão. Deve ser
mais ou menos nesse ponto que são desenvolvidas as primeiras for-
mas de oráculos. Nossos antepassados, cada vez mais sentindo-se di-
ferenciados da Natureza (ou expulsos do paraíso, como prefere a lin-
guagem mitológica cristã), sentem necessidade de criar instrumentos
para se comunicar com ela e entender seus humores e, assim, come-
çam a “ler” a Natureza no comportamento dos bichos, no movimento
das nuvens, nas folhas das árvores, nos sulcos da terra e, dessa for-
ma, compreendendo o funcionamento do mundo, podem se proteger
das feras, prever eventos e programar migrações.
Os primeiros oráculos são isso: a observação e interpretação
primitiva do mundo em toda sua imensidão e mistério. Mas essa ob-
servação tem um caráter sagrado, numinoso, pois a Natureza aqui é
uma divindade viva e, como tal, é reverenciada com o mais profundo
respeito. A Natureza é a Mãe Terra, a generosa doadora da vida e sua
mantenedora, o lugar de onde vêm e para onde voltam todos os seres.
Quanto mais a consciência se diferencia do inconsciente e o
ser se firma em sua individualidade, mais a espécie se distingue da
Natureza, entendendo-se como algo separado. Os oráculos surgem
então, digamos assim, como um paliativo para compensar aquele
perfeito estado natural de interação entre a espécie e o mundo, estado
que fica irremediavelmente para trás com o advento da autoconsci-
ência.
Atualmente utilizamos oráculos modernos como as medições
meteorológicas por aparelhos. Ah, mas isso é ciência!, você pode di-
zer. Sim, é ciência, mas só difere dos oráculos primitivos por envol-
ver tecnologia pois a motivação e os resultados são os mesmos. Os
primeiros instrumentos oraculares eram um modo primitivo de fazer
ciência e nem por isso menos certo que o atual. Nossos antepassados
estavam muito mais próximos da sabedoria natural do planeta e por
isso sabiam se comunicar com ele. Nós é que nos afastamos tanto da
Natureza que agora, para entendê-la, apelamos a uma parafernália de
instrumentos que nem sempre traduzem corretamente os humores do
planeta. Além disso, a Natureza perdeu seu caráter sagrado e por isso
não vemos nenhum problema em desrespeitá-la e violentá-la todos os
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dias.
Para entender a Natureza, nossos cientistas, vestidos em seus
paletós engomados e do alto dos pedestais acadêmicos, gastam fortu-
nas construindo aparelhos sofisticados. Para fazer a mesma coisa,
nossos antepassados se acocoravam no chão e cutucavam a terra.
oráculos da alma
Num determinado momento nossos antepassados percebem
que os oráculos podem ajudá-los não somente a entender o funcio-
namento do mundo como também compreender a eles mesmos. Des-
cobrem que, compreendendo melhor sua própria natureza individual,
podem viver melhor. Nada mais natural pois se os oráculos servem
para entender a Natureza e, da mesma forma que plantas, nuvens e
bichos, nós também fazemos parte dela, por que os oráculos não po-
deriam nos auxiliar a desvendar a nós mesmos?
Foram então criados oráculos, digamos, artificiais, voltados
para temas relativos à alma, como o tarô moderno que é uma evolu-
ção das cartas que já circulavam no século 14. Contrário ao que mui-
tos pensam, a função principal do tarô não é dizer se vamos casar
com o Adalberto ou se vamos passar no concurso do Banco do Bra-
sil. Ele pode até nos responder sobre questões como essas mas, na
verdade, a estrutura de suas cartas nos revela algo mais profundo...
Analisando o tarô à luz do que hoje se sabe sobre a psique e
dos arquétipos, suas cartas revelam uma espécie de mapa do caminho
de autocompreensão, feito de imagens arquetípicas que funcionam
como símbolos ou marcos desse caminho, indicando experiências pe-
las quais temos de passar durante a vida. As estranhas cartas do tarô
são, assim, uma metáfora do processo de autorrealização, um espelho
do mundo inconsciente.
As pessoas que possuem sensibilidade e intimidade com o
mundo simbólico podem “ler” a vida através das cartas ou dos hexa-
gramas do I Ching, assim como nossos antepassados liam a Natureza
por suas manifestações. Em muitas culturas os sonhos também são
vistos como oráculos e ainda hoje os governantes consultam pessoas
para a interpretação de seus sonhos. Hoje a psicologia do inconscien-
te, principalmente a junguiana, entende os sonhos como a autoex-
pressão da psique, um drama que se desenrola do ponto de vista do
inconsciente e que visa levar ao ponto de vista do ego informações,
59
em forma de símbolos, sobre o eu total, promovendo assim a autor-
regulação psíquica. Vistos dessa ótica, os sonhos são, de fato, orácu-
los pois através deles podemos ler a natureza humana.
Os oráculos, no século 20, se tornaram populares no Ocidente
por conta do modismo esotérico que leva as pessoas a comprar tudo
que lhes promete fornecer o sentido que falta às suas vidas. É mais
uma das tantas armadilhas de nossa cultura consumista pois o sentido
da vida é algo que se descobre por si só e não que se compra na loji-
nha mística do bairro para pagar de três vezes no cartão. O fato de se
consultar um oráculo não significa, por si só, que se está apto a cap-
tar o sentido da mensagem recebida. Para isso a pessoa deve se livrar
dos bloqueios e autoenganações que a impedirão de compreender,
verdadeiramente, a resposta do oráculo.
No filme Matrix o Oráculo soa como um contrassenso: num
mundo supertecnológico e racional que importância teria uma senho-
ra vidente, cheia de mistérios e profecias? Muita importância. O Orá-
culo no filme representa o sagrado em nossas vidas, o numinoso, um
mistério que é maior e mais antigo que nós e pelo qual nutrimos pro-
funda fé e respeito. Pode ser uma religião formal ou uma crença reli-
giosa particular. Pode ser o amor, a arte ou uma conexão intuitiva
com a Natureza, o Cosmos, a humanidade... Mas sempre será algo
diante do qual baixamos a cabeça reverentes justamente porque nos
sentimos ligados a esse mistério maior.
O sagrado é obscuro, misterioso, arredio ao intelecto e jamais
o definiremos com exatidões científicas mas sem ele podemos ficar
à deriva no grande caos da existência. Perder de vista nossos valores
mais sagrados pode nos desequilibrar. Que seria dos resistentes de
Matrix sem a confiança no Oráculo? Eles o consultam e respeitam
suas mensagens e previsões porque ele é a âncora com o sagrado em
suas vidas e é isso que os mantêm fortes, unidos e esperançosos.
voltando à Matrix
Morfeu leva Neo de volta à Matrix para consultar o Oráculo. Durante o per-curso pelas ruas, dentro do carro, Neo olha silencioso pela janela e comenta que costumava comer num restaurante daquela rua.
Já passamos pelo choque de descobrir a verdade sobre quem
somos. Passamos também pela crise que envolve esse momento deli-
60
cado: adoecemos, tivemos a vida virada de cabeça para baixo, fomos
tentados a voltar atrás e, por fim, assimilamos bem tudo que desco-
brimos sobre nós mesmos. Agora estamos recuperados do choque e
aos poucos a vida retoma seu curso normal. Voltamos ao cotidiano
sabendo um pouco mais quem somos e o que queremos. Estamos
mais fortes e mais equilibrados.
No entanto, como a evolução da consciência se faz em espiral,
será inevitável que passemos pelo mesmo ponto, num outro nível. Is-
so significa que poderemos ser envolvidos novamente nas mesmas
situações de antes e, se não estivermos suficientemente preparados,
haverá um grande perigo de cairmos em tentação e falharmos.
Na Matrix o carro segue pelas ruas e Neo observa em silêncio
a cidade, as pessoas nas calçadas... Parece vagamente saudoso de sua
vida anterior, esse tempo em que ele ainda não conhecia a verdade, e
chega a comentar que comia muito bem num restaurante daquela rua,
certamente um macarrão ao molho bem mais gostoso que a ração
servida na nave.
Aqui, do lado de fora da tela, na vida real de cada um de nós,
também passamos por situações como a de Neo, obrigados a viven-
ciar novamente situações que vivíamos antes do despertar, lugares e
pessoas que parecem pertencer a uma época anterior de nossas vidas.
Isso funciona como teste para o ego, que se vê envolvido pelo clima
dos antigos valores.
É comum que o ego sinta certa nostalgia de quando não tinha
tantas responsabilidades para consigo mesmo, um tempo sem com-
promisso com o autoconhecimento. Podemos comparar com a sensa-
ção que nos passam as crianças, elas e sua inocência, sua despreocu-
pação com as coisas do mundo, algo que nos dá uma espécie de sau-
dade. Mas isso faz parte da jornada. Após despertos, precisamos vol-
tar ao mundo para viver nossa vida, com toda a intensidade que for
necessária, e isso nos obrigará a lidar com as mesmas situações de
antes. Podemos ir aos mesmos lugares e estar com as mesmas pesso-
as de antes e até fazer tudo que fazíamos. Agora, porém, tudo é dife-
rente pois nós estamos diferentes. Nossa consciência se encontra
num outro nível da espiral.
entortando a colher
Enquanto aguarda ser atendido, Neo observa uma garotinha careca vestida
61
como monge budista. Ela entorta uma colher sem tocá-la e depois lhe pede que faça o mesmo. Enquanto Neo a segura, ela diz: “Não tente entortar a colher. Isso é impossível. Em vez disso, tente apenas perceber a verdade.” “Que verdade?”, pergunta Neo, curioso. “Não existe colher. Então verá que não é a colher que entorta. É você mes-mo.”
Entortar a colher é o primeiro feito extraordinário de Neo na
Matrix. Aliás, frente aos que ele ainda realizará, este é bem modesto.
Mas o que importa aqui é que, pela primeira vez, Neo quebra as re-
gras, ou seja, contraria as leis que regem o mundo na Matrix. Ele, po-
rém, só realiza este pequeno milagre porque compreendeu, de verda-
de, que ele e a colher são a mesma coisa, a mesma realidade. Ele não
apenas concordou com a ideia e pensou que pode ser assim. Não. É
algo mais profundo: ele de repente soube que é verdade.
Há milhares de anos que os místicos de diversas tradições es-
pirituais, como o taoísmo e o budismo, insistem que a separação que
vemos entre as coisas é apenas aparente. Na verdade, tudo que existe,
objetos, pessoas, animais e plantas, tudo está unido de uma forma
que nossos sentidos não captam e é justamente por causa dessa uni-
cidade que os místicos sempre ensinaram: para mudar o mundo, mu-
de a você mesmo.
Se nós e o mundo que nos cerca somos a mesma coisa, então o
que fizermos a nós estaremos fazendo ao mundo. Se tudo que existe
está interconectado, então nada escapa à ação de algo. Se Neo e a co-
lher são a mesma coisa, não é necessário entortar a colher: basta que
Neo mova a si mesmo.
Essa verdade, que era exclusiva do misticismo, passou a ser
compartilhada no século 20, por incrível que pareça, pela ciência.
Descobertas em diversas áreas parecem concordar com a ideia da u-
nicidade cósmica. Na física os cientistas, pesquisando o estranho
mundo do interior do átomo, constataram que as partículas, de algum
modo ainda obscuro, se comunicam entre si. A física quântica cho-
cou os próprios cientistas ao concluir que não existe a tal neutralida-
de científica pois para se determinar a profunda natureza de qualquer
objeto, o observador deve incluir na análise o próprio ato de obser-
var, o que inevitavelmente envolve observador e observado no mes-
mo fenômeno. Em outras palavras: a realidade em si não existe. O
que existe é a nossa interação com ela.
62
Outras descobertas rumam para a mesma conclusão. Na ecolo-
gia já se trabalha com a teoria que a Terra é um imenso organismo
vivo, dotado de inteligência própria, e tudo que nela existe, seres,
plantas e minerais, são como órgãos desse imenso organismo. A psi-
cologia, com Jung, apresentou ao público a ideia de inconsciente co-
letivo e sincronicidade, ou seja, a união de todos os inconscientes, a-
través do qual pode se processar a comunicação e os acontecimentos
se relacionam significativamente entre si em forma de coincidências.
Tudo se influencia porque tudo faz parte de uma coisa só. Essa
verdade cabe bem no mundo globalizado de hoje, onde as economias
dos países se afetam umas às outras instantaneamente e as pessoas
estão interligadas por seus computadores. A tecnologia parece con-
firmar, à sua maneira própria, o que as milenares tradições místicas
sempre afirmaram: tudo é uma coisa só.
Se tudo está mesmo interconectado, inclusive as pessoas e su-
as mentes, então seria possível fazer o que Neo fez com a colher. E
por que eu tento e não consigo?, você pode perguntar. Certamente
porque você, em seu íntimo, não acredita nisso, não sabe disso. Seria
fácil demais se nos bastasse dizer para nós mesmos que podemos
desviar aquela bola para o gol para que, efetivamente, nós a desviás-
semos. Infelizmente isso não basta. “Não pense que é, saiba que é”,
diz Morfeu para Neo a certa altura do filme. Está justamente nesse
detalhe a chave do enigma. Precisamos não apenas concordar com
essa verdade mas vivê-la profundamente, em nossa mente, em cada
átomo de nosso corpo. Precisamos saber que é real em vez de apenas
concordar que pode ser.
Em outra cena Morfeu ensina Neo a saltar entre prédios. Tudo
que ele precisa é saber que aquilo não é real, ou melhor, que ele está
num programa e por isso pode burlar suas regras. Neo se concentra,
diz para si mesmo que está entendendo, corre e salta, todo confiante.
E cai lá de cima, direto no asfalto. Por que não conseguiu? Porque
sua mente ainda funcionava dentro das tradicionais leis físicas e é
como se elas, no instante do salto, lembrassem seu corpo que a gra-
vidade existe e ela sempre o levará para baixo.
Mudarmos a nós mesmos para mudar o mundo – esta é a lição
que Neo começa a aprender com a garotinha. A mesma lição com
que todos nós teremos de lidar na jornada em busca da completude.
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o mistério do Oráculo
O Oráculo examina Neo e diz que ele tem o dom mas parece esperar por algo, talvez sua próxima vida. Neo ainda acha que não é o Predestinado.
Quando Neo ainda se recupera em seu aposento na nave, ten-
tando assimilar a terrível verdade que lhe foi revelada, Morfeu lhe
conta sobre o surgimento da Matrix e a profecia do Oráculo que diz
que um dia alguém surgirá para libertar a humanidade de sua prisão
mental. Depois diz que embora eles, os resistentes, não costumem
despertar alguém após certa idade porque a mente simplesmente se
recusa a aceitar a realidade, ele decidiu correr o risco com Neo por-
que acredita que sua busca finalmente terminou.
Neo fica encucado com essa história de Predestinado. Depois
Tank, o operador da nave, comenta: “Cara, se você for mesmo quem
dizem que é...” Neo fica cada vez mais confuso. Por fim, Morfeu diz
que irá levá-lo para que o Oráculo o veja. Essas atitudes mostram
que os rebeldes valorizam bastante o Oráculo e têm por ele forte res-
peito.
Enquanto seguem no carro para o encontro, Neo pergunta a
Trinity sobre o que lhe dissera o Oráculo. O assunto parece incomo-
dá-la e ela não responde. O mistério em torno do Oráculo aumenta.
Neo e Morfeu chegam ao prédio. É um lugar simples e um tan-
to sujo. Tomam o elevador, compenetrados, e à porta do apartamento
Morfeu lembra: “Eu disse que o levaria até a porta. Você é quem tem
de abri-la.” Neo pensa um pouco. O espectador também: o que acon-
tecerá dessa vez? Neo estica o braço mas a porta se abre antes que
ele a toque. Mais tarde entenderemos que Neo ainda não está prepa-
rado para aceitar a si mesmo, para abrir a porta que o levará à sua
verdade mais íntima.
Uma mulher os saúda e diz que logo serão atendidos. Na sala
crianças brincam de entortar e fazer levitar objetos: são mentes com
potencial para despertar da Matrix. Elas já sabem manipular os códi-
gos do sistema e assim alteram as leis físicas da Matrix.
Quando enfim Neo se encontra com o Oráculo, descobre-se
que o Oráculo não tem nada demais. É uma senhora negra, de meia
idade, que o atende na cozinha, de avental, e está ocupada com os
biscoitos no forno. Simpática, ela acende um cigarro e dá um gole
em algo que lembra uma caipirinha caseira.
64
“Não se preocupe com o vaso”, ela diz. Neo não entende:
“Que vaso?” Quando se vira para procurá-lo, seu braço bate num va-
so sobre o móvel e o derruba ao chão, estilhaçando-o. Confuso, per-
gunta como ela sabia que ele o derrubaria. E ela: “O que vai encucá-
lo mesmo é isso: você o teria quebrado se eu não houvesse falado
nada?”
Ela olha atentamente para Neo: “Você é mais bonito do que eu
pensava. Agora entendo porque ela gosta de você”. Ele pergunta: “E-
la quem?” Ela sorri e diz: “Mas não é muito esperto.” A senhora põe
o óculos e pede para examiná-lo: olha seu rosto, abre sua boca, pede
que diga “Aaah...” como num exame médico. Isso nos faz lembrar,
por contraste, da frieza da medicina tecnológica atual, do distancia-
mento dos médicos que, em sua soberba, não se importam se sua gra-
fia nas receitas não são entendidas e às vezes sequer olham para seu
paciente.
Ela olha suas mãos: “Muito interessante mas...” Neo, curioso,
pergunta: “Mas o quê?” Ela responde: “Mas é claro que você sabe o
que vou dizer”. Neo então entende ao seu modo e conclui: “Não sou
o escolhido”. O Oráculo larga suas mãos: “Sinto muito. Você tem o
dom mas parece que está esperando algo.” Ele pergunta o que pode
ser e ela responde: “Sua próxima vida, quem sabe.”
profecias
É interessante o modo como foi conduzida a questão do orácu-
lo. Primeiro os rebeldes o citam e o espectador fica curioso. Depois a
expectativa cresce quando falam da profecia sobre o Predestinado. O
silêncio de Trinity só aumenta o mistério. De repente, o Oráculo não
é nada do que se podia esperar mas, ainda assim, surpreende com sua
aparência e atitudes.
A conversa entre Neo e o Oráculo é perfeita: mostra que orá-
culos, na verdade, não dão resposta alguma mas apenas servem de
instrumento para que enxerguemos a resposta dentro de nós mesmos.
Se não conseguimos olhar o suficiente para dentro, jamais entende-
remos o significado mais profundo da resposta. Assim sendo, as
mensagens de um oráculo só fazem sentido se entendidas dentro do
próprio universo cognitivo de quem pergunta.
Numa consulta a qualquer oráculo é determinante a posição do
consulente pois a resposta só será compreendida se a mente estiver
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receptiva, sem verdades preconcebidas e falsas expectativas. A res-
posta sempre vem mas nem sempre se está preparado para compre-
endê-la. No estado em que se encontra, confuso e temeroso de assu-
mir a grande responsabilidade de um salvador da humanidade, qual-
quer resposta de qualquer oráculo seria também entendida por Neo
como um “você não é o escolhido”.
Neo parece sentir alívio com a declaração. Depois fala de
Morfeu e o Oráculo diz que todos lhe devem muito, que ele é muito
importante. E profetiza: “Ele crê tanto nisso que se sacrificará por
você. E você terá que escolher: numa mão terá sua vida e na outra,
Morfeu. Um dos dois morrerá”.
No final todas as profecias do Oráculo se realizam: o Predesti-
nado veio, Trinity apaixonou-se por ele, Morfeu sacrificou-se e Neo
teve de escolher entre salvar a si e ao amigo. Escolheu o amigo ao
decidir retornar à Matrix. E por causa disso morreu. Morreu mas res-
suscitou. “Quem sabe numa outra vida...”, dissera o Oráculo. Na ce-
na do helicóptero Neo está pendurado por uma corda e segura Mor-
feu. Numa mão ele segura a si próprio e na outra o amigo: é a profe-
cia que se cumpre literalmente.
As profecias sempre nos intrigaram. Será mesmo possível pre-
ver o futuro? Como saber sobre algo que ainda não aconteceu? Isso
nos remete à natureza do tempo, essa coisa tão impalpável e escorre-
gadia. Nós sabemos o que o tempo é mas só quando não pensamos
pois logo que pensamos nele, já não sabemos mais.
Se é possível prever o futuro, então automaticamente abre-se a
possibilidade de alterá-lo. Se há a alteração, então o futuro previsto
não acontece. Se ele não acontece, então não era o futuro. O que era
então? Isso nos remete a outros aspectos da questão: os futuros hipo-
téticos. Talvez existam várias possibilidades de futuro e elas possam
ser acessadas, nos permitindo participar no processo de determinação
do futuro que efetivamente acontecerá. Ou seja: o futuro, assim como
o tempo em si, necessita da consciência para existir.
Veja o vaso que Neo quebra. Exercitemos as possibilidades da
questão. Ele o teria quebrado se o Oráculo nada falasse? Isso não po-
demos saber. Mas analisemos. O Oráculo conhece o futuro. Assim
sendo, se ele sabe que Neo quebrará o vaso, então não precisa falar
para que o destino se cumpra. Ou precisa? O fato é que fala. Por quê?
Será que quer apenas mostrar suas capacidades, feito um cartão de
apresentação? E se sabe mesmo do futuro, por que não retira o vaso
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ou alerta Neo de forma mais cautelosa? Bem, se assim fizer, o futuro
que ele previu não se cumprirá e dessa forma o Oráculo agirá contra
si mesmo, o que não faz sentido.
Como explicar as profecias que se cumprem? Seria tudo mero
acaso, coincidência? Talvez a profecia em si mesma seja justamente
a força que leva os acontecimentos a se realizarem de forma a cum-
pri-la, uma espécie de autossugestão, ou seja, o futuro passa a existir
potencialmente porque foi anunciado. Ou não? Será que o futuro re-
almente já está escrito?
Há quem entenda as profecias como autênticos flagrantes de
falhas no entendimento unidimensional do tempo, comprovando que
o tempo não é algo linear que vem do futuro, passa pelo presente e
segue para o passado ou, como queira, é algo que vem do passado,
passa pelo presente e se abre em perspectivas de futuro. Em vez de
uma linha reta, talvez o tempo esteja mais para uma teia, algo que só
faz sentido se for entendido em seu todo. Para entender o fenômeno
das profecias talvez seja necessário pensá-las não em termos de cau-
sa e efeito mas como ocorrências sincrônicas que se explicam mutu-
amente, algo cujas partes se sustentam umas às outras ao mesmo
tempo e não podem ser totalmente entendidas separadamente. Neo
quebrou o vaso porque o Oráculo falou e o Oráculo, por sua vez, fala
justamente porque Neo quebrará o vaso.
o tempo
Está vendo? Conjeturar sobre o tempo é um exercício que, em
vez de nos trazer certezas, nos deixa com mais dúvidas. Entretanto,
para o nosso estudo, gostaria apenas de fazer mais uma breve refle-
xão. Se o tempo futuro ainda não existe e o tempo passado não existe
mais, o que existe então? O tempo presente, você pode dizer. Certo.
Mas quanto tempo dura o presente? Um minuto? Um segundo? Mas
um segundo pode ser dividido em várias partes. E cada uma dessas
em infinitas outras partes. Em qual delas estaria o tempo presente?
Não importa em quantas zilionésimas partes dividamos o tem-
po. Sempre poderemos dividi-lo em partes menores e assim jamais
localizaremos seu núcleo final onde poderia estar o agora. Simples-
mente porque o agora não existe, assim como não existe o futuro e
nem o passado: é tudo abstração. O tempo é como alguém que virá
ou que já se foi, jamais alguém que está. Nós nos posicionamos para
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flagrar o momento exato de sua passagem e quando nos damos con-
ta... o tempo já passou.
Agora danou-se. Se o tempo não existe, o que existe então?
A psique. É ela que inventa o tempo. E o faz no momento em
que a consciência nasce do inconsciente atemporal pois, para se ma-
nifestar, a consciência precisa de um veículo, o corpo, que por sua
vez precisa de um plano formado de três dimensões espaciais (altura,
largura e profundidade) e uma temporal. É o cruzamento dessas di-
mensões, o espaço-tempo, que fornece as coordenadas exatas para a
manifestação da consciência.
Quanto o ser se dá conta que existe, ou seja, quando surge a
autoconsciência, automaticamente surge o tempo. Porém, se a cons-
ciência se detém sobre a natureza do tempo, pode perceber que ele na
verdade só existe como uma dimensão necessária para que ela possa
atuar e que talvez seja mesmo possível à consciência ir além da di-
mensão temporal à qual está limitada e acessar o inconsciente atem-
poral de onde veio e, assim, distinguir informações do passado ou do
futuro e, inclusive, fazer profecias.
Putz, o cara viajou... Viajou no tempo. Pois é. Se é possível
uma máquina do tempo, o meu palpite de viajandão é que ela já exis-
te. Já está construída. Ou em contínua construção. É a consciência.
autoconfiança
O fato de Neo não acreditar que é o Predestinado é compreen-
sível, afinal trata-se de uma responsabilidade imensa, terrivelmente
incômoda, principalmente para alguém que até pouco tempo atrás a-
inda vivia na Matrix, imerso num mundo de ilusões. Coisa parecida
ocorre no caminho da autorrealização. Sentimo-nos capazes de reali-
zar muitas coisas mas ao mesmo tempo nos retraímos, desconfiados
de nós mesmos, temerosos de assumir responsabilidades.
Os amigos confiam em nós. As pessoas dizem que temos ta-
lento. E nós, o que pensamos sobre nós? Até nos convencermos de
toda nossa potencialidade e mostrarmos a nós próprios que somos
capazes, muita água rolará por baixo da ponte. Teremos muitas noi-
tes mal dormidas, envoltos em dúvidas e hesitações. Rezaremos pe-
dindo luz, procuraremos oráculos, insistiremos em receber a aprova-
ção das pessoas para nossos projetos...
Nada, porém, poderá fazer o trabalho por nós. E o trabalho
68
consiste em nós mesmos nos convencermos de quem somos. Mas
não adianta pressa pois cada um tem seu próprio tempo. A convicção
amadurece em nosso ser à medida que nos mantemos atentos ao ca-
minho e fazemos o que deve ser feito. Cada autodescoberta nos faz
mais fortes e mais cientes de que estamos no caminho certo. À medi-
da que o herói avança e vence os obstáculos, mais capaz ele se torna.
A sociedade repressora já tentou de tudo mas o indivíduo
prossegue rumo à sua individualidade. Cada vez menos ela pode con-
tra ele.
69
IV
Morrendo para vencer
Cypher entrega os companheiros
Quando estão prestes a retornar à nave, após a visita de Neo ao Oráculo, os rebeldes são surpreendidos numa emboscada. Estão presos num prédio sem saída e cercados por muitos soldados armados. Foram traídos por Cy-pher, companheiro da própria resistência.
A primeira cena do filme é o diálogo telefônico entre Cypher e
Trinity. Na tela as fileiras de caracteres (os códigos da Matrix) desli-
zam enquanto Trinity, na Matrix, diz que logo entrará em contato
com aquele que Morfeu acredita ser o escolhido. Cypher pergunta se
ela também acredita. Ela desconversa. Ele insiste mas ela não res-
ponde. Ouve-se um ruído na ligação. “Esta linha é mesmo segura?”,
ela pergunta. Cypher confirma. Mas não é. Depois entenderemos que Cypher já age aí como
informante dos agentes da Matrix e, através dessa ligação, está entre-
gando Trinity às autoridades do mundo virtual. Não fica claro para o
espectador que assiste pela primeira vez mas começa aí a traição de
Cypher, um dos elementos fundamentais da história de Matrix.
Mais tarde, na nave, quando Trinity leva o jantar para Neo,
que ainda se recupera de seu despertar, Cypher a aborda e comenta,
aparentemente enciumado, que ela nunca fez isso para ele. Em outras
cenas Cypher volta a testar e zombar da crença de Trinity no Predes-
tinado, coisa em que ele, particularmente, não consegue acreditar.
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O comportamento de Cypher intriga o espectador, aumentando
sua desconfiança, até a cena em que fica claro que ele é um traidor:
Cypher está num restaurante, na Matrix, a negociar com o agente
Smith a entrega do líder Morfeu. Então sabemos que ele cansou da
vida de resistente e sente falta da realidade virtual, onde pode, por
exemplo, degustar uma picanha suculenta como a que está saborean-
do. Ele exige condições para entregar o líder: quer ser reinserido na
Matrix como alguém rico e famoso e nada quer lembrar de sua vida
anterior. Smith concorda, satisfeito.
Cypher é a traição que nasce dentro da própria resistência,
lembrando com isso que aqueles que lutam pela libertação da espécie
humana são humanos, com todos os seus defeitos. Cypher não com-
partilha da crença no Predestinado. Pensando bem, é difícil mesmo
crer que alguém possa destruir a tão poderosa Matrix e que esse al-
guém nascerá dentro dela própria. Cypher está cansado da vida des-
confortável, de comer alimentos sem gosto, de fugir e se esconder, de
lutar por algo que não acredita. Mesmo sendo um dos que consegui-
ram despertar, já não tem forças para continuar resistindo. Some-se a
isso seu interesse velado por Trinity, seu ciúme por sabê-la interes-
sada em Neo e, pronto, a traição já tem todos os ingredientes para se
consumar.
Cypher é o Judas Iscariotes de Matrix. O espectador é levado a
desprezá-lo como o traidor que de fato é mas observe-se: sem ele não
haveria final feliz. Cypher e sua traição são necessários para que Neo
finalmente se convença de que é o Predestinado. Se Morfeu não hou-
vesse sido entregue por Cypher, Neo não teria porque voltar à Ma-
trix, arriscando tudo pelo amigo. É arriscando sua própria vida, e
morrendo, que Neo atinge mais um nível em sua autoconscientiza-
ção. É voltando aos perigos da Matrix que Neo enfim pode se expe-
rimentar em toda sua potencialidade e cumprir o que profetizara o
Oráculo: que ele morreria e que na outra vida seria o Predestinado.
Sem a traição de Cypher nada disso poderia ocorrer.
No romance O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, o pro-
tagonista diz, para espanto do padre diretor do colégio, que o grande
medo de Jesus Cristo era que Judas não o traísse pois se ele não o fi-
zesse, como Jesus cumpriria seu destino? Sem a traição de Judas, Je-
sus teria que tentar outros meios de morrer pela humanidade. O que
seria de Jesus sem Judas? O que seria do cristianismo sem seu beijo
entreguista? Esse é um dos paralelos de Matrix com a mitologia cris-
71
tã. Aliás, o nome Cypher lembra Lúcifer.
o sabotador interno
No âmbito psicológico Cypher representa o componente de
autossabotagem da psique. Cypher tem medo de arriscar o novo e
prefere a segurança do velho, o que provoca estagnação e crise. Ele
preferiria não saber o que sabe. O lema desse nosso companheiro in-
terno é: “a ignorância é uma bênção”.
Cypher existe em todos nós: é a força retrógrada em eterno
combate com o impulso progressista. De onde pode vir a verdadeira
traição senão de dentro de nós mesmos? Isso nos lembra que o gran-
de inimigo a vencer não se encontra lá fora: ele está dentro de cada
um de nós e age na escuridão do inconsciente, sem ser molestado,
dissimulando-se em nossos medos e bloqueios mais íntimos. Prefe-
rimos não encará-lo, é mais cômodo. E assim ele prossegue nos sa-
botando.
Há sempre um preço a pagar quando insistimos em não olhar
para o que nos chama atenção em nós mesmos. O que é rejeitado na
psique cresce silencioso e esse é o pior dos inimigos: um dia ele se
manifestará e estará tão forte que não haverá como deter sua traição.
Por isso os terapeutas insistem na necessidade do autoconhecimento
psicológico ele ainda é a melhor prevenção contra os Cyphers da
vida. O sabotador interno sente falta do tempo em que tínhamos
menos autoconsciência e, exatamente por isso, menos responsabili-
dades. Cypher está no poder quando desistimos de lutar e achamos
mais cômodo permanecer onde estamos, sem nos comprometer com
mudanças pessoais, fingindo esquecer do que realmente devemos fa-
zer em nossas vidas. Cypher age toda vez que desistimos de lutar por nossos sonhos
ou insistimos em padrões destrutivos de comportamento. Quer ver
Cypher no comando? É só olhar para aquela garota que sempre dá
um jeito de estragar seus relacionamentos porque no fundo acha que
não merece ser feliz. Ela age de forma a ser rejeitada e quando de fa-
to é rejeitada, confirma para si mesmo sua visão pessimista da vida,
maldizendo o amor, as pessoas...
Com Cypher no comando há uma tendência para sarcasmos,
ressentimentos, ódios encobertos e toda uma gama de sentimentos
72
negativos. Além de não suportarmos ter de prosseguir lutando, tam-
bém é insuportável ver os outros firmes em seu caminho e realizando
seus sonhos. Para o Cypher que existe em nós, o que lhe resta é sabo-
tar tudo o que nosso Morfeu planeja, numa vingança por se achar en-
ganado e injustiçado pela vida. Enquanto Cypher não for chamado à
conversa franca, não precisaremos de inimigo algum: seguiremos nós
mesmos, sem perceber, sabotando nossos planos de felicidade, mui-
tas vezes no último instante.
O exemplo de Cypher serve também para nunca esquecermos
que na jornada do autoconhecimento ninguém está livre das tenta-
ções. A cada avanço, novos desafios se apresentam. O conhecimento
e a experiência adquiridos nos dão poder, sim, mas o poder pode cor-
romper o ego, fechando-nos ao aprendizado. A ampliação da consci-
ência deve prosseguir e, para isso, novos aspectos do ser devem ser
integrados.
A verdade liberta, sim, mas a cada nível de liberdade alcança-
do, um novo nível se apresenta e não podemos nos acomodar pois a
tentação de desistir estará sempre presente, feito um diabinho a nos
cutucar com seu tridente. Feito a picanha suculenta no garfo de Cy-
pher.
a fé em si mesmo
Morfeu é capturado pelos agentes da Matrix mas Neo, Trinity, Apoc, Switch e Cypher conseguem escapar do prédio. Cypher é o primeiro a retornar à nave e, prosseguindo em sua traição, atira nos dois operadores. Podendo decidir sobre a vida e a morte dos colegas que ainda estão na Matrix, elimi-na Apoc e Switch, desconectando-os de seus corpos. Depois, pelo telefone, zomba da crença de Trinity no Predestinado e, por fim, quando se prepara para matar Neo, é morto por Tank, o operador que sobrevivera a seu ata-que.
Antes de desconectar Trinity e Neo, Cypher deseja brincar
com os sentimentos e a fé de Trinity e diz, sarcástico, pelo telefone:
“Se ele é mesmo o Predestinado, então algo deverá acontecer e me
impedir de puxar este cabo.” O suspense é insuportável. Trinity e
Neo, na Matrix, se olham assustados, impotentes diante da traição do
colega que prossegue, perverso: “Vamos, Trinity, olhe nos olhos dele
e me diga: você ainda acredita que ele é o Predestinado? Sim ou
não?”
Trinity olha para Neo e, assustada mas convicta, com o celular
73
ao ouvido, responde: “Sim.” Nesse momento Tank surge e, mesmo
ferido gravemente, atira em Cypher, impedindo-o de matar Neo.
Atente para o drama de Trinity. Se dissesse que acreditava,
Cypher puxaria o cabo e mataria Neo, mostrando que, de fato, ele
não era o Predestinado, e assim ridicularizaria Trinity e sua crença e
ainda zombaria de sua paixão, da qual tinha ciúme. Porém, para Tri-
nity havia ainda outra opção: dizer que não acreditava, poupando a si
mesma do sarcasmo de Cypher. Entretanto, agindo assim ela não es-
taria sendo verdadeira consigo mesma pois negaria sua própria fé.
Então, mesmo numa situação terrivelmente desfavorável, onde tudo
parece perdido e só um milagre pode salvá-los, ela prefere assumir
sua crença a qualquer custo. O que pode levar alguém a manter sua
fé mesmo quando tudo aponta que ela é vã? Na jornada da autorrealização, quando parece que já fomos su-
ficientemente testados e que a vida não tem mais porque duvidar de
nosso sincero esforço e honestidade em relação às nossas crenças
pessoais, eis que nos vemos numa situação como a de Trinity. É co-
mo se uma força maior armasse toda a cena somente para testar, de
forma definitiva, nossa fé naquilo que dizemos acreditar.
Nós acreditamos em nosso potencial, lutamos por nossos so-
nhos, temos fé que conseguiremos. Estamos certos disso tudo, não há
dúvida. Mas isso não basta pois um belo dia a vida nos pede para...
saltar no escuro. Não é possível. Simplesmente não acreditamos no
que está acontecendo. Parece uma brincadeira do destino. Bem, não
deixa de ser pois, apesar da fama de difícil, a vida tem um ótimo sen-
so de humor.
Nesse ponto muitos desistem. De repente acham que não vale
a pena arriscar tudo que conquistaram e decidem voltar. Arranjarão
mil desculpas e tentarão se convencer que fizeram o certo mas fica-
rá sempre a sombra do arrependimento, para alguns sutil, para outros
impossível de ser ignorada. Sutil ou não, o arrependimento de não
haver tentado pode encher a vida de frustração.
Ninguém poderá decidir por nós quando esse difícil momento
surgir. Só nós mesmos, por nossas atitudes, é que podemos mostrar o
quanto confiamos no processo. Teremos que saltar no escuro para
poder descobrir se o que nos aguarda é o terrível abismo ou se, na
verdade, o chão sempre esteve a um palmo de nossos pés. Somente
seguindo nossa fé mais íntima e dizendo um sim verdadeiro aos nos-
sos sonhos é que saberemos se eles realmente fazem parte de nosso
74
destino. Somente dizendo sim, como Trinity, é que pode acontecer
um milagre.
Neo decide resgatar Morfeu
Neo e Trinity retornam à nave, salvos. Tank lhes comunica que terá que sa-crificar Morfeu pois ele está na Matrix, sendo torturado pelos agentes, e a qualquer momento cansará e revelará os códigos de Zion, permitindo assim que as máquinas destruam a cidade. Neo, porém, interrompe Tank, decidido a voltar à Matrix e resgatar Morfeu. Trinity tenta impedi-lo, dizendo que Morfeu se sacrificou para que eles pu-dessem salvar o Predestinado. Neo explica que Morfeu estava enganado pois acreditava que ele é algo que, na verdade, não é: “Não sou o Predesti-nado, Trinity. O Oráculo me disse.” “Não. Tem de ser você.” “Sinto muito. Sou um cara comum”. “Não é verdade, Neo. Não pode ser verdade.” “Por que não?”, Neo indaga e Trinity não responde.
Este é um momento bastante significativo da história. Neo, pe-
la primeira vez, sente que é capaz de lutar contra a Matrix. Até então
ele apenas treinou com Morfeu e entortou uma colher mas agora, na
iminência da morte do homem que tanto acreditou e tanto fez por ele,
Neo é tomado de súbita autoconfiança. Uma nova força parece brotar
dentro dele, tão poderosa que o faz crer ser capaz de voltar à Matrix,
lutar contra os agentes e resgatar Morfeu, algo que ninguém jamais
conseguiu fazer.
Apesar disso tudo Neo ainda não acredita que é o Predestina-
do. Ele se sente impulsionado a realizar algo grandioso e sabe que é
perfeitamente capaz mas essa convicção não vem do fato de se saber
o Predestinado pois ele continua negando. De onde então vêm essa
força e essa certeza imensas?
Aqui o herói está no limiar de uma profunda transformação in-
terior, o momento em que um fenômeno muito importante começa a
se produzir: o indivíduo se sente tomado pela força irresistível que já
aponta no horizonte da consciência. A personalidade consciente ain-
da não admite a verdade mas ela é tão poderosa que avança do in-
75
consciente para a consciência, encurralando as defesas do ego.
Nós nos transformamos através do autoconhecimento e che-
gamos até esse ponto mais cientes de nossas capacidades, sabendo
que somos capazes. Ao mesmo tempo, porém, insistimos em negar
certas coisas a nosso respeito, apesar delas estarem obviamente es-
tampadas em nossas ideias e atitudes. É o último baluarte de resis-
tência do velho ego que se mantém firme. Por quê?
Porque ainda estamos apegados a uma velha verdade sobre nós
mesmos. Admitir isso significaria assumir uma responsabilidade de-
finitiva sobre nossas vidas, algo que mudará tudo, inclusive nosso
conceito sobre nós mesmos. Outras pessoas ao redor já sabem ou
desconfiam disso mas nós insistimos em negar. São os resquícios do
velho ego que, apesar das transformações já ocorridas, ainda se recu-
sa a morrer inteiramente. É a percepção que temos de nós mesmos
agarrando-se o quanto pode à comodidade que representa o não-
assumir-se.
A história bíblica de Jonas, que é engolido por uma baleia, nos
mostra o quanto é vão negarmos e fugirmos de nós mesmos, do nos-
so destino. Não adianta Jonas fugir no barco, ir para bem longe. A-
quilo que o aguarda irá buscá-lo seja onde for e assim, enquanto nega
para si mesmo e se esforça no rumo contrário, Jonas apenas adia o
que precisa acontecer. Ele cairá ao mar, será engolido pela baleia e
ela o vomitará numa praia, exatamente o lugar que ele tanto evitava
ir. Porque é isso que aguarda o herói: o seu próprio destino de herói.
O ego sempre resiste. A autopercepção nunca abre caminho
facilmente a novas formas de entender a si próprio. Mas a psique é
muito maior e poderosa que o ego e tem mecanismos para nos forçar
a avançar em nosso caminho de autorrealização, rumo ao que sempre
fomos destinados a ser. E a psique é muito criativa, não duvide. Ela
pode inventar acontecimentos repentinos, iscas bem camufladas ou
até mesmo uma baleia.
unindo os opostos
Neo se prepara para voltar à Matrix. Trinity diz que vai com ele. Neo não concorda. Trinity, então, usa de sua autoridade como oficial da nave e, reso-luta, diz que ou ela irá junto ou ele não irá. Neo tem de aceitar e os dois, en-tão, são enviados de volta à Matrix. Eles invadem um prédio de segurança máxima, lutam contra soldados, usam um helicóptero e, por fim, libertam Morfeu.
76
A prática contínua do autoconhecimento nos torna confiantes
em nós mesmos. Se sabemos quem somos, logo sabemos de nossas
possibilidades. A autoconfiança é atingida quando deixamos de ser
desconhecidos para nós mesmos e ficamos íntimos da nossa própria
verdade. Após confrontar o inconsciente e assimilar aquilo que por
muito tempo evitamos reconhecer em nossa personalidade total, eli-
minamos o inimigo interno, a força retrógrada, e podemos finalmente
concentrar os esforços em outras frentes.
“Neo, ninguém nunca fez isso”, Trinity o adverte. Mas ele está
inteiramente convicto: “É por isso que vai dar certo.” Neo sente que
é capaz de realizar o impossível. Sua audácia surpreende os compa-
nheiros mas ele está tão decidido que só lhes resta concordar. Ocorre
o mesmo quando atingimos esse ponto do autoconhecimento: faze-
mos coisas que antes eram impossíveis, superando os limites pesso-
ais e surpreendendo a todos, até a nós mesmos.
Aqui, porém, cabe uma advertência. A autoconfiança é neces-
sária para realizar grandes feitos, sim. No entanto, se o ego acha que
conseguirá fazer tudo sozinho, acabará sofrendo amarga decepção.
Autoconfiança nem sempre quer dizer autossuficiência. Apesar de
agora se entender melhor com o inconsciente e ter assimilado os con-
teúdos que antes só atrapalhavam, a personalidade consciente precisa
estar bem equilibrada para dar o grande salto. O herói necessita reu-
nir todas as suas forças para o embate.
No caso de Neo, ele reluta em admitir a presença de Trinity na
perigosa missão de resgate pois se considera capaz de resolver a pa-
rada sozinho. Mas tem de render-se à autoridade de Trinity. Temos
aqui, mais uma vez, a atuação do aspecto feminino do herói. É esse
aspecto que, mais uma vez, e dessa vez num nível mais profundo, e-
xige ser devidamente reconhecido e integrado à consciência.
No início do filme, quando os resistentes ainda tentavam des-
pertar Neo, foi Trinity quem manteve com ele o primeiro contato,
cuidadosa, pelo computador, e depois na festa, sussurrando em seu
ouvido. Depois foi ela quem o convenceu, delicadamente, a ficar no
carro e permitir a retirada do aparelho rastreador. Em todos esses
momentos Trinity agiu com cuidado para não afugentá-lo de vez.
Precisou ser calma, doce, compreensiva e paciente, conquistando-lhe
a confiança. Agora é diferente. Ela sabe que Neo, sozinho, não con-
seguirá salvar Morfeu. Ela sabe que sua repentina e enorme autocon-
77
fiança o cega para o risco e pode pôr tudo a perder.
A natureza feminina no homem, assim como a natureza mas-
culina na mulher, é chamada a intervir em momentos cruciais onde a
consciência corre o risco de se tornar unilateral, levando-nos a agir
desequilibradamente. Sabemos que somos capazes, e de fato somos,
mas só conseguiremos êxito se unirmos o que somos, masculino e
feminino, força e delicadeza, razão e sentimento, yin e yang. Somen-
te assim, finalmente equilibrados entre nossos opostos, é que sere-
mos realmente capazes de fazer o impossível acontecer. Sem essa u-
nião, apenas um lado da força atuaria, e, certamente, não seria sufici-
ente.
É sempre bom parar um pouco antes de dar o primeiro passo
rumo a uma grande conquista e sentir se estamos suficientemente e-
quilibrados para a missão. Mas, num mundo regido pela pressa do re-
lógio, parar e dedicar um tempo a nós mesmos soa como um luxo
impensável e muitas pessoas chegam a sentir culpa se não estão ocu-
padas trabalhando, produzindo, correndo de um lado para o outro.
Muitas até adoram mostrar que estão sempre lotadas de trabalho,
mesmo quando não estão.
Se precisamos empreender uma grande tarefa, que exige todo
o nosso esforço e atenção e envolve enormes riscos, nada melhor
que, antes de começar, reunir todas as forças, tudo o que somos.
Quem se conhece mais, sempre tem mais chances de obter êxito no
que faz. Quem não se conhece, pode até ter a força ou a delicadeza
necessárias, mas sem unir harmoniosamente esses aspectos, ficará
sempre a um passo de tudo aquilo que poderia realizar.
No filme é Trinity quem pilota o helicóptero e impede que um
agente mate Neo. Por outro lado, é ele quem segura Morfeu pela mão
e é ele também quem segura o cabo para que Trinity escape do heli-
cóptero que cai. Sozinhos, nenhum dos dois conseguiria resgatar
Morfeu. Juntos, não apenas o fazem como também reafirmam a atra-
ção que já sentiam um pelo outro, fortalecendo os sentimentos que
mais tarde permitirão a Neo ressuscitar e se tornar, definitivamente,
aquilo a que estava, desde o início, predestinado a ser.
humanos e vírus
A cena da tortura de Morfeu é muito interessante pelo fato de
apresentar a visão das máquinas sobre a espécie humana. Enquanto
78
aguarda que Morfeu canse e finalmente lhe revele os códigos de Zi-
on, o agente Smith fala de uma curiosa conclusão a que chegou:
“Percebi que os seres humanos não são mais mamíferos. Todo
mamífero deste planeta instintivamente desenvolve um equilíbrio na-
tural com o meio ambiente. Os humanos não. Vocês se mudam para
um lugar, se multiplicam até que todos os recursos naturais sejam
consumidos e a única maneira de continuar sobrevivendo é mudar
para outro lugar. Existe outro organismo que segue o mesmo padrão.
É o vírus.”
O raciocínio do agente Smith é, para nós humanos, desconcer-
tantemente lógico. Smith é o vilão que detesta a espécie humana e
tudo fará para destruir Zion. Ele é o mal personificado, um programa
de computador cujo objetivo é coordenar missões de captura de hu-
manos dentro da Matrix e eliminá-los, custe o que custar. Apesar de
tudo isso, o espectador é levado a admitir, a contragosto, que são sá-
bias as suas palavras.
Smith tem toda razão: a espécie humana se comporta como os
vírus, exatamente como os organismos que tanto tememos e comba-
temos. Até poucos séculos atrás, porém, o Homo sapiens mantinha
uma relação simbiótica com o meio, respeitando as leis naturais e
convivendo em harmonia com animais, vegetais e minerais. Havia o
sentimento do sagrado em relação à Natureza pois instintivamente
nos sentíamos unidos a ela e sabíamos que precisávamos dela para
sobreviver, verdade que os índios sempre tentaram, e ainda tentam,
nos mostrar.
Infelizmente o advento da civilização, a industrialização e ago-
ra a tecnologização mudaram isso. Hoje, desligados de nossas raízes
e desconectados das leis naturais que regem a vida, tornamo-nos pe-
ritos em violentar a Natureza e não acordamos para o fato de que nós
e a Natureza somos a mesma coisa pois compomos o mesmo planeta
e dependemos dele. Sem Natureza não há planeta e sem planeta nós
não existimos. A Natureza é o planeta inteiro, inclusive nós. É uma
verdade que de tão óbvia não precisaria ser lembrada mas que faze-
mos questão de desconsiderar e até negar.
“Vocês são o mal, o câncer deste planeta. Vocês são a praga. E
nós somos... a cura.”
As palavras do agente Smith são duras. Dói na consciência e é
desconfortável reconhecer que ele está certo: a espécie humana é a
grande praga da Terra, ela e sua cegueira absurda. Somos a peste
79
humana que, por onde passa, deixa atrás de si um rastro de destrui-
ção. Já não destruímos apenas a Natureza: agora destruímos também
culturas inteiras, dizimando seus valores.
Destruindo o ambiente em que vivemos, estamos destruindo
também a nós mesmos, condenando à morte todos os dias milhares
de pessoas, inclusive crianças, vítimas da ganância capitalista, do fa-
natismo religioso, do medo do diferente e da insaciável sede de po-
der.
Será que um dia, como em Matrix, as máquinas se rebelarão e,
feito justiceiras do planeta, nos escravizarão, interrompendo assim a
ação do câncer que tão bem representamos? Talvez isso não ocorra.
Talvez seja a própria Terra que, em sua capacidade autorregulativa e
cansada de ser agredida, decida sacrificar nossa espécie para que a
vida no planeta possa prosseguir. De qualquer forma, talvez ainda
haja tempo de reverter o processo. Isso dependeria de que uma parce-
la considerável da humanidade acordasse para o perigo que criamos.
Dependeria de que pessoas simples, como eu e você, lembrassem da
verdade mais óbvia.
Neo versus Smith
Morfeu volta à nave, seguido por Trinity. Neo, porém, é impedido de voltar pelo agente Smith, que surge no metrô. Ele pensa em correr mas volta-se e decide enfrentar Smith, contrariando a regra básica dos resistentes, que diz que jamais se deve lutar contra um agente pois até então todos os que ten-taram, morreram.
Os agentes são programas criados para capturar e eliminar
humanos intrusos no sistema. Não podem ser mortos. No máximo
são “expulsos” do corpo humano que provisoriamente ocupam na
Matrix para, ato contínuo, assumirem outro corpo, retornando para
prosseguir a luta, sem um arranhão, sem cansaço. Eles não são ape-
nas mais fortes que qualquer humano, são invencíveis. Por isso a re-
comendação: quando vir um agente, fuja o mais rápido que puder.
O agente Smith é o líder dos agentes. Quando Neo, no metrô,
desobedece às recomendações de fugir e volta-se para lutar com Smi-
th, o espectador já sabe tudo sobre os agentes e por isso sabe que
Neo não pode destruí-lo. Como então ele poderá vencer?
Em termos psicológicos, o agente Smith representa algo muito
difícil de ser assimilado pela consciência, um conteúdo inconsciente
80
que se manteve intocado durante longo tempo, apesar de toda a am-
pliação da consciência. É algo que nos mete muito medo e do qual
sempre fugimos, o que fez com que crescesse e se tornasse extrema-
mente poderoso.
Um dia, porém, quando mais uma vez já estamos nos prepa-
rando para fugir, algo ocorre e decidimos ficar e encarar o que tanto
evitávamos ver dentro de nós mesmos. É uma atitude de grande co-
ragem e que só ocorre quando a consciência se encontra num elevado
grau de ampliação. Aceitar o confronto com o mais poderoso dos i-
nimigos internos não é para qualquer um mas somente para quem já
encarou e venceu muitos outros, tendo disciplinado a força interior
de tal forma que o embate se faz necessário e já não se pode mais a-
diá-lo.
Neo, através de sua parceria com Trinity, já aprendeu a equili-
brar os opostos e se tornou ainda mais forte e capaz. Agora a prova
final surge bem à sua frente. Ele tem a opção de fugir e mais uma vez
adiar o confronto, nada o impede. Mas em seu íntimo o herói sempre
sabe quando chegou a hora. Neo sabe que não pode mais adiar a re-
solução da questão que o aflige desde que despertou da Matrix. Ser
ou não o Predestinado tornou-se uma pressão constante em sua men-
te e ele tem de esclarecer isso de uma vez por todas se quiser ter al-
guma paz. Smith nunca foi vencido, Neo sabe, mas é exatamente por
isso que deve enfrentá-lo pois somente indo ao limite extremo das
possibilidades é que saberá o que pode e não pode fazer.
Se prosseguirmos no caminho do autoconhecimento, superan-
do dificuldade após dificuldade, um dia certamente também teremos
de testar, num nível extremo, nossos limites de coragem, resistência
e honestidade para com nossa verdade mais legítima. E o que exata-
mente enfrentaremos? Bem, o inimigo somos nós mesmos, sempre
foi assim. Ele mora na escuridão do ser e somente se revelará por in-
teiro no instante em que decidirmos conhecê-lo de verdade. Até lá
poderemos fazer suposições, desconfiar e teorizar sobre muitas coi-
sas. Entretanto, quando o momento chegar, sempre estaremos des-
prevenidos.
Quando a hora da verdade soar no relógio de nossa jornada,
descobriremos essa nova entidade dentro de nós. Tudo o que vive-
mos até então poderá nos ajudar, sim, mas agora trata-se de um fator
inteiramente novo na história e para ele não poderia ter havido qual-
quer preparação conveniente. Estaremos sós diante de nossa outra
81
parte, aquela que sempre existiu, dividindo conosco o espaço do nos-
so próprio ser mas levando uma vida autônoma. Ela é mais forte que
nós. Porque ela faz parte do que nos tornaremos.
E agora? Fazemos como Neo, que decidiu lutar contra algo
que é invencível? Ou fugimos? Por um lado, lutar se mostrará um es-
forço vão e, por outro, fugir apenas adiará o confronto inevitável. E
agora, como escapar desse dilema?
meu nome é Neo
Neo e o agente Smith se posicionam um frente ao outro como nas cenas clássicas dos filmes de bang-bang. Eles avançam atirando mas não se acer-tam. Esmurram-se e rolam pelo chão da estação, medindo forças. A luta é equilibrada mas aos poucos Smith leva vantagem e consegue jogar Neo nos trilhos do metrô. Enquanto o trem se aproxima, Smith, imobilizando a Neo pelo pescoço, diz: “Está ouvindo, sr. Anderson? É o som do inevitável. O som de sua morte. Adeus.” Neo, sufocado, cerra os dentes e responde: “Meu nome é... Neo!” E, num impulso, solta-se do abraço de Smith, deixando-o nos trilhos para ser esma-gado pelo trem. Neo sai caminhando, julgando-se vitorioso, mas logo adian-te o trem pára, as portas se abrem e Smith reaparece, renovado, pronto pa-ra prosseguir a luta.
O que parece simples frase de efeito, um desses batidos clichês
de cinema, é na verdade o melhor modo de mostrar que Neo, nesse
ponto decisivo de sua trajetória, está ciente de sua identidade e sua
força. “Meu nome é Neo” encerra em poucas palavras todo o cami-
nho por ele percorrido, as dúvidas vividas e os desafios superados.
Ao recusar-se a ser chamado pelo nome que foi inicialmente batizado
na Matrix, Neo, simbolicamente, rompe ainda mais sua ligação com
o mundo das ilusões, rompimento iniciado ao criar o codinome Neo
para atuar como pirata no mundo dos computadores. A criação do
codinome, ainda na Matrix, inaugura o desenvolvimento de sua nova
identidade. Ao insistir em ser chamado pelo novo nome, Neo con-
firma sua identidade e resiste à morte.
Porém, apesar de confiar em sua força, Neo ainda não se con-
venceu de que é o Predestinado, caso contrário não precisaria de tan-
to esforço, como veremos na cena do embate final com Smith. Ele
precisa, primeiramente, “saber” que é o Predestinado. Enquanto isso
não ocorrer, ele seguirá lutando e lutando contra algo que não pode
82
derrotar.
Muitas pessoas mudam de nome quando casam ou ingressam
em nova religião. É uma forma simbólica de cortar os laços que as
prendiam a seu antigo mundo, aos velhos valores que norteavam a
vida. É um modo de recomeçar, com uma nova identidade. Isso não
quer dizer que precisamos comparecer ao cartório toda vez que nos
transformamos. O que interessa é a mudança interior e não o nome.
Se mudamos por dentro, nosso mundo em volta também muda pois
como tudo está interligado, nada fica imune ao que se transforma.
Ao resistir à morte e insistir por sua vida, Neo está, na verda-
de, apegando-se ao que ele sabe de si próprio, à sua autopercepção.
Porém, nesse momento sua autopercepção é limitada pois ele ainda
não admite que é o Predestinado e somente o Predestinado pode ven-
cer a Matrix. Assim sendo, sua luta contra Smith é, na verdade, a luta
de Neo contra si mesmo, contra o que ele é e sempre foi (o Predesti-
nado) mas ainda não consegue reconhecer. Mas, então, o que Neo
deveria fazer?, você pode estar se perguntando. Chamar Smith para
um cafezinho?
Seria ótimo se não precisássemos confrontar nossas partes não
reconhecidas. Seria menos doloroso se pudéssemos nos entender pa-
cificamente com nosso eu maldito. Mas não é assim que se dá o cres-
cimento psíquico pois a consciência só evolui quando é intimada a
largar sua cômoda posição e ir em frente. Entretanto, o ego, o velho
ego, sempre se apega ao que ele é e sempre esquece que só é o que é
porque um dia deixou de ser o que era para ser o que agora é.
O ego resiste mas é necessário que morra mais uma vez. Ele
precisa passar a gerência do ser para um outro ego mais capaz. Neo
precisa morrer para que morram junto os últimos resquícios de um
Neo que ainda não crê que é o Predestinado. Por mais que afirme que
é Neo e se aproxime da verdade que tanto evitou, se não morrer intei-
ramente para a antiga vida jamais chegará de fato à verdade e jamais
será concretizado o que ele é em seu íntimo. Neo mudou e está mais
forte mas ainda não mudou o suficiente pois continua tentando derro-
tar Smith e Smith não pode ser derrotado pois ele é o próprio Neo
não reconhecido.
É um paradoxo de fritar neurônio mas é assim que funciona:
quanto mais Neo se fortalecer, mais forte Smith será. Quanto mais
Neo insistir em viver, outra vez a porta do trem abrirá e Smith res-
surgirá, renovado, pronto para prosseguir a luta. Nós também agimos
83
como Neo quando estamos no limiar da grande transformação e jul-
gamos que é nosso dever matar a nossa outra parte, aquela de quem
fugimos a vida inteira. É engano. Não conseguiremos derrotá-la por
mais que lutemos pois ela é mais forte que nós. O que temos de fazer
é admiti-la em nossa natureza pois ela é justamente o que nos falta
para sermos inteiros.
Smith não morre porque Neo ainda não aceita que é o Predes-
tinado. Como o Predestinado tem que morrer (“sua próxima vida,
quem sabe...”, dissera o Oráculo), Neo evita o sacrifício. Pretende al-
cançar o máximo de si sem morrer. Obviamente não conseguirá.
Ninguém consegue.
Em sua última noite antes de ser preso pelos romanos, Cristo,
no jardim do Getsêmani, desesperou-se ante a visão do destino que o
aguardava: sangue, humilhação, crucificação, dores terríveis e morte.
Desejou que não precisasse passar por tudo aquilo e lutou, intima-
mente, contra o que tenebrosamente se aproximava. Agiu como Neo,
tentando evitar o inevitável. Mas Cristo compreendeu que ao Predes-
tinado é impossível vir a sê-lo sem antes padecer e morrer. Então en-
tregou-se ao destino e abraçou com firmeza sua cruz.
Então Neo deveria ele mesmo jogar-se sob o trem a fim de a-
pressar a chegada do novo nível de consciência? Também não. Neo
tem de ir até o limite de suas forças e de seu sofrimento. Tem de a-
ceitar seu fardo como nós também teremos de aceitar quando chegar
nossa hora. Infelizmente não nos é dado saltar etapas. Nem Cristo
conseguiu.
o herói morre
Neo, percebendo enfim que não conseguirá derrotar Smith, começa a cor-rer. Liga para a nave, implorando uma saída, rápido. Tank lhe indica a sala de um hotel e ele corre para lá a fim de atender a ligação telefônica, en-quanto os três agentes o perseguem. Depois de correr pelas ruas, subir escadas, saltar muros e invadir aparta-mentos, Neo corre por um corredor enquanto o telefone toca bem próximo. Ele abre a porta e dá de cara com Smith apontando-lhe uma arma. Um tiro é disparado à queima-roupa. Neo é atingido mas continua de pé, sem se me-xer. Leva a mão à barriga e constata que está sangrando. Está tão surpreso que parece não sentir dor alguma, como se não acreditasse que tudo isso de fato está acontecendo. Enquanto o telefone continua tocando, Smith dispara uma segunda vez.
84
Neo cambaleia para trás e se apoia na parede do corredor. Olha para Smith e parece que fará algo mas Smith atira mais oito vezes. Seu corpo escorre-ga e tomba para o lado. Os agentes o examinam e confirmam: “Ele se foi”. Smith, imperturbável, fala: “Adeus, sr. Anderson.”
Façamos um pequeno exercício de imaginação. O que aconte-
ceria se Neo tivesse atendido à chamada e, assim, retornasse a salvo
para a nave, livre da perseguição dos agentes? Teria escapado de
morrer, sim. Continuaria vivo, junto com seus companheiros. Talvez
fosse levado a Zion. Talvez voltasse outro dia à Matrix, para ajudar
outros humanos a despertar.
Entretanto, continuaria sendo Neo e não o Predestinado. Não
teria os poderes que somente sendo o Predestinado poderia ter. Não
poderia manipular os códigos da Matrix e quebrar as regras do siste-
ma como somente o Predestinado pode fazer. Se retornasse à nave,
Neo não passaria pela última e decisiva transformação, aquela que é
imprescindível ao herói: a morte.
Não é fácil encarar a morte, nós sabemos. Morte biológica ou
morte como símbolo máximo de profunda transformação, nunca é
fácil vivenciá-la. Mas não há outro modo de cruzar o portal. Somente
com a morte do ego, ou seja, do nível de autopercepção em nos en-
contramos, é que chegaremos ao nível seguinte de ampliação da
consciência. Enquanto não morremos, ficamos presos à fase na qual
estamos, essa fase que já não tem nada de novo a nos oferecer. Mor-
rer então significa, vamos dizer desta forma, saltar do nível 1 para o
nível 2. Por outro lado, recusar-se a morrer significa botar uma vír-
gula depois do 1 e, por meio desse movimento ilusório, enganar-se
com o 1,1 e mais adiante com o 1,15, depois com o 1,157 e assim su-
cessivamente. A vida prosseguirá nessa dízima e nós nos movimenta-
remos, sim, mas não será um movimento para frente, em direção do
novo, ao 2, e sim um mergulhar cada vez mais fundo na fase atual,
totalmente apegados a ela: 1,157 e depois 1,1574 e depois 1,15748 e
a enrolação não tem fim.
Se Neo voltasse à nave, estaria apenas adiando seu confronto
com Smith. Seria perda de tempo, o mesmo tempo que perdemos to-
da vez que não aceitamos a mudança necessária. Neo já morreu uma
vez, na Matrix, e continuou vivo, na verdade mais vivo ainda. Ele já
experimentou a morte de suas ilusões e venceu. Por que então sente
medo de morrer mais uma vez?
Aqui o medo é justamente o que nos indica a necessidade de
85
transformação. Ele, em si, não é algo ruim. Sentir medo é natural, faz
parte do instinto de autopreservação. Ao perceber que novos conteú-
dos estão para vir à tona da consciência e que poderão desestabilizá-
lo, o ego tende a se esforçar para impedir. O ego sente de longe o
cheiro da mudança e quando ela está bem próxima ele usa de toda
sua força para se manter no controle dos fatos pois sente que vai
morrer.
A fuga de Neo pelas ruas é a fuga que a autopercepção empre-
ende para não morrer e, assim, não dar vez à nova autopercepção que
surgirá. O esforço desesperado do herói para atender à chamada que
o levará de volta à segurança da nave é o mesmo esforço que todos
nós empreendemos, inconscientemente, para escapar daquilo que nos
aguarda: o nosso eu legítimo, nosso eu cada vez mais verdadeiro, a-
quele que desde o início estava predestinado a ser, feito uma antiga
profecia.
Não adianta fugir. O medo do que nos libertará nos levará a
fazer isso e aquilo, sempre justificando nossos atos, e a desenvolver
mil estratégias para evitar sermos apanhados pela transformação.
Mas para onde nos virarmos... lá estará o agente Smith, lá estará a
morte nos espreitando.
Insistir demais na velha fase transformará nossa vida no jogui-
nho do Pac-man: viveremos num cruel labirinto, correndo alucina-
dos, cercados de problemas, insucessos e sofrimentos. No joguinho
do crescimento psíquico o único modo de escapar é desistir da luta
contra nós mesmos e aceitar a transformação. Muitas vezes agimos
como Neo quando recebe o primeiro tiro e quase se convence de que
isso não pode estar acontecendo. É por pouco. O herói está a um pas-
so de finalmente alcançar a verdade mas não consegue pois ainda es-
tá perdido no labirinto, apegado à velha vida.
o amor libertador
Na nave, Morfeu, Tank e Trinity acompanham o que se passa na Matrix e fi-cam chocados ao ver que Neo morreu. Morfeu murmura, sem acreditar: “Não é possível...” Trinity se aproxima do corpo inerte de Neo e, calmamen-te, sussurra em seu ouvido: “Neo, eu já não sinto medo. O Oráculo me disse que eu me apaixonaria por um homem morto e que ele seria o Predestina-do. Sendo assim você não pode estar morto pois eu te amo.” Ela beija a bo-ca de Neo e seu corpo estremece, voltando à vida. “Agora levante”, ela diz. Na Matrix Neo desperta.
86
É bem significativo que venha de Trinity a ordem para que
Neo desperte. Poderia ter vindo de Morfeu, o líder, mas veio de Tri-
nity. Temos aqui, mais uma vez, a presença decisiva do feminino na
jornada do nosso herói. Ele já havia se entendido com alguns aspec-
tos yin de sua psique e, graças a essa união dos contrários, fortale-
ceu-se e conseguiu resgatar Morfeu, e tornou-se tão ágil que Smith
não pôde derrotá-lo na luta.
Agora, porém, Neo está morto e Trinity, pela primeira vez, de-
clara seu amor por ele, sussurrando em seu ouvido o que ela sempre
mantivera em segredo, escondendo dele, dos colegas e, principal-
mente, dela mesma.
Você certamente lembra que na cabine telefônica do metrô,
prestes a voltar à nave, Trinity fala para Neo que tem algo importante
a dizer mas tem medo do que pode ocorrer se disser. Ela então fala
que tudo que o Oráculo lhe disse aconteceu, menos isso. Isso o quê?,
o espectador se indaga. Não fica claro pois Trinity retorna à nave an-
tes que possa revelar o teor exato da profecia mas no fim do filme
saberemos: ela se referia ao fato do Oráculo ter lhe dito que ela se
apaixonaria por um homem morto e que ele seria o Predestinado. Ali,
no metrô, Trinity está apaixonada por Neo mas ele... é um homem
vivo! Ela está confusa: isso significa que o Oráculo errou? Ou que
Neo não é o Predestinado? Pobre Trinity, não deve ter sido fácil con-
viver com tantas dúvidas.
Na nave, o gesto final de Trinity aciona de vez a profecia e
desperta Neo, fazendo nascer o Predestinado. O sussurro de Trinity é
o pneuma, o sopro milagroso da vida, o mesmo sopro com que Ísis
ressuscita Osiris na mitologia egípcia. Ao nosso herói, faltava o amor
para que ele se completasse e pudesse enfim ser ele mesmo em todo
seu potencial. Quando tudo parecia perdido, o componente yin de sua
psique entrou em ação, ocupando seu devido lugar na personalidade
consciente.
A recusa de Trinity em dividir seus sentimentos com os com-
panheiros significa a recusa do indivíduo em aceitar a realidade de
seus sentimentos. Fixando-se mais em outras dimensões do ser, co-
mo a intelectual, o ego despreza a dimensão dos sentimentos que, as-
sim, torna-se para ele um aspecto ameaçador. O ego pressente e tudo
faz para não encarar o que o destruirá.
Bem, Trinity podia aos poucos ter assimilado seus próprios
sentimentos e assim não deixaria tudo para ser perigosamente resol-
87
vido no último instante. Sim, poderia. Mas para assimilar os senti-
mentos é preciso, antes, reconhecê-los. Trinity os reprimia, tinha
medo do que eles podiam significar, sequer falava deles. Como a
consciência pode trabalhar algo que finge não existir?
É exatamente assim que o último inimigo se esconde da cons-
ciência, cresce na surdina e mais tarde irrompe, exigindo reconheci-
mento urgente. O ego não tem como vencer algo tão mais forte que
ele. Então o ego morre, derrotado por aquilo que a consciência a todo
custo evitou integrar a si mesma.
Neo morre porque não há outra maneira do Predestinado nas-
cer. O ego morre porque somente um novo ego, que reconheça os
conteúdos que exigem participação na consciência, pode comandar a
jornada do eu total rumo à autorrealização.
O amor de Neo e Trinity, que os guia rumo à vitória final, é o
mesmo amor romântico que guiou a mentalidade medieval, mostran-
do-se como imprescindível na busca moderna do indivíduo por sua
essência mais legítima. É a misteriosa lógica alquímica que une duas
pessoas e as transforma numa terceira, o casal, levando a individuali-
dade a um novo nível.
Neo é o Predestinado
Neo desperta, abrindo os olhos devagar. Parece surpreso por estar vivo mas está muito tranquilo. Põe-se de pé e olha ao redor. Os agentes perce-bem, sacam suas armas e atiram.
“Não...”, Neo diz baixinho, sem se abalar, e estende o braço, detendo as ba-las no ar. Ele agora enxerga a Matrix através de todos os seus códigos, co-mo os rebeldes a veem nos monitores da nave, mas com muito mais nitidez. Surpreso, Smith larga a arma e avança para Neo que se defende dos gol-pes com incrível facilidade. Neo então corre e salta para dentro de Smith, fazendo-o explodir. Depois reaparece, de pé, calmo e respirando profunda-mente. Os outros dois agentes saem correndo.
Com a aceitação do amor, Neo alcança mais um nível do des-
pertar. É a consciência que se amplia ao integrar os derradeiros con-
teúdos que não admitia.
Mas isso tudo só aconteceu porque o ego morreu, o velho ego
que há tempos se agarrava obstinadamente ao comando da consciên-
cia. O novo ego faz de nós pessoas mais equilibradas e mais cientes
de nossas possibilidades. Além disso, a consciência ampliada nos
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propicia uma visão mais clara da realidade, fazendo-nos ver o mundo
além das aparências, assim como Neo passa a ver a Matrix através de
seus códigos, limpidamente. Agora já não podemos ser enganados
como antes pois enxergamos tudo sem disfarces, principalmente a
nós mesmos.
É bom deixar claro que a aceitação e a vivência do amor é o
derradeiro inimigo que Neo tem de enfrentar para que possa se tor-
nar, de fato, o Predestinado – mas para outras pessoas o último ini-
migo pode ser outro aspecto do ser. Seja qual for, será sempre algo
que até o fim evitamos admitir em nós mesmos.
O taoísmo, milenar filosofia oriental, nos fala do Tao, o ritmo
do Universo, o indetível escoamento da realidade. Para o taoísmo,
sábio é aquele que capta esse ritmo e assim entende o equilíbrio di-
nâmico do crescimento e os ciclos de fluxo e refluxo da vida, harmo-
nizando-se com ela. Isso é tornar-se um com o Tao, uno com tudo ao
redor. Agindo assim o sábio pratica um dos princípios básicos do
taoísmo: a unicidade. Ele torna-se uno com a vida porque, na verda-
de, é o que sempre foi mas não percebia.
Neo harmonizou-se totalmente com sua própria natureza isso
se refletiu automaticamente no mundo externo: ele passou a ser um
com a realidade. Isso fica bem ilustrado na cena em que, após invadir
o corpo de Smith e fazê-lo explodir, Neo respira fundo e a Matrix, ao
seu redor, respira junto com ele, num movimento harmônico de con-
tração e expansão.
Quem poderá ser mais forte que aquele que é um com a reali-
dade? Neo consegue harmonizar-se com a Matrix de tal modo que
nada mais é impossível para ele. Assim ocorre quando, após final-
mente nos entendermos com o inconsciente, adquirimos um profun-
do grau de integração com a vida, nos conectando aos seus ciclos e
respeitando as leis naturais. É mais ou menos como pegar onda: para
chegar à praia, deve-se harmonizar os movimentos do corpo com o
ritmo da onda, confiando no processo e abandonando-se ao sentido
da força maior tornando-se uno com ela. Desse modo as coisas se
tornam mais fluídas e a vida mais simples. As dificuldades continu-
am, é claro, mas nós agora as vemos não como obstáculos mas como
forças que, feito as ondas, podem nos conduzir à praia. E é por com-
preendermos as coisas desse novo modo que a vida se transforma no
que há de melhor para nós.
É a isso que nos conduz a autorrealização: à efetivação do que
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somos e à harmonia com a vida. Não são todos os que a atingem. Na
verdade são poucos pois a grande maioria desiste ante as primeiras
dificuldades e se convence que é impossível. A maioria toma a pílula
azul.
Porém, o impulso para a autorrealização está presente em to-
dos nós. O que faremos com ele é que determinará se realmente nos
tornaremos os heróis de nossas próprias vidas.
* * *
As luzes se acendem e os créditos na tela já estão subindo. O
lanterninha vem nos avisar que o filme terminou e só então nos da-
mos conta. Levantamos meio atordoados e saímos, envoltos em mil
pensamentos. Teremos muitas coisas em que pensar nos próximos
dias.
Na rua as pessoas voltam para a realidade de sua vida cotidia-
na. E, no interior de cada uma delas, o mito prossegue, vivo e pulsan-
te, guardando o símbolo sagrado da autorrealização sob a mais im-
portante de todas perguntas:
“Quem sou eu?”
90
V
Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
paralelos com o processo de autorrealização
O processo de autorrealização está perfeitamente ilustrado no
enredo de Matrix, o filme inicial da trilogia. Nele acompanhamos o
herói desde o início de sua aventura: as crises que levam ao desper-
tar, o autoconhecimento, os conflitos internos, a assimilação dos con-
teúdos inconscientes, a autossabotagem, a experiência do amor, a
morte e o renascimento. Em poucos filmes vemos a estrutura do mito
da jornada do herói de modo tão preciso.
O filme inicial se fecha em si mesmo, no sentido de mostrar a
trajetória completa do herói que se autorrealiza. Neo torna-se o Pre-
destinado porque enfim se convence que sempre o fora. Em termos
psicológicos: a consciência assimilou os conteúdos inconscientes que
agiam livres, limitando a atuação do indivíduo, e equilibrou-se entre
seus opostos, ampliando-se, permitindo a realização do potencial a-
dormecido e levando o indivíduo a harmonizar-se consigo e o mundo
à sua volta.
Vale a pena, porém, nos determos um pouco sobre os dois ou-
tros filmes da trilogia. Eles possuem alguns pontos interessantes que
podem enriquecer nosso estudo.
Zion
A única cidade humana da história é Zion. É lá onde vivem os
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humanos que nascem fora da Matrix e os que se libertam dela. É lá
onde se concentra a resistência contra a Inteligência Artificial. Zion
fica no centro do planeta e somente os comandantes das naves pos-
suem seus códigos de acesso.
Na psicologia junguiana há o conceito de Self, ou Si-mesmo,
que significa a totalidade e ao mesmo tempo o centro regulador da
psique. É no Si-mesmo que a consciência se espelha para crescer e se
tornar mais ampliada pois ele é como a semente que traz em si o mo-
delo da árvore futura. Assim como o ego é o centro da consciência, o
Si-mesmo é o centro da psique total, uma espécie de, digamos assim,
eu superior. É lá onde estão guardadas todas as potencialidades do
ser, feito um código que necessita ser ativado para que se efetive a-
quilo que por enquanto é apenas potencial.
Neo e o Arquiteto
Em Matrix Reloaded, ao se encontrar pela segunda vez com o
Oráculo, Neo fica sabendo que deve se dirigir à Fonte, ao núcleo da
Matrix. “A Fonte é o fim do caminho do Predestinado”, diz o Orácu-
lo.
Neo vai até lá e encontra o Arquiteto, a imagem digital da In-
teligência Artificial, criadora da Matrix. Sentado tranquilo em sua
poltrona, o Arquiteto explica a Neo muitas coisas e o diálogo é um
dos mais interessantes da trilogia. Entre várias revelações, Neo des-
cobre que antes dele existiram cinco Predestinados. Entende também
que a Matrix foi criada inicialmente representando um mundo perfei-
to, onde ninguém sofreria e todos seriam felizes. Mantendo os huma-
nos nesse eterno estado idílico de sonho, a Inteligência Artificial se-
guiria no controle total.
Entretanto os humanos, mesmo adormecidos, rejeitavam o
programa, causando-lhe instabilidade. A Inteligência Artificial insis-
tiu mas todas as suas tentativas falharam, levando à perda de “safras
inteiras” de humanos. Entendendo que o problema era decorrente da
falibilidade humana, que não tolera a perfeição, a Matrix então foi
transformada: no lugar de um mundo perfeito, a ilusão coletiva pas-
sou a ser ambientada numa réplica do mundo como ele era no final
do século 20, com todas as suas imperfeições e injustiças. Mesmo as-
sim as mentes humanas ainda não o aceitaram e o programa continu-
ou instável. Como resolver o problema? Como fazer com que a men-
92
te humana aceitasse devidamente a realidade ilusória da Matrix e as
pessoas pudessem ser mantidas escravas?
Foi então desenvolvido um programa “intuitivo”, chamado
Oráculo, cuja tarefa era estudar profundamente a psique humana. A
solução encontrada pelo Oráculo foi oferecer aos humanos uma pos-
sibilidade de não aceitar a realidade virtual, ainda que apenas num
nível inconsciente. Eles continuariam adormecidos e escravos mas
saberiam, de modo inconsciente, que poderiam despertar e se liber-
tar. Oferecer aos humanos essa opção de saber que podiam se libertar
era perigoso pois alguns deles poderiam efetivamente se libertar e,
mesmo significando 0,01 da população, poderiam ameaçar a segu-
rança do sistema. O jeito seria ter que reforçar a segurança.
A estratégia funcionou perfeitamente. A quase totalidade das
mentes humanas aceitava o programa e o sistema se estabilizou. E as
mentes que não aceitavam a ilusão da Matrix? Essa diminuta parcela
dos humanos despertava do sonho coletivo e se libertava, formando a
resistência. Eles então passavam a invadir o sistema e ajudar outros
humanos a se libertar, causando certa instabilidade à Matrix. Para o
sistema, porém, essa instabilidade era prevista e esses humanos eram
uma anomalia inevitável, o preço a pagar pelo máximo possível de
estabilização do sistema.
Entretanto, o preço incluía algo mais: dentro da anomalia ha-
veria sempre a eventualidade matemática de uma anomalia maior, o
supra-sumo anômalo, digamos assim. Periodicamente, entre esses
humanos que se libertavam, haveria um com capacidades excepcio-
nais, que aprenderia a agir dentro da Matrix melhor que todos, detec-
taria suas falhas e poderia provocar o colapso total do sistema: esse
seria o Predestinado.
Tudo estava matematicamente previsto desde o início: a parce-
la de humanos que não aceitaria o programa e também os resistentes
que sempre fugiriam para o centro da Terra e reconstruiriam Zion, a
cidade humana, que funcionaria como centro da resistência. Por fim,
o surgimento do Predestinado estava igualmente previsto pois ele e-
ra, segundo o próprio arquiteto, “uma soma de um resíduo de uma
equação desequilibrada inerente à programação da Matrix”. Mas co-
mo lidar com ele?
93
Matrix: o sistema (quase) perfeito
Embora tenha programado a Matrix para lutar ferrenhamente
contra todos os que a desafiam, a Inteligência Artificial sabia que
mais cedo ou mais tarde o Predestinado sempre surgiria. Assim, res-
tou lidar com ele da melhor forma possível: se não pode com seu i-
nimigo, una-se a ele.
Como o Predestinado conhece as falhas do sistema melhor que
o próprio sistema, sabe de seus pontos vulneráveis e aprende a burlar
todas as suas regras, modificando a programação à sua vontade, o i-
deal então seria fazê-lo se reinserir no sistema, reprogramando a Ma-
trix com os novos dados que ele traria. Fazendo isso, a anomalia re-
insere a programação que traz consigo (sua experiência de vida, seus
conhecimentos e todos os dados coletados sobre as falhas do sistema)
e possibilita a atualização, um upgrade, da Matrix.
Mas como garantir que isso aconteça? Por que o Predestinado,
inimigo da Matrix, aceitaria uma coisa dessa?
Para reconhecer a anomalia máxima, a Matrix está sempre a
vasculhar a si própria a fim de localizar e eliminar todas as prováveis
anomalias até que, dentre elas, sobreviva apenas aquela que, de fato,
tem o poder de destruir, ou aperfeiçoar, o sistema. Após isso a ano-
malia deverá ser convencida a não destruir mas, em vez disso, aceitar
ser reinserida no sistema.
Os próprios humanos rebeldes, sem saber, ajudam a Matrix a
controlar o Predestinado pois creem nele, necessitam dele e sempre o
levam ao Oráculo. Este, por sua vez, sempre incentiva o Predestina-
do a se dirigir à Fonte. Ao alcançá-la, o Predestinado sempre encon-
tra o Arquiteto que lhe fala sobre a Matrix e ao final lhe apresenta
duas opções: ou continua sua luta contra as máquinas ou se sacrifica,
reinserindo-se no sistema.
Se as opções são essas, por que o Predestinado sempre se en-
trega? Porque não vale a pena continuar lutando. Vejamos. Se o Pre-
destinado prossegue a luta, Zion é destruída pois a Inteligência Arti-
ficial cedo ou tarde saberá sua localização e tem tecnologia suficien-
te. Mais importante que isso, porém, é o fato de que, sem se atuali-
zar, a Matrix entra em colapso, causando a morte de todos os huma-
nos ligados ao sistema, o que, junto à destruição de Zion, significa a
extinção da espécie humana. Quanto à vida da Inteligência Artificial,
mesmo sem sua fonte principal de energia, os corpos humanos, ela
94
ainda sobreviveria e recomeçaria tudo outra vez. Bem, isso é o que
diz o Arquiteto. Será que é um blefe? Por via das dúvidas, o Predes-
tinado nunca arrisca.
Por outro lado, aceitando reinserir-se no sistema, o Predestina-
do pode escolher 23 pessoas na Matrix para serem libertadas – elas
fugirão para o centro da Terra e reconstruirão Zion, prosseguindo
com a resistência. Ele se sacrifica pela humanidade mas os humanos
continuam vivos. É verdade que a quase totalidade continuará escra-
vizada, com seus corpos imersos em casulos e as mentes conectadas
a uma ilusão coletiva. Mas esta opção não é pior que a extinção da
espécie.
É por isso que os Predestinados anteriores a Neo se sacrifica-
ram pela humanidade, reinserindo-se no sistema. Disseminando seus
códigos, reintroduziram o programa principal e assim o sistema foi
reiniciado, num nível mais avançado ainda. Dessa forma tudo pros-
segue como antes: a Inteligência Artificial dominando o planeta, a
Matrix aperfeiçoada mantendo os humanos aprisionados e os huma-
nos de Zion resistindo, tentando libertar mais humanos e, além disso,
acreditando na profecia do Oráculo que um dia virá o Predestinado...
As máquinas, a Matrix, os humanos e o Predestinado formam
assim um sistema só, autossustentável, cujas imperfeições são na
verdade mecanismos imprescindíveis à harmonia maior. O que pare-
ce ameaça à Matrix é, na verdade, a garantia da estabilização e do
aperfeiçoamento do sistema. O Predestinado é, assim, apenas mais
uma peça na engrenagem. Ele toma conhecimento disso somente no
final, quando chega à Fonte, mas então é levado, por seu amor à hu-
manidade, a sacrificar-se, salvando a Matrix e permitindo à Inteli-
gência Artificial continuar dominando o planeta e escravizando os
humanos. Perfeito.
Na verdade, quase perfeito. Porque com Neo é diferente. Além
do amor impessoal pela humanidade, característica de todos os Pre-
destinados, ele ama Trinity. É justamente o amor romântico, além do
amor fraternal, que o mantém disposto a lutar e desafiar as possibili-
dades, somente para continuar com ela, mesmo que isso ponha em
risco toda a espécie humana. É um fator absolutamente novo, tão no-
vo que a Inteligência Artificial não o previu.
E nem tinha como, coitada. Talvez as máquinas jamais consi-
gam decifrar, calcular e prever o amor, essa força tão imensa, pode-
rosa, insana e contraditória, essa equação tão desequilibrada e impre-
95
visível. Tão imprevisível que a fragrância do amor de Neo e Trinity
sensibiliza até o Oráculo e o leva a ajudar Neo mais do que deveria,
arriscando o equilíbrio do sistema. Tão imprevisível que em troca de
um beijo de Neo (mais um beijo traidor) Perséfone trai os interesses
do marido Merovíngio e permite aos rebeldes o acesso ao Chaveiro e
a posterior chegada de Neo à Fonte.
Um beijo. Ai, ai, apenas um beijo... Um simples toque de lá-
bios faz Perséfone sentir novamente a doce e inebriante sensação de
estar amando. A ela bastou apenas o gostinho da sensação perdida,
do amor que um dia encheu de sentido os seus dias, bastou isso para
Perséfone. Como quantificar, equacionar e programar o amor?
psique artificial
A Matrix é tão-somente um sistema de simulação da realidade,
feito de muitos programas integrados, mas se parece bem mais com
os humanos do que a Inteligência Artificial certamente gostaria de
admitir. Aliás, em certos aspectos a Matrix parece uma imitação da
psique humana. Podemos até falar de consciência e inconsciente, por
mais estranho que pareça.
Consciência e inconsciente na Matrix? Antes que você feche o
livro e diga que eu já estou forçando a barra, me dê só mais alguns
parágrafos, por favor. Obrigado.
Veja só. A Matrix sabe tudo sobre si mesma? Não pois o sis-
tema possui os seus próprios guetos virtuais, onde se escondem os
programas rebeldes que seriam desativados. Além disso ela nem
sempre sabe quando os humanos a invadem nem onde se encontram
nem o que irão fazer. Os programas rebeldes até que não causam
problemas sérios – mas os humanos invasores, estes sim dão uma dor
de cabeça danada pois além do sistema não ter controle sobre eles, os
humanos desejam destruí-lo. São os conteúdos inconscientes da Ma-
trix. Sem falar em Smith que também sairá do controle do sistema.
A Matrix tem consciência de si através de seu programa ge-
renciador, que utiliza eficazes mecanismos de defesa (agentes) para
perseguir e eliminar humanos invasores pois sabe que dentre eles po-
de surgir a anomalia prevista. Para o programa a anomalia representa
o risco de morte do sistema mas na verdade será a sua própria conti-
nuação, num nível mais avançado. O programa, porém, não entende
assim, e faz de tudo para que o sistema sobreviva. Parece até um ve-
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lho conhecido nosso, não?
Isso mesmo, o programa gerenciador do sistema parece o ego.
O ego da Matrix é igual a todos os egos: não quer morrer jamais.
Mas não tem jeito, o Predestinado sempre vem. O programa gerenci-
ador não sabe que o que morrerá é a versão antiga do sistema, obso-
leta, uma versão incapaz de lidar com as novas exigências, com a a-
gilidade e conhecimento do novo Predestinado. A Matrix, se entre-
gando, se une a seu pior inimigo, e ressurge atualizada, mais podero-
sa ainda. Viu? É a Matrix assimilando conteúdos inconscientes...
Smith personifica com perfeição o desastre que um ego inflado
pode causar à psique. Na Matrix, ele é o representante do sistema e
existe tão-somente para gerenciar a relação delicada entre o sistema e
os humanos, reprimindo a ação destes. Smith não aceita a derrota,
não quer ser deletado: é o egão que resiste, orgulhoso. A Inteligência
Artificial, na pessoa do Arquiteto, já sabe que precisa se entender
com o Predestinado para que o sistema passe para um novo nível
mas o diabo do Smith não quer saber de conversa. Sua teimosia é
uma ameaça crescente ao próprio sistema e ele se torna mais perigo-
so até mesmo que Neo. Então, para manter o próprio equilíbrio, a In-
teligência Artificial ajuda Neo a derrotar Smith. Assim também faz o
Si-mesmo na psique quando o ego está inflado demais e compromete
o equilíbrio do eu total: ele permite que os conteúdos inconscientes
se manifestem tão fortemente que a vida sai do controle, vêm os de-
sastres e insucessos e o ego, humilhado e impotente, não resiste e
morre.
Uma psique artificial, com seu equilíbrio dinâmico e seus pró-
prios ciclos de morte e renascimento – assim é a Matrix, por mais
blasfemo que pareça. Senão vejamos: trata-se de um sistema auto-
consciente mas não totalmente, que será sempre ameaçado e sabota-
do por seus próprios componentes indesejados, que um dia será por
eles desestabilizado e, num processo de integração simbiótica, se u-
nirá a eles para renovar a si mesmo e continuar vivo, mais forte e ca-
paz – e então novos componentes indesejados surgirão e assim por
diante. O centro desse sistema possui todas as informações e conhece
perfeitamente o processo pois é ele que o comanda. Além disso essa
espécie de Si-mesmo do sistema já o viu passar por tudo aquilo vá-
rias vezes, todos aqueles conflitos, e sabe que apesar de tudo o siste-
ma sobreviverá.
Psique artificial, máquinas assimilando conteúdos inconscien-
97
tes... Bem, é só uma comparação, claro, mas esse exercício de imagi-
nação pode nos ajudar a vislumbrar como seria uma psicologia das
máquinas. Sim, por que elas, sendo capazes de pensar por si próprias,
não haveriam de ter uma psicologia? Talvez já seja hora de começar
a pensar nessa possibilidade.
Aliás, o que Jung diria se soubesse que um dia suas ideias se-
riam utilizadas para explicar o comportamento das máquinas? Consi-
deraria uma blasfêmia? Não sei. Talvez ele desse uma daquelas suas
boas risadas: “Bem, chame uma delas qualquer dia para tomar um
chá comigo à beira do lago...”
retribuindo à sociedade
A engenhosidade de toda a trama de Matrix merece um prê-
mio. O segundo episódio, Matrix Reloaded, nos mostra a chegada do
Predestinado à Fonte da Matrix e sua posterior reinserção no sistema.
Ao nosso estudo, isso é mais um paralelo com o processo de autorre-
alização, mais precisamente o aspecto final do processo: a absorção,
pela sociedade, da rica experiência do indivíduo que se autorrealiza.
É o mito do herói revivido, o herói que se isola para depois retornar e
salvar seu povo. É a volta do indivíduo ao outro lado da espiral indi-
víduo-sociedade após ter feito o percurso completo.
Vimos que o processo de autorrealização exige que o indiví-
duo se diferencie. Essa diferenciação tem vários níveis e começa lo-
go após a concepção, quando óvulo e espermatozóide se unem para
formar uma terceira substância. O novo ser é uma porção do incons-
ciente coletivo da espécie que se destaca, feito uma erupção vulcâni-
ca no fundo do oceano, e que formará, com suas experiências indivi-
duais, um inconsciente individual.
Uma segunda diferenciação ocorre após o nascimento, quando
desse inconsciente pessoal se destaca uma nova porção: a consciên-
cia. Ela ainda é apenas um pedaço de terra submersa no grande ocea-
no inconsciente, forçando passagem rumo à superfície, mas já revela
as características que farão do indivíduo aquilo que ele potencial-
mente é. A consciência é, assim, uma parte diferenciada do inconsci-
ente individual que se destacou do inconsciente geral da espécie – é
uma ilha de individualidade.
Mais tarde, como vimos, o indivíduo precisa se diferenciar a-
inda mais, dessa vez qualitativamente, destacando-se da massa com
98
os quais divide valores, ideias e regras de comportamento. Vimos
que isso desestabiliza a ordem social e faz a sociedade reprimir a di-
ferenciação.
Entretanto, há um ponto do processo em que a sociedade não
só não consegue mais reprimir como é influenciada pelo indivíduo
que se diferencia e se autorrealiza. Nesse ponto ocorre, numa analo-
gia ao filme, a atualização do sistema. A força da autorrealização é
tamanha que a sociedade é naturalmente levada a absorver as experi-
ências do indivíduo, incorporando os novos valores e ideias que ele
representa. O que antes era perigo à cultura, mostra-se agora seu
próprio alimento, aquilo que lhe permite se enriquecer e sobreviver.
A cultura se torna mais complexa mas só o consegue porque há indi-
víduos que se diferenciam e a desafiam. É como se o indivíduo se
“redimisse” de seu afastamento do grupo, pagando sua diferenciação
com benfeitorias culturais à espécie.
No Budismo, aquele que alcança a iluminação está livre dos
problemas do mundo e nada mais pode perturbá-lo. Seu corpo está
aqui mas sua consciência voa por outros níveis, além dos níveis coti-
dianos. A consciência atingiu tal grau de maturidade e interação com
a realidade que está livre para mover-se, livre das dimensões do tem-
po e do espaço. Buda e outros que alcançaram a iluminação poderi-
am ter deixado que sua consciência partisse, finalmente liberta do
corpo físico e das limitações terrenas. Mas preferiram ficar até o fim,
até onde o corpo suportasse. Por quê? Para ensinar o que aprende-
ram. Esse é o exemplo de suprema compaixão do Bodhisattva, o ser
que após uma vida inteira de busca finalmente atinge a iluminação –
mas aceita permanecer nas limitações do mundo, como Buda fez,
pondo à disposição da humanidade o seu conhecimento e toda a sua
experiência.
Assim como o Bodhisattva, aquele que atinge a autorrealiza-
ção está livre das pressões do mundo. O ser autorrealizado atingiu o
equilíbrio entre consciência e inconsciente e nada mais o desequili-
bra. Ele agora pode finalmente descansar da longa jornada, esconder-
se até o fim de seus dias num sitiozinho no alto da serra da Ibiapaba,
sem TV e sem telefone, e aproveitar a paz de espírito que conquistou,
longe do trânsito maluco, da poluição e dos operadores de telemarke-
ting. Mas muitos não o fazem. Preferem continuar no mundo e con-
tribuir com sua experiência para um mundo melhor. Reinserem-se no
sistema, transbordantes de humildade e amor pela causa humana.
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Essa reinserção contém certa dose de ironia pois o indivíduo
autorrealizado que agora contribui para a sociedade é o mesmo que,
no início de seu processo de diferenciação, era visto como ameaça à
própria sociedade, com suas ideias diferentes e atitudes subversivas,
e por isso foi bastante reprimido.
Apesar da intensa repressão que leva a maioria a desistir, sem-
pre haverá os que se diferenciam, desafiando e incomodando a soci-
edade. São as anomalias que o sistema se esforça em evitar. Mas são
anomalias previstas e, além disso, necessárias ao sistema. São como
profecias que aguardam, pacientemente, que cada um de nós, predes-
tinados que somos, decida realmente despertar.
100
VI
Os personagens
Os personagens de Matrix, seu papel no filme
e os aspectos psicológicos que representam
no processo de autorrealização
PAPEL NO FILME
NEO - Personagem principal. Nascido na Matrix, Neo desconfia que
há algo errado com a realidade, busca respostas e é localizado pelos
rebeldes. Desperta e une-se a eles para ajudar os humanos na luta
contra a Inteligência Artificial. Alguns dos rebeldes consideram que
ele é o Predestinado de que fala a profecia do Oráculo e que salvará a
humanidade. Neo é pressionado pelo dilema de ser ou não o Escolhi-
do e luta contra sua própria natureza.
O PREDESTINADO - Aquele que virá e, com seus poderes, libertará
os seres humanos da Matrix. Não se sabe exatamente como ele é nem
o que fará mas sua vinda foi profetizada pelo Oráculo.
TRINITY - Principal personagem feminina. Oficial da nave Nabuco-
donossor. Reservada e discreta quanto aos sentimentos, ela é avisada
pelo Oráculo que se apaixonará por um homem morto e que ele será
o Predestinado. Trinity localiza Neo na Matrix e o convence a seguir
os rebeldes, levando-o ao líder Morfeu. Somente no final, quando
101
Neo está morto, é que ela revela seus sentimentos e o que lhe dissera
o Oráculo.
MORFEU - Comandante da nave Nabucodonossor. Acredita firme-
mente na profecia do Oráculo, que diz que um dia o Predestinado vi-
rá para libertar a humanidade da Matrix. Ele busca e encontra Neo,
um jovem que vive na Matrix. Morfeu está certo de que Neo é o Pre-
destinado e por isso o liberta, treina-o para lutar contra os agentes e
se sacrifica por ele.
AGENTES - Programas criados para capturar e eliminar humanos li-
vres que invadem a Matrix. Podem tomar o corpo de qualquer pessoa
e apresentam-se sempre de paletó e gravata e óculos escuros. São
fortes, ágeis e extremamente frios e controlados. E invencíveis.
AGENTE SMITH - Líder dos agentes. Tem especial antipatia pelos
humanos rebeldes pois é por causa deles que está preso à Matrix.
Mata Neo com dez tiros à queima-roupa mas em seguida é por ele
destruído no final do primeiro filme. Reaparece no segundo filme,
mais poderoso e podendo atuar também fora da Matrix. Evolui tanto
que, igual ao Predestinado, foge do controle da própria Matrix.
CYPHER - Membro da tripulação da nave que está cansado de lutar
contra as máquinas e entra em acordo com os agentes da Matrix para
entregar o líder Morfeu. Deseja esquecer tudo o que viveu e recome-
çar a vida na Matrix. Para ele, ignorância é felicidade. Trai os cole-
gas, mata três deles mas é morto quando se prepara para eliminar
Neo.
ORÁCULO - Programa intuitivo desenvolvido pela Inteligência Ar-
tificial para estudar a psique humana e auxiliar na estabilização do
sistema. O Oráculo profetiza aos resistentes que Morfeu encontrará o
Predestinado, que Trinity se apaixonará por ele e que Morfeu por ele
se sacrificará.
102
PAPEL NA PSIQUE
NEO - O ego. Centro da consciência. Tem a função de gerenciar o
fluxo dos conteúdos entre a consciência e o inconsciente, entre os
mundos interno e externo do indivíduo. Apesar do ego ser apenas
uma parte do eu psíquico total, é com ele que o indivíduo tende a se
identificar, considerando o ego e o eu total como absolutamente i-
guais. O impulso natural de autorrealização da psique, porém, leva o
indivíduo a ampliar sua noção do eu através de um longo e contínuo
processo de autoconhecimento, integrando conteúdos inconscientes à
personalidade consciente. O processo exige o abandono de antigos
valores, honestidade para consigo mesmo, coragem para enfrentar o
que se desconhece de si próprio, perseverança e confiança no proces-
so. O ego precisa morrer várias vezes para que um novo ego surja,
mais capacitado para conduzir a consciência rumo a novos níveis de
realização.
O PREDESTINADO - Realização da psique em toda a sua potencia-
lidade. Culminação do processo de ampliação da consciência pelo
conhecimento de si próprio e equilíbrio entre consciência e inconsci-
ente. Efetivação do eu potencial em toda sua totalidade, capacitando
o indivíduo a viver, finalmente, suas verdades mais íntimas e se har-
monizar consigo mesmo, com as outras pessoas e toda a realidade.
TRINITY - Aspectos femininos da psique (yin), ligados ao cuidado,
à maleabilidade, à paciência, aos sentimentos e à valorização dos re-
lacionamentos. Representa a experiência enriquecedora do amor, que
age confrontando o indivíduo com a verdade sobre ele mesmo e le-
vando o ego a amadurecer, ampliando a consciência.
MORFEU - Aspectos masculinos da psique (yang), ligados à força
criativa, autoconfiança, liderança, agressividade e capacidade de em-
preender. Representa a fé em todo o processo, o impulso e a força
progressista da psique.
AGENTES - Conteúdos inconscientes (medos, traumas e bloqueios)
dos quais o ego foge, evitando o confronto. Se não forem devida-
mente assimilados pela consciência causarão desequilíbrio psíquico,
ocasionando gafes, fracassos, doenças e até mesmo a morte.
103
AGENTE SMITH - Conteúdo de dificílima assimilação por parte da
consciência e que, por permanecer inconsciente durante muito tem-
po, cresce e se torna extremamente poderoso e perigoso, pondo em
risco o processo de autorrealização.
CYPHER - Aspectos negativos da psique ligados ao cansaço, desilu-
são, cinismo e acomodação. É o componente de autossabotagem, a
força retrógrada que impede a ampliação da consciência, constituin-
do-se no impulso oposto à autorrealização. É o traidor interno, sem-
pre fugindo de responsabilidades e saudoso de um tempo em que ha-
via menos autoconsciência e nenhum comprometimento com a trans-
formação pessoal.
ORÁCULO - Representa o sagrado, o numinoso, o mistério, uma
força maior à qual o indivíduo se submete com reverência. Pode ser
uma religião formal, uma antiga tradição mística, uma poderosa ver-
dade íntima, a ligação com as tradições ou o próprio sentimento reli-
gioso de estar unido a algo maior e mais antigo. Pode ser uma cone-
xão intuitiva com a Natureza, com o Universo, com a humanidade. A
conexão com o sagrado é arredia ao intelecto racional mas dá segu-
rança e fornece um sentido para a vida.
VII
Quadro comparativo
Paralelos entre a aventura de Neo
e o processo de autorrealização
Neo acorda em seu quarto e lê as estranhas mensagens no compu-
tador. Neo encontra Trinity.
Neo chega ao trabalho atrasado e
é repreendido pelo chefe.
Guiado por Morfeu, pelo celular, Neo tenta fugir mas é detido pelos agentes que o torturam e lhe inse-
rem um dispositivo rastreador. Trinity convence Neo a seguir com os resistentes. O rastreador é reti-
rado.
Início do despertar. O inconsciente se agita e seus conteúdos atingem a consciência, forçando o ego à autoinvestigação. Primeiro ciclo de confrontos. Dúvidas e inquieta-ções. Primeiras dificuldades. A socieda-de reprime a diferenciação, deses-timulando o autoconhecimento, di-ficultando a libertação dos padrões de comportamento coletivo. O ego segue a intuição, que atua como guia em substituição à lógica racional. A sociedade intensifica a repressão e o indivíduo paga com sofrimento sua busca pela autorre-alização. O ego começa a assimilar os con-teúdos inconscientes e se fortale-ce. O indivíduo está mais auto-consciente e ganha mais discerni-mento e autonomia.
105
Neo encontra Morfeu, toma a pílula vermelha e inicia seu processo de
desconexão da Matrix.
Neo desperta no casulo, fora da Matrix. É desconectado do sistema
e jogado no esgoto.
Neo se recupera na nave. Os tripu-lantes cuidam de Neo.
Morfeu mostra a Neo o que acon-teceu com a Terra. Neo reluta em
aceitar a verdade.
Neo treina com Morfeu em pro-gramas de simulação para saber
agir dentro da Matrix.
Neo é levado de volta à Matrix para consultar o Oráculo.
O Oráculo examina Neo, que ainda não acredita ser o Predestinado.
Os resistentes são traídos por Cy-pher. Morfeu é capturado pelos
agentes.
Cypher mata os companheiros, zomba da crença de Trinity no Pre-
destinado e ameaça matar Neo.
Dilemas e encruzilhadas no cami-nho. O indivíduo precisa mostrar que está realmente disposto a pros-seguir. Novo ciclo de confrontos. O ego é violentamente abalado pelos conte-údos inconscientes e a verdade so-bre si mesmo desestrutura o indiví-duo. Desequilíbrio psíquico. Crise existencial profunda. O ego sofre com a morte de velhos valores e padrões de comportamen-to. A psique conduz o ego no pro-cesso de autocura. Dúvidas, medo e dor no processo de morte e renascimento. Aceitação da transformação interior. As novas informações sobre si mesmo são devidamente assimila-das pelo ego, que se torna mais for-te, capaz e ciente de suas possibili-dades. A força progressista da psi-que é ativada. O indivíduo se dife-rencia da massa e amadurece. A vida ganha sentido e se torna mais harmoniosa. O ego é testado em sua nova fase, vivenciando situações que põem à prova sua transformação. O indivíduo está mais autoconsci-ente porém ainda não acredita ple-namente em seu potencial. Ainda relutante em assumir certas responsabilidades, o ego sabota a si mesmo, atraindo insucessos. A força retrógrada está no comando. Perigos da jornada. O ego é cons-tantemente posto à prova. A fé e a confiança no processo são funda-mentais.
Morfeu é torturado pelos agentes.
Neo e Trinity voltam à Matrix, en-frentam soldados e resgatam Mor-
feu.
Neo decide lutar contra o agente Smith. Neo foge mas é encurralado
e morto.
Trinity declara seu amor por Neo e ele ressuscita na Matrix. Neo de-tém as balas no ar e elimina o a-gente Smith. Neo volta à nave e
impede sua destruição pelas senti-nelas.
Os Predestinados alcançam o cen-tro de controle da Matrix e se rein-
serem no sistema
A necessidade de liberar o poten-cial criativo e incorporá-lo definiti-vamente à consciência. O indivíduo precisa assumir novas e importantes responsabilidades. É necessária a união dos opostos psíquicos.
Mais fortalecido, o ego passa por novo ciclo de confrontos com o in-consciente. Crise. Novos aspectos do ser devem ser urgentemente reconhecidos. Após longo e difícil confronto, o ego enfim assimila os novos conteúdos. Velhos valores morrem. A consci-ência é ampliada e a psique se e-quilibra. O indivíduo emerge da cri-se renascido e ainda mais forte, au-toconsciente, capaz e em harmonia consigo mesmo, com os outros e com o mundo ao redor. A diferenci-ação atinge o ponto culminante. O potencial criativo está inteiramente ativado. O avançado nível de autorrealiza-ção do indivíduo faz com que a so-ciedade reconheça e assimile sua experiência pessoal, incorporando-a aos valores coletivos e enrique-cendo a cultura.
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SOBRE O AUTOR Ricardo Kelmer nasceu em Fortaleza, em 1964. Mora atualmente na cidade de São Paulo. Cursou Letras e Comunicação Social, atuou em rádio e na produção de eventos, foi redator de publicidade e dono do bar Badauê na Praia de Iracema. Integrou as bandas Os The Breg Brothers e Intocáveis Putz Band. Como produtor
cultural, atua no espetáculo Viniciarte - Vida, música e poesia de Vinicius de Moraes, de sua autoria, e produz a festa Cabaré Soçaite. Publicou seu primeiro livro em 1995. Também é roteirista, letrista musical e palestrante. Blog do Kelmer - blogdokelmer.wordpress.com
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LIVROS
O Irresistível Charme da Insanidade (Romance - Editora Arte Paubrasil) Luca é um músico, obcecado pelo controle da vida, que se envolve com Isadora, uma viajante taoísta que afirma ser ele a reencarnação de seu mestre-amante do século 16. Ele inicia uma estranha aventura onde somem os limites entre sanidade e loucura, real e imaginário e, por fim, descobre que para merecer a mulher que ama, terá antes de saber quem na verdade ele é. Nesta insólita história de amor, que acontece
simultaneamente na Espanha quinhentista e no Brasil do século 21, os déjà-vu (sensação de já ter vivido certa situação) são portais do tempo através dos quais temos contato com nossas outras vidas. Blues, sexo e uísques duplos. Sonhos, experiências místicas e ordens secretas. Este romance exercita, numa história divertida e emocionante, intrigantes possibilidades da vida, do amor, do tempo e do que seja o "eu".
Vocês Terráqueas Seduções e perdições do feminino (Contos/crônicas - Miragem Editorial) Nos contos e crônicas deste livro, Kelmer mistura humor e erotismo para celebrar o Feminino em suas diversas e irresistíveis encarnações. Ciganas, lolitas, santas, prostitutas, espiãs, sacerdotisas pagãs, entidades do além, mulheres selvagens – em todas as personagens, o reflexo do olhar masculino fascinado, amedrontado, seduzido... Em cada história, o brilho numinoso dos arquétipos femininos que fazem da mulher um ícone eterno de beleza, sensualidade, mistério... e inspiração.
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Guia do Escritor Independente
Como publicar seus livros e gerenciar a carreira literária As novas tecnologias possibilitam cada vez mais aos escritores a oportunidade de desenvolver suas carreiras sem necessariamente estarem ligados a alguma editora. Hoje é possível publicar, divulgar e vender os próprios livros usando-se a internet e outros meios alternativos, baratos e eficientes. Com sua experiência no mercado editorial oficial e alternativo, o autor resume neste livro as idéias que divulga
em suas palestras e oficinas, mostrando que os novos autores podem gerenciar a própria carreira independente, publicando e vendendo seus livros, conquistando seu público leitor e realizando, assim, o velho sonho de ser escritor.
Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos (Contos) O que fazer quando de repente o inexplicável invade nossa realidade e velhas verdades se tornam inúteis? Para onde ir quando o mundo acaba? Nos nove contos que formam este livro, onde o mistério e o sobrenatural estão sempre presentes, as pessoas são surpreendidas por acontecimentos que abalam sua compreensão da realidade e de si mesmas e deflagram crises tão intensas que viram uma questão de sobrevivência. Um livro sobre apocalipses coletivos e pessoais.
Matrix e o Despertar do Herói A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas (Ensaio) Utilizando a mitologia e a psicologia do inconsciente numa linguagem simples e descontraída, Kelmer investiga o filme Matrix e nos oferece uma visão diferente da obra que revolucionou o cinema e é considerada um fenômeno cultural, lotando salas no mundo todo, conquistando admiradores e instigando intensas discussões por onde passa. Neste livro vemos que Matrix é uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói e sua história nos fala, metaforicamente, do processo de autorrealização do ser humano, com suas crises que levam ao despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, a relação com o inconsciente, a autossabotagem, a experiência do amor, a morte e o renascer. Nós podemos ser bem mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, os grandes heróis de nossas próprias vidas.
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Baseado Nisso Liberando o bom humor da maconha (Contos/glossário) Os pais que decidem fumar um com o filho, ETs preocupados com a maconha terráquea, a loja que vende as mais loucas ideias... Nesses contos estão reunidos aspectos engraçados e pitorescos do universo dos usuários de maconha, a planta mais polêmica do planeta. Inclui glossário de termos e expressões canábicos. O Ministério da Saúde adverte: o consumo excessivo deste livro após o almoço dá um bode desgraçado.
Blues da Vida Crônica (Crônicas) Sociedade, relacionamentos, arte, internet, drogas, futebol, política, misticismo, Natureza, erotismo, mulher... O velho olhar kelmérico, agudo e bem-humorado, está de volta nesta seleção de 46 crônicas, boa parte publicada em sua coluna de jornal. Elas compõem o melhor da produção de crônicas do autor entre 2003 e 2006.
A Arte Zen de Tanger Caranguejos (Crônicas) Em sua maior parte publicados em jornais, revistas e sites na Internet, as crônicas e artigos deste livro trazem o sagrado e o profano tão típicos do estilo de Ricardo Kelmer. Feito caranguejos tangidos na mesma direção, aqui estão reunidos os vários Ricardos: o cronista gozador, o observador irônico e debochado dos costumes, o ousado viajante dos mistérios e também o pensador inquieto a desenrolar o novelo infinito das possibilidades filosóficas e existenciais.
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PALESTRAS
para colégios, faculdades e empresas O DESPERTAR DO HERÓI A jornada sagrada de autorrealização nos mitos, no cinema e em nossas vidas
RK fala de Mitologia, Psicologia, Autoconhecimento e Realização Pessoal em linguagem simples e descontraída para mostrar que o mito da Jornada do Herói, presente nas histórias de tantas culturas, é uma metáfora do processo de autorrealização, a jornada individual de todos nós rumo à nossa essência mais verdadeira e profunda. Podemos ver esse mito em lendas, livros e filmes, como
se fosse um precioso segredo – que muitos infelizmente esquecem e assim se perdem de sua essência mais legítima. Assim como os heróis dos mitos e do cinema, cada um de nós está predestinado a se realizar verdadeiramente e, com isso, tornar-se o grande Herói de sua própria vida. Mas antes é preciso, como o herói de Matrix, despertar, distinguir-se da massa, conhecer-se e assumir a tarefa que dará sentido à existência. FILME DE APOIO: Matrix Esta palestra é um resumo do livro "Matrix e o despertar do herói". ESCRITOR DO SÉCULO 21 Livros e mercado literário na era da internet
Para pessoas interessadas em publicar seus livros ou para aqueles que desejam seguir a carreira literária. RK mostra sua experiência de 20 anos com jornais, revistas, sites e blogs, com as editoras que teve e como autor independente. O objetivo não é ensinar a escrever mas mostrar como é o ofício de escritor e que é possível ao autor, mesmo sem ter uma editora, publicar seus livros e conquistar seu próprio público.
ASSUNTOS: Vantagens e dificuldades da carreira - Mercado editorial oficial e alternativo - Alternativas de trabalho - Gráfica tradicional e gráfica rápida, custos, tiragens - Apoios e patrocínios - Divulgação, distribuição e venda - Internet como ferramenta de venda, divulgação e contato com leitores. Esta palestra é um resumo do livro Guia do Escritor Independente. Este tema também pode ser desenvolvido em forma de oficina.
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