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MATRICIAMENTO EM SAÚDE MENTAL E A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: ASSISTÊNCIA A PESSOA EM SOFRIMENTO PSÍQUICO. Edimilson Lima [email protected] CES/UC Portugal i UERJ Brasil RESUMO O presente artigo tem por objetivo apresentar a prática do matriciamento em saúde mental articulado à estratégia saúde da família realizada na cidade do Rio de Janeiro Brasil. O objetivo do matriciamento é oferecer aos profissionais da saúde da família retaguarda especializada na reorganização do trabalho em saúde. Tal orientação possui como metodologia a gestão de cuidado em saúde com base nos princípios do SUS, atenção básica/ESF e da Saúde Mental. A equipe valoriza a prática da clínica ampliada que ocorre através de discussão de casos na elaboração de ações clínicas e psicossociais como proposta de um projeto terapêutico para o usuário. Cada caso é identificado e apresentado pela equipe de referência ao matriciador em saúde mental para discussão e criação de estratégias de conduta clínica. Nesse contexto, a clínica ampliada possibilita a integração entre distintas especialidades e profissões incluindo a figura do agente comunitário de saúde no processo de cuidado a pessoa em sofrimento psíquico. A consulta conjunta, a visita domiciliar e as atividades em grupo (grupo de mães, idosos, adolescentes…) fazem parte das principais atividades da prática do matriciamento. É o cuidado compartilhado através da prática inter e multiprofissional. Como efeito de resultado: a desburocratização no processo de encaminhamentos no trabalho de saúde, ampliação do vínculo entre equipe e o usuário além da pactuação entre os serviços e redes no território. Como conclusão: essa prática favorece a avaliação de riscos e vulnerabilidade de casos graves propondo procedimentos e cuidados em saúde mental, conforme recomenda a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Palavras-chave: matriciamento; estratégia saúde da família; saúde mental.

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MATRICIAMENTO EM SAÚDE MENTAL E A ESTRATÉGIA SAÚDE DA

FAMÍLIA: ASSISTÊNCIA A PESSOA EM SOFRIMENTO PSÍQUICO.

Edimilson Lima

[email protected]

CES/UC Portugali

UERJ Brasil

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo apresentar a prática do matriciamento em

saúde mental articulado à estratégia saúde da família realizada na cidade do Rio de

Janeiro – Brasil. O objetivo do matriciamento é oferecer aos profissionais da saúde da

família retaguarda especializada na reorganização do trabalho em saúde. Tal orientação

possui como metodologia a gestão de cuidado em saúde com base nos princípios do

SUS, atenção básica/ESF e da Saúde Mental. A equipe valoriza a prática da clínica

ampliada que ocorre através de discussão de casos na elaboração de ações clínicas e

psicossociais como proposta de um projeto terapêutico para o usuário. Cada caso é

identificado e apresentado pela equipe de referência ao matriciador em saúde mental

para discussão e criação de estratégias de conduta clínica. Nesse contexto, a clínica

ampliada possibilita a integração entre distintas especialidades e profissões incluindo a

figura do agente comunitário de saúde no processo de cuidado a pessoa em sofrimento

psíquico. A consulta conjunta, a visita domiciliar e as atividades em grupo (grupo de

mães, idosos, adolescentes…) fazem parte das principais atividades da prática do

matriciamento. É o cuidado compartilhado através da prática inter e multiprofissional.

Como efeito de resultado: a desburocratização no processo de encaminhamentos no

trabalho de saúde, ampliação do vínculo entre equipe e o usuário além da pactuação

entre os serviços e redes no território. Como conclusão: essa prática favorece a

avaliação de riscos e vulnerabilidade de casos graves propondo procedimentos e

cuidados em saúde mental, conforme recomenda a Reforma Psiquiátrica no Brasil.

Palavras-chave: matriciamento; estratégia saúde da família; saúde mental.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo apresentar a prática do matriciamento em

saúde mental articulada à estratégia saúde da família realizada na cidade do Rio de

Janeiro – Brasil. O matriciamento é uma metodologia de trabalho de cuidado em saúde

que visa oferecer aos profissionais da saúde da família retaguarda especializada na

reorganização do trabalho em saúde. Tal orientação possui a gestão de cuidado em

saúde com base nos princípios do SUS, atenção básica/ESF e da Saúde Mental.

Ressalto que, este artigo resulta da investigação de doutoramento em curso que

se baseia na minha experiência como matriciador e observações como pesquisador

durante o meu curso de doutorado no campo da saúde mental e políticas públicas no

Brasil.

Apesar de muitas contribuições teóricas sobre os temas doença mental e as

práticas médicas, ainda, há muitas indagações que permeiam esses assuntos. Estes se

entrelaçam em processos dinâmicos socioculturais que desencadeiam, constantemente,

questões que necessitam de atenção no campo científico e, principalmente, na prática do

cuidado a pessoa em sofrimento psíquico (Amarante, 2007).

É possível observar, por meio da literatura (Canguilhem, 1966; Castel, 1978;

Birman, 1978, 1980; Basaglia, 1979, 1985; Rotterdam, 1985; Costa, 1989, 1987, 1973,

2007; Foucault, 1988, 1972, 1963; Szasz, 1974; Duarte, 1987; Duarte Junior, 1987;

Porter, 1991; Jodelet, 1989; Ewald, 1993; Amarante, 1995, 1998, 2007; Yasui, 2006;

Bezerra Junior, 2007; Vasconcelos, 2008), que tem sido frequente (e de longa data) a

preocupação em analisar, de forma crítica, a assistência a pessoa com doença mental.

São preocupações relacionadas ao método, formulações teóricas, conceitos,

pensamentos, sua história e aplicações na prática na atenção a essa população. O foco

desse artigo é a preocupação com a prática desse cuidado e os seus efeitos na

visualização da relação do sujeito com as práticas médicas.

Nesse propósito, a luta antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica no Brasil

apontaram para novas formas, perspectivas e modelos na atenção à pessoa com doença

mental. Além disso, favoreceram o desenvolvimento de diversos estudos sobre o tema.

Com relação a isso, citamos Foucault que foi (e ainda é) uma referência por ter

desenvolvido, no âmbito acadêmico, uma ampla discussão sobre o tema loucura. São

discussões teóricas que contribuíram (e contribuem) para o fortalecimento da luta

antimanicomial e do estabelecimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil no cotidiano.

Em seu clássico “Historie de La Folie à l’Âge Classique”, Foucault (1972: 20) já se

inquietava com questões sobre a loucura como: “Quel est donc ce pouvoir de

fascination, cette fois, est exercé par les images de la folie?”. Essa e outras perguntas,

que o autor se fez, o levaram a “viajar” pela história propondo uma forte discussão

sobre a loucura e a sociedade.

Conforme dito anteriormente, apesar da ampla abordagem acadêmica sobre o

tema da doença mental, é possível observar a necessidade de novos estudos para atender

às diversas demandas da contemporaneidade e refletir a prática do cuidado a pessoa em

sofrimento psíquico, ou seja, o doente mental. No campo da saúde mental isso pode ser

sustentado pelas reivindicações do movimento pela Reforma Psiquiátrica, por meio da

Lei Federal 10.216/ 2001, que orienta sobre a atenção e assistência a pessoa em

sofrimento psíquico no Brasil. Essa orientação tem como norte o processo contínuo de

desinstitucionalização e desospitalização em instituições psiquiátricas das pessoas com

transtorno mental que passam por internações e foram institucionalizadas sendo

afastadas do convívio social. Para isso foram criados os Centros de Atenção

Psicossocial1 – CAPS.

A partir disso, pensar a saúde, hoje, significa rever critica e analiticamente as

práticas de cuidado que deveriam, também, voltar-se para intervenções que

potencializem o coletivo. Observa-se que o modelo biomédico não consegue responder

a essa demanda do coletivo da sociedade atual por focar no indivíduo e na doença.

Com isso, percebe-se que esse modelo favorece a dicotomias como dualismo entre

doença / saúde e normal / anormal em suas produções culturais no cotidiano.

Esse tradicionalismo traz conseqüências comprometedoras no que diz respeito

aos conceitos de “saúde” e “doença” que constituem à especialização, tecnicização e

padronização centradas no sujeito doente sem valorizar o coletivo em suas práticas.

Tal perspectiva faz repensar novos modelos de atenção em saúde com parâmetros,

1 Instituições públicas brasileira de assistência às pessoas com transtorno mental. Sistema que substitui o

modelo hospitalocêntrico e asilar (antigos hospícios e manicômios). São unidades de saúde

locais/regionalizadas que contam com uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem

atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar. É formado

por equipes multiprofissionais constituindo-se também em porta de entrada da rede de serviços para as

ações relativas à saúde mental.

sentidos e significados que não estejam pactuados com o modelo dominante da cultura

médica.

Entretanto, o modelo biomédico, ainda, é combatido por se fazer presente em

algumas práticas em saúde. Assim, a Estratégia Saúde da Família é considerada uma das

formas em atenção básica que, assim como a saúde mental, busca resistir e reverter esse

modelo que é centrado na doença e no tratamento. Isso remete observar que a atenção

básica possui estratégias de assistência em saúde que se aproximam dos princípios da

Reforma Psiquiátrica, que preconiza a desospitalização e a humanização dos serviços

prestados. E, além disso, ambos priorizam o coletivo e a atenção comunitária por meio

do vínculo territorial.

Com relação à Saúde Mental, Amarante (2007: 15) assinala que “poucos campos

de conhecimento e atuação na saúde são tão vigorosamente complexos, plurais,

intersetoriais e com tanta transversalidade de saberes”. O campo da saúde mental tem

a especificidade de ampliar o seu “universo” de saberes por meio de diversas outras

disciplinas que se integram e combinam. São saberes da psicologia, psicanálise,

psiquiatria, sociologia, antropologia entre outros.

A equipe de saúde mental, atua com base nos princípios fundamentais do

Sistema Único de Saúde – SUS e da Reforma Psiquiátrica. Ou seja, o trabalho é

realizado com a lógica da desinstitucionalização, com ênfase do vínculo, engajado no

cotidiano da comunidade e incorporada com ações de promoção de saúde no viés da

melhoria da qualidade de vida da pessoa.

É nessa perspectiva que se fundamenta a prática do matriciamento em saúde

mental. Trata-se da prática do cuidado que busca através de estragégias comunitárias o

fortalecimento da interação no trabalho dos profissionais de saúde mental e dos

profissionais da saúde da família. Tal busca faz parte do processo e percurso da

Reforma Psiquiátrica no Brasil.

CONTEXTO ATUAL

O contexto que se apresenta no Brasil mostra a necessidade da ampliação de

espaços de reflexão acadêmica sobre os aspectos socioculturais que envolvem a

temática do imaginário social da doença mental2 na prática integrada entre a Saúde

Mental e a Estratégia da Saúde da Família. Cabe ressaltar que em alguns países onde

ocorreram mudanças semelhantes na assistência a pessoa em sofrimento psíquico, como

no Brasil, passaram a realizar pesquisas científicas que apontam a família como foco de

preocupação.

Tal preocupação é analisada pelo viés dos fatos psicossociais na relação dos

pacientes com sofrimento psíquico e seus familiares. São pesquisas que, segundo

literatura internacional, avaliam a sobrecarga dos familiares no cuidado a pessoa em

sofrimento psíquico no processo de desinstitucionalização e suas implicações

socioculturais. Para Portugal (2011), é preciso repensar a natureza dos laços sociais que

ligam o indivíduo e a família. A autora leva essa discussão para o campo da saúde

mental trazendo os atores sociais envolvidos nesse contexto. A reflexão é acompanhada

por questões como qual o papel que cabe à família na produção de bem-estar? Qual o

papel dos laços de parentesco?

Em sua discussão sobre a desinstitucionalização na assistência as pessoas com

transtorno mental em Portugal, Portugal e Nogueira (2010), problematizam essa questão

afirmando a necessidade de incluir a família em estratégias na atenção e cuidado nas

práticas em saúde. Em sua concepção, a família é foco de preocupação na reorganização

da assistência ao usuário de saúde mental no processo de desinstitucionalização.

Na tentativa de atender a essa e outras demandas, no Brasil, a prática de

matriciamento em saúde mental é um novo modo de assistir a pessoa em sofrimento

psíquico e sua família em uma perspectiva de cuidado psicossocial, bem-estar e atenção

integral em saúde. Trata-se de um novo modo de produzir saúde proposto por Campos

(1999) que tem estruturado no Brasil o tipo de cuidado colaborativo entre saúde mental

e a atenção primária.

No Brasil, em 2008, a Portaria 154/2008, do Ministério da Saúde, cria o Núcleo

de Apoio à Saúde da Família – NASF formado por equipe multiprofissional em saúde

que oferece apoio técnico especializado às equipes de saúde da família.

2 Sobre esse assunto ler Lima, E. (2009).

Tal portaria estabelece estratégias de ações em saúde pública incluindo os

profissionais de saúde mental como psicólogos e psiquiatras para realizar assistência às

pessoas com transtorno mental nas áreas territoriais de responsabilidade das equipes da

saúde da família.

Essa nova proposta integradora, respaldada pela Portaria 154/2008, visa

transformar a lógica tradicional dos sistemas de saúde. Tal proposta vai ao encontro do

que preconiza a Lei 10.216/2001 da Reforma Psiquiátrica no Brasil. A partir disso, fica

a questão: quais são, de fato, os efeitos práticos de novo modelo de cuidado em saúde?

DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO DE MATRICIAMENTO EM

SAÚDE MENTAL: A PRÁTICA DO CUIDADO.

A Estratégia Saúde da Família (ESF) busca formas para a reorganização do

sistema de serviços em saúde segundo a Política Nacional de Atenção Primária em

Saúde e o Sistema Único de Saúde - SUS. São estratégias com práticas comunitárias

que visam facilitar uma maior acessibilidade à saúde, por parte das famílias, em um

determinado território delimitado. Os médicos, as equipes de enfermagem, dentistas e

os agentes comunitários de saúde são os atores desse trabalho para dinamizar a

assistência em saúde às famílias.

Os matriciadores em saúde mental são em sua maioria psicólogos e/ou

psiquiatras que compoem a equipe do Nasf, entre outros profissionais de especialidades

diferentes, que estabelecem uma rotina de trabalho articulado com os profissionais da

saúde da família. Essa rotina é caracterizada pelos diversos tipos de atendimento a

pessoa em sofrimento psíquico e suas respectivas famílias que serão descritas mais

adiante.

Cabe ressaltar que, o matriciamento valoriza a prática do cuidado compartilhado

que é a construção de espaços coletivos de cuidado onde são feitos estudos de casos das

informações e as tomadas das decisões. Nestes espaços estão incluídos os profissionais

da assistência com paciente e sua família (HUMANIZA SUS, 2006). É através desse

espaço onde ocorrem as discussões dos casos para a elaboração de ações clínicas e

psicossociais. Essa ação objetiva a elaboração de um projeto terapêutico singular3 para

o paciente. Nessa mesma lógica, a clínica ampliada é o trabalho clínico que visa ao

sujeito e à doença, à família e ao contexto, tendo como objetivo produzir saúde e

aumentar a autonomia do sujeito, da família e da comunidade. Utiliza como meios de

trabalho: a integração da equipe multiprofissional, a adscrição de clientela e a

construção de vínculo, a elaboração de projeto terapêutico singular conforme a

vulnerabilidade de cada caso, e a ampliação dos recursos de intervenção sobre o

processo saúde-doença (HUMANIZA SUS, 2006). A clínica ampliada possibilita a

integração entre distintas especialidades e profissões incluindo a figura do agente

comunitário de saúde no processo de cuidado da pessoa em sofrimento psíquico.

O matriciamento em saúde mental visa assistir e acolher junto com a equipe da

saúde da família, dentro do território adscrito, pessoas com sofrimento psíquico a partir

da lógica do cuidado compartilhado e da clínica ampliada. São ações de cuidado,

prevenção e promoção em saúde em uma estratégia de interação entre as equipes da

saúde da família e da saúde mental.

São ações de matriciamento em saúde mental:

As atividades do matriciador se constituem em:

a) Apresentar as equipes de saúde da família o que é o matriciamento e os

atores sociais envolvidos no processo de assistência a pessoa em sofrimento

psíquico;

b) Oportunizar espaços de discussões/reflexões sobre o que doença mental a

partir de suas representações e imaginários sociais;

c) Participar de reuniões das equipes para conhecer não só os profissionais

envolvidos, mas o território de ação e demandas de assistência;

d) Receber dos profissionais as demandas de saúde mental e criar estratégias

de cuidado a partir da lógica do cuidado compartilhado e da clínica ampliada

através de estudo de casos com a equipe responsável em acompanhar a

3 É um dispositivo que tem como objetivo traçar uma estratégia de intervenção para o usuário levando-se

em conta os recursos da equipe, do território, da família e do próprio sujeito (Onocko & Gama, 2008). É

um instrumento de gestão conjunta de cuidado no processo terapêutico em casos de vulnerabilidade.

família; realizar atendimento em conjunto com médicos, dentistas e

enfermeiros; fazer visita domiciliar com o profissional de referência do caso;

propor e se incorcorar nas atividades diversas de grupo onde estão inseridos

os pacientes de saúde mental e suas famílias; realizar atividades em escolas a

partir de demanda do serviço de ensino público ou privado, e

e) Articular e facilitar a rede de serviços comunitários promovendo a prática

intersetorial. Exemplos: Aproximar a unidade de saúde com o serviço dos

Centros de atenção psicossocial, as unidades de assistência social, escolas

entre outros serviços públicos ou não.

O grupo como ferramenta de cuidado a pessoa em sofrimento psíquico no coletivo:

A experiência com as “Rodas de Conversa” é um método muito usado nos

últimos anos nos processos de leitura e intervenção comunitária (Nascimento & Silva,

2009). São procedimentos que consistem na participação coletiva de debates acerca de

uma temática através de espaço de diálogo onde as pessoas expressam seus sentimentos

e opiniões sobre o assunto em questão. Tem como objetivo estimular nos participantes a

troca de experiências e a socialização de saberes (científicos e do senso comum)

visando a construção de autonomia no que diz respeito à produção de conhecimento e

elaboração de conflitos/problematização. Essa metodologia toma o coletivo como objeto

de análise e proporciona aos participantes a conscientização/compreensão da própria

realidade e, ainda, ajuda no sentido de desenvolver a busca da transformação dessa

realidade (Furtado & Furtado, 2000). Essa atividade ocorre a cada quinze dias, dentro

do planejamento da rotina da unidade de saúde.

É um grupo aberto, que tem duração de no máximo duas horas, para receber

pacientes em sofrimento psíquico e suas famílias que já tinham passado por um estudo

de casos e convidados a participar do grupo. Além desses, participam os profissionais

da unidade para estimular e dinamizar o debate ou discussão de um determinado tema.

Os temas são os mais diversos como: relação pais e filhos; depressão, o uso abusivo de

medicamentos com ou sem orientação médica. Os temas abordados surgem da demanda

do grupo nas entrevistas individuais que ocorrem antes da realização da Roda de

Conversa.

As questões levantadas pelo matriciador e/ou pela equipe da unidade precisam

ter um direcionamento para produzir algum efeito terapêutico nas pessoas envolvidas.

E, por vezes, até mesmo para os profissionais envolvidos. O matriciador tem o papel de

ser capaz de instaurar e alimentar o debate entre os participantes, sem que isso

equivalha à preocupação com a formação de consensos. Algumas opiniões causam mais

impacto e polêmica que outras, gerando reações que ora convergem ora divergem. O

importante é que todos tenham possibilidades iguais de apresentar suas concepções e

que elas sejam discutidas e refinadas. Ao final de cada roda de conversa é feita uma

avaliação com o grupo e um feedback é dado, pelo matriciador e o profissional da saúde

da família, como forma de expressão do que foi produzido naquele momento.

Cabe salientar que, as reações são as mais diversas. Há pessoas que expressam

seus sentimentos de pertença a aquele grupo por conseguirem “superar” algo que as

incomodam ou aquelas que se sentiam resistentes por não conseguirem verbalizar os

seus sentimentos e angústias dentro do grupo. Para esses últimos são oferecidos espaços

de atendimento individuais respeitando a história da pessoa. Esses atendimentos se dão

com a escuta do matriciador e do profissional de referência (médico ou enfermeiro) do

paciente em sofrimento psíquico e/ou da sua família.

O trabalho com pequenos grupos é um recurso fundamental nas práticas de

saúde desenvolvidas na atenção primária. Além de proporcionar um espaço de

assistência em saúde pública, é também um lugar de construção e formulação de

conhecimento (Chiaverini, 2011).

Os efeitos da prática do matriciamento são aqueles construídos no trabalho

articulado entre o matriciador de saúde mental e a equipe da saúde da família:

A desburocratização do serviço de encaminhamento entre setores e serviços

de saúde que favorece uma maior acessibilidade do paciente à assistência em

saúde pública;

Possibilidade de estimular no profissional da saúde da família uma escuta

atenta e qualificada como forma de cuidado a pessoa em sofrimento

psíquico;

Ampliação e o fortalecimento de vínculo terapêutico e territorial entre o

paciente/família e a equipe da assistência, fortalecimento das prática

coletivas;

Identificação de casos graves de doença mental em comunidades sem

assistência;

Reavaliar o modelo biomédico e fortalecer as práticas da

desinstitucionalização dos casos de transtorno mental através das práticas

comunitárias e valorização do ambiente famíliar;

Ampliação da possibilidade da transformação do imaginário social da doença

mental.

É com base na Lei 10.216/2001 e na Portaria 154/2008 que as ações do

matriciamento em saúde mental se constituem. Mas, isso não é garantia da total

realização e sucesso da prática do matriciamento. No Rio de Janeiro, esse trabalho ainda

é recente, pois teve o seu início em 2010. Cabe a esse artigo expor um trabalho que

ainda está em constituição e formatação no cotidiano.

Cabe a esse artigo, relatar não só as conquistas dessa integração, mas também,

alguns dos impasses e desafios desse modelo de intervenção em saúde pública.

Nesse cenário, situa-se como um desafio para o trabalho de matriciamento em

Saúde Mental o de fomentar a articulação dos princípios da atenção básica com as

propostas da atenção psicossocial, favorecendo o debate democrático sobre as práticas

em saúde mental e o trabalho em equipe multidisciplinar e intersetorial na atenção

primária a partir dos casos acompanhados.

CONCLUSÃO

Conforme dito nesse artigo, o matriciamento possui como metodologia a ‘gestão

de cuidado em saúde’ com base nos princípios do SUS que orientam os serviços de

atenção básica (ESF) e de saúde mental, tendo como principal objetivo o de oferecer às

equipes de Saúde da Família retaguarda especializada para reorganização do trabalho na

saúde pública. Trata-se de uma metodologia de trabalho que visa às responsabilidades

de condução e de ampliação de possibilidades de vínculos entre o profissional e o

usuário por meio de um ‘rearranjo organizacional’ no qual uma equipe, e não apenas um

profissional especialista, torna-se referência para os casos. Assim, reforçando o poder de

gestão da equipe multidisciplinar pela valorização das consultas conjuntas, das visitas

domiciliares e das discussões coletivas dos casos. Tal perspectiva é fundada a partir da

lógica do cuidado compartilhado e da clínica ampliada.

Em relação ao campo da atenção psicossocial, destaca-se a contribuição do

matriciamento, como metodologia de trabalho em equipe por favorecer a construção

compartilhada de diretrizes clínica, sanitárias e intersetoriais, sendo esta uma via de

ampliação dos procedimentos e cuidados em saúde mental em torno dos casos. Além

disso, pode favorecer a avaliação de riscos e vulnerabilidade dos casos graves propondo

procedimentos de cuidado em saúde mental, conforme preconiza a reforma psiquiátrica

no Brasil.

A função do matriciador de saúde mental é configurada pelo suporte técnico e

clínico dirigido às equipes de referência da estratégia de saúde da família na condução

de casos em sofrimento psíquico, contribuindo, ainda, com a complexa tarefa de

ordenamento e de assistência dos casos referidos aos serviços de saúde mental. O apoio

matricial inserido nessa lógica de trabalho em rede se destaca, então, pelo viés de sua

contribuição no acompanhamento psicossocial, na avaliação de um processo terapêutico

e na transmissão do modo singular em que cada usuário demanda cuidados.

Nessa perspectiva, as ações do matriciamento, valorizam o coletivo respeitando

os processos de subjetividade e suas produções de cuidado. Nesse espaço se apresentam

conquistas, impasses e desafios, na transformação no cuidado a pessoa em sofrimento

psíquico e sua família no percurso da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

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i Agradeço a Professora Doutora Sílvia Portugal da FEUC/CES - Universidade de Coimbra pela leitura

atenta do texto com comentários e sugestões preciosas. Os possíveis problemas que permanecem nesse

artigo são da minha inteira responsabilidade.