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  • Matria: literaturaAssunto: TropicalismoProf. Ibir Costa

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    TropicalismoO movimento Tropicalista ou da Tropiclia teve a sua origem sustentada por quatro marcos inaugurais, todos acontecidos em 1967: a exposio Tropiclia, manifestao ambiental, de Hlio Oiticica, no MAM do Rio de Janeiro, em abril; a estreia do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, em maio; a estreia da pea O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, encenada em setembro pelo Grupo Oficina, sob a direo de Jos Celso Martinez Corra e, as participaes de Caetano Veloso e Gilberto Gil no III Festival da Record, em outubro, interpretando respectivamente Alegria, Alegria e Domingo no Parque, que traziam uma nova linguagem e inaugurava a guitarra eltrica na MPB.

    Se na arte o movimento tropicalista reflete uma transformao essencial nos critrios de produo e no consumo das obras de arte, situando o artista no mundo e, principalmente, no Brasil, na msica a sntese da poesia, a alegoria e carnavalizao de um Brasil culturalmente indomvel, delimitando as tnues tendncias da MPB, mesclando Bossa Nova e canes folclricas, a contestao social e a cafonice, o candombl e o catolicismo.

    Se nas outras esferas artsticas os manifestos da Tropiclia (Tropiclia, de Helio Oiticica nas artes plsticas, Terra em Transe de Glauber Rocha no cinema, Pan Amrica livro de Jos Agripino de Paula na literatura) eram uma realidade, faltava um manifesto contundente na MPB. Este manifesto foi elaborado em maio de 1968, quando foi gravado Tropiclia ou Panis et Circencis, um lbum histrico, que reunia as vozes de Caetano Veloso, Gal Costa, Nara Leo, Gilberto Gil e Os Mutantes, associadas poesia de Torquato Neto e de Capinam, ao som de Tom Z e genial regncia musical de Rogrio Duprat. Doze canes sem ligaes estticas, mas arrematados em um repertrio feito para traduzir o movimento tropicalista sonoramente, deram um tom de contestao jamais visto, mostrando msicas que se fincaram no mago da MPB, como a urbana Baby. Doze canes e estava registrado um dos mais geniais lbuns da MPB, amado ou odiado, mas jamais um consenso. Era a voz da Tropiclia a ecoar pelos quatro cantos do Brasil pr-AI 5.

    Quando Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nara Leo, Gal Costa, Torquato Neto, Capinam, Guilherme Arajo, Os Mutantes, Jlio Medaglia e Tom Z juntaram-se para a gravao de um disco, era a concretizao de um novo estilo de msica que se fazia no Brasil, adquirindo a visibilidade de um manifesto musical.

    A irreverncia comea pela capa do lbum. Elaborada pelo artista plstico Rubens Gerchman, sob fotografia de Oliver Perroy, a imagem final, feita na casa do fotgrafo, teve nos adereos alegricos uma criao coletiva, com todos os envolvidos opinando.

    Imaginada como uma pardia do lbum dos Beatles, Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, a capa adquiriu um formato final do underground tropicalista, coberta de alegorias do Brasil. Se percorrermos um olhar rpido, encontramos o grupo maneira dos retratos patriarcais tradicionais. Caetano Veloso aparece ladeado pelos Mutantes (Srgio Dias, Rita Lee e Arnaldo Batista), que trazem uma expresso sria e carrancuda, empunhando as guitarras, smbolos de uma nova musicalidade. O baiano, de olhar atrevido e cabeleira a tomar conta, traz na mo o retrato de Nara Leo, que participa do disco, mas no da fotografia da capa. Na extrema direita dos Mutantes aparece Tom Z, de terno e mala de couro na mo, representando a alegoria da migrao nordestina. Sentados lado a lado, aparecem Rogrio Duprat, que segura

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    um penico na mo, como se segurasse uma xcara, significa Duchamp; Gal Costa e Torquato Neto, ela com penteado modesto, ele com uma boina, ambos representam o casal recatado do interior. Finalmente, frente de todos, est um ostensivo Gilberto Gil vestido de toga com cores tropicais, segurando o retrato da formatura do curso normal de Capinam.

    Feito o retrato, ele emoldurado por faixas compostas pelas cores nacionais, verde, azul e amarelo, dando a brasilidade necessria arte final.

    Aps visitarmos a emblemtica fotografia, vamos encontrar na contra capa do lbum o texto de um suposto roteiro cinematogrfico feito por Caetano Veloso, em que as personagens so os prprios tropicalistas a travarem um dilogo irreverente e sem nexo. No dilogo surgem Celly Campelo, Joo Gilberto e Pixinguinha, entre muitas referncias dissonantes.

    Gravado em maio de 1968, o disco seria lanado entre julho e agosto daquele ano. Seguindo a concepo de Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, a estrutura musical o de uma polifonia, ou longa sute, as faixas sucedem-se sem haver interrupes, com a abertura recapitulada no final. Cada cano funciona como se dialogasse uma com a outra, mesclando no final uma metfora alegrica do Brasil. O seu protesto como mensagem comportamental, no politicamente engajado em movimentos da poca, no h a demarcao lrica da Bossa Nova, muito menos o protesto pico das msicas contra o sistema poltico vigente e opresso da ditadura instaurada.

    O lbum inicia-se com a faixa Miserere Nbis (Gilberto Gil Capinam), interpretada por Gilberto Gil. O intrito traz um solo de rgo de igreja com o tilintar de pequenos sinos, que do passagem para o violo, perdendo-se do sacro inicial ao profano pico da voz de Gilberto Gil. A cano quase arrancada de um momento de silncio, se no traz o protesto contundente e declarado das msicas de Geraldo Vandr, est longe de no ser uma crtica fora bruta imposta pela ditadura militar. O cantor assume um canto em ritmo de marcha militar, repetindo a invocao no sempre ser, iai / no sempre sero ao final de cada estrofe, numa metfora ao imobilismo da situao poltica vivida e de nele intervir. A cano termina com tiros de canho abafados, silenciando o protesto.

    A cafonice, diluda nos arranjos inovadores de vrias canes, escancara-se na segunda faixa, Corao Materno (Vicente Celestino). A msica considerada de mau gosto por muitos crticos, contrasta com a modernidade do som genuno que trazia a Tropiclia, realada em Baby. Aqui a musicalidade do Brasil rural era cantada por Caetano Veloso. O arranjo de Rogrio Duprat confunde-se com a verso original de Vicente Celestino, assim como a prpria interpretao de Caetano Veloso. Inicia-se com violoncelos e tons graves, em um clima de opereta dramtica. Em tom intimista, sempre apontando para o pice dramtico, Caetano Veloso no perde o lirismo emprestado pela orquestra. Ao contrrio do que disseram os puritanos defensores da Tropiclia, para minimizar o preconceito dos crticos contra a msica, Caetano Veloso no escolheu esta cano como uma pardia e para ressaltar o grotesco de uma msica tida como representante da expresso rural brasileira, mas sim como uma homenagem a Vicente Celestino. Caetano Veloso gosta da cano, tanto que voltaria a cant-la no erudito recital que deu em homenagem a Federico Fellini e Giulietta Masina, em 1999, na Itlia, registrado no lbum Omaggio a Federico e Giulietta. Aqui, um amadurecido Caetano Veloso volta s origens, dando um aspecto de trova medieval cano de Vicente Celestino.

    A proposta tropicalista comea a esquentar na terceira faixa, Panis et Circencis (Gilberto Gil Caetano Veloso), interpretada pelo grupo Os Mutantes. A letra da cano sugere a ruptura entre o cotidiano secular e o desejo de liberdade, o contraste entre o nascer e o morrer, no

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    s dos costumes e tradies, como dos sonhos e das utopias juvenis. Gilberto Gil e Caetano Veloso criam aqui um preldio do que seria a parceria dos dois que culminaria com Divino, Maravilhoso. Os costumes esto presos na sala de jantar, assim como a passagem para a liberdade que se quer fazer alcanar. A cano inicia-se com o coro da banda, em uma estrutura harmnica com uma sutil dissonncia. Por fim a cano evolui para o psicodelismo absoluto. De repetente a msica interrompida, sendo recriado um jantar, ouve-se vozes mesa, rudos de talheres e a valsa Danbio Azul ao fundo. O psicodlico crescente, com rudos de copos a espatifarem-se, numa metfora do rompimento com os costumes. A msica encerra-se com um corte sbito. Sua eternidade na MPB atingiria vrios intrpretes ao longo das quatro dcadas que se passaram desde o seu lanamento. Mas nenhuma interpretao alcanaria o clima que esta verso original de Os Mutantes alcanou.

    Lindonia (Gilberto Gil Caetano Veloso), uma cano feita pelos tropicalistas para a musa da Bossa Nova, Nara Leo. A voz contida e educada de Nara Leo traz o resqucio suave da Bossa Nova, em contraste com este bolero melanclico, inspirado em um quadro de Rubens Gerchman, Lindonia, a Gioconda do Subrbio. Nara Leo empresta a delicadeza da sua voz aos sonhos romnticos de uma jovem do subrbio, solteira, empregada domstica, que se deixa embalar pelas fotonovelas que l, pelo rdio que ouve e pela televiso que v. As imagens violentas da letra sobrepem-se ao sentimentalismo romntico que sugere a personagem. No mundo de Lindonia no h alternativas, h um labirinto onrico de uma fuga da realidade e de um mundo cruelmente claustrofbico. Um dos grandes momentos do lbum.

    Parque Industrial (Tom Z), continua a temtica do urbanismo cubista do tropicalismo. interpretada por Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso e Os Mutantes. A inspirao do ttulo de um livro homnimo de Patrcia Galvo, a Pagu, escritora modernista e agitadora cultural das dcadas de 1920 e 1930. A letra uma crtica ao ufanismo do desenvolvimento e aos fantoches por ele gerado, em um discurso de deboche e ironia tpicos do universo mimetizado da cano de Tom Z, um redemoinho na poeira da natureza urbanizada. A cano inicia com metais a reproduzir os timbres de uma banda de coreto. Intervm as vozes de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa separadamente, at que entra Tom Z a trazer uma entonao ufanista. O refro Made in Brazil reala o tom de pardia da cano, que mescla o que se vem de fora com o que se tem dentro do pas. A m