mateus parte 2

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Parte II

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Page 1: Mateus   parte 2

Parte II

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Evangelho de Mateus

Parte 2

Silvio Dutra

DEZ/2015

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A474 Alves, Silvio Dutra Mateus./ Silvio Dutra Alves. – Rio de Janeiro, 2015. 700p.; 14,8x21cm 1. Teologia. 2. Evangelho. 3. Comentário Bíblico I. Título.

CDD 230.226

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Sumário Mateus 6........................................................ 5

Mateus 7........................................................ 113

Mateus 8........................................................ 181

Mateus 9........................................................ 193

Mateus 10...................................................... 208

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A Terceira Petição na Oração do Senhor

“Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu.” - Mateus 6: 10

O que significa vontade de Deus?

Primeiro a vontade de Deus que está em segredo e que não pode ser conhecida, e que se encontra presa à sua própria essência, e que nenhum homem ou anjo pode conhecer. Em segundo lugar significa a vontade de Deus que Ele revelou. Esta vontade está registrada na Bíblia.

Por que nós oramos seja feita a tua vontade?

Nós oramos por duas razões: primeiro para uma obediência ativa em que nós fazemos aquilo que Deus nos ordena; e segundo para uma obediência passiva, pela qual nós nos

submetemos voluntária e pacientemente às circunstâncias e condições a que Deus nos inflige ou sujeita.

Mas antes de obedecer a Deus nós temos que conhecer a sua vontade. O conhecimento é o olho que dirige o pé da obediência.

Entretanto, o conhecimento que não se traduz em obediência não é de qualquer valor (I Cor 13.2). Ter somente o conhecimento da vontade de Deus e nada mais, é ineficaz porque não torna melhor o coração. O conhecimento isolado é como o sol de inverno que não tem calor suficiente para aquecer os afetos ou purificar a consciência. Judas teve uma grande iluminação e conheceu a vontade de Deus, mas era um traidor.

O conhecer sem o praticar fará o inferno mais quente. Aquele que conheceu a vontade de Deus e não a praticou será castigado com muitos açoites (Lc 12.47). Assim o grande conhecimento de um tal homem como este será como uma tocha para iluminar o inferno. E em que tal pessoa superará o diabo que se transforma em anjo de luz? Assim é impróprio chamar de crentes aqueles que conhecem a vontade de Deus mas que não a praticam. Porque como podem os tais orarem dizendo seja feita a Tua vontade? Pois não se diz que seja

apenas conhecida, conforme está implícito no mandamento, mas que seja feita.

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O grande desígnio de Deus quando revelou a nós a sua Palavra, foi para nos tornar praticantes da sua vontade.

A Palavra de Deus não é somente uma regra de conhecimento mas de dever (Dt 26.16). A finalidade de todas as promessas de Deus é nos conduzir a fazer a sua vontade. As promessas são o imã da obediência (Dt 11.27; 28.1,3). .

O querubim e a espada flamejante têm o propósito de nos intimidar em relação ao pecado, e nos tornar praticantes da vontade de Deus.

Os desobedientes estão debaixo de maldição (Dt 11.28; Sl 68.21). Aqueles que foram destruídos pela sua desobediência foram colocados como exemplos na Bíblia para que não sigamos as suas pegadas, de maneira a não ficarmos sujeitos aos mesmos juízos..

É fazendo a vontade de Deus que nós comprovamos a nossa sinceridade em servi-lo.

Jesus disse que eram as obras que Ele fazia que davam testemunho dele (João 10.25).

Não é com belas palavras que damos testemunho da nossa sinceridade, mas com nossas obras. Nós conhecemos a saúde e vida de uma pessoa pela pulsação do sangue em seu braço.

Assim a integridade de um crente não será medida pela sua profissão, mas pela sua ação em fazer a vontade de Deus. Este é o melhor certificado e atestado de que estamos de fato indo para o céu.

É da vontade de Deus que se propague o evangelho. Fazemos a vontade de Deus quando mostramos nosso amor a Cristo, e demonstramos o nosso amor por Ele guardando os seus mandamentos (João 14.21). Assim é algo vão alguém dizer que ama a pessoa de Cristo ao mesmo tempo que despreza os seus mandamentos.

Nós dizemos seja feita a tua vontade mas ainda não obedecemos os seus mandamentos? Nós estamos então procedendo de modo contrário ao que pedimos em nossa oração, porque dizemos: “Seja feita a Ta vontade”.

Se não obedecermos a Deus nós estaremos resistindo a Ele e acaso somos mais fortes do que Ele? (I Cor 10.22).

É insensato não fazer a vontade de Deus porque fazendo isto nós estaremos fazendo a vontade do diabo. E não é loucura

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satisfazer um inimigo e fazer a vontade de quem procura a nossa ruína?

Aqueles que têm por pai ao diabo não podem fazer senão à vontade do pai deles (João 8.44). Quando um homem mente

ele não está fazendo a vontade do diabo? “Ananias, por que Satanás encheu o teu coração para mentir ao Espírito Santo?” (At 5.3).

Opor-se à vontade de Deus é colocar-se debaixo da condição descrita por Paulo em II Tes 1.7-9 quando Jesus voltar para tomar vingança dos que não conhecem a Deus e que não obedecem o evangelho:

“7 E a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder,

8 Como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo;

9 Os quais, por castigo, padecerão eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu poder,” (II Tes 1.7,8).

Obedecer a Deus é um dever.

“Mas isto lhes ordenei, dizendo: Dai ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; e andai em todo o caminho que eu vos mandar, para que vos vá bem.” (Jer 7.23).

Fazer a vontade de Deus é para nossa honra. Não é uma honra que um Rei fale conosco e que nos confie a sua vontade para ser feita? Os mandamentos de Deus não nos sobrecarregam mas nos adornam.

Fazer a vontade na terra nos torna semelhantes a Cristo no seu ministério terreno, porque o que estamos fazendo é dar prosseguimento à sua obra. E a oração que Jesus dirigiu ao Pai quando retornaria ao céu não foi para que fôssemos como Ele? E Jesus não veio ao mundo para fazer a sua própria vontade mas a dAquele que O enviou (João 6.38) e fazer isto era

o seu alimento (João 4.34). .

Aquele que faz a vontade de Deus torna-se tal como um parente consanguíneo de Cristo (Mt 12.50).

Fazer a vontade de Deus na terra traz paz na vida e na morte.

Nós fazemos a vontade de Deus de maneira aceitável a Ele

quando nós o servimos com um princípio renovado de graça. Uma árvore que não seja frutífera pode ser tão saudável

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quanto uma frutífera, mas não pode dar frutos, porque o princípio que opera na raiz não lhe dá tal capacidade. Assim uma pessoa não regenerada não pode produzir os mesmos frutos de um filho de Deus, porque não está enxertada na raiz da graça.

O princípio interno da obediência é fé, e por isso se diz obediência da fé (Rom 16.26). A fé olha para Cristo em todo dever e toca a orla das suas vestes, e é por meio de Cristo que tanto as pessoas dos crentes e suas ofertas são aceitáveis a Deus (Ef 1.6).

Nós fazemos a vontade de Deus na terra assim como os anjos fazem a sua vontade no céu, quando nós fazemos isto regularmente, e andamos de acordo com as instituições divinas e não conforme as tradições dos homens.

Os anjos nada fazem além de atenderem aos comandos de Deus, e eles não foram criados para cerimônias. E o estatuto que vale para os anjos no céu é o mesmo estatuto que existe para nós na terra, a saber a sua Palavra revelada. E nós temos que observar este estatuto divino exatamente. Se o relógio não for fiel em seu trabalho de marcar as horas, para nada serve. De igual modo nós temos que trabalhar de acordo com o padrão que Deus estabeleceu para nós (Ex 25.40).

Quão severamente Deus castigou Nadabe e Abiú por terem oferecido fogo estranho no altar (Lev 10.2), isto é, que não atendia às suas ordenanças divinas.

Tudo que não estiver em conformidade com o padrão divino é fogo estranho.

Muitos pensam que podem adorar a Deus a seu próprio modo como que se Deus não fosse poderoso, capaz e sábio o bastante para fixar o modo pelo qual convém ser adorado.

A vontade de Deus deve ser obedecida na terra do mesmo modo absoluto que é obedecida pelos anjos no céu, e daí a nossa oração deve ser “seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”, isto é, que ela seja feita na terra do mesmo modo que é feita no céu. E não podemos conceber Deus sendo obedecido parcialmente pelos anjos tanto no que eles devem ser moralmente em essência em seus seres, quanto no que diz respeito à obediência às ordens que Deus lhes dá,

particularmente as que se referem à ministração que devem fazer em favor dos crentes (Hb 1.14).

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Deus disse de Davi ser alguém que era segundo o seu coração, e declarou o motivo disto: porque ele faria toda a sua vontade (At 13.22).

Todo mandamento de Deus tem a mesma autoridade e se nós fizermos a vontade de Deus corretamente nós o faremos uniformemente, obedecendo todas as partes da sua vontade.

Assim é hipocrisia fazer apenas parte da vontade de Deus. Alguns oram, mas não dizimam e ofertam; alguns ouvem a Palavra mas não perdoam e amam seus inimigos; outros participam da ceia do Senhor mas não fazem restituição;

alguns ensinam o evangelho mas falam contra o sustento financeiro dos seus pastores. Como podem ser chamados de santos obedientes?

Contudo quem é suficiente para fazer toda a vontade de Deus?

Embora nós não possamos fazer toda a sua vontade legalmente falando, isto é, por obediência perfeita a toda a lei e em todo o tempo, nós podemos fazê-lo em sentido evangélico que consiste no seguinte:

Quando nós lamentamos em não poder fazer a vontade de Deus de maneira melhor e mais efetiva; quando lamentamos quando falhamos (Rom 7.24); quando o desejo da nossa alma é

fazer toda a vontade de Deus (Sl 119.5). Aquilo que falta a um filho de Deus em força ele compensa fazendo as pazes com toda a sua diligência. Nós também fazemos a vontade de Deus em sentido evangélico, que é o único modo de fazê-la enquanto neste mundo, quando nós nos esforçamos para fazer o melhor segundo a nossa medida de fé e capacidade, porque embora o melhor dos nossos esforços seja como os rabiscos de um desenho de uma criancinha para o seu pai, Deus não terá em conta a plena satisfação mas a aceitação, e certamente aceitará o nosso esforço como cumprimento da sua vontade.

Nós fazemos a vontade de Deus na terra assim como ela é feita pelos anjos no céu quando nós fazemos isto sinceramente. E fazer a vontade de Deus com sinceridade consiste basicamente em duas coisas: primeiro fazer a sua vontade externamente com um respeito verdadeiro pelos seus mandamentos. E esta sinceridade será testada por Deus em

exigências que demandarão de nós que demos um testemunho externo da nossa fé a outros, assim como Abraão

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que se dispôs a sacrificar o próprio filho, por ter-lhe sido ordenado pelo Senhor. E tal como ele, mesmo na execução de deveres ordenados por Deus, que não nos tragam qualquer alegria ou conforto para a sua execução, no entanto só haverá sinceridade em nossa obediência à sua vontade se executarmos de fato tudo o que nos for ordenado.

Assim como Neemias que foi incansável em conduzir os judeus ao cumprimento das exigências da lei do Senhor, debaixo das circunstâncias mais adversas que se possa imaginar. Aquele dever foi certamente doloroso para ele, mas ele fez tudo por amor sincero à vontade do Senhor. O ministério do evangelho não exige de nós somente adoração e oração, mas também ações, pois nos é ordenado não amarmos apenas de língua mas de fato e de verdade, de maneira que devemos realizar todas as ações necessárias para demonstrar o nosso amor a Deus e ao próximo. Por exemplo, o sustento dos que são verdadeiramente necessitados e dos ministros do evangelho é um dever para ser realizado pela igreja, e como podem os crentes afirmarem que têm obedecido a Deus se são negligentes quanto a isto?

Se os filhos afirmam que são obedientes mas não atendem e não executam o que lhes é ordenado por seus pais, que obediência é essa que eles alegam ter?

As mulheres que não honram, que não respeitam, que não ouvem os seus próprios maridos, como podem afirmar que estão cumprindo o dever que Deus lhes impôs de serem submissas a eles?

Um dever não deve ser cumprido porque nos seja agradável, mas porque se requer que a vontade de Deus seja feita na terra, assim como é feita no céu. É porque Deus tem ordenado que nós devemos obedecer e não porque achemos sensato, razoável, agradável ou seja o que for.

Em segundo lugar, fazer a vontade de Deus com sinceridade, é tudo fazer para a exclusiva glória dele (I Pe 4.11). Os fariseus faziam tudo para a própria glória deles. Jeú executou as ordens de Deus em relação aos adoradores de Baal, mas como ele o fez não para a glória de Deus, Deus olhou aquilo que ele fez

como um assassinato e prometeu que vingaria o sangue de Jezreel na casa de Jeú (Os 1.4).

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Como Amazias nós podemos fazer aquilo que é correto à vista de Deus, mas não com inteireza de coração (II Crôn 25.2). Nisto também erram aqueles que dizimam e ofertam na casa de Deus, apenas como que por obrigação, e não de forma voluntária e com alegria.

Nós fazemos a vontade de Deus na terra como os anjos a fazem no céu, quando nós a fazemos de boa vontade, sem murmurações. Os anjos amam fazer a vontade de Deus e o céu para eles é fazer esta vontade. Há um senso que existe em todos os seres morais que é o desejo de se sentir útil, e não há maior maneira de se satisfazer tal desejo de se sentir útil do que fazer a vontade de Deus, porque não há uma maior e melhor maneira de viver com utilidade.

Jesus nos deixou o exemplo do sentido da vida revelando-nos que não veio para ser servido mas para servir. Daí se dizer que aquele que não vive para servir, não serve para viver, porque o sentido da vida está no serviço a Deus e ao próximo. No entanto, este serviço é verdadeiramente útil e eficaz quando é segundo a vontade de Deus.

Esta utilidade em servir demandará na maioria das vezes fazer a vontade de Deus contrariando a nossa própria vontade. O cansaço, a indisposição e o medo deverão ser vencidos muitas vezes para que se possa fazer a vontade do Senhor. Ele não nos requisitará para o seu serviço se estivermos desocupados ou pensando em conforto e repouso. O nosso lugar de descanso não é neste mundo, e enquanto estivermos aqui temos muito a fazer para o Senhor com canseiras e com o suor do rosto,

porque isto nos está imposto.

Agora, o fato de ter que contrariar a nossa própria vontade para fazer a de Deus, e ter que fazer isto muitas vezes em desconfortos e canseiras, não significa que podemos fazer a vontade de Deus se nos faltar amor, fervor e alegria na execução de tudo o que fizermos para Ele (Rom 12.11,12).

Nossa obediência deve ser como o fogo do altar que nunca podia apagar (Lev 6.13).

Nós devemos continuar fazendo a vontade de Deus com constância por causa da grande perda que nos acontecerá se nós não a fizermos. Se a Igreja de Filadélfia deixasse a sua

obediência ela perderia a sua coroa e honra (Apo 3.2). A apostasia cria infâmia. Se nós não retivermos a nossa

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obediência nós perderemos tudo o que nós ganhamos até então. Todas as orações terão sido perdidas, todo o louvor e adoração que foram feitas no Dia do Senhor (domingo), e todas as nossas boas obras. Toda a retidão que tivermos tido até a nossa apostasia não será mencionada (Ez 18.24). E no caso de não eleitos a condição deles será como a que é citada em II Pe 2.21 de que seria melhor que não tivessem conhecido o caminho da justiça.

A constância fixa a coroa da obediência na cabeça.

“Eis que venho sem demora; guarda o que tens, para que ninguém tome a tua coroa.” (Apo 3.11).

“Olhai por vós mesmos, para que não percamos o que temos ganho, antes recebamos o inteiro galardão.” (II João 8).

Sabendo que não temos nenhum poder inato em nós mesmos para fazer a vontade de Deus, nós devemos orar seja feita a Tua vontade. Porque oraríamos para que seja feita a vontade de Deus se nós pudéssemos fazê-la pelo nosso próprio poder?

Se nós temos que fazer a vontade de Deus na terra assim como ela é feita no céu pelos anjos, nós devemos então ter nos anjos o modelo da nossa obediência à vontade de Deus, e não no nosso próximo. Se o nosso próximo for para o inferno nós também devemos segui-lo? Se eles vivem dentro de uma obediência deliberadamente imperfeita, nós seguiremos o exemplo deles? Por isso o nosso padrão não está fixado no homem mas nos anjos, quanto ao modo que eles se dispõem a atender os comandos de Deus. Mas sabemos que uma obediência perfeita como a dos anjos nós poderemos ter somente no céu. Mas o Senhor fixou o objetivo da perfeição em todas as coisas para ser buscado por nós, de maneira que sejamos perfeitos tal como o nosso Pai celestial é perfeito.

Aqueles que se ajoelham na igreja e oram dizendo “seja feita a tua vontade” mas que não vivem para obedecer a Palavra de Deus são hipócritas e rebeldes, e a rebelião é como o pecado de feitiçaria.

Há aqueles que não fazem a vontade de Deus de uma maneira aceitável e correta. Eles não fazem a vontade de Deus completamente. Eles o obedecerão em algumas coisas, mas não em outras, como se um empregado devesse fazer algum

trabalho para o seu senhor e não se dispusesse a fazê-lo completamente. Jeú destruiu a idolatria de Baal mas manteve

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a adoração dos bezerros de ouro de Jeroboão (II Rs 10.28,29). Alguns proclamam grande amor a Deus com a boca, como se tivessem sido tocados com uma brasa do altar do Senhor, mas vivem de maneira vã e desordenada (II Tes 3.11). Viver pela fé e segundo a Palavra tem que caminhar junto. E é algo ruim não fazer toda a vontade de Deus. Estes que não se dispõem a obedecer a Deus em tudo, praticando toda a sua Palavra, serão achados vivendo na carne, ainda que desejem ser crentes espirituais. Como as orações, conversação e ações deles poderão estar em conformidade com a vontade de Deus quando não se dispõem a obedecê-lo em tudo que lhes tem ordenado? Eles trazem os seus sacrifícios ao altar mas não os seus corações. E assim estão longe de fazer a vontade de Deus como a fazem os anjos.

Se nós queremos realmente ser abençoados por Deus nós devemos fazer a sua vontade. Ele fez várias promessas na sua Palavra de abençoar aqueles que fazem a sua vontade. Esta é a única maneira de termos uma boa colheita. Assim se desejamos ter nossas almas abençoadas nós devemos fazer a vontade de Deus.

Assim, fazer a vontade de Deus é o modo correto de fazer a nossa própria vontade.

Para fazer a vontade de Deus corretamente nós devemos adquirir um conhecimento são, e este conhecimento é somente segundo aquele que está revelado na sua Palavra.

Cristo afirmou que erramos quando não conhecemos as Escrituras e o poder de Deus (Mt 22.29). Nós temos assim que conhecer a vontade de Deus antes que possamos fazê-la corretamente.

Para fazer a vontade de Deus é necessário que neguemos o nosso ego. A menos que neguemos nossa própria vontade, nós nunca faremos a vontade de Deus. Porque a vontade dele não se baseia nos nossos sentimentos, emoções, pensamentos daquilo que julgamos bom e correto, mas naquilo que está revelado por Ele na sua Palavra.

Deus nos ordena que nos consideremos mortos, crucificados, para o pecado e para aquilo que o mundo ama. Ele nos chama a perdoar nossos inimigos. E a nossa natureza terrena vai na

direção contrária a isto. No entanto, se não nos contrariarmos, nós nunca faremos a sua vontade completamente porque não

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receberemos da sua parte graça e poder para fazê-lo, que Ele concede somente àqueles que se dispõem a obedecê-lo.

Não será considerado justiça (Dt 24.13) para nós o fato de sermos louvados pelos homens, sermos considerados agradáveis a eles, nas mesmas bases em que o foram os escribas e fariseus, mas por conduzirmos pessoas à salvação que está em Cristo Jesus. Importa pois viver e pregar a verdade do evangelho, resgatando pessoas das trevas para a luz. Estes serão aqueles que nos receberão na condição de amigos, por toda a eternidade, nos tabernáculos celestiais.

Não há verdadeira e permanente amizade onde não forem estabelecidos os laços de amor de Cristo fundamentados na verdade, pelo interesse comum de fazer avançar o seu reino na terra, por uma estrita obediência a toda a vontade de Deus.

Por isso devemos adquirir corações humildes. O orgulho é a fonte da desobediência. O filho humilde diz: “Senhor, o que tu queres que eu faça?”. Não podemos esquecer que não fomos criados e salvos para vivermos para nós mesmos mas para Aquele que morreu e se entregou por nós. E este viver para Ele implica obedecer em tudo a sua vontade.

Rogue a Deus para que lhe dê graça e força para fazer a sua vontade. “Ensina-me a fazer a tua vontade” (Sl 143.10). É como se Davi tivesse dito: “Senhor, eu preciso ser ensinado a não fazer a minha própria vontade”. E a resposta de Deus para este tipo de oração é: “E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis.” (Ez 36.27). Se o Espírito Santo nos capacitar não será difícil, mas bastante agradável fazer a vontade de Deus. Mas, para isto, importa andar no Espírito de maneira constante e perseverante, e não apenas em determinadas ocasiões.

Nós devemos orar para que possamos ter graça para nos submeter ao Senhor pacientemente nas aflições através das quais Ele prova a nossa fé. Quando o crente fiel está debaixo de alguma providência aflitiva ele deve permanecer tranquilamente aos pés do Senhor e dizer: “seja feita a Tua vontade”.

Nós não devemos ser estóicos, isto é, insensíveis e

desinteressados com os procedimentos de Deus, como os filhos de Deucalion, de quem dizem os poetas, foram

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procriados de uma pedra. Cristo era sensível e o demonstrou quando seu suor se transformou em grandes gotas de sangue (Lc 22.44), mas Ele se manteve submisso à vontade de Deus (Mt 26.39). Assim nós somos convocados a nos humilhar debaixo da potente mão de Deus (I Pe 5.6).

Um crente pode lamentar debaixo de uma aflição e ainda permanecer pacientemente submetido à vontade de Deus (Sl 142.1,2). Deus permite lágrimas porque é um pecado não ter afeto natural (Rom 1.31). A graça faz o coração se enternecer, e a aflição é despejada em lágrimas. Nós podemos nos queixar a Deus, mas não reclamar de Deus.

Deste modo é incompatível com a submissão paciente à vontade de Deus, estar descontente com a providência. O descontentamento carrega em si uma mistura de aflição e ira, e ambos criam uma tempestade de paixão na alma. Quando Deus toca a menina dos nossos olhos e nos golpeia naquilo que nós amamos, e nós ficamos sensíveis e mal-humorados, Ele não vê isto com bons olhos (Gên 4.6).

A murmuração não pode coexistir com submissão à vontade de Deus. A murmuração é um tipo de motim na alma contra Deus. “E o povo falou contra Deus...” (Nm 21.5).

Quando os homens não creem que Deus pode produzir mel a partir do veneno que os aflige, eles murmuram. Eles murmuram contra Deus porque desconfiam das suas promessas. E Deus tem muita dificuldade para suportar o pecado da murmuração (Nm 14.27), porque nos leva para longe da submissão à sua vontade que tanto Lhe agrada.

Descompostura de mente e de espírito não permitem uma submissão quieta à vontade de Deus, porque quando um crente se encontra perplexo e transtornado ele não pode ter uma melodia em seu coração para o Senhor. Estar debaixo de descompostura de mente é estar como quando um exército é derrotado, e a pessoa corre de um procedimento para outro até que tudo fica em desordem. O crente quando está com sua mente conturbada, os seus pensamentos ficam diluídos e distraídos para cima e para baixo, de maneira que ele não pode estar em submissão paciente à vontade de Deus.

Quando a pessoa se justifica em vez de se humilhar debaixo da

mão de Deus, ela não pode estar submissa à vontade de Deus. Um pecador orgulhoso se levanta em sua própria defesa

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baseando-se em seus argumentos carnais tentando fazer prevalecer a sua própria vontade, contra a vontade revelada de Deus. Ele está pronto para acusar Deus de severo e injusto, quanto ao preço da renúncia que lhe exige para ser pago para poder fazer a sua vontade (renúncia ao ego, com suas paixões e inclinações, por amizades e relacionamentos reprovados pela Palavra, comportamentos, atitudes, modos de vestir, beber, comer etc).

Nós podemos cultivar uma vontade submissa à vontade de Deus na aflição vendo a sua mão em tudo que nos sucede; justificando Deus e não a nós mesmos porque tudo o que Ele faz é para o bem daqueles que O amam; e aceitando as suas correções paternais e emendando os nossos caminhos.

Esta submissão paciente à vontade de Deus na aflição exige muita sabedoria, humildade e devoção. A habilidade de um piloto é melhor discernida na forma como ele vence uma tempestade. Submissão à vontade de Deus será muito requerido de nós enquanto vivermos neste mundo. No céu não haverá mais nenhuma necessidade de paciência nas aflições porque elas simplesmente acabarão.

Mas enquanto neste mundo teremos muitas aflições porque importa entrar no reino do céu por meio de muitas tribulações (At 14.22). Deus derreterá o seu povo num forno, porque Ele será pra eles como o fogo do ourives, para purificar o seu ouro da escória do pecado que deve ser queimada (Mal 3.2,3).

Alguns serão afligidos com pobreza (II Rs 4.2). A pobreza é uma grande provação. Isto nos expõe a desprezo. Quando Deus atirar a seta da pobreza em alguém, outros estarão prontos a repeli-lo.

Às vezes Deus aflige com repreensão permitindo que seus filhos sejam injustamente acusados, como os crentes da Igreja Primitiva que foram acusados de incesto. Deus permite que os seus filhos amados sejam exercitados em santidade com isto. Sujeira pode ser lançada numa pérola, e aqueles nomes escritos no livro da vida podem ser manchados com infâmias e injúrias. A sinceridade protege do inferno, mas não da difamação.

Noutras ocasiões Deus nos aflige com a perda de entes queridos. E isto é como retirar um membro do nosso corpo.

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Às vezes Deus aflige com fraqueza e enfermidades do corpo. A doença rouba o conforto da vida.

Deus submete o seu povo a várias provações, de maneira que possa gerar a necessária paciência em se submeter à sua vontade.

Às vezes Ele deixa a aflição continuar por um longo tempo (Sl 74.9). Como doenças crônicas que levam tempo para serem curadas, assim é este tipo de aflição. Em todos estes casos nós precisamos de paciência e submissão de espírito à vontade de Deus.

Em todas estas provações nós revelaremos o quanto é verdadeira a nossa oração “Seja feita a Tua vontade”, e o Senhor nos dá a oportunidade de conhecermos isto através destas provações, de maneira que Lhe peçamos mais fé e aprendamos a nos submeter de fato e fazer a sua vontade em toda e qualquer circunstância.

É melhor permanecer debaixo das aflições do que se voltar para busca de soluções que impliquem a prática do pecado ou ter que fazer concessões ao diabo para ser livrado delas.

Devemos lembrar que as aflições fazem com que permaneçamos em humildade, e um coração humilde é de grande valor para o uso de Deus.

O Senhor prometeu nos ajudar a suportar a aflição (Sl 34.24,39). Ele não permitirá que sejamos provados além das nossas forças e Ele mesmo providenciará o escape para nós no momento oportuno (I Cor 10.13). Ele deseja que aprendamos a confiar inteiramente na sua fidelidade em nos proteger e guardar de todo o mal.

Devemos saber em todo o tempo que a vara de correção de Deus para com seus filhos é uma vara de amor (Hb 12.6,7). Há bondade e misericórdia em toda aflição pela qual Ele nos faz passar. Por mais que doa em nós esta cirurgia profunda em nosso espírito, é para o nosso próprio bem, de modo a participarmos da sua santidade.

Deus tem prometido estar conosco em todas as nossas dificuldades (Sl 91.5). Ele não as impedirá de acontecerem porque ficaríamos sem correção e sem transformação de

nosso caráter. Mas nós temos a garantia da sua presença para nos apoiar, santificar e adocicar toda aflição. É melhor estar

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na prisão com a presença de Deus, do que estar no palácio sem a mesma.

A aflição traz à tona da recordação aqueles pecados que nós tínhamos enterrado na sepultura do esquecimento, de maneira que possamos confessá-los e sermos curados.

A aflição também nos desperta e nos incita a clamar e a orar e assim nós somos encorajados a sermos mais fiéis neste dever da oração perseverante e incessante.

Talvez num tempo de saúde e prosperidade nós oramos de uma maneira fria e formal, nós não pusemos nenhuma brasa no incenso, então Deus envia alguma cruz para nos incitar a clamar com todo o fervor da nossa alma aflita.

A aflição nos torna mais sérios e menos dispersivos em relação às coisas de Deus. Nos tempos da prosperidade nós éramos descuidados e estávamos encantados com as atrações do mundo, mas na aflição nós vimos quanto importa remir o tempo e o quanto são passageiras e ilusórias todas as coisas que o mundo tem a nos oferecer. A aflição nos desmamará do mundo.

Antes da aflição nós queríamos usar a fé e o evangelho para prosperar no mundo, segundo o mundo, mas depois de muitas aflições, nós entramos de fato no plano da novidade de vida do reino do céu, e fazemos um uso correto da fé e do evangelho para tão somente fazer a vontade de Deus e não a nossa própria vontade. Aprendemos por fim o sentido da oração “seja feita a Tua vontade”.

Mas a bondade de Deus é vista na aflição. Quando for crepúsculo poderia ser mais escuro. O Senhor te podou? Mas Ele poderia ter-te cortado. Ele poderia fazer nossas cadeias mais pesadas. As águas da aflição estavam até os tornozelos? Ele poderia fazer com que estas águas subissem mais alto ou te submergir nas águas. Deus usa a vara da correção quando poderia usar o escorpião.

Você tem experimentado a ira dos homens? Muitos têm experimentado a ira de Deus. Nós somos hábeis em dizer que nunca ninguém sofreu tanto como nós. Mas não é bondade de Deus não nos tratar tão severamente como a outros?

As aflições nos fazem conscientes da nossa própria fraqueza e

mais dependentes da graça de Deus, de modo que juntamente com Paulo podemos aprender que o poder de Deus é

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aperfeiçoado na nossa fraqueza. Ele derrama mais do seu Espírito naqueles que são mais contritos de coração. O fim da aflição não é portanto humilhação mas exaltação. Não é fraqueza, mas poder. Não podemos experimentar o poder da vida ressurreta de Jesus a não ser por permanecermos mortos na cruz. A operação da cruz não é uma operação intelectual de conhecimento filosófico de que devemos nos autonegar, mas uma operação vital que se manifesta em nós quando somos mortificados pelas aflições. Morremos com Cristo e somos ressuscitados em novidade de vida. Carregamos a cruz diariamente e o Espírito Santo manifesta em nosso viver o poder da vida abundante de Jesus.

O espinho na carne de Paulo também lhe preveniu do orgulho espiritual por ter sido arrebatado até o terceiro céu. De igual modo somos prevenidos de algum pecado quando passamos por aflições. Em algumas ocasiões a aflição é enviada para castigar o pecado e em outras para preveni-lo. Se Deus não providenciasse uma cerca viva de espinhos, os seus filhos não parariam a prática de determinados pecados. Deus permite que entremos em sofrimentos para prevenir a entrada em armadilhas, então podemos dizer com gratidão que “seja feita a Tua vontade.”.

Nós somos corrigidos por Deus no mundo para que não sejamos condenados eternamente com o mundo (I Cor 11.32). Um homem pode ser retido por espinheiros bravos na costa de um rio para não ser arrastado por sua correnteza. E assim Deus deixa que sejamos retidos pelos espinheiros bravos da aflição para que não sejamos arrastados e afogados pelo rio da perdição.

O mundo considera feliz quem consegue escapar da aflição mas feliz é o crente a quem Deus corrige. As aflições contribuem para a nossa felicidade porque elas são o meio de nos trazer para mais perto de Deus.

A prosperidade não nos puxa para perto de Deus como as cordas das aflições.

Enquanto o filho pródigo tinha riquezas e as dispersava ele estava esquecido de seu pai, mas quando entrou em aflição lembrou-se dele.

Não é melhor passar pela aflição para ser conduzido à glória do que viver em prazeres para ser conduzido à miséria? Não

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que as aflições sejam propriamente uma glória, mas elas nos preparam para isto. Então vale muito a pena orar: “seja feita a Tua vontade.”.

O reino de Cristo é o reino da cruz. Aqueles que Deus salvará do inferno não serão salvos da cruz. A consideração desta verdade deveria aquietar nossas mentes na aflição e nos fazer dizer: “seja feita a Tua vontade.”.

Por que nós deveríamos procurar ficar isentos de dificuldades mais que outros? Por que nós deveríamos pensar somente num mar de rosas, quando os profetas e apóstolos marcharam

através de espinheiros ao céu?

Considere que é comum quando Deus pretende conceder maior misericórdia a qualquer pessoa do seu povo, que ele os traga antes debaixo de aflição. Quando ele pretende nos elevar, Ele nos traz mais baixo. A Bíblia está repleta de exemplos que comprovam esta verdade.

Quando Deus trouxe Israel para Canaã Ele o conduziu primeiro por um deserto. Quando Ele pretendeu fazer de José o segundo homem no reino do Egito, Ele o lançou antes na prisão. Normalmente Ele primeiro faz as trevas se tornarem mais densas antes que faça surgir a estrela da manhã.

Esta submissão à vontade de Deus na aflição é composta principalmente pelas graças da fé, do amor, da humildade e da esperança. A fé crê que tudo contribui para o bem dos que amam a Deus; o amor nos leva a ter os melhores pensamentos sobre Deus e nos mantém unidos a Ele nos vales de aflição; a humildade não diz que nossas aflições são grandes, mas que nossos pecados são grandes. Nos faz suportar a indignação de Deus porque somos pecadores (Mq 7.9); e por fim a esperança nos dá a certeza de que a aflição por maior que seja, é leve e passageira, e o Senhor nos livrará no tempo oportuno.

Aquele que traz o seu espírito sob o domínio da vontade de Deus na aflição brilha mais do que muitos crentes notáveis em seus feitos. Eles são como as águias que não gritam e não fazem muito barulho como os corvos quando necessitam de alimento. Elas permanecem em silêncio quando estão famintas e assim o crente que está em necessidade, em aflição, e assim mesmo permanece submisso à vontade de

Deus, tem uma grandeza e nobreza de espírito, que vence a natureza, porque não chora e lamenta como os demais, mas

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permanece calado e com sua mente em repouso aos pés de Deus. Há muita força da graça numa tal alma.

Quando a graça está coroando não é grande coisa dizer “seja feita a Tua vontade”, mas quando a graça está lutando e encontra cruzes e tentações, então dizer “seja feita a Tua vontade” realmente é uma coisa gloriosa e prepara para a guirlanda de honra.

Considere que as pessoas são normalmente melhores na adversidade que na prosperidade; então se encurve à vontade de Deus. Uma condição de prosperidade nem sempre é uma condição segura. Toda prosperidade traz consigo o seu fardo, mas os que procuram por ela nunca olham para o fardo, senão para o seu brilho.

A prosperidade tem o fardo do cuidado. Por isso o Senhor chama as riquezas de “ansiedades” (Lc 8.14). Assim como a rosa tem os seus espinhos, de igual modo as riquezas. Nós pensamos que é feliz aquele que tem muitos bens, mas nós não vemos as dificuldades e cuidados que eles têm. Um homem pobre pode ter uma vida mais alegre do que a daqueles que têm muitos bens. O coração do rico está repleto de cuidados para aumentar e manter o que ele adquiriu.

Há também na prosperidade o fardo da conta que deverá ser prestada a Deus. Uma conta maior terá que ser prestada a Deus pelos ricos pelo uso que fizeram das suas riquezas, especialmente em generosidade para com o próximo.

Há também mais perigos numa condição próspera, porque aquele que se encontra no pináculo da honra está mais em perigo de cair e está sujeito a muitas tentações. Há necessidade de muita sabedoria e graça para saber se conduzir numa condição próspera. Sempre há o risco de se virar as costas para Deus e perguntar “Quem é o Senhor?” (Pv 30.9).

Prosperidade cria orgulho. Quando a maré sobe o navio também sobe. De igual modo o coração do homem se eleva em orgulho quando ele é elevado em honra.

Assim os ricos encontram-se em grande perigo em relação à salvação das suas almas:

“E Jesus, vendo-o assim triste, disse: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!” (Lc 18.24).

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Considerando tudo isto deveríamos dizer na adversidade: “seja feita a Tua vontade”.

Deus provê o melhor para nós. Se nós tivermos menos bens, nós estamos em menor perigo. Se nós cobiçamos as honras de outros, nós queremos as tentações a que eles estão expostos.

A finalidade de Deus na aflição é acalmar o espírito, subjugar a vontade à sua vontade, e quando isto estiver concluído a aflição atingiu o fim para o qual foi destinada, a saber, nos santificar, e não será removida enquanto não cumprir a sua obra. É somente quando a ferida é curada que o curativo é

retirado.

É somente quando o espírito do crente é submisso e manso que ele estará à disposição de Deus. Um espírito que seja segundo a vontade de Deus não é irritável, mas humilde; não descontente, mas satisfeito (Fp 4.12).

Ficar descontente com uma condição baixa presente é devido a uma fé fraca ou nenhuma fé, que precisa de muletas para apoiá-la. O crente que não se submete à vontade de Deus quando está deficiente de confortos externos, não confia de fato em Deus e deveria de se envergonhar de ser chamado de crente.

Murmurar quando Deus contraria a nossa vontade revela falta de santificação. Alguns pensam que não são descrentes como os demais porque não bebem, não fumam, não juram, mas podem ser descrentes murmurando. Não há somente bêbedos descrentes, como também murmuradores descrentes. E não viver piedosamente é viver em rebelião. Estas são as águas de Meribá (Nm 20.13). Esta é a companhia de Datã, Coré e Abirão. Se é uma vergonha um servo se rebelar contra o seu mestre, o que se dirá de uma criatura se rebelar contra o seu Criador? Quando isto sucede o coração se eleva e pensamentos maus entram em cena. Nós quase não pensamos em Deus, porque julgamos que Ele tenha sido rigoroso para conosco e que nos fez injustiça, ou julgamos que merecíamos coisa melhor das suas mãos. E a insubmissão se levanta juntamente com ingratidão.

Muitos se esquecem de todas as misericórdias que receberam de Deus quando entram em aflição. Nós ficamos contentes em

receber bênçãos de conforto e alívio das mãos de Deus, mas quando somos chamados a sermos provados com tribulações

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nós nos tornamos insensíveis e prontos a arder em murmurações contra Ele.

Quanto mais a criança luta contra a vontade do seu pai mais ela apanha, e quanto mais nós lutamos com Deus e não nos submetemos à sua vontade, Ele mais nos castigará e corrigirá. Em vez de cooperarmos para que sejamos livrados das cordas da aflição, mais o Senhor as apertará. Submetamo-nos então a Deus dizendo “seja feita a Tua vontade”. Por que devemos tornar nossa cruz mais pesada por causa da nossa impaciência? Por causa de rebelião contra Deus uma viagem que duraria no máximo onze dias foi feita em quarenta anos pelos israelitas nos dias de Moisés.

Considere que sendo insubmissa à vontade de Deus uma pessoa fica sujeita a muitas tentações. No coração que se irrita contra a vontade de Deus com descontentamento, Satanás faz uma boa pesca nestas águas agitadas. Ele faz normalmente com que as pessoas fiquem descontentes de forma indireta. A esposa de Jó se irritou (muito longe estava de uma submissão santa) e ela incitou seu marido para que ele amaldiçoasse a Deus (Jó 2.9).

Jesus disse: “É na vossa perseverança que ganhareis vossa alma” (Lc 21.19). A palavra perseverança no original grego é traduzida também por paciência, porque hupomoné significa no grego suportar um fardo de maneira constante sem desfalecer ou se irritar. A alma é mantida preservada, sem dano, quando estamos debaixo desta paciência cristã. É preciso se armar no pensamento que a vida cristã exige tal comportamento de nós. Porque somos participantes não somente da glória de Cristo mas também dos seus sofrimentos (I Pe 3.17; 4.1; Col 1.24).

Paulo podia estar preso que cantava hinos de louvor a Deus e orava (At 16.25). Quão distante disto está uma alma que está descontente e que não aprendeu a se alegrar no Senhor e a se submeter a Ele na aflição.

O ímpio blasfema o nome de Deus na aflição (Apo 16.9). Quando uma pedra de fogo vinda do céu se dirige em sua

direção o seu coração de pedra se incendeia em fúria diante da face de Deus.

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Quanto mais podre está a madeira com mais facilidade ela se incendeia quando é sujeitada a um atrito constante que a aquece.

Assim o crente deve agir de modo diferente do ímpio na hora da aflição.

Deus é paciente conosco suportando diariamente o nosso olhar impuro, invejoso, e a maledicência de nossas línguas, e ele passa por alto de muitas coisas e é paciente conosco e a sua longanimidade é infinita como infinitos são todos os seus atributos. Se o Senhor fosse nos castigar toda vez que nós ofendemos a sua santidade, ele puxaria a sua espada diariamente contra nós. Ele tem suportado a nossa mão, e nós não podemos ser pacientes com nada que venha das mãos dele a nós? Ele é paciente conosco e nós seremos impacientes com Ele? Jesus é manso e nós murmuramos? Ele tem suportado os nossos pecados e nós não suportaremos as correções dele? Oh, deixe-nos dizer “seja feita a Tua vontade”.

Consideremos que submetendo nossa vontade a Deus na aflição nós desapontamos Satanás na sua esperança de entristecer o coração de Deus levando-nos a agir de acordo com os modos dele que é o pai de toda mentira e rebeldia. A finalidade do diabo em todas as nossas aflições é de nos levar a pecar. Quando ele atacou Jó o seu alvo era desconcertar a mente dele, de maneira que se voltasse contra a vontade de Deus em ira. Mas Jó permaneceu aos pés do Senhor e bendisse o seu nome na aflição, e desapontou Satanás na sua esperança, e destruiu totalmente os seus argumentos e as estratégias que usou para levá-lo a virar as costas para Deus e a blasfemar na face dele. Se Jó tivesse murmurado ele teria agradado a Satanás, mas Jó se submeteu quietamente à vontade de Deus. Assim a melhor maneira de se vencer Satanás em suas intenções infernais contra nós para nos indispor contra Deus é viver de fato o que dizemos: “seja feita

a Tua vontade”.

Para o crente o veneno da aflição não é danoso mas curativo. Para o ímpio a vara da aflição se transforma numa serpente e em sendo picado por ela é arruinado pelo seu veneno. Mas para o que se submete à vontade de Deus, Ele transforma a

aflição numa bênção; e o que seria veneno, vindo na dose certa administrada pelo Senhor se transforma num remédio

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curativo da alma e do espírito, sendo portanto um meio preparatório para a glória. E deste modo os santos não são apenas pacientes na aflição, mas gratos a Deus por elas por lhes ensinar perseverança, paciência, experiência, esperança (Rom 5.3,4). Em vez de terem as aflições por motivo de tristeza, nestes crentes que se submetem à vontade de Deus, elas são tomadas por motivo de grande alegria (Sl 119.71; Tg 1.2,3).

Nossas misericórdias que recebemos de Deus se renovam a cada manhã (Lam 3.23), e isto deve nos estimular a ter a mesma atitude de Jó (Jó 2.10) que reconhecia que tinha recebido de bom agrado as bênçãos que lhe vieram da parte de Deus, e de igual modo deveria também receber as aflições. Nossas misericórdias excedem em número as nossas aflições; para cada aflição nós recebemos mil misericórdias. Então nos submetamos a Deus dizendo “seja feita a Tua vontade”.

Consideremos que a conformidade de nossa vontade a Deus na aflição traz muita honra ao evangelho. Engana-se quem pensa que está vivendo segundo o verdadeiro evangelho caso não consiga por ele lançar fora todos os humores doentios, e certamente este não é o evangelho porque não pode dominar nosso descontentamento e martiriza nossa vontade. Nossa submissão alegre à vontade de Deus coloca uma coroa de honra na cabeça do evangelho, e mostra o seu poder para nos tornar pacientes debaixo das aflições, estando submissos à vontade de Deus (Apo 14.12).

Não podemos jamais esquecer que todas as pessoas, tanto crentes quanto descrentes estão debaixo da autoridade absoluta e soberana de Deus e Ele tem o direito de fazer com eles tudo o que for da sua vontade (Mt 20.15). E Deus não deve satisfação a qualquer uma de suas criaturas quanto ao que Ele faz. Assim não nos cabe qualquer direito de disputar com Ele senão nos submetermos à sua vontade.

Deus criou tudo de maneira que nada fique fora do seu governo. E nenhum ser moral poderá funcionar corretamente se não for governado por Ele. Podemos então estar convictos e sossegados quanto à grande verdade de que somente Ele sabe o que é realmente melhor para nós, e saberá portanto controlar as nossas tribulações de maneira que elas

cumpram o seu grande alvo na nossa transformação, em nos tornar sensíveis para reconhecer a sua voz e obedecê-la, no

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meio de tantas outras vozes que tentam conquistar o nosso coração, quer a nossa própria, quer a de outras pessoas, quer de espíritos malignos.

Nós confiamos no piloto do avião, no médico, no dentista e em todos os demais profissionais de cujos serviços dependemos entregando-nos ao cuidado deles, e como não descansaríamos na sabedoria de Deus confiando-nos inteiramente ao seu cuidado?

É impossível que Deus seja injusto em quaisquer uma das suas ações para conosco, ou nas coisas que permite que nos sucedam. Se fôssemos julgar as suas ações pelos padrões dos homens nós diríamos que Ele foi injusto e ingrato para com o apóstolo Paulo permitindo as muitas prisões que ele sofreu, mas com isto Ele não somente impediu que Paulo fosse morto pelos judeus que buscavam a todo custo tirar a vida do apóstolo, como fez com que os crentes se aplicassem mais na pregação do evangelho por verem o modo santo como Paulo se comportava nas suas prisões, e possibilitou que ele tivesse tempo para escrever algumas das suas epístolas, dentre tantos outros bons resultados que decorreram das suas prisões que estavam debaixo do controle total de Deus. Nós não podemos portanto julgar o que é sucesso ou fracasso de

acordo com os padrões do mundo, porque há uma vontade soberana que nos governará do seu modo e não do nosso quando nos submetermos quietamente a ela.

Justiça e equidade são a base do trono de Deus (Sl 97.2) e Ele jamais falhará portanto em quaisquer dos seus juízos quanto ao que seja melhor para nós e para o avanço do reino de Cristo na terra, pelo qual devemos nos empenhar e até dar a própria vida se preciso for.

“Então Paulo respondeu: Que fazeis chorando e magoando-me o coração? Porque eu estou pronto não só a ser preso, mas ainda a morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus.” (At 21.13).

“22 Agora, eis que eu, constrangido no meu espírito, vou a Jerusalém, não sabendo o que ali acontecerá,

23 senão o que o Espírito Santo me testifica, de cidade em cidade, dizendo que me esperam prisões e tribulações,

24 mas em nada tenho a minha vida como preciosa para mim, contanto que complete a minha carreira e o ministério que

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recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus.” (At 20.22-24).

Nós não poderemos ser como Paulo se não permitirmos como ele permitiu, que a graça o capacitasse para todas as coisas. A graça renova a vontade e a vontade deve ser renovada antes que possa ser subjugada; a graça ensina a abnegação, e nós nunca poderemos submeter nossa vontade até que nos auto neguemos.

Nós devemos então trabalhar para entender o significado da aliança da graça com a qual fomos achegados ao Senhor. Não podemos servi-lo de acordo com os nossos próprios termos, mas de acordo com os termos que Ele fixou na aliança, de maneira que possamos dizer correta e efetivamente “seja feita a Tua vontade”.

Se o fizermos poderemos chegar a ser como o apóstolo Paulo que tinha prazer nas aflições:

“Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco, então é que sou forte.” (II Cor 12.10).

Para tanto é necessário ter humildade de espírito, porque um homem orgulhoso nunca se inclinará diante de Deus, ele nunca se dobrará, mas quando o coração é humilde a vontade fica flexível.

Um espírito humilde tem um senso profundo do pecado e assim quando Deus o aflige ele diz “seja feita a Tua vontade”.

Devemos considerar que pelo fato de Deus ter perdoado os nossos pecados em Cristo, que suportou o castigo e a ira de Deus no nosso lugar para não sermos condenados eternamente, então devemos suportar qualquer coisa e não murmurar reclamando do nosso fardo de aflição, mas bendizer a Deus por ter removido o fardo do pecado. A alma que tem noção do quanto foi perdoada dirá “seja feita a Tua vontade”.

É preciso aprender a não olhar tanto o lado escuro da nuvem, quando o lado claro. Não devemos colocar nossas mentes e corações em nossas aflições, mas olhar com fé para o Senhor e aguardar e clamar pelo seu livramento. A hora da aflição é

hora do exercício da fé olhando para o alto, para Aquele que intercede por nós no céu, e não para a própria adversidade

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que poderá nos levar a ter uma atitude de querer recusar as consolações do Senhor. Se estivermos num abismo não devemos fixar nossos olhos no seu fundo úmido e lodoso, mas na claridade do céu e devemos desejar estar em espírito com o Senhor nos lugares elevados. O Senhor nos abate não para que fiquemos contemplando o nosso estado de abatimento, mas para aprendermos a confiar nele olhando para o Autor e Consumador da nossa fé. A oração ganha força nos vales profundos. O clamor se torna intenso e verdadeiro. Daí sermos incentivados por Deus a clamarmos a Ele no dia da angústia em busca de socorro:

“invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me glorificarás.” (Sl 50.15).

A Quarta Petição na Oração do Senhor

“O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” – Mt 6.11

Na oração do Senhor, primeiro nós oramos para que o nome de Deus seja santificado, depois para que venha o seu reino, e somente depois disso nós oramos pelo pão diário. Isto indica que a glória de Deus deve vir antes da própria honra e necessidade do homem.

Cristo preferiu a glória do Pai antes da sua própria como homem (João 8.49,50).

A glória de Deus é muito estimada por Ele; é a menina dos seus olhos; tudo o que Lhe é precioso repousa nela. Deus jamais se separará da sua glória e não a transferirá a outrem (Is 42.8). A sua glória vale mais que o céu, tem mais valor que a salvação de todos os homens. Anjos caíram do seu estado original no céu; homens se perdem; reinos são dissolvidos, mas Deus jamais permitirá que qualquer parte da sua glória seja perdida.

Se Deus atribui tão imensa estima à sua glória, é então nosso dever tudo fazer para a sua glória, e tê-la em elevada estima. Nós devemos preferir a glória de Deus antes mesmo das nossas próprias necessidades.

A nossa honra é uma joia preciosa mas a glória de Deus deve

ser mais estimada que a nossa própria honra. Nós devemos estar dispostos a ver a nossa honra pisada para que a glória de

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Deus possa ser mais elevada. Os apóstolos se alegraram por terem sido considerados dignos de sofrerem vergonha por causa do nome de Jesus (At 5.41). Nos é ordenado estimar mais a glória de Deus que os nossos próprios familiares (Lc 14.26).

Nós temos que estimar a glória de Deus muito além da estima que damos aos nossos bens terrenos (Hb 10.34), e até mesmo acima da nossa própria vida (Apo 12.2).

Agora nós temos diante de nós a petição que o Senhor nos ensinou: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Esta petição consiste em resumo num reconhecimento de que a competência para atender nossas necessidades externas é

concedida por Deus.

”...não me dês nem a pobreza nem a riqueza; mantém-me do pão da minha porção de costume;” (Pv 30.8).

Tudo vem de Deus; Ele faz o trigo crescer, e as ervas florescerem.

A petição “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje” comprova a nossa indigência e que todos nós vivemos das esmolas e dons gratuitos de Deus. Tudo que há neste mundo vem da mão generosa de Deus. Nós não podemos ter além do que Ele dispõe no seu celeiro.

Com este reconhecimento que tudo vem das mãos do Senhor, então nós temos que Lhe pedir toda a nossa provisão diária. Tudo o que nós tivermos se não vier através da oração não poderá ser recebido através do amor do Senhor e poderá vir a nós em ira assim como as codornizes foram dadas a Israel como resposta à murmuração deles.

Se pedimos e o recebemos como um dom, então não o merecemos. E se o dom é de Deus procedem muito mal aqueles que procuram suprir suas necessidades indo ao diabo fazendo um pacto com ele. É melhor padecer fome do que ter o diabo como nosso provedor.

Se tudo é um dom de Deus então não é uma dívida que Ele tem para conosco. E se tudo que recebemos de Deus é um dom, nós nada podemos dar a Ele que Ele próprio não tenha dado a nós (I Crôn 29.14).

Se nós damos esmolas a outros é porque Deus deu primeiro

suas esmolas a nós em tudo que providenciou no mundo para o nosso sustento e tendo permitido e nos dado sabedoria,

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saúde e todas as condições necessárias para obtê-lo e desfrutá-lo.

Não há nada em nós que nos recomende a merecer a bondade de Deus, contudo tal é a doçura da sua natureza, que Ele nos dá uma rica provisão e nos alimenta com o melhor trigo. Ele nunca se cansa de nos prover com boas coisas. Deus se encanta em dar. Ele tem prazer na misericórdia (Mq 7.18). Deus dá boas coisas até mesmo aos seus inimigos. Ele faz com que o orvalho da sua generosidade caia até sobre os piores da humanidade. Deus dá o pão às bocas que se abrem contra Ele. Se tudo é um dom de Deus veja quão odiosa é a ingratidão dos homens que pecam contra o doador deles. Deus os alimenta e eles lutam contra Ele. Deus lhe dá o pão e eles lhe devolvem

afrontas. Quão ingrato é isto!

“7 Como, vendo isto, te perdoaria? Teus filhos me deixam a mim e juram pelos que não são deuses; quando os fartei, então adulteraram, e em casa de meretrizes se ajuntaram em bandos.

8 Como cavalos bem fartos, levantam-se pela manhã, rinchando cada um à mulher do seu próximo.

9 Deixaria eu de castigar por estas coisas, diz o Senhor, ou não se vingaria a minha alma de uma nação como esta?” (Jer 5.7-9).

Oh, quão horrendo é pecar contra um Deus generoso. Ferir a mão que nos alimenta e alivia. Deus dá inteligência aos homens e eles a usam para servir ao diabo com ela. Ele lhes dá força e eles a desperdiçam com meretrizes. Ele lhes dá alimento e eles levantam o seu calcanhar contra Ele (Dt 32.15).

Mas quão perigoso é abusar da longanimidade, bondade e misericórdia de Deus. Os favores e as misericórdias reais de Deus serão um testemunho contra os tais. Esta misericórdia e favor acabarão se transformando em ira, assim como o óleo não pega fogo facilmente mas que sendo muito aquecido continuamente acaba se incendiando.

Se é o Senhor quem tudo nos dá, então sejamos gratos a Ele.

“O que dá mantimento a toda a carne; porque a sua benignidade dura para sempre.” (Sl 136.25).

“Antes te lembrarás do Senhor teu Deus, que ele é o que te dá

força para adquirires riqueza; para confirmar a sua aliança, que jurou a teus pais, como se vê neste dia.” (Dt 8.18).

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Nós devemos louvar ao Senhor pela provisão que nos faz não somente com nossos lábios, mas com os nossos bens.

“9 Honra ao Senhor com os teus bens, e com a primeira parte de todos os teus ganhos;

10 E se encherão os teus celeiros, e transbordarão de vinho os teus lagares.” (Pv 3.9,10).

Deus nos dá o pão e nós devemos gastar a força que nós recebemos da sua provisão no seu serviço. Isto é ser grato de modo prático, e para sermos gratos devemos ser humildes. O orgulho quebra a corrente da gratidão. Um homem orgulhoso nunca será grato porque pensa que é pela sua própria inteligência, força e méritos que ganha o seu pão. Ele não consegue enxergar que tudo é um dom de Deus, e sequer somos merecedores destes dons porque somos pecadores. Entretanto Ele os concede por causa da sua grande misericórdia.

Assim, em face de tudo o que vimos, aprendemos que é correto orar por coisas temporais, porque somos ensinados a orar todos os dias para que recebamos o nosso pão das mãos de Deus. Entretanto há uma grande diferença entre orar por coisas temporais e coisas espirituais. Quando oramos por aquilo que é espiritual nós devemos ser absolutos, isto é, não devemos contar com nenhuma negação da parte de Deus, porque a Palavra nos garante a certeza de que receberemos a graça e o perdão de pecados que são necessários a nós. Mas quando oramos por coisas temporais, nossas orações devem ser limitadas, porque temos que orar condicionalmente, porque Deus somente nos dará o que for bom para nós. Há coisas que seriam armadilhas para afastar o nosso coração do Senhor, então devemos orar por estas coisas em submissão à vontade de Deus. O povo de Israel recebeu grandes castigos de Deus no deserto nos dias de Moisés porque pensavam que Ele estava obrigado a lhes dar as coisas temporais de modo absoluto (Nm 11.18), segundo o próprio desejo deles. Deus lhes deu o maná mas o paladar deles desejava muito mais; eles teriam que ter codornizes. Deus atendeu o desejo deles, mas tiveram que provar o gosto amargo das suas codornizes.

“29 Então comeram e se fartaram bem, pois ele lhes trouxe o que cobiçavam.

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30 Não refrearam a sua cobiça. Ainda lhes estava a comida na boca,

31 quando a ira de Deus se levantou contra eles, e matou os mais fortes deles, e prostrou os escolhidos de Israel.” (Sl 78.29-31).

Nós temos portanto que orar pelas coisas temporais com submissão a Deus.

É uma boa norma, quando nós oramos pelas coisas que pertencem a esta vida, que nós desejemos coisas temporais para fins espirituais. Nós temos que buscar estas coisas como um auxílio em nossa viagem para o céu.

Se nós oramos por saúde, nós podemos melhorar a nossa saúde para usar nossa vida para a glória de Deus, colocando-nos a seu serviço. Se orarmos por prosperidade material que seja para um fim santo, de modo que fiquemos longe das tentações às quais a miséria nos expõe, e para que possamos ter uma melhor capacidade de semear as sementes de ouro da generosidade aliviando aqueles que estão em necessidade. Ana orou por um filho mas para poder dedicá-lo ao serviço de Deus (I Sm 1.11).

Muitos oram por coisas terrenas somente para satisfazerem os apetites dos seus sentidos (Tg 4.3). Nós devemos apontar para o céu quando oramos pelas coisas da terra.

Alguns oram por mais poder para que possam prevalecer contra os seus inimigos. Outros oram para aumentar suas posses para poderem encher de inveja os seus vizinhos. É uma vergonha e um descaramento orar a Deus para nos dar coisas temporais para que possamos servir melhor os interesses do diabo.

Se nós devemos orar por coisas temporais, quanto mais por coisas espirituais. Se nós devemos orar pelo pão terreno, quanto mais pelo pão vivo! Se por azeite, muito mais pelo azeite de alegria! Se para matar a nossa fome, muito mais para a salvação das nossas almas e para matar a fome e sede de justiça. Se Deus atendesse somente nossas orações por coisas materiais e nada mais, em que seríamos melhores? O que adianta ter comida e ter falta de graça?

Devemos então orar para que Deus não somente nos

alimente, mas que também nos santifique; que nos dê antes um coração cheio de graça do que uma casa cheia de ouro.

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A comida que dava alegria a Jesus era muito mais fazer a vontade do seu Pai, do que o pão terreno que sustentava o seu corpo (João 4.32-34).

É por isso que Jesus disse ao diabo quando foi tentado por ele no deserto: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.” (Mt 4.4).

É óbvio que enquanto estiver neste mundo, o homem terá necessidade do pão material e por isso Jesus confirmou que até mesmo Ele, enquanto homem, participante da humanidade, por ter assumido a natureza humana, necessitava também do pão material.

A oração modelar que o Senhor ensinou diz “o pão nosso dá-nos” e não “dá-me o meu pão”, e tudo o mais nesta oração está direcionado para o interesse público e não individual, porque o crente é chamado a agir pelo interesse do corpo de Jesus em primeiro lugar que é a igreja, e depois pelos seus demais semelhantes, e não para alimentar desejos individuais egoístas. O homem não foi criado para viver estreitamente dentro dos interesses relativos à sua própria esfera, mas para ter um espírito público que o leve a se interessar pelas necessidades dos seus semelhantes.

Há pessoas que olham somente para si mesmas e não prestam atenção às necessidades de outros. Assim nunca intercedem por outros em suas orações. Se eles tiverem o seu pão diário não se importarão que outros estejam passando fome. Se eles estiverem vestidos, não se preocuparão com aqueles que estiverem nus. Cristo nos ensinou a orar por outros: “dá-nos”.

Oremos por outros e também por nós mesmos.

Aranhas trabalham apenas para elas, mas as abelhas para o bem de outros.

Alguém é tanto mais excelente quanto mais opera para o bem de outros. Quando mais um crente for enobrecido com a graça, mas ele se dirigirá ao céu com suas orações em favor de outros.

Davi é um grande exemplo de espírito público em oração e ação porque o bem que Ele buscava em Deus era muito mais para o povo do Senhor do que para si próprio.

Davi estava interessado tanto na prosperidade espiritual

quanto material de Israel, e de igual modo todo crente deve estar interessado não somente no aumento da sua fé e dos

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seus irmãos em Cristo, como também pela comida deles, para que o Deus lhes dê o seu pão diário.

Jesus nos ensinou:

“Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.” (Mt 6.34).

E o apóstolo Tiago afirmou a incerteza do amanhã:

“Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e depois se desvanece.” (Tg 4.14).

Isto ensina que o nosso futuro está nas mãos de Deus. Se viveremos ou se morreremos está nas mãos do Senhor porque para nós o futuro é incerto, uma vez que somente Ele conhece e dirige o nosso futuro.

Esta realidade deve nortear as nossas expectativas e com elas as nossas orações, uma vez que não podemos viver senão um dia de cada vez, e assim nossas petições para o suprimento de nossas necessidades materiais e espirituais deve ser feito em cada dia para cada dia, porque o Senhor atenderá sempre nossas necessidades presentes; sem fazer qualquer garantia para uma provisão futura para nós neste mundo, porque não sabemos o que nos reservará o amanhã.

Se o padrão de Deus é a concessão de alimento em cada dia presente, então aquele que tem muitos bens e boa provisão para o futuro deveria dar muitas graças a Deus, porque o padrão de contentamento dele para nós é que estejamos contentes se tivermos o alimento de hoje garantido, sem saber se o teremos no dia seguinte, tal como Israel dependia no deserto de confiar em Deus que o maná seria dado a eles em cada dia.

Há muitos que têm recebido de Deus bens que podem suprir-lhes por toda a sua vida, e isto mostra que Deus provedor em abundância que nós servimos. Ele diz que devemos estar contentes com a porção para um só dia, mas abre a sua mão e nos provê para muitos dias. E se provar alguns de seus filhos até mesmo com falta de pão, não permitirá que isto seja por muito tempo (II Cor 11.27; Fp 4.12), porque tem garantido ao que é temente ao seu nome e que anda de modo justo para

com Ele de nunca deixar tal pessoa e a sua descendência mendigar o pão (Sl 37.25).

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Nós oramos para que Deus nos supra com o nosso pão diário, mas geralmente Ele nos dá generosamente muito mais do que aquilo que pedimos (Ef 3.20).

Na oração modelar que nos ensinou o Senhor apenas nos ensinou que devemos pedir o nosso pão a Deus, e com isto reconhecer que tudo o que temos provém dele, mas não ensinou aqui o modo de obtê-lo. O maná foi dado a Israel sem que eles trabalhassem por ele no deserto porque estavam vivendo numa circunstância excepcional, tal como Elias quando foi alimentado miraculosamente por Deus através dos corvos e da viúva de Sarepta. Mas em circunstâncias normais que é o modo geral da vida, devemos trabalhar diligentemente para obter o nosso pão, e isto foi ensinado pelo Senhor e pelos apóstolos em outras passagens da Bíblia.

“11 Porquanto ouvimos que alguns entre vós andam desordenadamente, não trabalhando, antes fazendo coisas vãs.

12 A esses tais, porém, mandamos, e exortamos por nosso Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando com sossego, comam o seu próprio pão.” (II Tes 3.11,12).

A oração do Senhor diz “pão nosso” porque deve ser obtido por nós, com o nosso trabalho, e não por furtá-lo de outros, porque certamente este pão não nos pertence, e não se pode dizer dele que seja nosso. De igual modo o pão que ganhamos de outros enquanto nos mantemos inativos, ociosos, porque não somos dignos deste pão, e muito menos o pão que é obtido mediante violência sob a forma de fraude, extorsão ou qualquer outra maneira violenta. Nada disso será o nosso pão pelo qual devemos orar e trabalhar.

Aquele que vive à custa de outros sem nada fazer por eles, que se recusa a trabalhar, não pode orar “o pão nosso”, por motivos óbvios.

A palavra para “pão” do nosso texto é artos no original grego e é usada em várias outras passagens sempre com o significado do pão material.

Muitos indagam por que Jesus não ensinou a orar pedindo pelo alimento espiritual em vez do pão material nesta oração modelar, apesar de ter ensinado isto em outras passagens dos

Evangelhos? No entanto é importante reconhecer que ao fazê-lo Ele demonstrou que as necessidades materiais são

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atendidas a partir do céu pela provisão de Deus. Ele mostrou que nada está fora do alcance da provisão divina, e portanto é nosso dever fixar nossa atenção no Senhor inclusive para a nossa provisão material. É muito comum que os homens estejam naturalmente mais ocupados com as questões de suas necessidades terrenas do que com as suas necessidades espirituais, e Jesus nos ensinou que estas necessidades terrenas não podem ser consideradas à parte do reconhecimento que devemos pedi-las a Deus e sermos gratos a Ele por provê-las a nós. A falta deste reconhecimento será devidamente considerada no juízo, especialmente pela falta de um emprego generoso e segundo a vontade de Deus em relação a estes bens terrenos, especialmente para o atendimento da necessidade de outros:

“41 Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos;

42 Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber;

43 Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.” (Mt 25.41-43).

De maneira que a nossa espiritualidade é comprovada particularmente pelo uso correto dos bens materiais para atender as necessidades do nosso próximo.

A maneira de demonstrarmos nossa gratidão ao Senhor é em primeiro lugar sendo generosos em nossos dízimos e ofertas para o sustento da sua casa, e no compartilhar as necessidades dos nossos semelhantes. Esta é uma forma externa e visível de se medir a nossa fé.

“Comunicai com os santos nas suas necessidades, segui a hospitalidade;” (Rom 12.13).

“Porque a administração deste serviço, não só supre as necessidades dos santos, mas também é abundante em muitas graças, que se dão a Deus.” (II Cor 9.12).

“Mas, se alguém não tem cuidado dos seus, e principalmente dos da sua família, negou a fé, e é pior do que o infiel.” (I Tim 5.8).

“Então, enquanto temos tempo, façamos bem a todos, mas principalmente aos domésticos da fé.” (Gál 6.10).

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Se nós temos bens suficientes para atender as necessidades de outros e fechamos o nosso coração, pecamos.

Mas se não temos o suficiente para compartilhar com outros, Deus não nos cobrará isto em juízo, porque Ele não exige que demos aquilo que nós não temos. Ninguém deve portanto se endividar a pretexto de estar vivendo por fé, ainda que esta dívida seja para beneficiar a outros. O padrão bíblico é de que a ninguém devamos nada, senão somente o amor, de modo que o nome do Senhor não seja infamado.

“11 Agora, porém, completai também o já começado, para que, assim como houve a prontidão de vontade, haja também o cumprimento, segundo o que tendes.

12 Porque, se há prontidão de vontade, será aceita segundo o que qualquer tem, e não segundo o que não tem.” (II Cor 8.11,12).

Devemos também considerar a questão do contentamento com a provisão que tivermos recebido de Deus, seja ela pequena ou grande:

“Tendo, porém, sustento, e com que nos cobrirmos, estejamos com isso contentes.” (I Tim 6.8).

O padrão de contentamento bíblico é confirmado portanto pela simples provisão do pão diário. Segundo a vontade de Deus não há base para que qualquer crente ensine que deve haver contentamento somente quando houver grande provisão da parte de Deus para nós. Pois a sua Palavra, que é a verdade, nos ensina claramente que devemos estar satisfeitos caso seja apenas atendida a simples provisão do nosso alimento diário. Entretanto, como já vimos antes, Deus é abundantemente generoso em nos dar muito mais do que Lhe pedimos, mas se isto vem a faltar não temos motivo para estar insatisfeitos porque o Senhor tem nos ensinado a orar pela provisão do alimento necessário para cada dia, de maneira que não teremos razão para estar insatisfeitos se isto não vier a nos faltar. E quando isto ocorrer, por qualquer motivo, a insatisfação com a presente condição não significa direito

para murmuração ou reclamar de Deus, mas continuar orando para que seja suprida a nossa provisão diária.

Outro aspecto a considerar é a administração dos bens que

temos recebido de Deus, porque não devemos gastar além das nossas posses. Se vivermos fora das nossas possibilidades

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jamais teremos razão em protestar diante de Deus que Ele tem sido infiel em prover as nossas necessidades. Mas quantos crentes não têm vivido deste modo para a própria vergonha deles e para dar ocasião que o cuidado de Deus pelos seus filhos seja injustamente blasfemado! Deus não se obrigou a atender as necessidades que o mundo moderno criou e nem os apelos que são feitos pela mídia para que se consuma desenfreadamente bens e serviços. Deus garantiu a nossa provisão estritamente necessária para a manutenção da vida e não os nosso luxos.

Consideremos também que há muita inquietação nas riquezas especialmente para a obtenção delas. Muitos colocam nisto inteiramente todo o seu interesse, tempo e trabalho e pouco se ocupam com as coisas que são do interesse do Senhor. E estes também prestarão contas em juízo por mais trabalhadores que tenham sido, porque o fizeram para si mesmos para atender aos seus desejos egoístas. A Bíblia também ensina claramente quando ao perigo que há neste modo de vida para acumular riquezas neste mundo, e a oração que nos lembra que devemos orar simplesmente pela nossa provisão diária muito nos ajudaria a fugir deste laço no qual muitos têm caído:

“9 Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína.

10 Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores.” (I Tim 6.9,10).

“19 Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam;

20 Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam.” (Mt 6.19,20).

“E disse-lhes: Acautelai-vos e guardai-vos da avareza; porque a vida de qualquer não consiste na abundância do que possui~” (Lc 12.15).

Sem esta total disponibilidade para ser usado por Deus nunca haveria missionários em campos em que as condições de vida são em extremo difíceis.

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“33 Vendei o que tendes, e dai esmolas. Fazei para vós bolsas que não se envelheçam; tesouro nos céus que nunca acabe, aonde não chega ladrão e a traça não rói.

34 Porque, onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração.” (Lc 12.33,34).

A cobiça é um desejo irregular para se obter riquezas. É a insatisfação instalada no coração que engana o homem levando-o a buscar plena satisfação pela ilusória ideia de que será bem sucedido se for rico de bens materiais, fama ou poder.

Deus requer uma sábia administração dos bens que Ele nos dá, especialmente daqueles que são destinados à manutenção da sua casa. Não amar as riquezas não significa que se deve ter repúdio ao dinheiro. Há muitos que alegam que não querem saber de dinheiro porque vivem apenas por fé. Mas isto não é fé porque a Bíblia ensina ser fiel e cuidadoso na administração dos bens que são colocados por Deus debaixo do nosso cuidado. Nós somos seus mordomos, especialmente os ministros do evangelho. Então devem ser sábios, zelosos, interessados e fiéis em administrar dinheiro e bens para que o nome do Senhor possa ser glorificado.

“42 E disse o Senhor: Qual é, pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor pôs sobre os seus servos, para lhes dar a tempo a ração?

43 Bem-aventurado aquele servo a quem o seu senhor, quando vier, achar fazendo assim.

44 Em verdade vos digo que sobre todos os seus bens o porá.” (Lc 12.42-44).

Não se deve tratar de maneira romântica coisas que são reais, especialmente as relativas à administração do dinheiro necessário à nossa subsistência e de outros, especialmente das pessoas da nossa própria família.

Nas mãos de Deus a nossa provisão, ainda que pequena, renderá, e estarmos contentes com a nossa provisão nos livrará de muitas tentações nas quais costumam cair as pessoas descontentes.

Satanás usará o descontentamento para insuflar tristeza e

murmuração, e em não poucos casos, desconfiança da fidelidade de Deus em cuidar das nossas necessidades.

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Para ficar livre de cair nestas tentações devemos bendizer a Deus pela nossa provisão, seja ela qual for, enquanto somos zelosos e fiéis em administrar de modo sábio aquilo que tem chegado às nossas mãos.

Nós somos chamados a aprender com as formigas que fazem provisão de alimento no verão para o inverno. Isto nos ensina que devemos aprender a poupar não por motivo de avareza mas de prudência. Deus não aprova o esbanjador e em muitas passagens da sua Palavra nos ensina a sermos criteriosos em tudo, especialmente no que diz respeito ao uso correto para a obtenção e para a aplicação do dinheiro.

Voltamos a dizer junto com o Senhor que é importante orar pelo pão diário e não por riquezas, porque há um grande perigo, tentações e laços nas riquezas, que nos incompatibilizam com os interesses de Deus e do seu reino.

“Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína.” (I Tim 6.9).

Uma grande prosperidade pode endurecer facilmente o coração, tal como ocorreu com o homem rico da parábola dos celeiros que Jesus nos ensinou (Lc 12.16-21). E o Senhor nos alertou quanto ao perigo que a confiança na riqueza pode trazer quanto a nos impedir de entrar no reino dos céus (Mt 19.24).

Através do uso adequado dos bens materiais Deus nos ensina muitas lições como por exemplo a sermos moderados, sóbrios, sábios, equilibrados, satisfeitos, generosos, diligentes, misericordiosos e tantas outras virtudes que dificilmente aprenderíamos sem sermos provados na maneira como devemos buscar, administrar e aplicar os bens terrenos. Não devermos portanto fazer destes bens um fim em si mesmo, porque como temos visto não os levaremos conosco quando sairmos deste mundo, e são apenas meios pelos quais devemos comprovar o nosso amor e serviço a Deus e ao nosso próximo.

Por isso se diz que é coisa mais bem-aventurada dar do que receber (At 20.35), porque a finalidade dos bens não é para

serem acumulados para atenderem nossos desejos egoístas, mas serem usados para a glória de Deus.

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Para provar a nossa fé e para glorificar o seu nome, Deus provará a fidelidade da maior parte do seu povo em segui-lo não lhes provendo com muitos bens materiais, de maneira que demonstrem contentamento e gratidão a Ele ainda que na pequena provisão de bens que Ele lhes prover. Isto traz grande glória ao seu nome porque ainda que sejam provados como permitiu que acontecesse com Jó, Satanás será envergonhado e o nome de Deus louvado, quando permanecermos afirmando a sua bondade para conosco em toda e qualquer circunstância adversa à qual não tenhamos dado ocasião por nossa própria culpa em não administrarmos os nossos bens de maneira fiel.

Assim, se tivermos somente o pão diário para a nossa subsistência, estejamos contentes.

Lembremos que grandes posses são como uma veste longa e pesada que é difícil de ser usada. Estejamos contentes com os trajes leves com que a maioria dos crentes estão vestidos.

“25 Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário?

26 Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?

27 E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura?

28 E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam;

29 E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.

30 Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?

31 Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos?

32 (Porque todas estas coisas os gentios procuram). De certo

vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas;

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33 Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.

34 Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.” (Mt 6.25-34).

A Quinta Petição na Oração do Senhor

“e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também temos perdoado aos nossos devedores;” – Mt 6.12

Nesta oração modelar que o Senhor nos ensinou há uma petição para o corpo (“o pão nosso de cada dia, dá-nos hoje” – da quarta petição) e duas para a alma (“perdoa-nos as nossas dívidas – desta quinta petição; e “não nos deixe cair em tentação, mas livra-nos do mal” - da sexta petição). Observamos consequentemente que devemos dar maior atenção ao estado e condição de nossas almas, do que ao dos nossos corpos.

Não foi sem motivo que o Senhor estipulou que o valor do siclo usado para todos os serviços a serem pagos ao santuário seria pelo de maior valor que era exatamente o dobro do valor do siclo comum. Isto tipificava que as coisas espirituais têm um maior peso e valor para nós do que as coisas terrenas.

O corpo é apenas o estojo que guarda a joia que é o espírito.

O corpo é mortal mas o espírito é imortal e pode existir sem o corpo, mas o corpo não pode existir sem o espírito.

Então é grande sabedoria garantir a salvação da alma para a preservação do corpo, especialmente para a sua ressurreição futura num corpo glorioso que brilhará com a luz de Cristo.

Por isso Jesus somou imediatamente à petição pelo pão diário, a do perdão dos pecados que conduz à salvação da alma. Isto mostra claramente que ainda que tenhamos o nosso pão diário isto em nada será significativo se nós não tivermos os nossos pecados perdoados por Deus.

E aqueles que são assim perdoados por Deus têm o dever de também perdoarem os seus semelhantes pelas suas ofensas, porque tiveram as suas próprias ofensas perdoadas gratuitamente por Deus.

O pão diário satisfaz o apetite e alimenta o corpo, mas o perdão de pecados alimenta a alma e satisfaz à consciência.

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A palavra “dívidas” do nosso texto (Mt 6.12), pode ser traduzida por pecados porque a dívida que temos para com Deus é resultante dos nossos pecados. Mas é importante destacar que a palavra usada no original grego é ofeileima, que significa aquilo que é justa ou legalmente devido, isto é, uma dívida. Esta palavra é a usada no texto de Rom 4.4, e é resultante do verbo ofeiléu, dever – de dívida, que encontramos em passagens como Mt 18.28,30,34; 23.16,18; Lc 16.7, dentre várias outras.

No texto de Lc 11.4, paralelo ao nosso de Mt 6.12, nós temos no original grego a palavra amartia, no lugar de dívidas. A tradução é portanto perdoa os nossos pecados, mas na sequência do mesmos texto de Lucas está escrito: “assim como temos perdoado os nossos devedores”.

Isto demonstra clara e diretamente que a dívida que é citada pelo Senhor é a dívida de pecados, porque o pecado é uma dívida, e todo pecador é um devedor que deverá prestar contas

legalmente da sua dívida ao grande Juiz.

Na parábola que Jesus citou em Mateus 18.24 o pecado é comparado a uma dívida de 10.000 talentos, que correspondem a algo em torno de 54 bilhões de Reais (para quem gosta de cálculos precisos, 10.000 talentos correspondem a cerca de doze toneladas de ouro).

Por que o pecado é chamado uma dívida?

Porque se assemelha a isto. (1) uma dívida surge do não pagamento daquilo que é devido. Nós devemos santidade e obediência perfeitas a Deus, porque foi para isto que Ele nos criou, e não lhe dando o que Lhe é devido, nós estamos consequentemente em dívida. (2) na falta de pagamento os bens do devedor são espoliados ou ele vai para prisão porque é considerado culpado pelos juízes, e no caso do pecado dá-se o mesmo porque o pecador é considerado culpado por Deus por não Lhe dar o que é devido. E a falta de pagamento da dívida que se tem para com Deus implicará morte eterna caso a dívida não seja perdoada, porque é impossível que seja paga pelo próprio devedor, porque é pecador, e jamais poderá por si mesmo dar a Deus a obediência e santidade perfeitas que Lhe são devidas (Isto foi dado por Cristo em nosso lugar, e por

isso importava que Ele não somente morresse por nós, mas que vivesse em perfeita obediência debaixo da Lei de Deus -

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Rom 5.19). Qualquer pessoa depende desesperada e unicamente de perdão, porque a cada dia que vive só faz aumentar a sua dívida para com Deus. Não há outra esperança, não há outra saída senão ter a sua dívida perdoada para que não seja condenada eternamente à prisão.

Como o pecado consiste basicamente em não se dar a Deus o que Lhe é devido, nós concluímos então que o pecado é a pior das dívidas, e incomparavelmente pior do que qualquer outra, porque sujeita a um dano eterno.

Assim, quando alguém pede na oração modelar “perdoa as nossas dívidas” ela está pedindo na verdade algo vital, de importância capital e extraordinária que não pode ser medida. Não é uma pequena conta que será cancelada caso o perdão seja concedido. Esta dívida é enorme. Não pode ser medida senão pelo próprio Deus. E não pode ser liquidada, como vimos, senão unicamente pelo perdão da dívida.

Se nós tivéssemos como pagar esta dívida não precisaríamos orar por perdão da dívida. Esta dívida é espiritual e não pode ser paga com dinheiro. É uma dívida de vida que pode ser paga somente com a morte. Por isso Jesus teve que morrer por nós para que a nossa dívida pudesse ser cancelada. Caso Ele não morresse no nosso lugar Deus não poderia perdoar a divida que temos para com Ele porque isto seria injusto, e não seria portanto permitido pelo seu atributo de Justiça. Por este atributo Deus exige compensação de todo dano. Nada pode ser relevado sem uma justa retribuição pela ofensa, e isto foi claramente revelado por Ele na dispensação da Lei. Nada pode ser perdoado sem que a sua Justiça seja satisfeita. A justiça é a base do seu trono porque sem ela nada poderia ter equilíbrio, equidade, segurança. Nenhuma relação quer na terra, quer no céu, poderia ter uma base estável, porque atos morais poderiam ser praticados sem estarem submetidos a qualquer forma de juízo. Mas Deus, pelo seu atributo de Justiça, tudo julga e nada escapa do seu perfeito juízo, e isto faz que dê a paga exata a cada um conforme as suas obras.

Deste modo, como o pecado é uma ofensa e dívida contra uma Majestade infinita perfeitamente Santa e Justa, é por conseguinte uma dívida infinita.

Se até pensamentos vãos são pecados que serão considerados no juízo, como poderíamos enumerar o tamanho da nossa

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dívida para com Deus (Sl 40.12)? Assim nunca poderemos saber o quanto devemos a Deus.

Não cai bem a devedores terem um espírito orgulhoso, senão humilde. Convém a todos se humilharem diante do grande Credor implorando-lhe por perdão, tal como o Senhor Jesus nos ensinou a fazer na oração do Pai Nosso.

A dívida deve ser confessada com humildade tal como é ensinado em Mt 6.12. Se nós confessarmos a dívida, Deus a perdoará (I João 1.9). Mas enquanto buscamos o perdão através da certeza de que será alcançado por meio da nossa simples confissão, no entanto não cometamos o grande pecado de pensar que este perdão é algo barato e fácil, porque custou o grande preço da morte de Jesus. È um perdão gratuito mas Deus nos impõe o ônus da fé, do arrependimento, da conversão, para alcançá-lo. Isto é, o que for perdoado deverá viver em novidade de vida. Não deve voltar à prática deliberada do pecado, mas deve demonstrar sua gratidão e reconhecimento de que fora de fato perdoado, vivendo em santidade de vida, em estrita obediência à vontade de Deus, porque isto é o que Lhe devemos na condição de seres morais criados à sua imagem e semelhança. Se não fizermos isto somos hipócritas em nossa oração pedindo-lhe perdão dos nossos pecados, porque ao mesmo tempo que o fazemos estamos dispostos a viver do mesmo modo pelo qual a nossa dívida foi contraída. Recebemos o dom da vida de Deus e não Lhe pagamos o tributo devido de obediência à sua

vontade. Negamo-nos a pagar o que Lhe é devido. Então que busca de perdão foi esta que não levou em consideração estas verdades?

E um dos principais tributos que se exige de nós para sermos perdoados por Deus, e continuarmos agradando a Ele em vez de ofendê-lo, depois de termos sido perdoados é o tributo da fé, porque sem fé é impossível agradar-lhe. Fé Nele e na sua Palavra.

É pela fé em Jesus que se alcança a justificação (Rm 5.1), e é pela mesma fé em Jesus que se tem acesso à graça de Deus na qual os crentes estão firmes (Rom 5.2). Enfim, importa

permanecer firme na fé em Jesus porque foi Ele quem pagou a dívida dos nossos pecados.

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Nossa fé em Jesus é provada a todo momento. Devemos então colocar a coroa na cabeça do Evangelho da graça, pela nossa fé inabalável de que tudo em nossa caminhada cristã encontra-se no Senhor Jesus e não em nós mesmos.

A nossa aceitação por Deus não será achada em nossas boas obras e méritos, mas sempre será baseada na nossa fé em Cristo, porque é Ele quem garante o nosso acesso ao Pai, estando perdoados dos nossos pecados.

Que tipo de fé nós devemos exercitar na hora da tribulação? Fé em nossa própria capacidade e poder? Não! Fé em Jesus para estarmos firmes. Este é o coração do evangelho.

Satanás sempre nos acusará e nos tentará para buscarmos a vitória sobre ele em nós mesmos, em nossa justiça própria. Ele até mesmo sugerirá que nos santifiquemos e nos acusará quando pecarmos. Ele terá uma boa base para nos acusar quando estivermos gemendo em nossas limitações e pecados porque atendemos às suas insinuações de tentar achar a pérola de grande valor em nós mesmos. A justiça que agrada a Deus em nossa própria natureza. Não é aí que as encontraremos, senão somente em Cristo, que é, Ele próprio, a Nossa Justiça.

“Naqueles dias Judá será salvo e Jerusalém habitará em segurança; e este é o nome que lhe chamarão: O SENHOR É NOSSA JUSTIÇA.” (Jer 33.16).

Assim, a nossa vitória sobre o pecado, sobre a morte, sobre Satanás, deve ser buscada somente em Cristo. É para o Autor e Consumador da nossa fé que devemos olhar enquanto caminhamos em nossa jornada neste mundo.

Deste modo, lutemos não somente para confessar, mas para termos nossas dívidas espirituais pagas por Cristo, nossa Justiça e Fiador. Digamos: “Senhor perdoa as nossas dívidas”, e Cristo pagará tudo.

Cristo é o nosso único Fiador. Tenha fé no sangue de Jesus e a dívida será liquidada. Nós não temos com que pagar a dívida mas Deus proveu para nós um Fiador fidedigno que a pagará por nós.

Mas este Fiador tem uma condição para perdoar as nossas

dívidas: ele exige que perdoemos também os nossos devedores. O nosso perdão das dívidas de outros não é

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portanto a causa de sermos perdoados por Deus, mas a condição sem a qual Ele não nos perdoará.

Muitos demoram a alcançar a salvação por este motivo. Eles se recusam a perdoar outros e somente recebem a salvação de Deus quando se dispõem a perdoar os seus devedores.

Eles pensam de Deus como de si mesmos, como se houvesse nele alguma dureza de coração ou amargura. No entanto Deus é inteiramente benigno, compassivo, bondoso, amoroso, perdoador, e não podemos entender de maneira adequada, de forma alguma, o que Ele seja, e por isso somos chamados a

exercer fé, a crer naquilo que Ele afirma de Si mesmo na sua Palavra, e alcançaremos misericórdia se formos também misericordiosos pedindo-lhe graça para que possamos perdoar e amar os nossos inimigos. E temos um bom motivo para isto, porque disto depende o nosso próprio perdão.

“Quem é Deus semelhante a ti, que perdoas a iniquidade, e que te esqueces da transgressão do resto da tua herança? O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque ele se deleita na benignidade.” (Mq 7.18).

O homem pode perdoar um pecado contra ele, mas ele não pode perdoar uma transgressão contra Deus, e como todo pecado é uma transgressão contra Deus podemos afirmar que nenhum homem pode perdoar completamente o pecado e remover a culpa do pecador. Isto é, se alguém peca contra o seu próximo e é perdoado por ele, no entanto aquele que foi perdoado continuará sem perdão e culpado diante de Deus caso não busque ser perdoado por Ele.

Um crente pode e deve perdoar o seu irmão (Col 3.13), mas não tem o poder de isentar a sua culpa perante Deus. Somente em Cristo a culpa do pecado pode ser removida. Daí serem tantas as ilustrações no Antigo Testamento dos sacrifícios de animais que tipificavam a remoção da culpa que pode ser feita somente através do sangue do sacrifício de Cristo, do qual aqueles eram apenas figura.

Assim a autoridade para perdoar pecados que Cristo concedeu aos ministros do evangelho (João 20.23) é apenas declarativa, mas não efetiva. Se aquele que foi perdoado pelo pastor, não se arrependeu efetivamente dos seus pecados, ele

não será perdoado por Deus, ainda que possa enganar os seus ministros com um arrependimento superficial ou falso.

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Mas quando o arrependimento é sincero e há humilhação pelo pecado, o ministro pode e deve declarar o perdão do pecado daquele que se arrependeu, para que a sua consciência seja acalmada, e para que seja também recebido na comunhão dos santos, por conversão ou por nova reconciliação. E o ministro não perdoa o pecado pela sua própria autoridade, mas como um arauto, no nome de Cristo, em quem e por quem os pecados são efetivamente perdoados.

Tal como na Aliança da Lei, quando Deus limpava o leproso, era dever do sacerdote declará-lo oficialmente limpo. De igual modo Deus perdoa o pecado e o ministro declara o penitente perdoado.

Nenhum mortal recebeu de Deus autoridade e poder para poder perdoar pecados em seu próprio nome, ou por sua própria eficácia, porque a dívida de pecados que temos é para com Deus e não para com os homens. Nenhum homem é credor de outro em relação a pecados praticados contra eles.

“Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões por amor de mim, e dos teus pecados não me lembro.” (Is 43.25).

Quem mais além de Deus tem o poder de apagar as transgressões dos pecadores?

O perdão é tirado dos intestinos da misericórdia de Deus e não há nada que possamos fazer para merecer isto, nem nossas orações, lágrimas ou boas obras podem comprar o perdão.

Assim se os homens pensam que eles podem comprar o perdão de pecados com os seus deveres e esmolas, tanto eles quanto as suas obras e dinheiro perecerão juntamente.

É principalmente pelo perdão de pecados que Deus comprova tanto aos homens de boa vontade, quanto aos anjos que Ele é completamente benigno, misericordioso, bondoso e cheio de graça. Ele não é um Deus cruel, duro, perverso, como o diabo costuma enganar os homens, usando por argumento as aflições que há no mundo, só que não lhes dizendo que ele próprio foi quem introduziu dores num mundo que era perfeito ao ter enganado o primeiro casal no jardim do Éden. As aflições que existem no mundo não foram causadas por Deus mas pelo próprio pecado do homem. Em vez de aflições, Deus poderia e deveria, por causa do seu atributo de Justiça,

ter destruído a humanidade, porque o salário do pecado é a morte, mas Ele, sendo misericordioso e bom, planejou

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perdoar os pecadores que se arrependessem dos seus pecados e confiassem em Cristo como Salvador deles.

É pelo sangue de Cristo que nós temos redenção (Ef 1.7). A culpa do pecado era infinita, e nada mais do que aquele sangue de Alguém que não era somente homem, mas também o Deus infinito poderia obter perdão para uma culpa infinita.

Foi a graça de Deus que descobriu uma maneira de redenção através de um Mediador.

A culpa por todos os nossos pecados foi colocada sobre Cristo e Deus executou a sentença sobre a dívida destes pecados fazendo-O morrer por nós na cruz.

É por isso que Ele diz em Hb 8.12, quanto à aliança que faria através da Mediação de Cristo:

“Porque serei misericordioso para com suas iniquidades, e de seus pecados não me lembrarei mais.” (Hb 8.12).

O preço pago pela nossa redenção, a saber, o sangue de Jesus, desviou completamente de nós a ira da Justiça de Deus em relação aos nossos pecados:

“Eu sararei a sua apostasia, eu voluntariamente os amarei; porque a minha ira se apartou deles.” (Os 14.4).

Deste modo, embora um filho de Deus, depois de ter sido perdoado em Cristo, possa incorrer no seu desgosto paternal, contudo a ira judicial dele é afastada pelo sangue de Jesus. Assim os santos poderão ser corrigidos pelos seus pecados presentes, mas não destruídos.

“30 Se os seus filhos deixarem a minha lei, e não andarem nas minhas ordenanças,

31 se profanarem os meus preceitos, e não guardarem os meus mandamentos,

32 então visitarei com vara a sua transgressão, e com açoites a sua iniquidade.

33 Mas não lhe retirarei totalmente a minha benignidade, nem faltarei com a minha fidelidade.

34 Não violarei o meu pacto, nem alterarei o que saiu dos meus lábios.” (Sl 89.30-34).

Esta porção deste Salmo é parte da promessa que foi feita aos

que são da casa de Davi, e nós fazemos parte desta casa pela nossa união com Cristo.

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E estes pecados presentes são tratados também pelo sangue de Cristo, mediante arrependimento. E o arrependimento é composto de três partes principais: contrição, confissão e conversão.

Contrição é o quebrantamento de coração, é a tristeza pelo pecado, uma vez convencidos deste pelo Espírito Santo. Os contritos são os que choram que serão consolados, conforme previsto na bem-aventurança (Mt 5.4). Como esta contrição vem antes do perdão e prepara o coração para recebê-lo, daí Jesus ter afirmado que os tais são bem-aventurados.

A confissão do pecado deve ser humilde, sincera, sem

reservas, voluntária, tal como a do publicano da parábola que Jesus citou para mostrar o quanto estavam errados os fariseus julgando-se justificados diante de Deus pela justiça própria deles.

Como disse Agostinho: “A confissão fecha a boca do inferno e abre o portão do paraíso.”.

O terceiro ingrediente do arrependimento é a conversão, isto é, deixar o pecado e fazer a vontade de Deus.

Pode haver tristeza pelo pecado, pode haver confissão e no entanto não se deixar a prática do pecado, isto é, não haver conversão; então não houve um verdadeiro arrependimento porque ficou faltando este terceiro componente da conversão.

A conversão é na verdade a mudança de todo o direcionamento da vida para Deus, isto é, uma mudança completa que leva em conta não somente o abandono de um pecado específico mas do pecado em todas as suas formas, porque tentar esconder um só malfeitor na casa diante do nosso Rei, nos torna culpados de rebeldia contra Ele. E quem esconde um rebelde é um traidor da Coroa e merece a morte.

Por isso se diz que o arrependimento é para com Deus (At 20.21) porque não é apenas um ato de se deixar o pecado, mas de se voltar para Deus com integridade de coração.

E este arrependimento é o modo que conduz ao perdão de Deus, como se vê em Is 55.7:

“Deixe o ímpio o seu caminho, e o homem maligno os seus

pensamentos; volte-se ao Senhor, que se compadecerá dele; e para o nosso Deus, porque é generoso em perdoar.” (Is 55.7).

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Na oração do Pai Nosso Jesus nos ensinou a pedir o perdão a Deus, mas em outras passagens da Palavra nós somos ensinados quanto ao modo de fazê-lo. Nós vemos que não é apenas com um pedido verbal que se alcança o perdão, mas com as atitudes que são necessárias e ensinadas pelo Senhor na Bíblia. Daí na própria sequência da petição do perdão na oração do Pai Nosso, Jesus ensinou também a necessidade de se pedir a Deus que não nos deixe cair em tentação e que nos livre do mal, porque é fazendo frente efetiva contra toda forma de tentação e de mal que se alcança o perdão gratuito de Deus.

Isto é ensinado pela própria natureza, porque como poderia um rei perdoar um rebelde que continua em hostilidade aberta contra ele? Como Deus perdoaria os nossos pecados vendo em nós uma franca disposição para continuar na prática deles? Como Ele se deixaria enganar? Ele tudo sabe e vê. Ele é onipotente, onisciente e onipresente.

O arrependimento aponta portanto para Deus assim como a agulha da bússola aponta para o Norte.

O filho pródigo não somente deixou as meretrizes como também voltou para o seu pai.

Assim o arrependimento vem antes do perdão, e aquele que nunca se arrependeu não pode ter uma base segura para esperar que os seus pecados sejam perdoados.

Não que o arrependimento mereça e seja a base para o perdão do pecado. Porque sabemos fartamente que esta base e mérito são exclusivos de Jesus, do sangue que Ele derramou para nos lavar das nossas iniquidades. Mas o arrependimento é uma condição, tanto quanto o perdão dos nossos devedores é uma outra condição para o perdão dos nossos pecados, conforme já comentamos anteriormente.

O ensino de nosso texto de Mt 6.12 sobre o dever de buscarmos o perdão de Deus ao mesmo tempo que devemos perdoar os nossos devedores está vinculado não somente a Mt 6.13 que contém a conclusão da oração do Pai Nosso em que devemos pedir a Deus para não nos deixar cair em tentação e livrar-nos do mal, como também aos versículos 14 e 15 que lhe seguem imediatamente. Em Mt 6.14,15 Jesus ensina diretamente que o

perdão de nossos pecados por Deus é dependente da condição do nosso perdão efetivo dos nossos devedores.

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Não adianta portanto uma pessoa ficar apenas chorando pelos seus pecados e por causa da vergonha e dores que está sentindo por causa destes pecados. Ela não poderá experimentar o perdão e o favor de Deus caso não os confesse, e que também abandone a prática de toda forma de pecado e erro, e se disponha a fazer a vontade de Deus, praticando aquilo que é justo, conforme nos tem revelado na sua Palavra.

Há muitos que estão chorando, inclusive crentes, mas que

não podem ser ajudados por Deus porque não estão confessando as suas culpas (admitindo que estão errados) e mudando a direção de suas vidas, das trevas para a luz; do erro para Deus.

Mas se ocorrer um efetivo retorno para Deus Ele perdoará os pecados conforme tem prometido:

“16 Lavai-vos, purificai-vos; tirai de diante dos meus olhos a maldade dos vossos atos; cessai de fazer o mal;

17 aprendei a fazer o bem; buscai a justiça, acabai com a opressão, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva.

18 Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor: ainda que os vossos

pecados são como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que são vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como a lã.” (Is 1.16-18).

“Desfaço as tuas transgressões como a névoa e os teus pecados, como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te remi.” (Is 44.22).

Assim ao afirmarmos a gloriosa graça que há no sangue de Jesus para o perdão dos pecados, não podemos esquecer que a Palavra ensina direta e claramente que há condições para que este perdão seja efetivo.

Deste modo, não é somente a fé no sangue que trará o perdão, mas a conjunção da fé com o arrependimento, porque Deus os tem unido inseparavelmente, de modo que não há verdadeira fé onde não há arrependimento, e nem verdadeiro arrependimento onde não haja fé. Não esqueçamos portanto que há condições, e uma destas condições é o perdão dos nossos devedores, e uma outra importante condição é o arrependimento, e nós vimos que um arrependimento

verdadeiro é composto de três componentes: contrição, confissão e conversão.

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Não podemos tornar o perdão mais gratuito do que Deus tem estabelecido. Não podemos ficar aquém do que Ele tem exigido. Não podemos baratear a graça, porque Deus é um Deus bondoso, mas criterioso.

Ninguém diga portanto que basta confiar em Jesus e nada mais para que alguém seja perdoado e aceito por Deus. O modo de se demonstrar a nossa confiança em Jesus inclui um necessário arrependimento, por isso Ele pregava a fé mas não sem o arrependimento.

“e dizendo: O tempo está cumprido, e é chegado o reino de Deus. Arrependei-vos, e crede no evangelho.” (Mc 1.15).

Se houver arrependimento e fé Deus fará de pecadores quebrados vasos de ouro de misericórdia para serem usados de modo honroso por Ele. Então nunca nos contentemos com um arrependimento superficial, mas com um que seja verdadeiro, porque há grande galardão para os que se arrependem continuamente dos seus pecados para consagrarem suas vidas a Deus.

“19 Todavia o firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo: O Senhor conhece os seus, e: Aparte-se da injustiça todo aquele que profere o nome do Senhor.

20 Ora, numa grande casa, não somente há vasos de ouro e de prata, mas também de madeira e de barro; e uns, na verdade, para uso honroso, outros, porém, para uso desonroso.

21 Se, pois, alguém se purificar destas coisas, será vaso para honra, santificado e útil ao Senhor, preparado para toda boa obra.” (II Tim 2.19-21).

Devemos também saber a diferença que há entre o perdão total dos nossos pecados passados (Jer 33.8; Col 2.13) que praticamos antes do nosso encontro pessoal com Cristo, e o perdão dos nossos pecados presentes, que apesar de serem cobertos pelo mesmo sangue que cobriu os nossos pecados passados, demandam o exercício contínuo de fé e arrependimento para serem perdoados. Nós não seremos condenados por causa destes pecados ao fogo eterno, mas Deus nos corrigirá se não nos examinarmos de modo a confessá-los e deixá-los. Muitos se privam da graça de Jesus por ignorância quanto à aplicação da graça, porque pensam

que por estarem na graça podem viver de modo desordenado e pecaminoso, considerando que todos os seus pecados já

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estão perdoados. Se assim fora, porque seria exigido que o crente examine-se a si mesmo? (I Cor 11.28-32).

Se os pecados presentes já estão perdoados por que então se ordena que oremos pelo perdão de pecados? (I João 2.1; Mt 6.12). Que necessidade teríamos de um Advogado junto ao Pai se os pecados presentes e futuros já estão perdoados?

Tenhamos fé que o sangue de Cristo é o suficiente para o perdão dos nossos pecados, como causa e base na qual eles são perdoados. Mas não esqueçamos que há condições estabelecidas pelo próprio Deus para que sejamos beneficiados por este sangue, isto é, que ele seja de fato eficaz e operante no perdão real dos nossos pecados, e já vimos e repetimos que a principal condição é o arrependimento, e já mostrarmos fartamente que não há arrependimento sem conversão, isto é, abandono do pecado, e busca real da presença de Deus fazendo a sua vontade.

Traduzindo isto em termos práticos poderíamos citar alguns exemplos como os que destacamos a seguir:

1 – Quê adianta alguém dizer que se arrependeu do pecado e não perdoa os seus devedores?

2 – Há arrependimento verdadeiro quando se pede a Deus para perdoar os nossos pecados e continuamos fazendo aquilo que nos é proibido pela sua Palavra, ou então não fazendo o que nos é ordenado nela?

3 – Que arrependimento houve quando não vivemos por fé e sim por vista? Quando amamos o mundo e rejeitamos a santidade de Deus?

4 – Como podemos esperar o perdão dos nossos pecados por Deus se não compartilhamos as necessidades dos santos, se não intercedemos por eles, se não temos qualquer compromisso com a obra do Senhor e não nos importamos em dar o fruto de justiça esperado por Ele, por um andar no Espírito?

Assim a fé que salva e perdoa é sobretudo fé em tudo aquilo que a boca do Senhor tem proferido na sua Palavra. Que fé é esta que proclama confiança em Cristo mas não se dispõe a praticar a Palavra de Deus e honrá-la? Não é a mesma fé dos

demônios? Como pode alguém esperar ser salvo e perdoado com uma fé como esta?

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Esta não é a fé no Cristo da Bíblia, porque Ele mesmo definiu a fé nele como cumprimento dos seus mandamentos colocando-nos debaixo do seu senhorio.

“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (Mt 7.21).

Crer em Cristo é concordar com as condições que Ele tem estabelecido na sua Palavra.

Aquele que não crê em Cristo deste modo não pode ser beneficiado pelo seu sangue. Não pode ter parte com Ele.

“Se vós permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e vos será feito.” (João 15.7).

Não há nenhum perdão que não seja precedido por este tipo de fé genuína em Cristo. Daí a grande importância de se conhecer e praticar a Palavra.

“E sede cumpridores da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos.” (Tg 1.22).

Mas é importante também saber diferenciar entre justificação e santificação, porque quando falamos de perdão de pecados passados estamos falando de justificação, e quando falamos de perdão de pecados presentes e futuros estamos falando de santificação, e há grande diferença entre ambas.

A justificação não depende de arrependimento de pecados presentes que venhamos a praticar porque é imputada quando nos unimos a Cristo, isto é, quando Ele passou a ser o Salvador das nossas vidas; quando nos tornamos crentes. A justificação é imputada pela fé em Cristo e nada mais. E é simultaneamente acompanhada pela regeneração do Espírito Santo que nos torna novas criaturas, operando uma grande purificação de pecados. Neste dia do nosso novo nascimento, todos os nossos pecados passados foram perdoados. Mas daí em diante, nós teremos que viver também pela base de uma justiça que nos é implantada na santificação. E esta é gradual, progressiva. De modo que um crente pode ser mais santificado do que outro, mas não ser mais justificado do que outro. Um crente pode ter mais graça do que outro na

santificação, mas não ser mais crente do que outro, porque a justificação está completa, é um ato perfeito, porque nela os

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crentes receberam a justiça de Cristo. Mas a santificação é sempre imperfeita, e há manchas em todos os filhos de Deus. As nossas graças estão misturadas com as escórias de pecados e a execução dos nossos deveres é imperfeita.

Se Deus nos perdoasse e não nos santificasse, Ele não poderia receber qualquer glória de nós. Que glória Deus poderia receber de um coração orgulhoso, ignorante, profano?

Se Deus não santificasse o crente, haveria pecado e mancha no céu, mas lá não pode entrar qualquer mancha ou pecado (Apo 21.27).

Assim, aqueles a quem Deus perdoa, Ele transforma. Deste modo ninguém diga que os seus pecados foram e estão sendo perdoados sem que haja um trabalho de santidade no interior do seu coração.

Onde Deus remove o pecado, Ele imputa justiça.

E isto é feito individualmente e não coletivamente. Há necessidade que cada pessoa assuma a responsabilidade pelos seus pecados diante de Deus, porque o texto diz “perdoa as nossas dívidas” e isto revela que não somos castigados pelos pecados de outras pessoas, mas pelo nosso próprio pecado.

“Eu, o Senhor, esquadrinho a mente, eu provo o coração; e isso para dar a cada um segundo os seus caminhos e segundo o fruto das suas ações.” (Jer 17.10).

“Assim, pois, cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus.” (Rom 14.12).

Nós não oramos para que seja perdoado o nosso pecado, mas os nossos pecados, no plural, porque não é por uma única dívida que nós oramos, mas por uma multidão de pecados. Nossos pecados são como as gotas do mar, como os átomos do sol, eles excedem qualquer contagem aritmética.

Se nós avaliássemos corretamente a dívida que temos para com Deus, isto nos levaria a nos humilharmos diante dele pelo motivo de estar tão cheios de manchas negras em nossas almas, e isto deveria nos colocar em prontidão rapidamente para a busca do perdão dos nossos pecados, para que tais manchas sejam apagadas pelo sangue de Jesus que nos torna mais alvos do que a neve.

Assim como há uma rica misericórdia para alimentar os nossos corpos com o pão diário, há também uma rica

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misericórdia para nos perdoar. Uma é a misericórdia que nos alimenta e outra a que nos perdoa. Assim, não é nenhum sinal de que fomos perdoados o fato de Deus nos prover com coisas materiais.

Quando Cristo disse ao paralítico que os seus pecados haviam sido perdoados, isto foi uma maior e melhor misericórdia, do que a que havia curado a sua paralisia (Mc 2.5).

Por isso a oração do Pai Nosso coloca em realce o perdão dos pecados e não a cura de enfermidades do corpo, porque é o perdão dos pecados que devemos pedir a Deus antes de tudo o mais; e é importante frisar que muitas enfermidades físicas são curadas como mera consequência do perdão dos pecados.

Ninguém poderá obter o céu sem o perdão de pecados, então de pouco adiantará a cura do corpo se não houver perdão de pecados que é a forma de se entrar no reino dos céus.

Não admira que Jesus tenha repreendido aqueles que haviam sido curados por Ele e visto os muitos milagres que Ele havia feito e que não tinham se arrependido:

“Ai de ti, Corazim! ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em

Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se operaram, há muito, sentadas em cilício e cinza, elas se teriam arrependido.” (Lc 10.13).

Se o perdão de pecados é tão absolutamente necessário, qual é então a razão de tão poucos no mundo se empenharem por isto? Para serem curados de males físicos eles procuram o médico e se for necessário empreender uma longa viagem para serem curados ou gastarem muito dinheiro, eles o farão prontamente. Mas quando o assunto se refere à cura dos males de suas almas eles parecem desinteressados e não buscam por cura. De onde procede isto?

As pessoas não levam a sério que têm uma grande dívida para com Deus que será executada no dia do juízo. Como estão mortos espiritualmente, não poderão discernir esta verdade a não ser que creiam em Cristo e sejam instruídos pelo Espírito Santo.

Nós vemos então que os homens dependem inteiramente de que Deus lhes revele a sua real condição perante Ele. O quanto

são pecadores e o quanto necessitam do seu perdão para que sejam curados.

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A trombeta do evangelho soa por toda parte ordenando aos homens que se arrependam de seus pecados e creiam em Cristo. Mas todo aquele que desprezar o aviso não terá os seus olhos espirituais abertos por Deus para que possa conhecer a condição em que se encontra, de maneira que possa reconhecer humildemente que é pecador e necessita pedir-lhe: “Perdoa as minhas dívidas porque tenho crido que o único modo de liquidá-las é o sangue de Cristo”.

O homem, por si mesmo, não pode conhecer que de fato lhe espera uma condenação terrível num inferno de fogo caso não se arrependa e creia, por isso é importante que não somente se pregue o único e genuíno evangelho, como também se dê não somente ouvidos a esta verdade pregada, mas que se obedeça o que é ordenado, a saber, que nos arrependamos e creiamos somente em Cristo para sermos perdoados.

Assim a fé que salva vem por se ouvir e obedecer a pregação do evangelho. E o evangelho garante que se crermos em Cristo em nosso coração confessando-o como nosso Senhor, e que Deus o ressuscitou dentre os mortos, seremos salvos.

Os homens não dão crédito à pregação do evangelho e não

buscam perdão para os seus pecados conforme Jesus nos ordenou na oração do Pai Nosso porque eles estão buscando outras coisas. Eles estão apegados às coisas do mundo. Eles a buscam imoderadamente. O coração deles está completamente cativado por elas. E assim, não conseguem atinar que têm um espírito imortal e terão que prestar contas a um Deus imortal.

Satanás usa as riquezas do mundo como armadilhas para manter almas cativas ao pecado. Os desejos pelas coisas terrenas gritam tão alto nos corações dos pecadores que eles não conseguem ouvir a trombeta de alarme que é tocada pelos ministros do evangelho.

Se o homem não obtiver o perdão de Deus para os seus pecados, pelo único caminho para isto, que é a fé em Jesus Cristo, ele não poderá escapar de modo algum da condenação eterna, porque Deus não pode inocentar de modo algum o

culpado, senão apenas perdoá-lo (Ex 34.7) caso se arrependa e creia.

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Muitos não buscam seriamente o perdão dos seus pecados porque têm esperança de que não serão punidos. Eles afirmam que Deus é pai, que Deus é bom, misericordioso, e de modo algum mandará alguém para o inferno. Eles afirmam isto contra tudo o que o próprio Deus afirma claramente na sua Palavra quanto à condenação futura.

Outros negam até mesmo a existência de Deus, e há outros que afirmam até mesmo que não existe pecado. A condenação de todos eles é justa e certa.

Mas há também aqueles que acham que Deus não pode

perdoar os seus pecados porque são muitos e graves, e não admitem que um Deus santo possa habitar pelo seu Espírito nos pecadores. Estes desonram a Deus Pai e particularmente a Cristo, porque com isto negam a bondade de Deus e que o sangue de Jesus seja de fato suficiente para cobrir o pecado.

Desonram também a Deus aqueles que creem que é possível o perdão de pecados, só que buscam isto através da prática de suas obras de justiça própria. Isto não somente desconsidera o tamanho da dívida impagável que têm para com Deus, como despreza o sacrifício que Jesus fez para salvá-los morrendo na cruz. Estes estão declarando indiretamente que o sangue de Jesus não pode lhes perdoar.

Quem não tiver os seus pecados perdoados não achará a vida e permanecerá morto espiritualmente.

A própria vida está em ser perdoado por Deus (Rom 5.18). Por isso que os crentes, ainda que vivos para Deus em Cristo Jesus vivem como se estivessem mortos espiritualmente quando vivem deliberadamente na prática do pecado. Porque somente a submissão ao Espírito Santo dá para a vida e paz, e a submissão à carne para a morte espiritual (Rom 8.6). A carne produz as obras da carne, e estas obras são o pecado propriamente dito, cujo salário sempre é a morte.

Sendo Cristo o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, nós devemos considerar que quando ele nos ensinou o dever de pedirmos o perdão dos nossos pecados a Deus, Ele não estava insinuando a busca de um simples alívio de consciência por alguma falta cometida, considerada isoladamente, mas o cumprimento da própria obra que Ele

veio realizar em favor dos pecadores e diz respeito à salvação e santificação deles. Foi com esta perspectiva em vista que Ele

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pronunciou não somente estas palavras de Mt 6.12 mas todo o seu ensino no Sermão do Monte, bem como tudo o mais que fez e ensinou em seu ministério terreno, com a promessa de tudo o que seria ainda ensinado pelo Espírito Santo aos apóstolos. É o resgate do homem da condição a que ficou sujeito por causa do pecado original que Cristo se ocupou e continua se ocupando à destra do Pai nos céus como nosso Advogado e Sumo Sacerdote. Não podemos considerar tudo que se refira a este assunto numa perspectiva menor do que a que Ele próprio considerou e tem considerado.

E este perdão dos pecados foi um trabalho penoso para a alma de Cristo em seu ministério terreno, especialmente quando foi elevado na cruz, bem como continua sendo um trabalho penoso para toda a trindade divina, porque se não houve qualquer tipo de oposição para a criação do mundo, no entanto há grande oposição de Satanás, dos principados e do próprio pecador, na nova criação que está sendo feita pelo novo nascimento operado pelo Espírito Santo, pela fé em Jesus.

E este é um trabalho que pode ser feito somente pelo poder de Deus. Ninguém está habilitado para salvar uma única alma que seja. Perdoar e remover a culpa do pecado é um trabalho exclusivo para o Cordeiro de Deus.

Jesus disse que todo pecado e ofensa pode ser perdoado aos homens, exceto o pecado de blasfemar contra o Espírito Santo. Então Deus não tem revelado a nenhum homem em particular que ele é um réprobo e que não há esperança de salvação para ele. O pensamento de que nós não somos eleitos e que não há portanto nenhuma possibilidade de perdão para nós, vem de Satanás, que é o acusador, e nos acusa diante de Deus que somos grandes pecadores; e acusa Deus a nós dizendo que Ele é um grande tirano, que vigia para destruir as suas criaturas. A estas sugestões diabólicas devemos dizer:

“para trás de mim Satanás!”.

Deus tem afirmado em sua Palavra que é rico em misericórdia e que não tem prazer na morte dos ímpios, antes que se arrependam e vivam (Ef 2.4; Ez 18.32; 33.11). Assim usa de grande longanimidade e espera muito tempo para que os

pecadores se arrependam e busquem nele o perdão para os seus pecados.

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Então sejamos encorajados pelas promessas de Deus a buscar perdão para os nossos pecados, sabendo que somos perdoados não porque o mereçamos, mas porque Deus é generoso (Ex 34.6). Ele perdoa por misericórdia. Atos de perdão são atos de graça, de maneira que o nosso perdão aos nossos ofensores deve ser também um ato de misericórdia, que está condicionado também ao arrependimento dos nossos ofensores. Nós devemos ter uma atitude perdoadora, mas especialmente os ministros do evangelho devem cuidar para não perdoarem indiscriminadamente, admitindo na comunhão do corpo de Cristo crentes que não se arrependeram dos pecados que praticaram contra os seus irmãos em Cristo. Estes devem ser considerados como gentios e publicanos, e de modo algum devem receber o perdão se não houver o necessário arrependimento (Mt 18.17).

Mas em havendo o arrependimento, somos obrigados a perdoar setenta vezes sete, conforme o Senhor nos ensinou (Mt 18.21,22).

A atitude perdoadora deve no entanto permanecer em aberto para um possível futuro arrependimento mesmo destes que são considerados gentios e publicanos, isto é, como se fossem estranhos para o corpo de Cristo. Eles perderam a nossa confiança mas poderão se reabilitar através do arrependimento, tal como nós somos reabilitados na nossa comunhão com o Senhor, através do arrependimento dos nossos pecados.

“14 Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai-o e não tenhais relações com ele, para que se envergonhe;

15 todavia não o considereis como inimigo, mas admoestai-o como irmão.” (II Tes 3.14,15).

Esta atitude perdoadora para com um irmão faltoso só será possível se estivermos vivendo e andando no Espírito, tendo o amor de Deus derramado nos nosso corações pela presença do Espírito Santo, porque será isto que nos habilitará a possuir a atitude perdoadora a que nos temos referido, mesmo quando cortarmos o nosso relacionamento com algum irmão

por causa do seu endurecimento no pecado, de maneira que venha a andar contrariamente à doutrina de Cristo.

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A reconciliação de um irmão caído é uma das joias da graça do evangelho, e é uma glória que enaltece o caráter bondoso, longânimo, amoroso e misericordioso de Deus e daqueles que são seus imitadores como filhos amados. Então devemos orar pela reabilitação daqueles que apostataram da fé e que são crentes verdadeiros, porque nos é ordenado amparar os que são fracos na fé.

“1 Irmãos, se um homem chegar a ser surpreendido em algum delito, vós que sois espirituais corrigi o tal com espírito de mansidão; e olha por ti mesmo, para que também tu não sejas tentado.

2 Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo.” (Gal 6.1,2).

Vejamos então atentamente se o motivo da queda de alguém que faça parte da membresia de nossa congregação é por motivo de fraqueza, e oremos para que tal pessoa seja reabilitada e nos esforcemos para reconduzir tal pessoa à verdade, com toda longanimidade e pelo uso da sã doutrina.

Não nos cansemos de nos estimular uns aos outros ao exercício do perdão e a buscar o perdão e também perdoarmos a outros porque quando alguém tem os seus pecados perdoados por Deus o seu coração fica cheio, consequentemente, de amor por Deus, porque o Espírito Santo que estava entristecido e apagado por causa do pecado, tornará a encher o espírito de alegria e amor. Aquele que é muito perdoado, muito ama, disse Cristo. O perdão desperta grande gratidão a Deus, e um coração grato é um coração cheio de graça. Que joia preciosa é então o perdão dos nossos pecados. Peçamos então: “Perdoa as nossas dívidas, assim como temos perdoado os nossos devedores.”.

O amor da mulher que foi perdoada por Jesus (Lc 7.47) não foi a causa do seu perdão, mas um sinal dele. Uma alma perdoada é um monumento da misericórdia de Deus, e a pessoa perdoada pensa que nunca poderá ser grata a Deus e amá-la o bastante, tal a grandeza do perdão, em face de passar por alto, como vimos antes, uma culpa infinita, resultante de uma dívida infinita, que é a do pecado.

Um coração perdoado está inflamado de zelo e fervor por Deus, de maneira que onde há um coração duro e frio como o

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mármore é porque não experimentou ainda o perdão dos seus pecados.

Onde o pecado é perdoado a natureza é purificada (Os 14.4). Todo pecador é culpado e doente por natureza, e quando Deus remove a sua culpa, ele cura a sua doença (Sl 103.3).

Quando Deus perdoa Ele muda o coração. No lugar do coração de pedra ele coloca um coração de carne (Ez 36.26). Ele muda os nossos trajes sujos por trajes festivos (Zac 3.4).

Então que ninguém pense que tem sido perdoado dos seus pecados, se lhe faltam estas evidências da operação da graça divina que acompanham o perdão.

Aqueles que têm os seus pecados perdoados são consolados pelo Espírito Santo de Deus (Is 40.1,2).

Os que são perdoados seguirão o Cordeiro aonde quer que Ele vá (Apo 14.4), estando dispostos a morrerem por Ele (At 21.13).

Os que têm sido perdoados sentem um doce calma e paz interior depois de terem passado por muitas tempestades.

Quando o pecado é perdoado o coração fica sem malícia (Sl 32.1,2). Não ter malícia no coração significa simplicidade de coração. Não há ruins suspeitas, nem um coração dobre, nem conspiração. Não apenas as ações serão corretas mas também o coração estará correto quando ele está sem malícia. O coração servirá a Deus pelo princípio correto que é o amor, e para um fim correto, que é para a exclusiva glória de Deus.

Um coração sem malícia não se permite ter no seu interior o menor pecado e evita pecados ocultos. Ele sabe que Deus tudo vê e julga; e assim se guarda de toda a forma de iniquidade (Sl 18.23).

Um coração sem malícia tem completo interesse na verdade de Deus e a defenderá ainda que seja com o sacrifício da própria vida. E lamentará quando o estado da igreja estiver numa condição baixa na qual Deus não esteja sendo honrado e glorificado (Ne 2.3). Assim, quando a igreja do Senhor estiver sofrendo, uma alma sincera sentirá tristeza como se a sua própria pessoa estivesse sendo atingida. Um coração sem malícia se alegra somente com a verdade e quando vê que a causa do evangelho está fundamentada e triunfando.

“Toda a amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmia e toda a malícia sejam tiradas dentre vós,” (Ef 4.31).

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“1 Deixando, pois, toda a malícia, e todo o engano, e fingimentos, e invejas, e todas as murmurações,

2 Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo;” (I Pe 2.1,2).

“6 Ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio algum, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas, como também antes vo-lo dissemos e testificamos.

7 Porque não nos chamou Deus para a imundícia, mas para a

santificação.” (I Tes 4.6,7).

A palavra daquele que tem um coração sem malícia é fidedigna, porque se baseia no princípio de Cristo, de sim, sim, não, não.

Aquele que tem um coração sem malícia é fiel aos seus amigos, e nunca fingirá e dissimulará o que sente junto a eles. Falsificar o amor é hipocrisia e então um coração sem malícia não lisonjeará quando tiver que censurar. Nunca trairá a quem quer que seja com um beijo.

Assim não podemos julgar amizades pela língua, pelas juras de fidelidade e amor. As palavras podem estar cheias de mel enquanto o coração está cheio do fel da malícia. Aquele que atraiçoa o seu amigo não tem um coração que seja verdadeiro para com Deus. Quando isto acontece é um sinal que o pecado não foi perdoado, porque Deus não imputará nenhum pecado àquele cujo coração está sem malícia.

Aquele que teve seus pecados perdoados está disposto a perdoar outros que o ofenderam (Ef 4.32). Um hipócrita virá à igreja, construirá hospitais, dará esmolas, mas não pode perdoar injustiças que tenha sofrido.

Se nós temos espíritos perdoadores nós sabemos que iremos para o céu. É principalmente por este meio que sabemos que pertencemos a Cristo. Não precisamos subir ao céu para saber se nossos pecados foram perdoados, basta olhar para os nossos corações.

Deus olha para uma alma perdoada como se ela nunca tivesse pecado. E esta é a grande consolação do seu povo, saber que Ele perdoou as suas iniquidades (Is 40.1,2), e sabendo isto não

buscaríamos ser perdoados assim como temos perdoado os nossos devedores?

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Aquele cujo pecado foi remido por Cristo é olhado por Deus como se nunca O tivesse ofendido. Embora o pecado remanesça depois do perdão, contudo Deus não olha para ele como um pecador, mas como um homem justo.

A alma perdoada está livrada para sempre da ira de Deus. E quão terrível é a ira de Deus. Mas toda alma perdoada está livrada da ira vingadora de Deus.

A consciência de quem foi perdoado não pode mais acusá-lo da culpa do pecado. E nem pode mais atemorizá-lo.

Se a consciência estiver devidamente informada ela se regozijará no perdão divino em vez de acusar o pecador.

Se o pecado foi perdoado a consciência está serena e tranquila. O céu está claro e não há qualquer tempestade para agitar a mente. E a misericórdia de Deus ilumina a alma.

A culpa corta as asas do perdão. Faz a face se ruborizar, mas a confiança no perdão recebido faz com que olhemos com gratidão e louvor a Deus como um Pai de amor e misericórdia.

Quando os nossos pecados são perdoados as nossa ofertas são aceitas por Deus e Ele nos faz úteis no seu serviço (Zac 3.3,4).

Quando o pecado é perdoado Deus nunca nos censurará por pecados anteriores, tal como aprendemos da parábola do filho pródigo e de todos os pecadores que Jesus perdoou em seu ministério terreno. Ele nunca lançou no rosto deles as faltas que haviam cometido anteriormente ao perdão recebido.

A alma perdoada triunfa sobre a morte. Para estes a morte não é uma destruição mas uma libertação. É uma passagem para o reino de glória.

O perdão dos nossos pecados é uma joia preciosíssima que

pede por aclamações de louvor e gratidão. Você é grato pelo pão diário e não seria muito mais pelo perdão? Você dá graças pela cura da doença e não daria muito mais pela libertação do inferno? Deus fez mais por você perdoando os seus pecados do que lhe tivesse dado um reino na terra.

Mas não pensemos que por causa da bondade, misericórdia e graça de Deus que o perdão é fácil. Não é de modo nenhum fácil obter o perdão, pois temos visto que há condições para ser perdoado por Deus, como por exemplo perdoar os nossos devedores e nos arrependermos, e vimos que o

arrependimento consiste em contrição, confissão e conversão, conforme se vê nas palavras do Senhor em II Crôn

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7.14, quando revelou as condições para que possa perdoar o seu povo, apesar de ter feito uma base para este perdão no sacrifício de Jesus:

“E se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar,

e orar, e buscar a minha face e se converter dos seus maus caminhos, então eu ouvirei dos céus, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra.”(II Crôn 7.14).

Deus não nos perdoará se não nos reconhecermos culpados pelas nossas transgressões contra Ele e contra o nosso próximo. Ele não nos perdoará se não confessarmos as nossas culpas e se não nos dispusermos a nos convertermos dos nossos maus caminhos.

Não podemos esperar ser ouvidos por Deus em nossas orações se não resolvermos primeiro a necessidade que temos de buscar nele o perdão para os nossos pecados. Isto vale também para os crentes, como se vê em II Crôn 7.14, porque estas palavras se aplicam ao povo de Deus.

Mas devemos também fugir do engano de que enquanto nos esforçamos seguindo as instruções anteriores para obter o perdão de Deus, que o façamos confiando no nosso próprio mérito e justiça e não somente no sangue de Cristo como sendo a base na qual devemos depositar a nossa fé para que sejamos perdoados (Apo 1.5; Rom 3.25; I Pe 1.2). E o sangue se mostra eficaz somente quando exercemos fé em Cristo.

E nós vimos também que não é um caminho fácil o que está estipulado por Deus para o perdão dos nossos devedores, porque, apesar de se exigir de nós uma atitude perdoadora, isto é uma completa disposição para perdoar a outros, sendo compassivos para com eles, exige-se o arrependimento da parte deles para que sejam perdoados. Assim, quando um irmão peca contra outro, ou anda de modo desordenado na Igreja contra a doutrina de Cristo, e não se arrepende disto e não reconhece o seu erro e muito menos o confessa e abandona, nós não estaremos fazendo a vontade de Deus se lhe perdoarmos estas ofensas, porque é necessário que haja um verdadeiro arrependimento para a liberação do perdão. Por isso Jesus não deu aos ministros do evangelho somente o

poder de declarar o perdão de pecados, mas também de retê-los por causa da falta de arrependimento (João 20.23).

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E há casos em que nós mantemos um coração aberto em relação àqueles que nos têm ofendido, mas não devemos nos confiar a eles e nem confiar neles, tal como Davi fizera em relação a Simei que lhe havia amaldiçoado, acusando-o injustamente de crimes contra a casa de Saul que ele não havia praticado.

Nós devemos seguir o exemplo de Cristo que quando era injuriado não injuriava a ninguém e entregava-se inteiramente ao cuidado do Pai, que julga retamente, e a quem cabe todo o juízo.

É preciso pedir ao Senhor que aumente a nossa fé, tal como lhe haviam pedido os seus discípulos durante o seu ministério terreno, para que possamos confiar que de fato Deus julgará todas as nossas demandas contra aqueles que nos têm ofendido e prejudicado, enquanto temos uma atitude perdoadora para com eles, na expectativa de que se arrependam para a glória de Deus e para o próprio bem deles.

“3 Tende cuidado de vós mesmos; se teu irmão pecar, repreende-o; e se ele se arrepender, perdoa-lhe.

4 Mesmo se pecar contra ti sete vezes no dia, e sete vezes vier ter contigo, dizendo: Arrependo-me; tu lhe perdoarás.

5 Disseram então os apóstolos ao Senhor: Aumenta-nos a fé.” (Lc 17.3-5).

Assim nunca nos cansemos de fazer o bem a todos, especialmente aos domésticos da fé, orando por eles, exortando-os, dando-lhes a porção necessária da Palavra de Deus para serem alimentados, ainda quando estejam resistindo a isto, porque uma mãe não deixará de alimentar o seu bebê quando ele estiver recusando o alimento. O Senhor se empenha para nos conduzir ao perdão evangélico que cobre multidão de pecados, e juntamente com Ele devemos também esforçar-nos para que outros sejam perdoados por Deus tal como nós o fomos. Usar de bondade e benignidade apenas para com aqueles que se mostram receptivos a nós e que nos procuram não é a norma do Evangelho, conforme bem o demonstra a parábola das bodas em que o Rei ordena que os convidados sejam forçados a comparecerem ao casamento do seu Filho, porque isto será

para o próprio bem deles. Isto revela o empenho e a luta que temos que fazer para propagar o perdão do evangelho,

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dispondo-nos a amar e a perdoar aqueles que se manifestam como nossos inimigos, de maneira que possamos ganhar a alguns deles pelo nosso exemplo de paciência e mansidão no serviço de Cristo.

A Sexta Petição na Oração do Senhor

“E não nos conduza em tentação, mas livra-nos do mal” - Mateus 6.13

O verbo eisfero, no original grego, traduzido no nosso texto por conduzir, é usado em outras seis passagens do Novo Testamento (Mt Lc 5.18, 19; 11.4; At 17.20; I Tim 6.7; Hb 13.11), com o mesmo significado de conduzir, trazer para dentro ou introduzir.

E a palavra para tentação no original grego é peirasmos, e significa experimento, tentativa, teste, prova, adversidade, tribulação ou aflição enviada por Deus para testar ou provar o caráter, a fé ou a santidade de alguém.

Esta petição da oração do Pai Nosso coloca diante de nós a seguinte questão: Porventura Deus conduz alguém em tentação? A resposta óbvia com apoio em outros textos bíblicos como Tiago 1.13 é que não, porque Ele a ninguém tenta e nem pode ser tentado.

Mas se a ninguém tenta, no entanto pode conduzir seus filhos a condições para que sejam provados. E o Senhor Jesus nos ensina a pedir a Deus para que não nos conduza a tais provas em que seremos testados.

Uma chave para a compreensão desta petição da oração do Pai

Nosso é I Pe 1.6,7:

“6 Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora importa, se necessário, que estejais por um pouco contristados com várias tentações,

7 Para que a prova da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e glória, na revelação de Jesus Cristo;” (I Pe 1.6,7).

Neste texto é dito que somos contristados, por um breve

tempo, com várias tentações, mas somente se isto for necessário, a saber: Deus não nos provará

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desnecessariamente caso andemos em conformidade com a sua vontade.

Quando a fé é provada, testada, Deus quer que conheçamos qual é a nossa real condição espiritual, para que possamos entender o quanto necessitamos progredir em santidade pelo aumento da nossa fé.

O ponto é o seguinte: se formos achados aprovados não necessitaremos ser submetidos a provas.

Entretanto, esta não é a condição normal que é encontrada na quase totalidade dos crentes, e de um modo ou outro, num ou noutro grau, todos são provados de alguma maneira para o benefício da sua fé.

Então por que o Senhor ensinou a pedirmos a Deus para não nos conduzir em tentações, uma vez que o apóstolo Tiago afirma que devemos ter por motivo de toda a alegria o passarmos por várias provações?

A chave para a compreensão desta aparente contradição se encontra na continuidade do texto de Mt 6.13 no qual Jesus também ensinou a pedirmos a Deus que nos livre do mal. Então o tipo de tentação referido no texto se restringe às provas em que o maligno estará atuando, como a tentação à qual o próprio Jesus foi submetido no deserto (Lc 4.1,2).

Em Gênesis 22.1 nós vemos o próprio Deus colocando a fé de Abraão a prova quando lhe pediu que sacrificasse Isaque. Não houve qualquer participação de Satanás nesta provação da fé e do amor de Abraão. O Senhor queria comprovar para o próprio Abraão e para todos nós o quanto ele O amava, de maneira que a sua obediência tornou-se um exemplo a ser seguido por nós, na demonstração de que os interesses do Senhor devem sobrepujar os dos nossos afetos naturais pelos nossos familiares.

Há grande diferença portanto entre testar a graça dos crentes, e permitir que as corrupções deles sejam excitadas pela própria natureza deles corrompida pelo pecado ou pelo diabo.

Assim o pedido da oração do Pai Nosso tem a ver com o fato de sermos guardados por Deus em não ficar sujeitos ao poder das várias tentações que há no mundo, e que são estimuladas pelo pecado e pelo diabo, de maneira que nos dê graça e força para

vigiarmos e nos guardarmos destas tentações, fugindo delas, resistindo a elas, e tendo o suporte de graça e poder do

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Espírito Santo necessários para viver de modo santo. O Senhor poderia ter dito: “livra-nos da tentação”, mas disse “não nos conduza em tentação”, isto é, não nos deixe entrar nelas, não permita que sejamos trazidos para dentro delas, de maneira que um crente fará muito bem em se manter afastado de todas as possíveis fontes de tentação que poderão levá-lo a pecar.

É necessário contar e ter efetivamente o poder da graça de Deus no coração para poder resistir às fontes de tentações.

E uma destas fontes flui de dentro de nós mesmos (Tg 1.14). O coração é a fonte de todo pecado. O maior tentador é o nosso próprio coração, de maneira que todo homem é tentado pela sua própria cobiça.

Mas além de virem de dentro de nós as tentações têm também uma fonte externa que é Satanás. Ele é chamado de o Tentador (Mt 4.3). Ele arma ciladas para nos causar danos, e usa as tentações como explosivos para explodir o forte da nossa graça.

Um crente ficará exposto às tentações durante todo o curso da sua vida. E elas são numerosas e variadas, de maneira que não é sem razão que o Senhor nos ensinou a pedir ao Pai que não permita que sejamos conduzidos às tentações. E é de se supor que aquele que não orar neste sentido, conforme o Senhor nos ensinou ficará muito mais exposto e sujeito a ser afligido por múltiplas tentações que procurarão enfraquecer as suas graças e lhe furtar a paz.

A tentação é um grande molestamento para um filho de Deus, porque quanto mais formos tentados pelo mal, mais somos impedidos de praticar o bem. Nós estamos em grande perigo de receber constantes ataques do Inimigo, e por isso devemos orar frequentemente: “não no conduza em tentação”.

Se Deus não impusesse limites às tentações de Satanás e deixasse os seus filhos sem o fortalecimento de graça e à mercê do poder do diabo, ele poderia facilmente levá-los até mesmo à insanidade mental ou ao colapso nervoso, mas há um clamor no coração de cada crente que pede ao Senhor que O livre das ciladas do diabo, e este clamor deve ser traduzido

em orações verbais nas quais peçam humildemente a Deus que não os conduza em tentação.

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Por isso é algo que deve ser evitado a todo custo por todos os crentes, não apostatarem da fé pela prática deliberada do pecado, de maneira que sejam conduzidos por Deus em tentação, sendo entregues a Satanás para a destruição da carne.

Se necessário for, que sejamos conduzidos em tentação somente para o cumprimento de seus propósitos elevados, em obediência à sua vontade, assim como se deu no caso de Jó, que foi entregue a Satanás por Deus, sendo assim conduzido em tentação, mas para que ficasse provado o caráter da fé e do amor genuínos que Jó possuía. E de igual forma o apóstolo Pedro, e até mesmo o próprio Senhor Jesus no deserto, mas vemos que isto é sempre por um breve tempo, e segundo o controle e vontade de Deus, e não por exclusiva iniciativa do diabo, senão ele teria motivo para se gloriar do seu poder diante dos crentes e do próprio Deus.

“Não veio sobre vós tentação, senão humana; mas fiel é Deus, que não vos deixará tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar.” (I Cor 10.13).

Nós estamos vendo a complexidade deste assunto relativo a tentações. Há nuances nele e distinções de operações, que nos fazem entender que nem todo tipo de tentação é um

motivo para nos gloriarmos nelas (como o caso de ser entregue a Satanás para destruição da carne por motivo de desobediência deliberada a Deus), mas para que nos envergonhemos da nossa condição e nos arrependamos.

Veja o caso de muitos na Igreja de Corinto conforme se depreende das seguintes palavras do apóstolo:

“17 Nisto, porém, que vou dizer-vos não vos louvo; porquanto vos ajuntais, não para melhor, senão para pior.

18 Porque antes de tudo ouço que, quando vos ajuntais na igreja, há entre vós dissensões; e em parte o creio.” (I Cor 11.17,18).

“30 Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem.

31 Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados.

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32 Mas, quando somos julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo.” (I Cor 11.30,32).

A Igreja de Corinto estava sendo vencida pelo engano do diabo, através de falsos apóstolos que exploravam financeiramente aquela Igreja que havia sido fundada pelo apóstolo Paulo. Por causa disto, para não ser considerado igual àqueles apóstolos fraudulentos, ministros de Satanás (II Cor 11.3,13,14), Paulo havia servido a Igreja de Corinto com o salário que recebia de outras Igrejas, especialmente da Macedônia (II Cor 11.7,8), e afirmou que continuaria pregando gratuitamente o evangelho em Corinto para cortar ocasião de maledicência entre eles, por inspiração satânica, de que pregava por interesse financeiro como os demais “apóstolos” que estavam entre eles (II Cor 11.9), e que triste coisa é esta, ter que fazer tal tipo de afirmação que comprovava a infidelidade deles para com os verdadeiros ministros de Deus. Não admira que tantos estivessem sendo enfermados, enfraquecidos e mortos naquela Igreja como forma de disciplina que o Senhor estava usando para conduzi-los ao arrependimento.

Eles haviam caído no laço do diabo por causa do endurecimento no pecado. Eles estavam inchados em sua sabedoria carnal e não estavam se sujeitando à simplicidade do evangelho de Cristo, em plena obediência à doutrina verdadeira. Assim, tornaram-se uma presa fácil para o Inimigo, e deste modo bem faríamos em considerar quão

perigosas são as tentações de Satanás.

Satanás inveja com ódio mortal a felicidade que o crente tem com Deus. É algo insuportável para ele ver que um ser feito do pó da terra venha a ser glorificado enquanto ele será derrubado ao mais profundo abismo, ele que uma vez foi um querubim glorioso, expulso do paraíso divino. Em Apocalipse

12.12 é afirmada a grande ira com que ele desceu à terra para tentar os seus habitantes.

Então o maior prazer do diabo é encantar e arruinar almas e trazê-las à sua mesma condenação, e quando isto lhe escapa pela conversão de alguns, estes serão continuamente

espreitados por ele, esperando que fracassem em sua vigilância, de maneira que possa tragá-los, não para o inferno,

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porque sabe que não poderá mais ter crentes autênticos em sua companhia no inferno, mas para conduzi-los a uma condição de desobediência a Deus e à sua Palavra, de maneira que fiquem sujeitos à sua disciplina e correção, enquanto ficam privados da comunhão com Ele. Com isto ele consegue ferir tanto o coração do crente quanto o do próprio Deus.

Sendo Satanás um espírito vingativo, malicioso, traiçoeiro, enganador, nós devemos orar continuamente: “não nos conduza em tentação”, para que Satanás não prevaleça sobre nós.

Satanás anda inquieto como um leão à procura da sua caça. Ele rodeará o mar para fazer um prosélito. Ele não desperdiça o seu tempo e está sempre ocupado e se nós o repelirmos ele não desistirá, e virá novamente sobre nós com uma tentação.

Se ele conseguir uma pequena vantagem sobre nós numa tentação, ele procurará a todo custo levar isto até o seu ponto extremo.

Ele tem uma variedade de tentações para usar e não se limita a um único tipo de tentação. Se não conseguir prevalecer com um tipo, ele usará outro; se não puder tentar com cobiça, tentará com orgulho; se não conseguir amedrontar o homem, ele o tentará com presunção; se não conseguir levá-lo a profanar, tentará torná-lo formalista; e se não conseguir conduzir ao vício, tentará conduzir ao erro. Para isto enganará através de revelações falsas e toda forma de artifício que estiver ao seu alcance. Por isso precisamos orar: “não nos conduza em tentação”.

Satanás é representado como sendo o grande dragão vermelho que lançou por terra a terça parte das estrelas do céu (Apo 12.3,4); é chamado também de valente (Lucas 11.21) e de príncipe deste mundo (João 14.30). Assim, embora ele tenha perdido a sua santidade original, no entanto não foi

retirado dele o poder que Deus lhe havia dado.

Sendo um espírito ele pode influenciar a imaginação das pessoas envenenando-a com pensamentos ruins. Foi ele

quem colocou no coração de Judas o pensamento de trair a Cristo (João 13.2).

Embora ele não possa compelir a vontade, no entanto pode

apresentar objetos agradáveis aos sentidos exercendo grande influência sobre eles. Ele pode usar as artes para gerar

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idolatria nos corações das pessoas em relação aos artistas. E faz isto especialmente com a música. Ele pode seduzir o coração com riquezas terrenas tal como fizera com Acã fazendo-lhe cobiçar as riquezas condenadas de Jericó nos dias de Josué. Foi Satanás que influenciou Davi a fazer o censo que lhe havia sido proibido por Deus (I Crôn 21.1). Ele pode fazer com que uma faísca de cobiça se transforme numa chama.

Sendo um espírito ele pode encher as nossas mentes de tentações de maneira que tenhamos dificuldade para discernir se elas vêm dele ou de nós mesmos. Assim com um pássaro pode chocar o ovo de um outro pensando que seja seu; nós podemos estar chocando as influências do diabo pensando que elas vêm dos nossos próprios corações.

Quando Pedro tentou dissuadir Cristo de sofrer, morrendo na cruz, ele pensou que isto vinha do afeto que tinha pelo seu Mestre, sem saber que a mão de Satanás estava naquilo (Mt 16.22).

E se Satanás tem este poder de instilar tentações sem que nós o saibamos, nós temos necessidade de orar para não sermos conduzidos em tentação. É preciso orar a Deus por livramento porque é muito difícil distinguir entre aquilo que procede de insinuações diabólicas e aquilo que procede de nós mesmos.

Mas podemos pelo menos tentar identificar a origem da tentação, se do nosso coração ou do Inimigo, e uma das maneiras de fazer tal identificação é que a tentação de Satanás nos vem de maneira súbita, como um dardo que é atirado (Ef 6.16), e já a tentação que é originada no coração começa através de graus, de maneira vagarosa procurando obter o consentimento da mente. Em segundo lugar, a tentação que é originada em nosso próprio coração não é tão terrível e não agita e assusta a alma como as que são de origem satânica, que chegam a insinuar até mesmo blasfêmia e suicídio. Em terceiro lugar, quando são lançados maus pensamentos na mente nós os detestamos e lutamos contra eles, e fugimos deles como Moisés fugiu da serpente, e isto demonstra que a mão de Joabe está nisto (II Sm 14.19), isto é, foi Satanás quem produziu estes movimentos impuros.

O poder de Satanás na tentação é oriundo da longa

experiência que ele adquiriu através dos séculos e milênios nesta arte. E esta experiência do diabo aumenta o nosso

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perigo, e nós temos portanto necessidade de orar: “não nos conduza em tentação”.

Satanás é um assassino que está no mundo para roubar, matar e destruir, e devemos nos prevenir dele vigiando atentamente os seus passos, de maneira que não venhamos a cair nos seus laços.

Sigamos o conselho de Cristo vigiando e orando em todo o tempo para não entrarmos em tentação (Mt 26.41).

Muitos perguntam por que Deus permite que os seus santos sejam esbofeteados pelas tentações de Satanás.

Primeiro ele permite isto para que sejam provados. Satanás usa a tentação com o fim de levar a efeito os propósitos malignos a que nos referimos anteriormente, e Deus permite a tentação para que sejamos provados de modo que possamos crescer na fé através da resistência a Satanás e do aprendizado da dependência e obediência ao Senhor para poder vencê-lo. E quando o diabo é vencido pela graça e coragem do crente em ficar firme no testemunho da verdade contra as mentiras do diabo o Senhor e o evangelho são honrados. Através das tentações Deus mantém os seus filhos livres do orgulho espiritual, tal como permitira que Paulo fosse esbofeteado por um mensageiro de Satanás para permanecer humilde perante Ele depois de ter tido as visões gloriosas do terceiro céu. Isto impediu que ele se gloriasse em si mesmo, e soubesse que não foi por nenhum mérito pessoal e justiça própria que lhe fora dada tal experiência gloriosa por Deus (II Cor 12.7).

Deus também permite que seus filhos sejam tentados para que possam adquirir experiência para poderem confortar a outros (II Cor 2.11).

As tentações também nos revelam que o céu não é aqui neste mundo. Que a terra foi amaldiçoada por causa do pecado e não é nenhum paraíso com as múltiplas operações do diabo. Definitivamente o mundo não é o nosso lugar de descanso e devemos aspirar por uma pátria superior que é o céu.

Mas enquanto caminhamos neste mundo devemos nos consolar com o pensamento relativo à verdade que Satanás e até mesmo uma legião inteira de demônios não podem tocar

sequer um porco se Cristo não lhes der licença, como bem aprendemos da história do gadareno. Se Satanás e os

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demônios tivessem liberdade para agirem com total liberdade, nenhuma alma seria salva.

E lembremos que se não é possível impedir a tentação, no entanto nunca será da vontade de Deus que nós caiamos nela. O peixe não será fisgado pelo anzol se não morder a isca.

Vencendo a tentação nós pisamos na cabeça da serpente juntamente com Cristo. O diabo é vencido quando usamos toda a armadura de Deus e estamos revestidos do Senhor e da força do seu poder.

Quanto mais um crente for tentado mais ele lutará contra a tentação e ficará cada vez mais experimentado nas batalhas espirituais, amando a santidade e detestando as tentações através das quais o diabo procura afastá-lo da sua firme posição na fé. Assim as tentações cooperam indiretamente para o aumento da fé e das demais graças de um crente. E aquele que vence a tentação é confortado por Deus, assim como Cristo foi servido pelos anjos depois de ter vencido o diabo no deserto.

Mas ainda que um crente autêntico caia numa tentação, contudo a semente da vida eterna está nele (I João 3.9). A graça pode ser abalada mas não destruída, e o diabo sabe muito bem disto. Ele não tentará lançar um crente no inferno, porque sabe que isto é impossível, mas tentará neutralizar as suas ações contra ele.

Deus nos aperfeiçoa em força e poder vencendo as tentações. Que poder há num homem que não consegue vencer a menor tentação?

Veja consequentemente que a vida de um crente não é nenhuma vida fácil. É uma vida militar: há um Golias no campo de batalha para lutarmos contra ele na força do Senhor.

E não devemos estar nesta guerra contra as múltiplas tentações do Inimigo, lutando sozinhos. Nós devemos estar na comunhão dos santos para sermos bem-sucedidos nesta guerra de muitas batalhas. A comunhão e a intercessão dos santos é o melhor remédio contra a tentação.

E se você não deseja ser vencido pela tentação esteja sóbrio (I Pe 5.8). A sobriedade consiste no uso moderado das coisas

terrenas. Um desejo imoderado destas coisas coloca os homens na armadilha do diabo (I Tim 6.9). Aquele que ama as

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riquezas imoderadamente as adquirirá injustamente. Acabe se apoderou do vinhedo de Nabote derramando o seu sangue. Aquele que está embriagado com o amor ao mundo, nunca estará livre de cair em tentação.

Nós nos depararemos com o tentador em todos os lugares e por isso devemos estar sempre empunhando a espada do Espírito que é a Palavra de Deus. É com a verdade da Palavra que se vence o pai da mentira. Quando usamos a Palavra em nossas tentações e nos amparamos nas suas verdades e não nos nossos sentimentos na hora da aflição e da tentação, o Inimigo baterá em retirada e Deus dará paz às nossas mentes e corações.

“6 Não estejais inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplica, com ação de graças.

7 E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus.” (Fp 4.6,7).

Não há qualquer tentação que não tenha uma resposta adequada na Bíblia pela qual podemos enfrentá-la. Por exemplo, se o diabo insinuar a prática do adultério, nós podemos dizer que está escrito: “não adulterarás”, ou que “Deus julgará os adúlteros”. Se ele nos tentar a endurecer o nosso coração contra qualquer pessoa, por algum dano ou ofensa que nos tenha causado nós devemos dizer que está escrito: “Amai os vossos inimigos”, “bendizei os que vos perseguem“, “não vos vingais a vós mesmos”, “vençamos o mal com o bem” etc.

Fujamos também de toda fonte de tentação. Os nazireus não podiam comer ou beber qualquer produto da videira, especialmente bebida forte, para que isto não ocasionasse intemperança. Havia nesta prática de consagração da dispensação da Lei uma clara figura de que os crentes que são nazireus de Deus, pela consagração a Ele durante todo o tempo de suas vidas, têm o dever de se guardarem da intemperança em todas as suas formas. Se não nos guardamos de intemperanças como a do beber e do comer

desordenadamente, por exemplo, nada adiantará orarmos para que Deus não nos conduza em tentação.

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Sendo criteriosos em todo o nosso modo de viver podemos então contar com o poder das nossas orações. A oração atormenta o diabo e o coloca em fuga, livrando-nos de cair na tentação. Mas sejamos humildes enquanto oramos sabendo que é o poder de Jesus que faz o diabo fugir, e não o nosso próprio poder. Lembremos que a quem se humilha Deus concede maior graça.

Para não cairmos em tentação devemos fugir de argumentar com Satanás. Eva começou a entrar em desvantagem com o Inimigo quando começou a argumentar com ele. Nós podemos afirmar a verdade de Deus para o diabo mas se entramos em considerações vãs argumentando com ele ou com os seus instrumentos, nós poderemos acabar persuadidos e vencidos pelo erro, ou abalados em nossas convicções se não tivermos maturidade suficiente de fé. Mesmo crentes maduros que têm as faculdades exercitadas para discernirem tanto o bem quanto o mal devem evitar contendas de palavras com os que se opõem à verdade, para não ficarem expostos ao mal, e nem lançarem pérolas aos

porcos.

“23 E rejeita as questões loucas, e sem instrução, sabendo que produzem contendas.

24 E ao servo do Senhor não convém contender, mas sim, ser manso para com todos, apto para ensinar, sofredor;

25 Instruindo com mansidão os que resistem, a ver se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade,

26 E tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do diabo, em que à vontade dele estão presos.” (II Tim 2.23-26).

Satanás foi vencido por Cristo na cruz, e não há portanto o que se argumentar com um inimigo vencido. Devemos fazer valer a vitória da cruz sobre ele vivendo de modo santo em inteira firmeza de fé. A vitória sobre o diabo está diretamente relacionada ao grau da nossa sujeição a Deus e à sua vontade.

Paulo não desconhecia os estratagemas de Satanás (II Cor 2.11) porque estava experimentado em ver suas tentações tanto em sua vida como na vida dos seus irmãos em Cristo. E de igual modo nós devemos estar bem instruídos acerca dos

movimentos do Inimigo para destruir a nossa fé, de maneira que possamos neutralizar os seus intentos malignos.

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Devemos ser gratos a Deus por nos dar a vitória por meio de Cristo Jesus (I Cor 15.57). É a graça do Senhor que nos conduz em triunfo nas batalhas contra o Inimigo. Por isso somos ensinados a orar: “não nos conduza em tentação” porque isto não nos traz somente a eficácia, como também o reconhecimento de qual é a fonte que nos garante a vitória sobre as tentações.

A segunda e última parte da sexta petição da oração do Pai Nosso é: ”mas livra-nos do mal.”. Há muito mais nesta petição do que é expressado, porque o pedido para livramento do mal tem em vista que possamos fazer progresso em nossa devoção a Deus.

“Ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas, vivamos neste presente século sóbria, e justa, e piamente,” (Tito 2.12).

De um modo geral, quando nós oramos para sermos livrados do mal, nós estamos orando para sermos livrados do mal do pecado, e particularmente, como parece estar insinuado no nosso texto de Mt 6.13, da prática do pecado que seria oriunda de cairmos em tentação, o que se pode inferir do uso da conjunção adversativa “mas” do texto “mas livra-nos do mal”

(allá, que se encontra no original grego significa contudo, mas, entretanto), indicando assim que ao pedirmos a Deus para não sermos conduzidos em tentação, está implícito que Ele nos livrará de muitas tentações, mas também, para o nosso próprio proveito, como vimos antes, permitirá que sejamos provados com muitas tentações, e neste caso, o Senhor nos ensinou a orar a pedir a Deus que nos livre do mal, de maneira que não sejamos vencidos pelas tentações de Satanás, que visam produzir danos e levar-nos a pecar.

Quando nós oramos para sermos livrados do mal nós não estamos orando obviamente para sermos livrados de modo final e imediato do princípio do pecado que opera em nós. Nós não podemos nos livrar de modo definitivo desta víbora enquanto estivermos vivendo neste mundo, mas podemos pedir a Deus para nos livre cada vez mais das suas picadas venenosas.

Quando nós consideramos o que é o pecado de maneira correta e fazendo uma justa avaliação do mal execrável que

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ele é, nós entendemos melhor porque devemos orar “mas livra-nos do mal”.

O pecado é mau em sua natureza porque é uma transgressão contra Deus. É a transgressão da Lei da Majestade Divina (I João 3.4). Assim é um crime de lesa majestade.

A palavra hebraica para pecado (hatat) significa ofensa, rebelião. E no grego, a palavra para pecado é amartia, e significa errar o alvo.

Assim o pecado é tanto uma rebelião contra Deus, como não acertar o alvo quanto à sua vontade em relação ao que

deveríamos ser e o modo de procedermos em nossa vida.

O pecado é um ato de alta ingratidão para com Deus. Ele alimenta o pecador, é misericordioso e longânimo para com ele, mas o pecador se esquece das suas misericórdias e abusa da sua longanimidade para com ele.

O pecado faz com que o homem se torne escravizado à sua própria vontade e à de Satanás. Somente o homem que estiver livre da tirania do seu próprio ego e do diabo pode de fato servir a Deus e viver de modo que exerça domínio sobre sua vontade e sobre o diabo, ao invés de ser dominado por ambos.

O pecado produz um estado ruim na alma incompatibilizando-a de ter paz, harmonia e comunhão com o Espírito de Deus. Quando o pecado estiver reinando o Espírito Santo estará entristecido, mas quando é a graça que está reinando o pecado é dominado e vencido pelo Espírito.

O pecado é a causa da aflição, e a causa é pior que o efeito. O pecado traz todo tipo de dano; doença, espada, escassez e todo os julgamentos em seu útero. Apodrece o nome, consome a propriedade e arruína o corpo. Causa motins, divisões e massacres. Por causa do pecado tudo morre no mundo, e o próprio mundo passará pelo juízo de Deus por causa do pecado.

A aflição propriamente dita pode servir de alerta para que nos voltemos para Deus confessando os nossos pecados; e assim, se produz tristeza para arrependimento torna-se em algo proveitoso para nós, porque se transforma num imã que nos puxa para perto de Deus. Assim no meio da adversidade externa pode haver paz interior.

Muitas aflições são o resultado das repreensões de um Pai de amor (Apo 3.9) que visa conduzir-nos através delas ao

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arrependimento. Nós devemos então aprender a chorar não propriamente pelas nossas aflições, mas pelo que geralmente dá causa a elas que é o pecado.

Assim, os santos podem se alegrar em suas aflições (I Tes 1.6; Hb 10.34), especialmente naquelas que lhes sobrevêm por causa do seu testemunho em favor da verdade divina.

Nós podemos nos alegrar nas aflições, mas não no pecado, de maneia que não podemos nos alegrar naquelas aflições que foram originadas por causa dos nossos próprios pecados. É preciso saber distinguir entre aflições e aflições. Nós podemos e devemos ser gratos a Deus por estas aflições originadas da prática do pecado porque são como sirenes nos alertando para nos arrependermos do mal, e pedirmos humildemente a Deus que nos livre do mal que deu causa às nossas aflições, a saber, neste caso, o pecado.

O pecado é questão de vergonha e aflição e não de alegria (Os 9.1; II Sm 24.10).

Agora os sofrimentos que suportamos por amor a Cristo, tal como os que Jó padeceu em sua paciência, serão transformados numa coroa de glória, porque através deles nós testificamos da nossa fidelidade e obediência à vontade de Deus (Tg 5.2).

Com o pecado ocorre o oposto, porque se transforma a glória em vergonha, tal como ocorreu com os filhos de Eli quando tinham pecado e profanado o sacerdócio deles.

O zelo e a constância dos mártires em seus sofrimentos eternizaram os nomes deles. Quando um crente está sofrendo segundo a vontade de Deus como Pedro, quando estava na prisão (At 12.5) Deus fará com que outros santos intercedam em oração a favor dele. Mas quando um homem peca deliberadamente e de modo escandaloso, ele terá as lágrimas amargas dos santos e somente censuras, e ele se transformará num fardo para os demais (Sl 31.2).

O aguilhão da morte é o pecado (I Cor 15.26), isto é, o pecado é a causa da morte. A morte física faz apenas separação entre o corpo e o espírito, mas o pecado sem arrependimento é uma morte pior porque faz separação entre o espírito e Deus.

O pecado é pior que o inferno porque o inferno foi criado por

Deus para juízo do diabo, seus anjos caídos e dos homens impenitentes. Mas o pecado não foi criado por Deus, antes é

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um monstro criado pelo diabo. Os tormentos do inferno são um fardo apenas para os pecadores impenitentes, mas o pecado é um fardo para Deus. Como não oraríamos então pedindo a Deus que nos livre do mal que é o pecado?

Necessitamos orar assim porque há pecados de omissão e pecados ocultos que nem sempre conseguimos reconhecer e que por conseguinte não confessamos. Mas tal como Davi devemos também pedir a Deus que nos livre destes pecados.

Devemos fugir não somente dos pecados aparentes, que aparecem, como também de toda aparência de mal. A

aparência do bem é muito pequena mas a aparência do mal é muito grande e deve ser evitada a todo custo, porque ainda que algo não seja pecaminoso, mas parece ser pecado, deve então ser evitado. A aparência do mal pode escandalizar a outros (I Cor 8.12).

O pecado original não pode ser erradicado, mas deve ser mortificado. Os pecados irrompem porque não é mortificado o pecado no coração de onde procede todo tipo de mal. As primeiras evidências de orgulho, cobiça, impureza e paixão devem ser suprimidos antes que cresçam subjugando o espírito, a alma e o corpo. A expressão que o mal deve ser cortado pela raiz bem se aplica à mortificação do pecado.

É preciso cultivar o temor de Deus no coração, sabendo que Ele tudo vê e julga, que daremos contas de tudo o que tivermos feito por meio do corpo no Tribunal de Cristo, e isto muito nos ajudará a ter o devido temor de viver no pecado. E isto será saúde para nós mesmos e para muitos outros que forem alcançados pelo nosso bom testemunho.

Aquele que tem o temor de Deus vigia os principais portais da alma que são os olhos e os ouvidos, e também cuida de vigiar os seus pensamentos, porque é por estas portas que o estímulo para o pecado costuma entrar. Um simples pensamento de vingança pode conduzir a um assassinato ou a uma ira e ódio injustificados. Assim a maioria dos pecados são decorrentes da falta de cuidado com a vigilância.

O amor a Deus sendo continuamente cultivado no coração é uma poderosa arma contra a força e insinuações do pecado. O amor pela glória e santidade de Deus fará com que tenhamos

um objetivo nobre e elevado em nos cuidar não pecando contra Ele.

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Se você deseja ser livrado por Deus do mal mantenha-se então ocupado em sua obra e você sentirá de perto que é impossível servir a Deus sem santificação. De outro modo seremos hipócritas falando a outros de uma santidade que falta em nós mesmos.

Devemos considerar que quando oramos para que Deus nos livre do mal, nós estamos pedindo que Ele nos livre do mal do nosso coração, porque é uma fonte envenenada de onde flui todo tipo de pecados (Mt 7.21). Satanás não poderia prevalecer sobre nós tentando-nos a praticar o pecado se nós não lhe déssemos consentimento em nossos corações. Tudo o que ele pode fazer é colocar a isca, e a nossa falta é mordê-la. Então oremos para que Deus nos livre do mal do nosso próprio coração.

Também, quando fazemos esta oração pedindo a Deus que nos livre do mal nós estamos pedindo para que nos livre do mal de Satanás (Mt 13.19; Ef 6.12; I Pe 5.8; Zac 3.1).

Satanás encheu o coração de Aananias para que mentisse ao Espírito Santo (At 5.3).

Finalmente, quando oramos para sermos livrados do mal, além de orarmos pelo livramento do mal do nosso próprio coração e de Satanás nós estamos orando para sermos livrados do mal do mundo. Em Cristo nós somos livrados do pecado, do diabo e do mundo. A obra de redenção consiste também em nos desarraigar deste mundo mau e tenebroso (Gál 1.4; Tg 1.27).

O mundo está cheio de armadilhas. Companhia é uma armadilha, bem como recreação e riquezas são armadilhas.

A luxúria da carne é beleza e sensualidade; a luxúria dos olhos é dinheiro e o orgulho da vida é fama e honra mundanos; esta é a trindade do homem natural. O mundo é um inimigo lisonjeiro que nos trai beijando. Os prazeres do mundo são como o ópio que dão ao homem uma falsa sensação de

segurança.

É difícil beber o vinho da prosperidade e não ficar embriagado com ele. Por causa da corrupção do pecado original que está nas massas em geral da humanidade, o mundo é mau.

O mundo nunca incentivará portanto que os homens vivam

piedosamente e busquem a Deus, e nisto se torna um grande perigo para os crentes que não são como os anjos eleitos,

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senão pecadores como os seus semelhantes, que terão no mundo um forte atrativo para retornarem ao velho modo de vida, porque o mundo jaz no maligno, e o imenso imã do mundo exerce uma grande atração sobre o imã do pecado que reside na nossa natureza terrena.

Os cuidados terrenos sufocam a semente da Palavra, conforme Jesus nos ensinou na parábola do semeador. E um homem que tem a sua mente ocupada deste modo com as coisas terrenas não consegue se ocupar com as coisas celestiais, espirituais e divinas.

O mundo odeia portanto os crentes (João 15.19) porque eles vivem num plano de vida (espiritual e na luz) que é diferente do plano em que o mundo vive (somente terreno). O mundo odiou a Cristo e também odiará os crentes que são fiéis a Cristo porque protestam contra o seu pecado, e a luz tanto de Cristo quanto dos crentes não pode ser amada por aqueles que amam mais as trevas do que a luz.

Então nós devemos orar para que Deus nos livre do mal deste mundo mau.

Embora seja ordenado aos crentes que amem os seus inimigos, este (o mundo) é um inimigo que nós não devemos amar (I João 2.15).

Ainda está incluído indiretamente na nossa oração por livramento do mal que também façamos o bem, porque não é suficiente que sejamos livrados do mal, porque isto tem um propósito, conforme já comentamos anteriormente, que é para que possamos fazer progresso em santidade. Ser livrados

de pecar não é o bastante, a menos que nós estejamos apegados à virtude. A Bíblia assim une ambos os deveres (Sl 34.14; Rom 12.9; 13.14; Is 1.16,17; II Cor 7.1).

Um homem pode se privar do mal, contudo ele pode ir para o inferno por não fazer o bem, porque toda árvore que não der bom fruto será cortada e queimada (Mt 3.10).

Oremos sempre então para que Deus nos livre do mal, para que possamos abundar no testemunho da prática das boas obras que Ele preparou de antemão para que andássemos nelas.

Jejum

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Tradução e adaptação de Silvio de um texto de D. M. Lloyd Jones.

“16 Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque eles desfiguram os seus rostos, para que os homens vejam que estão jejuando. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa.

17 Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto,

18 para não mostrar aos homens que estás jejuando, mas a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mt 6.16-18)

Passamos agora à análise da terceira ilustração que nosso Senhor usou quanto ao modo em que devemos nos conduzir nesta questão da justiça pessoal. A primeira foi sobre as esmolas, a segunda sobre a oração, e agora esta terceira sobre o jejum.

Quanto ao jejum, nosso Senhor, nesta situação concreta estava preocupado somente com um aspecto do tema, e era a tendência de fazer estas coisas para ser vistos pelos homens. Lhe preocupava este aspecto exibicionista, que em consequência devemos necessariamente examinar. Porém, me parece que, diante da negligência do tema por nossa parte, é adequado e proveitoso também que o examinemos num forma mais geral, antes de chegar ao ponto específico que é enfatizado por nosso Senhor.

Examinemo-nos deste esta perspectiva. Qual é na realidade o lugar do jejum na vida cristã? Em que ponto entra, segundo o ensino da Bíblia? Esta é a resposta: É algo que é ensinado no Antigo Testamento. Sob a lei de Moisés, os filhos de Israel receberam o mandamento de jejuar uma vez por ano, no dia da expiação nacional. Mais adiante lemos que, devido a certas emergências nacionais, as pessoas escolhiam certos dias de jejum adicionais. Porém o único jejum que Deus mesmo ordenou de forma direta foi esse grande jejum anual.

Quando passamos para a época do Novo Testamento, vemos que os fariseus jejuavam duas vezes por semana. Deus nunca

lhes mandou que o fizessem, porém eles o faziam, e o converteram numa parte vital da sua religião. Sempre existe a

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tendência, entre certas classes de pessoas religiosas, de ir mais além da Bíblia, e esta é posição que os fariseus adotaram.

Se examinarmos o ensino de nosso Senhor, encontramos que, se bem que nunca ensinou o jejum de forma direta, o ensinou de forma indireta. Em Mateus 9 nos diz que se lhe formulou uma pergunta específica acerca do jejum. Lhe disseram: “Por que nós e os fariseus jejuamos muitas vezes, e teus discípulos não jejuam?” Jesus lhes disse: “Acaso podem os que estão de bodas terem luto quando o esposo está com eles? Porém virão dias em que o esposo lhes será tirado e então jejuarão!”

Me parece que nesta passagem, em forma muito clara, está implícito o ensino do jejum e quase diria a defesa do mesmo. É evidente, de todos os modos, que nunca o proibiu. De fato, o ensino que estamos examinando neste momento, obviamente implica a aprovação do mesmo. O que diz é: “quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto,” de maneira que, naturalmente, era algo que nosso Senhor considerava justo e bom para os cristãos. E recordemos que Ele mesmo jejuou quarenta dias e quarenta noites quando esteve no deserto submetido à tentação do diabo.

Logo, passando do ensino e prática de nosso Senhor às da Igreja Primitiva, vemos que foi algo que os apóstolos praticaram. Na Igreja de Antioquia, quando enviaram a Paulo e a Barnabé em sua viagem apostólica, o fizeram somente depois de terem se dedicado à oração e ao jejum. De fato, a Igreja Primitiva, diante de qualquer ocasião importante ou diante da necessidade de tomar uma decisão vital, parecia praticar sempre, não somente a oração, como também o jejum. O apóstolo Paulo ao se referir ao mesmo e à sua vida, fala acerca de ter jejuado frequentemente. Foi claramente algo que tomou parte regular de sua vida. Os que se interessam pela crítica textual, recordarão que em Mc 9.29 se cita a Nosso Senhor dizendo:” Esta casta não pode ser expulsa, senão com oração e jejum!”. É provavelmente acertado dizer que a palavra “jejum” deveria ser eliminada de acordo com os melhores documentos e manuscritos, porém, isto não tem importância quanto ao ponto em geral, porque possuímos todos os outros ensinos que mostram muito claramente que o

Novo Testamento inculca, em forma concreta, o jejum como algo adequado e valioso. E quando examinamos a história da

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Igreja, encontramos exatamente o mesmo. Os santos de Deus de todas as épocas e em todos os lugares não somente têm crido no jejum, senão que o têm praticado. Assim foi o caso dos reformadores protestantes, dos Wesleys e Whitefield. Tenho de admitir que o praticaram muito, antes que houvessem se convertido de verdade; porém seguiram jejuando também depois de sua conversão. E quem conhece a vida deste grande cristão chinês, o pastor Hsi da China, recordarão que quando se falava diante de alguma dificuldade, ou problema novo ou excepcional, invariavelmente jejuava, além de orar. O povo de Deus tem crido que o jejum não somente é bom, senão que é de grande valor e importância sob certas condições.

Se estes são, pois, os antecedentes históricos, examinemos agora este assunto de uma forma um pouco mais direta. Que é exatamente o jejum? Qual é seu propósito? Não cabe dúvida que, em última instância, é algo que se baseia na compreensão da relação entre corpo e espírito. O homem é corpo, mente e espírito, os quais estão intimamente relacionados entre si e atuam estreitamente um sobre o outro. Os distinguimos porque são diferentes, porém, devido a essa mútua relação e interação, não devemos separá-los. Não há dúvida de que os estados e condições corporais físicos influem na atividade da mente e do espírito, de modo que o jejum deve ser considerado dentro dessa relação peculiar de corpo, mente e espírito. Portanto, o jejum significa abstinência de comida com fins espirituais. Esta é a noção bíblica do jejum que deve se distinguir do que é puramente físico. A noção bíblica do jejum é que, por certas razões e fins espirituais, as pessoas decidem abster-se de comer, este ponto é muito importante, e por isso devemos apresentá-lo também de uma forma negativa. Recentemente li um artigo sobre este tema, e o escritor se referia a essa afirmação do apóstolo Paulo em I Cor 9.27, onde diz: “Ponho meu corpo em servidão!”. O apóstolo diz que o fazia a fim de poder trabalhar com mais dedicação. O autor do artigo afirmava que aqui teríamos uma ilustração do jejum. Isto não é mais do que o que chamaria parte da disciplina geral do homem. Em todo

momento tem que manter seu corpo submetido, porém isto não significa que sempre deve jejuar.

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O jejum é algo excepcional, algo que o homem deve fazer de vez em quando com um fim especial; tanto que a disciplina deve ser constante. Por isso não pode aceitar textos como esse de “ponho meu corpo em servidão”, e “mortificai vossos membros, que estão na terra”, como parte do ensino relativo ao jejum.

A moderação no comer é parte da disciplina do corpo; é uma forma muito boa de manter o corpo em servidão, porém não é jejum. Jejuar significa abster-se de comer por alguns propósitos especiais, tais como a oração, a meditação ou a busca de Deus por alguma razão específica, ou sob alguma circunstância excepcional.

Para completar este ponto, deveríamos acrescentar que o jejum, se o concebemos adequadamente, não somente deve se limitar à comida e bebida. O jejum deveria realmente incluir também a abstinência de tudo o que é legítimo em si mesmo e por si mesmo, com o fim de alcançar alguma meta

espiritual especial.

Muitas funções corporais que são boas e normais e perfeitamente legítimas, por razões peculiares, em certas circunstâncias, deveriam ser submetidas a controle. Isto é jejuar. Esta seria uma definição geral do que significa jejuar.

Há certas maneiras incorretas de jejuar. Eis aqui uma delas: se jejuamos de forma mecânica, ou simplesmente por jejuar, me parece que estamos violando o ensino bíblico relativo a este assunto. Em outras palavras, se alguém faz do jejum um fim em si mesmo, algo do qual alguém diz: “bem, como sou cristão, tenho que jejuar tal dia e tal hora do ano, porque é parte da religião cristã”, mais valeria que não o fizesse. O elemento essencial do jejum fica perdido quando se age desta forma.

Isto não é exclusivo do jejum. Não vimos por acaso o mesmo no assunto da oração? É bom que as pessoas, se podem, que dediquem certos momentos especiais à oração. Porém, se elaboro meu programa para o dia e digo que a tal hora devo orar, e oro somente para cumprir tal programa, já não estou orando. O mesmo se dá em relação ao jejum. Há pessoas que o consideram precisamente desta maneira. São cristãos, mas

preferem estar sob certa espécie de lei. Lhes agrada estar debaixo de regulamentos. Lhes agrada que lhes digam

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exatamente o que devem fazer e o que não devem fazer. Num dia específico da semana não devem comer carne, e assim sucessivamente. Isto não é vida cristã, senão não comer num determinado dia. Logo, se em certo período do ano alguém deve se abster de comer, ou comer menos. Há um perigo muito sutil nisso, é uma violação do ensino bíblico. Nunca se deve considerar o jejum como um fim em si mesmo.

Porém, a isto temos que agregar algo que já tenho indicado, e que pode ser expressado assim: jamais se deve considerar o jejum como uma parte da nossa disciplina. Alguns dizem que

é muito bom não comamos certas coisas um dia por semana, ou então que em certo período do ano, nos abstenhamos de outras. Dizem que é bom sob o ponto de vista da disciplina. Porém a disciplina é algo que deve ser permanente. É algo perpétuo. Sempre devemos nos disciplinar a nós mesmos. Acerca disto não pode haver qualquer debate. Em todo tempo devemos manter o corpo submetido.

Devemos jejuar somente quando o Espírito Santo nos guie a fazê-lo, quando nos achamos empenhados em algum propósito espiritual importante, não segundo regras, senão porque sentimos que existe uma necessidade especial em concentrar-nos inteiramente, com todo o nosso ser, em Deus e na nossa adoração a Ele. Este é o momento de jejuar.

Tesouros na Terra e no Céu

“19 Não ajunteis para vós tesouros na terra; onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e roubam;

20 mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consumem, e onde os ladrões não minam nem roubam.

21 Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.” (Mt 6.19-21)

O tema desta seção do Sermão do Monte é, como se lembrarão, a relação do crente com Deus, enquanto seu Pai. Nada há mais importante que isto. O grande segredo da vida,

segundo nosso Senhor, é vermos a nós mesmos e nos considerarmos sempre como filhos de nosso Pai celestial. Se

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o fizermos, nos veremos livrados de imediato de duas tentações principais que assediam a todos nós nesta vida:

A primeira, é a tentação muito sutil que assedia a todo cristão no assunto da piedade pessoal. “Como cristão tenho uma vida privada, pessoal, de devoção”.

A este respeito nosso Senhor diz que a única coisa que importa e tenho que considerar, é que os olhos de Deus estão postos em mim. Não devo me importar com o que as pessoas dizem, nem devo me interessar com o que penso de mim mesmo. Se dou esmola, não devo dá-la para que outros me louvem. O

mesmo se aplica à oração. Não devo desejar dar a impressão que sou um grande homem de oração. Se o fizer, de nada me servirá. Não devo me interessar pelo que as pessoas pensem de mim como homem de oração. O Senhor chama a nossa atenção sobre isto. Devo orar como quem está na presença de Deus. Os mesmos princípios se aplicam à questão da ajuda, e vocês se recordarão como o examinamos em detalhes no terceiro capítulo. Estas considerações nos conduzem ao final do versículo 18 de Mateus 6.

A segunda, é quando chegamos ao versículo 19, no qual nosso Senhor inicia outro aspecto deste grande tema, a saber, o cristão que vive sua vida neste mundo numa relação com Deus como seu Pai, envolvido em seus problemas, cheio de preocupações, tensões e pressões. Na Bíblia, frequentemente este problema é chamado “o mundo”.

Frequentemente dizemos que o cristão tem que enfrentar nesta vida o mundo, a carne e o diabo. Nosso Senhor utiliza esta tripla descrição de nosso problema e conflito. Ao tratar desta questão da piedade pessoal, Ele se ocupa primeiro das tentações que provêm da carne e do diabo. O diabo vigia muito quando alguém é piedoso, e se ocupa em manifestar sua piedade. Uma vez tratado isto, nosso Senhor passa a mostrar que há outro problema, “o mundo”.

O que a Bíblia quer dizer com a expressão “o mundo”? Não quer dizer o universo físico, ou simplesmente todo o conjunto de pessoas, significa uma perspectiva e uma mentalidade, significa uma forma de ver as coisas, uma forma de ver toda a vida.

Um dos problemas mais delicados dos que tem que se ocupar o cristão é este de sua relação com o mundo. Nosso Senhor

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sublinha frequentemente que não é fácil ser cristão. Ele próprio durante seu ministério terreno se viu tentado pelo diabo. Também teve que fazer frente ao poder e sutileza do mundo. O cristão se encontra na mesma posição. Há ataques que lhe chegam tanto em sua vida privada, quanto no que diz respeito ao mundo. E o mundo tem tudo o que pode fazer com que o crente perca sua vida espiritual. Por isso é necessário estar muito atento. E esta é uma luta na qual necessitamos de toda a armadura de Deus, porque aquele que não a tiver será derrotado. Não temos que lutar contra a carne e o sangue. É uma luta séria, é um conflito violento.

Jesus nos ensina que este ataque do mundo, ou esta tentação, do mundanismo, geralmente assume duas formas principais. A primeira é o amor declarado pelo mundo. E a segunda é a ansiedade, um espírito de preocupação ansiosa relativa ao mundo. Jesus ensinou que ambos são igualmente perigosos. O amor ao mundo é referido por Ele em Mt 6.19-24, e a preocupação ansiosa é citada do verso 25 até o final do capítulo (v. 34).

Devemos manter bem fixo diante de nós, que tudo o que Jesus ensinou tinha por pano de fundo a nossa relação com o nosso Pai celestial. Foi em função desta relação que Ele disse tudo quanto nos ensinou no Sermão do Monte. Assim, não podemos reduzir este seu ensino a uma série de regras e normas, porque se o fizermos cairemos imediatamente no erro do monasticismo ou do puro ascetismo. A Bíblia nos ensina como vencer o mundo permanecendo nele, e não tentando fugir dele em monastérios ou em práticas ascéticas do tipo “não toques, não proves, não manuseies” (Col 2.21). Afinal Deus tem disposto todas as coisas para o nosso aprazimento, de modo que depositemos nele próprio a nossa esperança, e não na instabilidade da riqueza (I Tim 6.17), pensando, por um falso julgamento, que será na grande quantidade de bens que acumularmos que teremos paz, descanso e segurança.

Daí o mandado que o Senhor nos dá de não ajuntarmos tesouros na terra, senão no céu (Mt 6.19,20). E o que Ele ajuntou a isto, são razões para assim procedermos, porque no

mundo há aquilo que não há no céu, isto é, ” traça e ferrugem que corrói, e ladrões que escavam e roubam.”.

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Veja que Jesus não diz: “não ajuntem dinheiro”, mas “não ajuntem tesouros”. Tesouro é uma palavra muito ampla que não inclui apenas dinheiro. Significa algo muito mais importante. Nosso Senhor se ocupa aqui nem tanto com nossas possessões, quanto de nossa atitude diante dessas possessões. Não importa o que o homem possa ter, senão o que ele pensa acerca da riqueza, a atitude que tem para com ela. Em si mesmo não há nenhum pecado em ter riqueza material, o que pode ser mal é a relação do homem com sua riqueza. E o mesmo se pode dizer de qualquer coisa que o dinheiro possa comprar.

Nos é imposto o dever de aprendermos a estarmos contentes com Deus e em Deus, em toda e qualquer situação, mas também nos é imposto o dever de sermos diligentes, de modo que ninguém pode alegar que está contente com a sua penúria por motivo da sua falta de diligência em trabalhar, de modo que se diz que aquele que não trabalha também não coma. Se tudo o que estivermos alcançando através da nossa diligência em trabalhar para o nosso sustento e de outros é a pobreza, então estejamos contentes com isto, porque é isto o que nos tem reservado a Providência. Mas se a nossa pobreza é extrema por conta da nossa falta de empenho, por causa da nossa indolência, então não temos porque estar contentes, senão entristecidos pelo nosso pecado de não atendermos a norma divina de sermos diligentes em todas as coisas.

O nosso contentamento deve estar em Deus que sempre suprirá as nossas necessidades, por sermos seus filhos, tal como Jesus nos ensina acerca disto no Sermão do Monte. O problema reside na nossa atitude diante da vida neste mundo. Nosso Senhor se ocupa aqui das pessoas que procuram, nesta vida, sua satisfação principal ou mesmo total, isto é, somente por meio das coisas que pertencem ao mundo.

Jesus nos adverte que os interesses e esperanças dos homens não devem se limitar a esta vida. E assim tanto pobres quanto ricos necessitam dar atenção a esta exortação de não juntarem tesouros na terra. Não importa o que seja, pequeno ou grande, o seu tesouro é o que é tudo para você, é aquilo para

o qual você vive. Este é o perigo para o qual Jesus nos alerta nesta passagem do Sermão do Monte.

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Isto nos dá uma ideia do que Ele quer dizer com “tesouros na terra”. Vemos que é algo quase sem limite, pois pode incluir dinheiro, bens, cônjuges, filhos, honrarias, posições, situação financeira, carreiras profissionais, seja o que for, desde que se relacione apenas a esta vida e a este mundo.

Em relação a estas coisas devemos ter o cuidado para que elas não se convertam no nosso tesouro, porque onde estiver o nosso tesouro será ali que estará o nosso coração, e nós somos chamados pelo nosso Pai a termos o nosso tesouro nas coisas espirituais, celestiais, divinas, isto é, naquilo que está no céu e que procede do céu, e não naquilo que é da terra e que procede da terra e termina nela.

Quando o coração se apega àquilo que é deste mundo sempre ocorrerá um decréscimo correspondente em nossa autoridade e poder espiritual. Isto pode ser medido pela perda ou redução do interesse de agradar a Deus submetendo-se à sua Palavra e de trabalhar por sua honra e glória, para

estarem, quase sem notá-lo, centrados em si mesmos e em sua dedicação ao seu trabalho, carreira, ou qualquer outra coisa que configure o seu tesouro terreno. O fazer tesouros na terra é algo tão sutil que até mesmo boas pessoas podem ser o maior inimigo de um homem.

Muitos pregadores têm sido prejudicados pela sua própria congregação, por causa dos louvores que têm recebido dos homens, e assim fazem com que estes pregadores se percam como mensageiros de Deus, e se tornam culpados de quebrarem o mandamento do Senhor, por juntarem tesouros na terra. Quando o pastor busca, ainda que inconscientemente, ser controlado pelo desejo de obter o louvor de seu povo, e quando isto ocorre, este homem está fazendo tesouros na terra. Os exemplos são inesgotáveis quanto às possibilidades de se juntarem tais tesouros na terra.

Agora, com “juntar tesouros no céu” não está o Senhor se referindo a alcançarmos a nossa salvação eterna, porque isto foi alcançando somente pela graça, mediante a fé. Seria negar a doutrina da justificação somente pela fé, admitir que o homem deve fazer provisão no céu para que possa ser salvo.

Devemos ter em mente que Jesus estava se dirigindo a pessoas

nas quais se cumprem as bem-aventuranças. É o homem pobre de espírito, o que não tem nada em si mesmo que lhe

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recomende à salvação, que é bem-aventurado. É o que chora devido aos seus pecados e assim sabe que nada pode fazer de si mesmo pela sua salvação. .

Assim “juntar tesouros no céu” significa manter em perspectiva que somos apenas peregrinos nesta vida, e que andamos neste mundo debaixo da vigilância de Deus, na direção de Deus e de nossa esperança eterna. Este é o princípio pelo qual devem ser governadas as nossas vidas.

Se pensarmos sempre acerca de nós mesmos desta forma, como poderemos nos desviar do alvo? Então tudo estará bem.

Este é o grande princípio que se ensina em Hebreus 11. Os homens poderosos, os grandes heróis da fé tinham um só propósito: “andavam como que vendo o invisível”. Diziam que eram estrangeiros e peregrinos na terra, e se dirigiam à cidade que tem fundamentos, e cujo arquiteto e construtor é Deus. Eles desejavam uma pátria melhor, isto é, celestial.

Assim, se temos uma ideia adequada de nós mesmos neste mundo como peregrinos, como filhos de Deus que se dirigem a seu Pai, todas as coisas serão vistas na perspectiva adequada. Imediatamente teremos uma ideia adequada de nossos dons e possessões. Começaremos a pensar de nós mesmos como administradores que em breve deverão dar contas de tudo, porque não somos os possuidores permanentes destas coisas terrenas. Não importa que seja o dinheiro ou inteligência ou nós mesmos ou nossa personalidade ou qualquer dom que possamos ter.

O homem mundano pensa que é ele que possui tudo. Mas o crente sabe apenas que é um mordomo que terá que prestar contas com Deus daquilo que pertence na verdade a Ele. Assim, sabendo que terá que prestar contas a Deus o crente diz: “devo ter cuidado como uso estas coisas, e quanto à minha atitude diante delas. Devo fazer todas as coisas com o fim de agradar a Deus!”.

O servo de Deus não deve se apegar a estas coisas. Não deve permitir que elas se convertam no centro de sua vida e existência. Não deve viver para elas nem se ocupar delas constantemente, de modo que venham a absorver a sua vida. Ao contrário, deve possuí-las como se não as tivesse, para poder servir mais livremente e dedicadamente ao Senhor.

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Ou Deus ou as Riquezas

“19 Não ajunteis para vós tesouros na terra; onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e roubam;

20 mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consumem, e onde os ladrões não minam nem roubam.

21 Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.

22 A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo teu corpo terá luz;

23 se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes são tais trevas!

24 Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de dedicar-se a um e

desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mt 6.19-24)

Por que fazemos tesouros na terra quando sabemos o que sucederá a estes tesouros passageiros e que não podem satisfazer a alma? Por que não fazemos tesouros nos céus onde sabemos que há pureza e alegria, santidade e felicidade eternas? Acaso não somos exortados a começar a juntar este tesouro enquanto estamos na terra, para o nosso completo aprazimento e alegria? (Col 3.1-3).

O Senhor nos advertiu quanto ao perigo que há em juntar tesouros na terra, porque nisto está envolvido o nosso coração. Ah! O coração! Por isso Ele diz que onde estiver o nosso tesouro ali estará também o nosso coração.

Logo após Ele fala acerca da mente em Mt 6.24 que “ninguém pode servir a dois senhores.”. Isto nos fala do perigo que há em que as coisas mundanas podem exercer um controle terrível sobre nós. Todos estamos envolvidos nisso, todos estamos debaixo da garra deste poder terrível do mundo, que realmente nos dominará, a não ser que obedeçamos o mandado que o Senhor nos dá.

Não é somente poderoso, é muito sutil. É o que realmente exerce o controle na maior parte das vidas dos homens.

Nós temos nos fixado na mudança, na imperceptível mudança, que tende a ocorrer nas vidas dos homens à medida

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que eles triunfam e prosperam neste mundo? Eles permanecem com facilidade, na humildade e mansidão que são devidas a Cristo? Eles permanecem na sua devoção piedosa diante de Deus? Negando-se a si mesmos, tomando a cruz a cada dia e seguindo debaixo da direção e instrução de Jesus?

Aqueles que são homens verdadeiramente espirituais poderão resistir ao poder e influência do mundo, mas os que não são, cairão invariavelmente debaixo deste poder e influência.

Por isso Jesus nos adverte quanto a este poder senhorial terrível que tende a afetar toda a nossa personalidade, não somente uma parte de nós, mas o homem total. A primeira advertência que Ele menciona é em relação ao coração, porque se são as coisas terrenas o nosso tesouro, o nosso coração, isto é, nossos sentimentos, nossos afetos e toda a nossa sensibilidade serão dominados por estes tesouros terrenos.

Nós amaremos o mundo porque toda a nossa natureza será dominada por estes tesouros (João 3.19; I João 2.15).

A segunda advertência do perigo que há nos tesouros terrenos, é que eles podem dominar a nossa mente. Assim estas coisas terrenas podem não somente dominar o coração como também a mente. Quanto a isto Jesus assim se expressa:

“22 São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso;

23 se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas serão!

24 Ninguém pode servir a dois Senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mt 6.22-24).

Esta ilustração do olho é o exemplo do qual Jesus se valeu para nos explicar a maneira pela qual contemplamos as coisas. Segundo Ele, não há senão apenas duas maneiras de olhar as coisas do mundo. Há o que Ele chama de olho bom, que é o olho do homem espiritual que vê as coisas realmente como

elas são, verdadeiramente, e sem dúvidas. seus olhos são claros e vêm tudo adequadamente; porém há o outro olho que

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Ele chama de olho mau, que é uma espécie de visão dobre, ou, se prefere, é o olho no qual a lente não está clara. Há sombras e opacidades, e as coisas são vistas de uma maneira confusa, não como Deus as vê. Este olho maligno está dominado por certos prazeres e desejos terrenos. Este é o sentido da afirmação que confunde a muitos, porque não é tomada no seu contexto.

É aqui que Jesus se refere ao domínio da mente pelos tesouros terrenos. Não são tantos os nossos pensamentos que se baseiam nestes tesouros terrenos? Esta visão confusa tende a afetar-nos também moralmente.

Somos muito inteligentes para explicar que algo que estamos fazendo não é realmente desonesto e que é aprovado por Deus. Somos dados a coar mosquitos e a engolir camelos no campo da moralidade, tal como os fariseus.

A razão disto não é o nosso amor pelos tesouros terrenos?

Não é por causa disto que somos tão pouco generosos no dar e compartilhar as necessidades de outros com os nossos bens?

O nosso apego a tudo o que o dinheiro possa comprar passa a ser o verdadeiro Senhor da nossa vontade, e por isso Jesus diz que não podemos servir a dois Senhores, porque este Senhor que nos domina por causa do amor aos bens terrenos dominará a nossa vontade, impedindo que ela possa obedecer efetivamente à vontade de Deus e os seus mandamentos. Ele deixa assim de ser o nosso Senhor, quando o dinheiro passa a ter o controle e domínio das nossas mentes.

Esta última advertência de Jesus relativa à impossibilidade de se servir a dois senhores inclui, não somente o coração e a mente como também a vontade. Se o que determina nossa vida e o exercício dela é o que pensamos, então isto também depende de onde está o nosso tesouro.

Estes tesouros terrenos são tão poderosos que dominam a personalidade inteira. Apoderam-se do coração do homem, de sua mente, de sua vontade e tendem a afetar seu espírito, alma e todo o seu ser. Qualquer que seja o âmbito da vida que examinemos ou acerca do qual pensemos, nós

encontraremos estas coisas. Elas afetam a todos, e são um perigo terrível.

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Como já dissemos antes, o perigo reside não nos bens terrenos propriamente ditos, mas na maneira como nos relacionamos com eles, permitindo ou não, sermos dominados por eles, de forma que sejam ou não o centro motivador de nossas vidas.

Jesus disse que quando amamos as riquezas não podemos amar a Deus, e de igual modo, quando estamos amando verdadeiramente a Deus, nós não amamos as riquezas. Elas não serão o nosso objetivo de vida se temos de fato andado com Deus, se contrariamente, o desejo e o amor por elas nos dominam, faremos das riquezas o nosso objetivo de vida, o que reflete o nosso andar longe de Deus.

Não podemos servir a Deus e às riquezas. Esta declaração de Jesus é realmente algo muito solene, por isso a Bíblia se ocupa disso tão frequentemente. A verdade desta proposição é óbvia. Ambos querem um domínio total sobre nós.

As coisas do mundo, na realidade tratam de nos dominar de forma totalitária, como temos visto. Elas exigem nossa devoção total, desejam que vivamos para elas de forma absoluta. Mas assim também Deus procede: “amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente.”.

Como servir a Deus e às riquezas é impossível, então se uma perspectiva materialista está nos dominando, somos ímpios.

Jesus diz que “se a luz que há em ti são trevas, quão grandes trevas serão”, porque se alguém se julga religioso e que está servindo a Deus, quando na verdade está apegado às coisas terrenas, e toda a sua busca de Deus tem a ver com a obtenção destas posses e nada mais, então esta pessoa está em grandes trevas espirituais, porque não pode enxergar a verdade bíblica quanto a impossibilidade de servir a Deus e às riquezas, pois a pessoa referida no exemplo tem por problema, não o ser rica, mas o fato de ser dominada e governada pelo desejo da riqueza, que automaticamente exclui o governo de Deus da sua vida.

A Detestável Escravidão ao Pecado

“19 Não ajunteis para vós tesouros na terra; onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e roubam;

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20 mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consumem, e onde os ladrões não minam nem roubam.

21 Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.

22 A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo teu corpo terá luz;

23 se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes são tais trevas!

24 Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de dedicar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mt 6.19-24)

Um dos efeitos do pecado no homem é escravizá-lo a coisas que deveriam servi-lo. Isto é algo terrível e trágico.

Segundo nosso Senhor, nesta passagem, as coisas terrenas, mundanas, tendem a se converter em nosso deus. As servimos e as amamos. Nosso coração se sente cativado por elas; estamos a serviço delas. Quais são? São as mesmas coisas que Deus em sua bondade tem dado ao homem para que lhe sirvam, e para que possa desfrutar da vida enquanto viva neste mundo. Todas estas coisas que podem ser tão perigosas para a alma, devido ao pecado, Deus no-las deu, e no-las deu para que desfrutássemos delas – alimento, família, amigos e tudo o mais. Todas estas coisas não são senão uma manifestação da bondade de Deus. No-las tem dado para que vivamos uma vida feliz e prazeirosa neste mundo. Porém, devido ao pecado, nos temos convertido em escravos delas. Nos dominam os apetites. Deus nos tem dado os apetites da fome, da sede e do sexo; tudo Deus tem criado. Porém, quando estas coisas dominam o homem, torna-se um escravo das mesmas. Que tragédia; inclina-se diante de coisas e adora coisas que teriam que servir-lhe. Coisas que teriam que estar a seu serviço se têm assenhoreado dele. Que terrível e espantoso é o pecado!

O último ponto, contudo, é o mais grave, o mais solene de todos. O efeito final do pecado no gênero humano é que faz com o homem se perca completamente. Este é o ensino da

Bíblia desde o princípio até o fim. Isto que começou a existir por meio da serpente no jardim do Éden, não tem outra

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intenção que nossa ruína final. O diabo odeia a Deus com todo seu ser, e não tem senão um objetivo e ambição: lançar a perder e arruinar tudo o que Deus fez, e no qual Ele se deleita. Em outras palavras, procura sobretudo a ruína do homem e do mundo.

Como o pecado arruína o homem? Encontraremos a resposta nestes versículos do Sermão do Monte. Arruína o homem no sentido de que, havendo passado a vida em entesourar certas coisas na terra, no final se encontra com nada. Depois de entesourar para si tesouros na terra onde a ferrugem e a traça corrompem, e há ladrões que furtam e roubam, encontra-se frente a frente com a morte, o adversário mais poderoso de todos.

Então, este pobre homem destroçado, que tem vivido para todas essas coisas, vê de repente que não tem nada; está despojado de tudo e sem nada mais que sua alma desnuda. É a ruína completa. “Que aproveitará ao homem, se ganhar todo o mundo, e perder a sua alma?”

A isto conduz em última instância o pecado, e há muitas passagens bíblicas que o demonstram. Vejamos Lucas 16.19-31. Ali o encontramos em forma perfeita; não faz faltar nada. É um assunto de sentido e entendimento comum, e basta examiná-lo. Pensemos em todas as coisas pelas quais vivemos neste momento, as coisas que realmente importam, as coisas que têm realmente peso em nossa vida. Logo, façamo-nos esta simples pergunta: “Quantas delas estarão comigo depois de morrer?” O pecado é a ruína definitiva que ao final deixa o

homem sem nada.

E o pior de tudo é que, ao final, o homem também descobre que durante toda sua vida tem estado inteiramente equivocado. Nosso Senhor o expressa assim: “A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo teu corpo terá luz;

23 se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes são tais trevas!”

O que isto significa é o seguinte. Como temos visto, a luz do corpo é, num sentido, a mente, o entendimento, esta

faculdade extraordinária que Deus deu ao homem. Se, como consequência do pecado, e do mal, e devido ao controle que

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exercem o coração, o prazer, a paixão, e o desejo, essa faculdade suprema se tem pervertido, e quão grandes são essas trevas! Há algo pior ou mais terrível que isto? Poderíamos também vê-lo assim: O homem hoje em dia, como vimos dizendo, e como sabemos muito bem, não somente crê que se guia pela inteligência; repudia a Deus devido a sua mente e faculdades. Se ri da religião, se ri dos que se opõem a esta visão mundana da vida. Vive para o presente; isto é a única coisa que conta. E crê que esse é um ponto de vista racional. O demonstra até se satisfazer e se convence de que se conduz pela inteligência. Não se dá conta de que a luz que possui se tem entenebrecido. Não vê que suas faculdades ficaram alteradas devido ao pecado. Não vê as forças distintas que controlam e entorpecem sua mente, a qual, em consequência, já não opera de forma livre e racional. Porém,

ao final chegará a vê-lo; e ao final se verá a si mesmo como o filho pródigo. De repente verá que as coisas em que confiava eram trevas, que lho haviam desorientado, e que lho tinham feito se perder completamente – que a luz que possui é trevas e que estas trevas são muito grandes. Não há nada pior que descobrir afinal, que aquilo em que havia colocado a fé, é o que lhe tem feito se perder.

Tudo isto pode ser visto no quadro do rico e de Lázaro de Lc 16. Eu estou seguro de que o rico se justificava dia após dia dizendo: “é justo o que eu faço”. Porém, depois de morrer se encontrou no inferno e de repente compreendeu tudo. Compreendeu que durante toda a sua vida havia sido um

néscio. Havia crido que havia somente agido bem, e por fim chegou a isso. Viu quão néscio havia sido e suplicou a Abraão que enviasse a alguém a seus irmãos, os quais viviam da mesma forma que ele. Descobriu que a luz que havia nele eram trevas e que essas trevas eram muito grandes. Esta é uma das atuações mais sutis de Satanás. Persuade o homem de que é racional o negar a Deus; porém, como temos visto muitas vezes, o que na realidade sucede é que faz do homem criatura de prazer e desejos, cuja mente está cegada e cujos olhos já não são limpos. A faculdade mais elevada de todas se tem pervertido.

Se algum dos leitores não é cristão, que não confie em sua inteligência; é o mais perigoso que se pode fazer. Porém ao se

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tornar cristão, a inteligência torna a ocupar uma posição central e volta de novo a ser uma criatura racional. Não há engano mais patético para o homem que pensar em que a fé cristã é algo emotivo, o ópio do povo, algo puramente emocional e irracional. O apóstolo Paulo diz em Romanos 6.17 a visão verdadeira: “Tendes obedecido aquela forma de doutrina à qual fostes entregues!” Lhes pregou a doutrina, e quando chegaram a vê-la, lhes agradou, creram nela, e a puseram em prática. Receberam a verdade de Deus antes de tudo com a inteligência. A verdade deve ser recebida com a inteligência, e o Espírito Santo capacita a inteligência a ver com claridade. Isto é a conversão, isto é o que sucede como resultado da regeneração. A mente se vê livre da desorientação do mal e das trevas; vê a verdade, e a ama, e deseja acima de tudo. Assim é. Não há nada mais trágico para

o homem que descobrir ao final de sua vida, que tem estado sempre equivocado. Umas palavras finais. Este homem infeliz ao que o pecado tem feito se perder, não somente descobre que nada tem, não somente descobre que se tem enganado a si mesmo e tem sido desviado pela luz que supõe que tivesse; descobre também que se acha fora da vida de Deus e sob sua ira. “Não podeis servir a Deus e às riquezas”. De modo que se alguém tem servido as riquezas toda a sua vida até a morte, se encontrará depois da morte, sem Deus. Não tem servido a Deus, de modo que somente uma coisa pode se dizer dele, segundo a Bíblia, e isto é, que “a ira de Deus está sobre ele” (Jo 3.36).

Tudo aquilo pelo qual viveu tem desaparecido. Ali na eternidade não é mais que uma alma desnuda que tem que se enfrentar com Deus, ao Deus que é amor e que está cheio de bondade. Aquele Pai que conta até os cabelos da cabeça do crente, lhe parece estranho. Está sem Deus, e não somente sem Deus no mundo, senão sem Deus na eternidade, sem esperança, diante de uma eternidade infeliz e cheia de miséria e lamentações. O pecado é uma perda total. Se alguém não vive para servir a Deus, então esse será seu destino. Não terá nada, e morará nessa negação, essa negação sem esperança, durante toda a eternidade. Deus não quer que seja

este o fim de nenhum dos que estão escutando estas palavras. Se desejamos evitá-lo, corramos para Deus, e confessemos

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que temos estado servindo a coisas terrenas, acumulando tesouros terrenos. Confessemos e nos entreguemos a Ele, ponhamo-nos sem reservas em suas mãos e sobretudo lhe peçamos que nos encha com seu Santo Espírito, o único que pode iluminar a inteligência, aclarar a compreensão, limpar os olhos e capacitar-nos para ver a verdade – a verdade acerca do pecado, e o único caminho de salvação para o sangue de Cristo – o Espírito Santo que nos pode mostrar como nos livrar da perversão e da contaminação do pecado, e chegar a ser homens e mulheres novos, criados segundo a imagem do próprio Filho de Deus, para amar as coisas de Deus e servir-lhe, servir a Ele somente.

Pássaros e Flores

“25 Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário?

26 Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não valeis vós muito mais do que elas?

27 Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado à sua estatura?

28 E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem fiam;

29 contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles.

30 Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé?” (Mt 6.25-30)

Nestes versículos 25 a30 nosso Senhor se refere ao terrível perigo que corremos nesta vida e que nasce da tendência de nos interessarmos demasiadamente, de formas distintas, pelas coisas do mundo.

Somos propensos a ficarmos ansiosos com o que comeremos, beberemos e também quanto ao que vestiremos.

Chama a atenção ver como tantas pessoas parecem viver completamente nesta linha; toda sua vida se resume em

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comer, beber e vestir. Dedicam todo o tempo para pensar nestas coisas, falar sobre elas, discuti-las com outros, argumentar sobre elas e ler acerca das mesmas em distintos livros e revistas. E o mundo de hoje faz tudo o que pode para que todos vivamos desta forma. Esta é a mente do mundo, este é seu círculo de interesse. O povo vive para essas coisas, e se preocupa por elas de todas as formas. Sabendo isto e sendo conscientes dos perigos, nosso Senhor, antes de tudo, nos dá uma razão geral para evitar esse engano específico.

Porém, uma vez que nos tem admoestado quanto a não estarmos ansiosos quanto ao que comer ou beber, ou acerca do que temos de vestir, passa a examinar separadamente cada aspecto da questão. O primeiro aspecto é examinado nos versículos 26 e 27, e trata da nossa existência, da continuação e sustento da nossa vida no mundo. Temos aqui o pensamento:

“26 Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não valeis vós muito mais do que elas?

27 Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado à sua estatura?”

Alguns dirão que a afirmação do verso 27 pertence à seção seguinte, porém, a mim, me parece absolutamente claro que deve, por razões que diremos daqui a pouco, formar parte desta primeira seção.

Quanto à questão geral do comer e do sustento da vida, nosso Senhor nos oferece um argumento duplo. Ou, se o preferimos, dois argumentos principais. O primeiro se deriva dos pássaros do céu. Começa com uma observação geral, chamando a atenção relativamente a algo que é um fato da vida neste mundo. “Olhai para as aves do céu”. Contemplemo-las. “Olhai” nem sempre implica o significado de observação

intensa. Somente nos pede que olhemos algo que temos diante de nós.

Que se pode argumentar baseando-se nos pássaros que

vemos? Que eles sempre dispõem de comida.

Há uma grande diferença entre a forma em que se sustenta a vida dos pássaros e a do homem. No caso dos pássaros, alguém

a proporciona. No caso do homem, está envolvido num certo processo. Semeia, logo recolhe a colheita que tem crescido da

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semente semeada. Depois passa a armazená-la em grãos e conserva o que necessita. Esta é a forma de proceder do homem, e é uma forma adequada, e a forma que nosso Senhor ordenou ao homem depois da queda: “com o suor do teu rosto comerás o pão” (Gên 3.19). Desde o começo da história, o tempo de semear e de colher, foi determinado pelo próprio Deus, não o homem, de maneira que este, desde o princípio, teve que semear, colher e armazenar. Tem que fazê-lo, e é assim como pode suster-se. Por isto o mandamento de “não ficar ansioso” não pode significar que tenhamos que nos sentar e esperar que o pão nos chegue milagrosamente cada manhã. Isto não é bíblico, e quem imagina que é isto a vida de fé, tem entendido mal o ensino da Bíblia.

Todavia, o homem nunca tem de se preocupar por essas coisas. Não deve passar a vida olhando o céu, perguntando-se que tempo vai fazer, e se vai conseguir algo para guardar no celeiro. Isto é o que nosso Senhor condena. O homem tem que semear, Deus o ordena. Porém, tem que depender de Deus, que é o único que pode fazer crescer a semente. Nosso Senhor chama a atenção sobre os pássaros. Nada há mais óbvio quanto a eles que o fato de que continuam vivos e que na

natureza encontram alimento – vermes, insetos, grãos e todas as coisas que os pássaros comem. O sustento está disponível para eles. De onde procede? A resposta é que Deus o administra. Aí, está, é um simples fato da vida, e Deus nos diz que o observemos.

Deus é nosso Pai, e se nosso Pai cuida tanto das aves com as quais tem uma relação somente de providência geral, quanto maior deve ser por necessidade seu cuidado por nós, já que somos seus filhos.

Deus é o Criador, e é o sustentador de todas as coisas que

existem. Cuida inclusive dos pássaros. Assim, deveríamos pensar, segundo nosso Senhor, e enquanto o fazemos, vemos que a ansiedade se torna impossível.

Quanto à impossibilidade de acrescentar um côvado ao curso da existência isto significa que por maiores que sejam nossas

preocupações e ansiedades, não podemos prolongar com elas a duração da nossa vida neste mundo.

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As pessoas vivem angustiadas por suas necessidades corporais porque desejam estender e prolongar sua vida neste mundo.

Contudo, o que alguém faz, com todos os tremendos esforços, com todas as angústias e ansiedades, pode prolongar a duração da sua vida sequer por um instante? E a resposta para esta pergunta é que não pode. O milionário com todo o seu dinheiro e quantidade de comida e bebida que pode comprar, não poderá decidir quanto à questão de poder viver por um tempo maior neste mundo. Deste modo, o milionário não tem nenhuma vantagem sobre a pessoa mais pobre do mundo.

Apesar de todos os conhecimentos modernos da medicina, nosso tempo neste mundo segue estando nas mãos de Deus, e em consequência, nos pergunta o Senhor, por que toda esta excitação, porque todo esta preocupação e ansiedade? A vida é um dom de Deus. Ele a dá e Ele decide o fim da mesma.

Agora devemos voltar nossa atenção para a seção que começa com o verso 28:

“28 E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem fiam;

29 contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles.

30 Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé?”

Nosso Senhor apresenta o argumento como anteriormente. Primeiro olhem os fatos, os lírios do campo, as flores silvestres, a erva. Contemplem quão maravilhosos são, quão belos são, contemplem sua perfeição. Nem sequer Salomão em toda sua glória pôde se vestir como um deles.

Nas flores há uma qualidade essencial, sua forma, seu desenho, sua textura, substância, fragrância, nada que o homem, com todos os seus recursos, pode chegar a imitar verdadeiramente. Em tudo isso o homem vê a mão de Deus, vê a criação perfeita, vê a glória do Todo Poderoso.

Tiremos a conclusão: se Deus veste a erva do campo de tal forma, não fará muito mais por nós?

A erva do campo é transitória, efêmera. Depois que morriam e secavam eram usadas para aquecer o forno onde se fazia o

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pão, nos dias de nosso Senhor. Por isso se entendo o poder do argumento. Não podemos fazer com que as flores durem muito tempo, e quando as cortamos começam a morrer. Estas coisas maravilhosas vêm e vão. Porém, nós somos imortais, pertencemos à eternidade. Deus tem colocado a eternidade no coração do homem. O homem não está destinado a desaparecer. Não se aplica à alma a citação: “pó és e ao pó voltarás”. Ao dar-nos conta desta verdade acerca de nós mesmos, pode-se crer que o Deus que nos tem feito e destinado para a eternidade vai se esquecer do nosso corpo enquanto estivermos neste mundo? Claro que não. “Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé?”

Não Ficar Ansioso

“25 Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário?

26 Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não valeis vós muito mais do que elas?

27 Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado à sua estatura?

28 E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem fiam;

29 contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles.

30 Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé?

31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos de vestir?

32 (Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso.

33 Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.

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34 Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.” (Mt 6.25-34)

Alguns pensam que não estar ansioso significa não se preocupar no sentido de nada fazer, porque chama a isto de viver pela fé, mas estão equivocados.

No próprio caso dos pássaros na ilustração apresentada por nosso Senhor devemos lembrar que não se limitam a ficarem pousados todo o tempo nas árvores, esperando que se lhes traga comida mecanicamente. Não é assim. Buscam a comida ativamente. As aves do céu desenvolvem uma verdadeira atividade. De modo que o próprio argumento empregado por nosso Senhor a este respeito exclui completamente a possibilidade de interpretá-lo como uma espécie de espera passiva em Deus, sem nada fazer. Nosso Senhor nunca condena o lavrador por arar, semear, colher e acumular em celeiros. Nunca o condena, porque Deus ordenou que o homem vivesse de tal forma, com o suor da face.

De igual modo estes argumentos apresentados em forma de ilustrações incluem também os lírios do campo, porque extraem o seu sustento da terra na qual estão plantados.

Nosso Senhor pergunta:

“Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário?” Que quer dizer nosso Senhor com isto? O argumento é profundo e poderoso, e estamos inclinados a esquecê-lo! Diz com efeito: “tomem esta vida pela qual vos preocupais e angustiais. De onde a obtivestes? De onde vem?” A resposta é que é um dom de Deus. O homem não cria a vida. Nenhum de nós decidiu vir a este mundo. O fato mesmo de que estejamos vivos neste momento se deve inteiramente a que Deus o decretou e decidiu assim.

Tenho que trabalhar e ganhar dinheiro, porém tudo o que o Senhor diz é que nunca devo preocupar-me nem angustiar-me nem sentir-me ansioso de que de repente não venha a ter o suficiente para manter-me em vida. Nunca me sucederá tal

coisa; é impossível. Se Deus me tem outorgado o dom da vida, procurará que essa vida prossiga. Porém aqui está a questão: não fala acerca de como o fará. Diz simplesmente que assim será.

Temos a afirmação desta verdade em Rom 8.32:

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“Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como não nos dará também com ele todas as coisas?”

E também em Hb 13.5:

“Seja a vossa vida isenta de ganância, contentando-vos com o que tendes; porque ele mesmo disse: Não te deixarei, nem te desampararei.”

Nosso Senhor sintetiza seu ensino principal com estas palavras: “homens de pouca fé”. Fé aqui, como veremos, não significa algum princípio vago; tem em mente nosso fracasso em entender, nossa falta de compreensão da visão bíblica do homem e da vida como tem que ser vivida neste mundo. Este é nosso verdadeiro problema, e o propósito de nosso Senhor ao apresentar as ilustrações que examinaremos mais adiante, é mostrar-nos como não pensamos como deveríamos pensar.

Deus tem um plano para cada vida. Nunca devemos considerar nossa vida neste mundo como acidental.

“Não tem o dia doze horas”, disse Cristo um dia a seus temerosos e assustados discípulos. E nós necessitamos dizê-lo a nós mesmos. Podemos ter a segurança de que Deus tem um plano e propósito para nossas vidas, e este plano se cumprirá. Em consequência, nunca devemos estar ansiosos por nossa vida nem como para a sustentarmos.

Fé Aumentada

“31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos de vestir?

32 (Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso.

33 Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” (Mt 6.31-33)

O argumento essencial de nosso Senhor nesta passagem, é que nós como cristãos, devemos ser diferentes dos gentios, isto é, daqueles que não conhecem a Deus, sendo, portanto, estranhos para Ele.

Se alguém pretende aumentar a fé, a primeira coisa que tem que fazer é dar-se conta de que preocupar-se com comida,

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bebida e vestimenta, é, num sentido, fazer o mesmo que os gentios.

Que quer dizer com isto? A palavra “gentios” significa na realidade “pagãos”. Os pagãos eram pessoas que não possuíam a revelação de Deus, e que por conseguinte, não conheciam a Deus. Isso é o que tanto se sublinha no Antigo Testamento; e o que distingue os filhos de Israel de todos os demais. Paulo, em seu argumento relativo a este tema diz em Rom 3.2 que “lhes tem sido confiada a Palavra de Deus!” Deus

se revelou de forma especial aos judeus, não somente no chamamento de Abraão e em outros casos específicos, senão sobretudo ao dar-lhes a lei e o grande ensino dos profetas. Os pagãos não conheciam nada disso; não haviam tido esta revelação especial, nem possuíam conhecimento de Deus. Não tinham as Escrituras do Antigo Testamento, e estavam por conseguinte, sem os recursos para conhecê-lo. Este é o ponto essencial acerca dos pagãos, não sabem nada sobre Deus num sentido real, estão “sem Deus no mundo”.

Quando o Senhor diz que os gentios buscam todas estas coisas, esta palavra “buscam” é uma palavra muito forte. Significa que o buscam com afã, que buscam constantemente estas coisas, que vivem para elas.

Disto surge a pergunta vital e importante: Somos nós assim? Se estas cousas ocupam o primeiro lugar na vida – diz nosso Senhor – e se monopolizam nossa vida e nosso pensar, então não somos melhores que os pagãos, somos mundanos, com mentes mundanas. Esta palavra nos chega com poder e significado terríveis. Há muitas pessoas que podem ser descritas como mundanos espirituais. Se alguém lhes fala acerca da salvação têm a ideia correta, porém se lhes fala acerca da vida em geral, são mundanos. Sempre estão falando sobre riqueza, posição, e possessões temporais. Estas coisas na realidade os dominam. Elas são as que os fazem felizes ou infelizes. E sempre estão pensando e falando acerca delas. Isto é ser como os pagãos, diz Cristo, porque o cristão não deveria estar dominado por essas coisas. Essas coisas não deveriam na realidade fazê-lo feliz ou infeliz, porque esta é a situação típica

do pagão, estar dominado por elas em toda a perspectiva que tem acerca da vida; e em seu viver neste mundo.

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Os filhos de Deus estão destinados neste mundo a viver a vida de fé, têm que viver à luz dessa fé que professam.

Nosso Senhor conclui o ensino desta passagem com as palavras: “Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” Que quer dizer com isso? Obviamente não disse a seus ouvintes como fazer-se cristãos; lhes disse como se comportar por serem cristãos. Estão no reino de Deus, e porque estão nele devem buscá-lo

mais e mais. Têm que, como disse Pedro: “fazer firme sua vocação e eleição”. Na prática significa que, como filhos de nosso Pai celestial, deveríamos buscar conhecer-lhe melhor.

É citada pelo Senhor a justiça do reino de Deus. Por que acrescentou esta justiça? É um acréscimo muito importante; significa santidade, a vida de justiça.

Não somente tem que buscar o reino de Deus, no sentido de colocar o coração nas coisas do alto; também tem que buscar de maneira positiva a santidade e a justiça. Uma vez mais estamos frente a uma repetição de “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!” Sim, é isso. O cristão busca a justiça, busca ser como Cristo, busca a santidade positiva e ser mais e mais santo, crescer na graça e no conhecimento do Senhor. Esta é a maneira de aumentar a fé. Funciona assim. Quanto mais santos somos, mais perto estaremos de Deus. Quanto mais santos somos, maior será nossa fé.

Podemos parafrasear as palavras de nosso Senhor da seguinte

forma: se queres buscar algo, se queres ficar ansioso por algo, preocupa-te com tua condição espiritual, por tua proximidade com Deus e por tua relação com Ele. Se buscas isto em primeiro lugar, a preocupação desaparecerá; este é o resultado. Esta grande preocupação acerca da tua relação com Deus eliminará as preocupações menores acerca de comida, bebida e vestimenta.

Preocupação: Causas e Remédio

“Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de

amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.” (Mt 6.34)

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Em Mateus 6.34, nosso Senhor conclui o tema que veio tratando em toda esta seção do Sermão do Monte, a saber, o problema que nos apresenta nossa relação com as coisas deste mundo. É um problema com o qual todos nos enfrentamos. As formas em que isto sucede são diferentes, como temos visto.

Aqui, neste versículo, conclui esta exposição e o faz assim: por três vezes emprega a expressão “não vos inquieteis”, em relação à comida, bebida e vestimenta. Aqui conclui todo o tema, e estou seguro de que muitos, ao lerem pela primeira vez este versículo em seu contexto, devem ter sentido quase uma sensação de surpresa de que nosso Senhor o quisera acrescentar. Parece ter alcançado um ponto culminante maravilhoso no versículo anterior (33), no qual resumiu seu ensino positivo em memoráveis palavras. “Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas!”. Isto parece como uma dessas afirmações finais às quais não se pode acrescentar nada, e à primeira vista o versículo que agora examinamos para ser quase um anticlímax.

Todavia, podemos ter a segurança completa de que não se trata de um anticlímax; existe alguma razão muito boa para esta afirmação. Conclui de modo negativo e é isto, à primeira vista, o que constitui o problema. Por que o fizera? É porque é na realidade uma extensão do seu ensino. Não é simples repetição, ou simples síntese; é isso, porém é mais do que isso.

Até agora, tinha examinado este problema quanto ao que nos

concerne no presente imediato; e agora se refere a ele quanto ao que se refere também ao futuro.

Estende o ensino e o aplica, para que englobe toda a vida.

A preocupação é um fracasso em aplicar nossa fé. Porém o que devemos enfatizar, é que a preocupação é algo que se apodera de nós e nos controla. É um poder muito forte, uma força ativa, e se não nos damos conta disso, podemos ter a segurança de que nos derrotará. Se não pode fazer-nos ansiosos, agoniados e deprimidos devido ao estado e condição das coisas com as quais nos enfrentamos no momento atual, dará o passo seguinte e centrará sua atenção no futuro.

(uma das principais razões de nosso Senhor ter feito uma aplicação tão extensão quanto à ansiedade, não foi para

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motivos de nos dar um apanágio psicológico, para ajudar-nos a ficarmos tranquilos e calmos, mas porque a ansiedade expulsa a fé, e a fé é essencial e básica para se viver a vida cristã – nota do tradutor).

Nosso Senhor mostra quão néscio é se preocupar com o futuro. Basta a cada dia o seu próprio mal. Se o presente, tal como é, já é suficientemente mal, por que pensar no futuro? O viver o dia a dia é suficiente em si mesmo, temos que nos contentar com isso. Porém, não somente isto. A preocupação com o futuro é completamente inútil e vã; não consegue absolutamente nada. Somos muito lentos em ver isto, e contudo, quão verdadeiro é! A preocupação nunca serve para nada. Isto se vê com especial clareza quando alguém contempla o futuro. Aparte de outras coisas, é um simples desperdício de energia, porque, por muito que alguém se preocupe, não pode fazer nada em relação ao mesmo. De qualquer modo, as catástrofes que se temem são imaginárias; não são certas; talvez nunca ocorram.

O resultado de se preocupar com o futuro é o que paralisa o presente, e diminui nossa eficiência relativamente ao dia de hoje, e com isso reduz toda sua eficácia quanto a esse futuro que terá que chegar. Em outras palavras, a preocupação é algo que se deve a um fracasso absoluto em entender a natureza da vida neste mundo.

Devemos assim vencer a tentação a que todos estamos expostos de tentar armazenar graça pra o futuro. Isto significa falta de fé em Deus, em cujas mãos se encontra o nosso futuro.

Não se inquietar não significa não pensar em nada, mas não se preocupar, não ficar ansioso.

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Mateus 7

“Não julgueis, para que não sejais julgados.” (Mt 7.1)

Em todo este sétimo capítulo de Mateus, o tema principal é o do juízo.

O Senhor nos recorda em todo o momento em seu ensino que nossa estamos de viagem aqui neste mundo, numa peregrinação, e que conduz a um juízo final, a uma última avaliação, e à determinação e proclamação do nosso destino eterno.

A metade de nossos problemas se devem ao fato de vivermos como assumindo que esta é a única vida e o único mundo. Claro que sabemos que isso não é assim; porém há uma grande diferença entre saber uma coisa e guiar-se e governar-se realmente por este conhecimento na vida e perspectivas ordinárias.

Nosso Senhor inicia sua consideração desta grande questão acerca de nosso caminhar neste mundo, sob um sentido de juízo, em função do ponto específico de se julgar uns aos outros. “Não julgueis”. Nosso Senhor segue usando o mesmo método que tem usado ao longo deste sermão. Faz um pronunciamento e o apresenta depois numa forma mais lógica e detalhada.

Faz primeiro o pronunciamento “Não julgueis”. Se nos apresenta aqui uma afirmação que frequentemente, tem conduzido a muita confusão. Temos que reconhecer que

é um tema que pode ser muito facilmente, ser mal entendido. Houve épocas na história da Igreja em que se louvava aos homens que mantinham seus princípios a todo custo. Porém, hoje em dia não é assim. Estes homens são considerados como difíceis, pouco cooperadores e assim por diante. Hoje se glorifica ao homem que se pode descrever como “do centro”,

ao homem agradável, que não cria dificuldades, nem problemas devia a seus pontos de vista. A vida, nos dizem, já é bastante difícil e complexa como é, sem necessidade de se tomar posturas firmes relativas a doutrinas específicas. Numa época como a nossa, pois, há suma importância em

poder interpretar corretamente esta afirmação relativa a julgar, porque há muitos que dizem que esse “não julgueis”

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deve ser entendido simples e literalmente como é, com o significado de que o cristão verdadeiro nunca deve expressar opiniões acerca dos outros. Dizem que nunca se deve julgar, que devemos ser brandos, indulgentes e tolerantes, e permitir praticamente tudo, em prol da paz e da tranquilidade, e sobretudo da unidade. (Este juízo é formado sem se levar em conta tudo o que a Bíblia ensina relativamente ao assunto, senão somente no que é da conveniência e imaginação das próprias pessoas – nota do tradutor).

Esta época não é época para este tipo de juízos, dizem; o que se necessita hoje em dia é unidade e comunhão. Todos devemos ser um. (Argumenta-se principalmente contra posições radicais que possam servir para aumentar as divisões no mundo, e assim, apela-se por uma paz mundial, especialmente sem fronteiras religiosas, sociológicas etc – nota do tradutor).

Todavia, se tomarmos o próprio contexto da afirmação do “não julgueis”, veremos que esta interpretação é completamente impossível.

Tomemos por exemplo o verso 6: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para não acontecer que as calquem aos pés e, voltando-se, vos despedacem.” Como posso colocar isto em prática sem o exercício do juízo? Como posso saber que tipo de pessoa pode ser descrita desta forma como porco e cão?

Vejamos também a afirmação do verso 15: “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.” Como devemos interpretar isso? Não posso guardar-me dos falsos profetas se não penso e se tenho tanto medo de julgar o ensino deles.

Assim, pois, sem ir mais longe, essa interpretação não pode ser a interpretação verdadeira porque diz que significa somente ser “livre e fácil”, e ter uma atitude branda e indulgente com qualquer um que em forma vaga se chame cristão. É completamente impossível.

A própria Bíblia nos ensina que o juízo deve ser exercitado em relação aos assuntos do Estado. Os juízes e magistrados

recebem o poder de Deus e que o magistrado deve pronunciar juízo, e que esse é seu dever. É parte do método que Deus tem

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para frear o mal e o pecado e os efeitos dos mesmos neste mundo temporal. Portanto, se alguém diz que não crê nos tribunais de justiça, contradiz a Bíblia.

Se encontra também o mesmo ensino na Bíblia relativamente à igreja. A disciplina era, para os pais protestantes, sinal tão distintivo da Igreja como a pregação da Palavra e administração dos sacramentos. Porém sabemos muito pouco sobre a disciplina. É o resultado desta noção frouxa e sentimental de que não há que se julgar, e que pergunta: “Quem és tu para julgar?” Porém a Bíblia nos exorta a fazê-lo.

Que significa então a exortação de nosso Senhor “Não julgueis”?

Nosso Senhor não nos diz que não temos que fazer avaliações baseados em juízos, porém que estejamos muito preocupados pelo assunto de condenar. Ao tentarem evitar esta tendência de condenar, algumas pessoas têm chegado ao outro extremo, e com isso se encontram também numa posição falsa. A vida cristã não é tão fácil. A vida cristã é sempre vida de equilíbrio. Têm bastante razão os que dizem que andar por fé significa andar por um fio de uma navalha. Alguém pode cair de um lado ou de outro, mas tem que se manter no centro mesmo da verdade, evitando o erro tanto de uma lado como de outro. Portanto, ainda que digamos que não significa se negar a exercitar o discernimento ou o juízo, devemos nos apressar a dizer nos põe de sobreaviso contra o terrível perigo de condenar, de pronunciar juízos num sentido definitivo.

Que perigo é este acerca do qual nosso Senhor nos põe de sobreaviso? Podemos dizer antes de tudo que é uma espécie de espírito, um espírito que se manifesta de certos modos. Que é este espírito que condena? É o espírito orgulhoso de sua própria justiça. O ego está sempre na raiz do mesmo, e é sempre uma manifestação de autojustificação, um sentido de superioridade, um sentido que nós andamos bem enquanto que outros não. Isto conduz então ao espírito de censura, ao espírito que sempre está disposto a se expressar de forma detratora. E logo, junto com isto, se dá a tendência de desprezar aos outros, a tê-los em pouca conta. Não somente

estou descrevendo os fariseus, estou descrevendo a todos os que têm o espírito farisaico.

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Me parece também que uma parte de importância vital deste espírito é a tendência a ser hipercrítico. Há uma grande diferença entre ser crítico e ser hipercrítico. O verdadeiro espírito de crítica é algo excelente. Desgraçadamente, é muito raro. A crítica verdadeira nunca é simplesmente destrutiva; é construtiva, é uma apreciação.

O homem que é réu de julgar, no sentido em que nosso Senhor emprega o termo aqui, é o hipercrítico, o qual significa que se deleita na crítica pela própria crítica e com isso se alegra. É o homem que se ocupa do que é criticável com a esperança de encontrar faltas, quase anelando encontrá-las.

O espírito hipercrítico nunca se sente realmente feliz a não ser que encontre estas faltas.

O melhor comentário a este respeito se encontra em Romanos 14, onde Paulo diz aos romanos em detalhe que evitem o julgar-se mutuamente em assuntos como a comida e a bebida, e como o considerar um dia mais importante que outro. Haviam situado estes assuntos numa posição destacada, e se julgavam e condenavam em função destas coisas.

Não se pode decidir se alguém é cristão ou não, examinando as ideias que têm acerca de assuntos como estes, os quais não são importantes.

Se descobrimos que temos prazer em saber acerca das faltas de outros, essa é a atitude que conduz a este espírito de juízo que nos torna réus perante o Senhor.

Este espírito se manifesta na realidade na tendência de emitir juízos definitivos acerca das pessoas como tais. Isto significa que não é tanto um juízo do que fazem ou creem ou dizem, senão das próprias pessoas.

É um juízo definitivo da pessoa, e o que o faz tão terrível é que para ser assim, se arroga algo que pertence a Deus.

Este é um tema difícil, e até agora temos examinado somente o mandamento. Não temos estudado todavia a razão que nosso Senhor agrega ao mandamento. Simplesmente, temos tomado as duas palavras, e confia que sempre as recordamos: “Não julgueis”. Ao cumpri-lo agradecemos a Deus por ter um evangelho que nos diz que “sendo ainda pecadores, Cristo

morreu por nós”, que ninguém se mantém por sua própria justiça, senão pela justiça de Cristo. Sem Ele estamos

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condenados, completamente perdidos. Temos nos condenado a nós mesmos ao julgar a outros. Deus é Senhor e nosso Juiz, e Ele nos tem proporcionado uma forma de passar do juízo para a vida. A exortação é para viver nossa vida neste mundo como pessoas que têm passado pelo juízo “em Cristo” e que agora vivem por Ele e como Ele, dando-se conta de que têm sido salvos por sua graça e misericórdia maravilhosas.

Por D. M. Lloyd Jones ( traduzido e adaptado por Silvio Dutra)

A Trave e o Argueiro – Mateus 7.1-5

“1 Não julgueis, para que não sejais julgados.

2 Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós.

3 E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho?

4 Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu?

5 Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.” (Mt 7.1-5)

Examinamos o mandamento de nosso Senhor, “Não julgueis” e o que implica na prática. Agora, veremos nos versos 1 a 5 as razões que dá para não julgarmos.

A primeira razão que nos apresenta é a seguinte: “Não julgueis, para que não sejais julgados!” Se trata de uma razão muito prática e pessoal, porém, que significa exatamente?

Há um juízo que é definitivo e eterno, é o juízo que determina o estado do homem e sua posição diante de Deus. Este juízo decide a grande separação entre o cristão e o não cristão, entre as ovelhas e as cabras, entre os que alcançarão a glória e os que alcançarão a perdição. Este é um tipo de primeiro juízo, como um juízo básico que estabelece a grande linha divisória entre os que pertencem a Deus e os que não lhe pertencem. Isto é ensinado claramente em muitas passagens da Bíblia. Este é o juízo que determina e fixa o destino final do

homem, sua condição eterna, se vai estar no céu ou no inferno.

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Porém esse não é o único juízo que se ensina na Bíblia, há um segundo juízo, o juízo ao qual estamos submetidos como filhos de deus, e por ser filhos de Deus.

Para entender isso, deveríamos ler I Coríntios 11, onde Paulo expõe a doutrina relativa à santa ceia.

Ele diz: “27 De modo que qualquer que comer do pão, ou beber do cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor. 28 Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice. 29 Porque quem come e bebe, come e bebe para sua própria condenação, se não discernir o corpo do Senhor.” (I Cor 11.27-29)

E Logo adiante afirma:

“30 Por causa disto há entre vós muitos fracos e enfermos, e muitos que dormem. 31 Mas, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados; 32 quando, porém, somos julgados pelo Senhor, somos corrigidos, para não sermos condenados com o mundo.” (I Cor 11.30-32).

Esta afirmação é muito importante e significativa. Indica claramente que Deus julga a seus filhos desta forma, que se somos culpados de pecado, ou de viver mal, é provável que Ele nos castigue. O castigo, diz Paulo, pode tomar a forma de enfermidade.

Há quem está enfermo por seu mal viver.

Não quer dizer necessariamente que Deus lhes tenha enviado a enfermidade, porém provavelmente significa que Deus retira sua proteção deles e permite que o Inimigo lhes ataque com a enfermidade. O mesmo tipo de afirmação é encontrada na mesma carta quando fala de entregar um homem a Satanás para que este lhe corrija dessa forma (capítulo 5). É uma doutrina sumamente grave e importante.

Deus permite que Satanás controle estas pessoas devido à sua negativa de julgarem-se a si mesmas e a arrepender-se e a voltar para Deus.

A exortação que faz, por conseguinte, é que devemos examinarmo-nos a nós mesmos, devemos nos julgar a nós mesmos e condenar o mal que há em nós, para que possamos evitar esse outro juízo.

Se engana, pois, o cristão que passa superficialmente pela

vida dizendo que crê no Senhor Jesus Cristo, e que, por conseguinte, nada tem a ver com o juízo, que tudo está bem.

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Em absoluto, devemos andar com cautela, devemos examinarmo-nos e julgar em nossa consciência para que este tipo de juízo não venha sobre nós.

Tudo isto está confirmado em Hebreus 12.5,6:

“5 e já vos esquecestes da exortação que vos admoesta como a filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, nem te desanimes quando por ele és repreendido; 6 pois o Senhor corrige ao que ama, e açoita a todo o que recebe por filho.”

Deus conduz seus filhos à perfeição, e em consequência os

disciplina neste mundo. Julga seus pecados e suas imperfeições neste mundo para prepará-los para a glória.

O terceiro tipo de juízo que é ensinado na Bíblia é o juízo de recompensa. É o juízo para o povo de Deus depois da morte.

Nós o encontramos em Romanos 14 onde Paulo diz que todos compareceremos diante do tribunal de Cristo. Temos o mesmo em I Cor 13 onde se afirma que a obra de cada um será manifestada e o dia a declarará, se o homem tem edificado sobre o fundamento, se ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, será julgado pelo fogo. Parte disso ficará completamente destruído, a madeira, o feno e a palha, porém o homem mesmo se salvará, “ainda que pelo fogo”. Tudo isto indica juízo, juízo de nossas obras desde que nos tornamos cristãos.

Este juízo se encontra também citado em Gál 6.5 onde se diz que “cada um levará a sua própria carga”, porque cada um de nós é responsável por sua própria vida e conduta. Também este tipo de juízo, não decide nosso destino eterno, porém vai constituir uma diferença, sendo um juízo de nossa vida desde que nos tornamos cristãos.

É a este tipo de juízo que nosso Senhor se refere em Mt 7.1: “Não julgueis para que não sejais julgados!”.

Não é simplesmente que se alguém não queira ser criticado por outros, que tampouco devem criticá-los. Isto está certo em ser dito, mas é muito mais importante o fato de que se alguém está se expondo a si mesmo a juízo, e que terá que responder diante de Deus por estas coisas. Se não vai perder a salvação, é evidente que vai perder algo.

Isto nos conduz à segunda razão que nosso Senhor apresenta para não julgar:

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“Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós.” Nosso Senhor declara que Deus mesmo, neste juízo que vimos descrevendo, nos julgará segundo nossa própria medida.

Esta é uma das afirmações mais alarmantes da Bíblia. Pretendo ter um conhecimento excepcional da Bíblia? Se é assim, serei julgado em função desse conhecimento. Pretendo ser um servo que conhece realmente estas coisas? Então não devo surpreender-me se me acoitam muito. Deveríamos ter muito cuidado, por conseguinte, em como nos expressamos. Se com autoridade julgamos a outros, não temos direito de nos queixarmos se somos julgados com a mesma norma. É completamente justo e adequado, e não

temos razão nenhuma de nos queixarmos.

Se pretendemos ter este conhecimento, devemos demonstrá-lo vivendo de acordo com o mesmo. Segundo o que pretendo ser, serei julgado. Se, por conseguinte, ponho muito empenho em examinar a vida das outras pessoas, essa mesma norma se me aplicará, e não terei motivo para queixar-me. A resposta que se me daria, se me queixasse, seria esta: já o sabias, porque o fazias com os demais. Por que não também no teu próprio caso? É um pensamento surpreendente e alarmante.

Isto nos conduz à última razão que nosso Senhor apresenta nos versos 3 a 5:

“3 E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho?

4 Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu?

5 Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.”

Nosso Senhor ensina a terceira razão para não julgarmos a outros é que somos incapazes de julgar. Não podemos julgar. Diz que nosso espírito é tal que não temos direito de julgar.

Antes de tudo, indica que não nos preocupa a justiça e o verdadeiro juízo, porque se estivéssemos preocupados com isso, nos ocuparíamos disso em nós mesmos. Porém, não o fazemos, e por conseguinte nosso interesse não é realmente a verdade.

Se alguém tiver um verdadeiro interesse pela justiça e pela verdade, será tão crítico de si mesmo quanto dos demais.

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O verdadeiro desejo do hipercrítico é condenar a pessoa, muito mais do eliminar o mal que exista nela.

Isto nos faz incapazes de emitir um verdadeiro juízo. Se há parcialidade, se há sentimento e animosidade pessoais, não podemos ser verdadeiros examinadores.

No verso 4 nosso Senhor mostra que nossa própria condição é tal que somos completamente incapazes de ajudar a outros. Pretendemos estar preocupados por essas pessoas e por suas faltas, e tratamos de dar a impressão de que estamos preocupados somente com o seu bem. Dizemos que estamos inquietos por essa pequena mancha que vemos neles, e que estamos desejosos de eliminar esta palha. Porém, diz nosso Senhor, não o podemos fazer, porque é um processo sumamente delicado. A viga que está em nossos próprios olhos nos torna incapazes disso.

Nosso Senhor afirma que é preciso ver claramente para que se possa tirar o diminuto argueiro do olho de outra pessoa pela qual demonstramos interesse em ajudá-la. Não se pode ajudar a outros quando não enxergamos bem por causa da viga que há no nosso próprio olho.

Quem não remove a viga de seu próprio olho é chamado de hipócrita pelo Senhor, porque é um falso ajudador.

Isto pode ser interpretado assim. Se desejas realmente ajudar aos outros, e ajudá-los a eliminar suas manchas, faltas, fragilidades e imperfeições, antes de tudo tens que dar-te conta que o espírito de juízo, hipercrítica e censura que há em ti é realmente como uma viga, se for comparada com a pequena palha no olho alheio.

A outra pessoa talvez tenha caído em imoralidades, em algum pecado da carne, ou talvez seja ré de algum pequeno erro de vez em quando. Todavia, isto não é mais do que uma pequena palha no olho quando comparado com o espírito de hipercrítica que há em ti, que é como uma viga.

Por isso tens que começar com teu próprio espírito, diz em outras palavras; “enfrenta-te contigo mesmo com toda honestidade e sinceridade e admite a verdade acerca de ti mesmo!

Quando o homem se tem visto a si mesmo, nunca julga aos

demais de maneira equivocada. Dedica todo o tempo a condenar-se a si mesmo, a lavar as mãos e a tratar de

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purificar-se. Há somente um modo de se livrar do espírito de censura e hipercrítica, e é julgar-se e condenar-se a si mesmo. Isto nos humilha até o pó, e logo se segue, necessariamente, que havendo-nos, desta maneira, nos livrada da viga dos próprios olhos, estaremos em condições adequadas para ajudar a outros, tirando-lhes a palha dos olhos.

O processo de tirar a palha do olho é difícil. Não há órgão mais sensível que o olho. Quando o dedo o toca, se fecha. Por isso, ao fazer isto necessitamos acima de tudo de afeto, paciência, calma e equilíbrio. Isto é o que se necessita, devido à delicadeza da operação.

Transportemos tudo isso para o âmbito espiritual. Vamos nos

ocupar de uma alma, vamos tocar a parte mais sensível do homem. Como podemos tirar dela a palha? Somente uma coisa importa quanto a isto, é que se seja humilde, compassivo, e estar consciente do próprio pecado e da própria indignidade, a fim de que ao encontrá-la em outra pessoa, longe de condená-la, sintamos vontade de chorar.

Juízo e Discernimento Espirituais – Mateus 7.6

“Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para não acontecer que as calquem aos pés e, voltando-se, vos despedacem.” (Mt 7.6)

Neste versículo de Mateus nosso Senhor conclui o que tem vindo dizendo relativamente ao tema difícil e complexo do juízo.

Esta afirmação parece uma contradição com o que o Senhor havia dito anteriormente neste sétimo capítulo. Aqui vemos o que o Senhor dissera anteriormente não era tudo que se relaciona a este assunto do juízo. De modo que para que haja um equilíbrio adequado e para que a afirmação relativa a este assunto seja completa, é essencial esta observação do sexto versículo.

Se nosso Senhor tivesse concluído o ensino com os cinco primeiros versículos do sétimo capítulo, teria conduzido sem dúvida a uma posição falsa. As pessoas teriam cuidado em evitar o terrível perigo de julgar. Não haveria o que se chama

de disciplina na Igreja; e a vida cristã, em sua totalidade seria caótica. Não haveria coisas como denunciar uma heresia e

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emitir juízo sobre a mesma, porque todo mundo teria tanto medo de julgar ao herege, que cerraria os olhos diante da heresia, e o erro se iria introduzindo na igreja mais do que já o tinha feito.

Assim pois, nosso Senhor passa a fazer esta afirmação, porque o esquecimento deste acréscimo ao ensino acerca do juízo, faz com que tantas pessoas mostrem falta de discernimento e estão prontas a louvar e a recomendar qualquer coisa que se lhes apresente e que pretenda vagamente ser cristã. Dizem que não devemos julgar. E esta posição é considerada como apropriada a um espírito amistosos e caritativo, e por isso tantas pessoas caem em erros graves e suas almas imortais correm grandes perigos.

Como reconciliamos estas duas coisas A resposta simples é que, enquanto nosso Senhor nos exorta a que não sejamos hipercríticos, nunca nos diz que não discirnamos.

A Bíblia nos exorta continuamente ao espírito de discernimento.

Como podemos “provar os espíritos”, como podemos nos guardar dos falsos profetas, sem não exercitarmos nosso juízo e discernimento?

Em outras palavras, temos que reconhecer o erro, porém, temos que fazê-lo, não para condenar senão para ajudar. (E também para manter a verdade e a justiça entre os cristãos – nota do tradutor).

Ao fazer a afirmação deste sexto versículo nosso Senhor quer se referir à verdade, que é santa, e que tem sido comparada com s pérolas. A pérola aqui referida é a mensagem cristã, a mensagem do reino, as coisas relativas ao reino de Deus.

O cachorro, nos dias de nosso Senhor, na Palestina, não era o animal doméstico que temos hoje. Mas viviam nas ruas comendo do lixo, e era um animal selvagem e perigoso. E na sociedade judaica o porco representava a tudo o que era impuro e condenado pela Lei.

E estes são os dois termos que nosso Senhor emprega para nos ensinar como discernir entre pessoa e pessoa. Temos que

reconhecer que há um tipo de pessoa que, relativamente á verdade, se coloca na posição de cão e de porco.

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Isto não se refere à posição de todos os não cristãos, porque de outro modo nunca poderiam se converter porque estariam impedidos de ouvir a verdade.

Mas se refere a discernir entre pessoa e pessoa quanto ao modo que se posicionam em relação ao evangelho.

Veja como nosso Senhor evitou em expor a verdade quanto interpelado por Pilatos e por Herodes.

Veja como Paulo e Barnabé se opuseram a continuar pregando o evangelho aos judeus de Antioquia que estavam resistindo à verdade (At 13.46).

Não há nada tão trágico e antibíblico como testemunhar aos outros de forma mecânica. Há cristãos que são réus disto. Dão testemunho, porém o fazem numa forma totalmente mecânica. Nunca pensam na pessoa com a qual tratam; nunca tratam de avaliá-la nem em descobrir exatamente em que posição está. Falham completamente em por em prática esta exortação. Apresentam a verdade exatamente na mesma forma a todos e a cada um. Aparte do fato de que seu testemunho se torna bastante inútil, a única coisa que conseguem é um sentimento de autocomplacência, e expõem o santo nome do Senhor à ignomínia e desonra.

Nosso Senhor descreve a reação do cão e do porco, ao pisotear e destroçar, a blasfêmia e a maldição. E devemos ter sempre cuidado em não dar base a ninguém para que blasfeme e

maldiga.

Buscar e Achar – Mateus 7.7-11

“7 Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á.

8 Pois todo o que pede, recebe; e quem busca, acha; e ao que bate, abrir-se-lhe-á.

9 Ou qual dentre vós é o homem que, se seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra?

10 Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente?

11 Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas

coisas aos que lhas pedirem?” (Mt 7.7-11).

Não posso imaginar uma afirmação melhor, mais alentadora ou mais consoladora, com a qual podemos enfrentar todas as

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incertezas e dificuldades de nossa vida neste mundo, que a contida nos versículos 7 a 11 de Mateus 7. É uma dessas promessas cheias de graça que somente se encontram na Bíblia. Não há nada que possa ser mais alentador que essas promessas ao enfrentar-nos com a vida e todas suas incertezas e possibilidades, e com nosso futuro desconhecido.

Numa situação assim, esta é a essência da mensagem bíblica desde o princípio até o fim, esta é a promessa que nos é feita: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á.”.

Para que estejamos completamente seguros disso, nosso

Senhor o repete, e o põe numa forma todavia mais vigorosa, quando diz: “Porque todo aquele que pede, recebe; e o que busca, acha, e ao que chama, se lhe abrirá.”.

Não cabem dúvidas acerca disso, porque é certo; é uma promessa absoluta. E mais do que isso, é uma promessa que é feita pelo Filho de Deus mesmo. Falando com toda plenitude e autoridade de seu Pai.

A Bíblia nos ensina a cada passo que esta é a única coisa que importa na vida. A visão bíblica da vida, em contraposição com a visão mundana, é que a vida é uma viagem, uma viagem cheia de perplexidades, problemas e incertezas.

Sendo assim, põe em relevo o que na realidade importa na vida não é tanto as coisas diferentes que nos ocorrem, e das quais temos que nos ocupar, senão nossa disposição para enfrentá-las.

O ensino bíblico total a respeito da vida está sintetizado em certo sentido em Abraão, de quem se nos diz que saiu sem saber para onde ia.

Contudo, foi perfeitamente feliz, viveu em paz e tranquilidade. Não teve medo. Por que? Um antigo puritano que viveu há 300 anos respondeu a esta pergunta por nós: “Abraão saiu sem saber aonde ia, porém sabia com quem ia.”.

Isto é o que importa, sabia que havia saído nessa viagem com Alguém.

Não estava só, havia Alguém com ele que lhe havia dito que nunca lhe deixaria, nem abandonaria; e ainda que não

estivesse seguro quanto aos sucessos que iria encontrar, e os problemas que ocorreriam, estava perfeitamente feliz,

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porque conhecia, se me permitem dizê-lo assim, ao seu Companheiro de viagem.

Abraão foi como o próprio Senhor Jesus Cristo, que, sob a sombra da cruz, e sabendo que inclusive seus discípulos mais íntimos iriam abandoná-lo por temor e preocupação de salvarem suas próprias vidas, contudo pôde dizer isto: “Eis que vem a hora, e tem já chegado, em que sereis espalhados cada uma para seu lado, e me deixareis só; mas não estarei só, porque o Pai está comigo” (João 16.32).

Segundo a Bíblia, isto é a única coisa que importa, nosso Senhor nos promete transformar a nossa vida; não nos promete remover dificuldades, provas, problemas e tribulações, não diz que vai arrancar todos os espinhos e deixar somente as rosas com seu aroma maravilhoso, não, enfrenta-se a vida de forma realista, e nos diz que estas são coisas que a carne manifesta e que têm que suceder.

Porém, nos garante que podemos conhecê-lo até o ponto que, seja o que for que suceda, nunca teremos que nos assustar, nunca teremos que nos alarmar.

Diz tudo isto nesta promessa tão grande e compreensiva: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á.”.

Esta é uma das formas bíblicas de repetir esta mensagem, que se encontra ao longo da Bíblia, como espinha dorsal, desde o princípio até o fim.

Para tirar todo o proveito de palavras tão maravilhosas e cheias de graça, devemos examiná-las com mais detalhes.

Não basta repetir uma frase como esta.

A Bíblia nunca deve ser utilizada como uma espécie de tratamento psicológico.

Há pessoas que assim o fazem. Há pessoas que pensam que a melhor forma de passar pela vida triunfalmente é ler e repetir versículos maravilhosos. Desde logo, isso pode ajudar até certo ponto; porém não é a mensagem bíblica nem o método bíblico. Essa espécie de tratamento psicológico alivia somente de maneira temporal.

É como o ensino que nos diz que não há enfermidades nem

dor. Isto parece muito útil e pode conduzir a melhoras temporais; porém se há enfermidades que levam à morte,

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como chegam a descobrir inclusive por si mesmos os seguidores de tais ideias, de que serve tal ensino?

Esta não é a forma bíblica. A Bíblia nos transmite a verdade, e quer que examinemos esta verdade. Assim pois, quando chegamos a uma frase como esta não nos contentamos com dizer: “está bem”. Devemos saber o que significa, e devemos aplicá-la em detalhes em nossa vida.

Ao começar a analisar esta grande afirmação, devemos recordar essa norma de interpretação que temos ouvido frequentemente e que nos põe de sobreaviso contra o perigo de tirar um texto de seu contexto.

Temos que evitar o terrível perigo de torcer a Bíblia, para nossa perdição, ao não tomá-la em seu contexto, ou ao não observar especificamente o que diz, ou ao não prestar atenção tanto às limitações como às promessas.

Isto é sobremaneira importante no caso de uma afirmação como esta. Há pessoas que dizem: “a Bíblia diz: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Muito bem”, - prosseguem – “acaso isto não está dizendo de forma explícita, e não quer dizer necessariamente que tudo o que eu deseje ou queira, Deus me dará?”. E porque creem que diz isto, e porque pensam que esse é o ensino bíblico, prescindem os demais ensinos e vão a Deus com todas suas petições.

Estas petições não lhes são concedidas, e então, caem em depressão e em desesperança.

Sua situação é todavia pior do que era antes; e dizem: “Parece que Deus não cumpre suas promessas”, e se sentem amargurados e infelizes. Temos que evitar isto. A Bíblia não é algo que funciona automaticamente. Por esta razão não examinemos somente os versículos 7 e 8. Examinemos os versículos 7 a 11 porque devemos tomar esta afirmação como um todo, se não queremos nos desviar gravemente ao examinar suas partes distintas.

Não é difícil mostrar que esta afirmação, longe de ser uma promessa universal pela qual Deus tem se comprometido a nos dar tudo o que pedimos, é de fato algo muito maior que isso.

Dou graças a Deus – permita-me dizê-lo com toda clareza – dou graças a Deus de que não esteja disposto a dar-me tudo o que

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eu possa pedir-lhe, e digo isto como resultado de minha própria experiência.

Em minha vida passada, e como todas as pessoas, pedi frequentemente a Deus coisas, e tenho lhe pedido que faça coisas, que naqueles momentos, desejava muito e que cria que eram o melhor para mim. Porém, agora, situado neste ponto concreto de minha vida e ao contemplar o passado, digo que me sinto profundamente agradecido a Deus de que não me tivesse concedido certas coisas que lhe pedira, e de que me tivesse fechado a porta na cara. Naquele momento não entendi, porém agora, sei, e estou agradecido a Deus por isso. Pelo que Lhe dou graças de que isto não seja uma promessa universal, e de que Deus não me dará tudo o que desejo e peço. Deus tem coisas melhores para nós, e agora o veremos.

A forma adequada de ver esta promessa é a seguinte: Antes de tudo perguntemo-nos o óbvio. Por que nosso Senhor pronunciou estas palavras neste momento específico? Por que estão nessa frase do Sermão do Monte? Recordemos que haja pessoas que dizem que este capítulo sétimo de Mateus, esta porção final do Sermão do Monte, não é senão uma coleção de afirmações que nosso Senhor emitiu à medida que se lhe ocorriam. Porém, já temos visto que esta análise é

muito falsa, e que há um tema que constitui a espinha dorsal do capítulo.

O tema é o do juízo, e nos recorda que nesta vida vivemos

sempre sob o juízo de Deus. Nos agrade ou não, o olhar de Deus nos segue, e esta vida é uma espécie de escola preparatória para a grande vida que nos espera além da morte e do tempo.

Em consequência, tudo o que fazemos neste mundo tem um significado tremendo, e não podemos nos permitir o luxo de não nos fixarmos em nada.

Este é o tema, e nosso Senhor o aplica deste modo. Começa com a questão de julgar aos demais.

Devemos ter cuidado acerca disto porque nós mesmos

estamos sob juízo. Porém, por que então nosso Senhor pronuncia esta promessa dos versículos 7 a 11 a esta altura?

A resposta é esta: Nos versículos 1 a 5 nos tem mostrado o

perigo de condenar os outros como se fôramos os juízes, e abrigar amargura e ódio no coração. Também nos tem dito

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que devemos procurar tirar a viga do nosso próprio olho antes de extrair a palha do olho alheio. O efeito de tudo isto em nós é revelar-nos quem somos e mostrar-nos nossa tremenda necessidade da graça. Nos tem colocado frente a frente dessa norma tremendamente elevada com a qual seremos julgados – “Com o juízo com que julgardes, sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido, também medirão a vós.”. Esta é a situação no final do quinto versículo.

E no verso 6 Jesus nos ordena: “Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, não aconteça que as pisem com os pés e, voltando-se, vos despedacem.”.

Há um princípio espiritual imutável em Deus de honrar somente àqueles que o honrarem.

Não admira portanto, que aqueles que não se interessam pelo tesouro celestial, sejam pobres das coisas espirituais, celestiais e divinas. Como não têm fome e sede de justiça, não pedem e não procuram por este tesouro celestial.

Se colocamos um desprezo naquilo que é verdadeiramente precioso, o que poderíamos esperar receber?

Note-se o caso de quem está sempre se alimentando de leite e nunca está em condições de receber alimento sólido. Qual é a razão disto? Deus teria porventura prazer em esconder e não conceder do tesouro do conhecimento, entendimento e prática da sua Palavra a nós?

Ou a causa disto se encontra em nós mesmos? Na nossa falta de fome e sede de justiça? Na nossa negligência que não nos leva a lhe pedir com a alma, e não com meras palavras, em demonstração de firme interesse de aprender dele por uma contínua meditação na sua Palavra e no aprendizado humilde com os verdadeiros mestres que Ele levantou ao longo da história da Igreja!

Oh! Quão duros somos para enxergar que sem buscar com toda as nossas forças e alma, em grande interesse sincero num maior conhecimento de Jesus, jamais poderemos ter um verdadeiro crescimento na graça, que será o fator que nos possibilitará compreender e viver as coisas profundas relativas ao reino de Deus.

(“Buscai e encontrareis”, é o que Ele nos tem prometido. E por

acaso poderia negar a Si mesmo deixando de cumprir o que prometeu?

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Mas muitos têm confundido esta passagem das Escrituras como um encorajamento a buscarmos as coisas que sejam do nosso próprio interesse carnal, da simples solução dos nossos problemas terrenos, mas o texto deve ser entendido no seu contexto, porque foi proferido quando Jesus se encaminhava para concluir o Sermão do Monte, e imediatamente após ter proferido as seguintes palavras no verso anterior ao do nosso texto: “Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, não aconteça que as pisem com os pés e, voltando-se, vos despedacem.” (Mt 7.6).

Ele estava falando da preciosidade das coisas santas, e do cuidado que deveríamos ter com elas, em razão do seu elevado valor tanto para Deus quanto para nós. Foi pensando nelas que nos ordenou pedir, buscar e bater à porta do céu à procura delas.

Se o fizermos, elas nos santificarão progressivamente. Dar-nos-ão o crescimento e amadurecimento espiritual que procede de Deus. Poderemos ser nutridos com o alimento sólido que procede do céu, pelo Espírito Santo, em aplicação da Palavra ao nosso entendimento e corações, e segundo o autor de Hebreus teremos as faculdades exercitadas para discernirmos tanto o bem como o mal (Hb 5.14).

E o ser capacitado por Deus a se nutrir de alimento sólido significa ser experimentado na palavra da justiça, segundo a experiência que Ele próprio concede progressivamente àqueles que honram o seu nome, valorizando o tesouro santo do céu, por uma busca constante, fervorosa do mesmo, por causa do seu amor pelo Senhor Jesus – nota inserida pelo tradutor).

(O texto inserido por nós ao de D. M. Lloyd Jones, considerado juntamente com os argumentos que ele havia apresentado e que ainda continuará apresentando doravante sobre os versos 1 a 5, ajudam-nos a entender melhor a que Jesus queria se referir com as palavras de Mateus 7.7 – inserido pelo tradutor).

Imediatamente nos damos conta de que temos sido humilhados e começamos a perguntar: “Quem poderá viver assim? Como posso viver de acordo com tais normas?” E não

somente isto; damo-nos conta da necessidade de purificação. Apercebemo-nos do quanto somos pecadores e indignos, e o

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resultado de tudo isto é que nos sentimos completamente desesperançados e impotentes.

Dizemos: “Como podemos viver o Sermão do Monte? Como pode alguém alcançar semelhante nível? Necessitamos de ajuda e graça. Onde poderemos consegui-los?”. Aqui está a resposta: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á.” Esta é a conexão, e deveríamos agradecê-la a Deus, porque ao nos situarmos frente a frente com este glorioso evangelho, todos devemos sentir-nos pouca coisa, e indignos.

Essas pessoas néscias que pensam no cristianismo somente em função de uma certa moralidade que podem alcançar por si mesmos, nunca têm entendido de verdade.

A norma que nos apresenta é a que se encontra no Sermão do Monte, e segundo ela, ficamos prostrados até ao chão e nos damos conta da nossa incapacidade total e de nossa necessidade desesperada de graça. Temos aqui a resposta: a provisão está disponível, e nosso Senhor a repete para colocá-la mais em relevo.

Ao examinarmos isto devemos nos fazer uma série de perguntas: “Por que somos o que somos se existem tais promessas? Por que é tão pobre a qualidade da nossa vida cristã? Não temos diante de nós qualquer desculpa. Tudo o que necessitamos está disponível; por que então somos o que somos? Por que não somos exemplos mais perfeitos deste Sermão do Monte? Por que não nos conformamos cada vez mais ao modelo do Senhor Jesus Cristo mesmo? Se nos oferece tudo o que necessitamos; tudo nos tem sido prometido nesta promessa geral. Por que não nos servimos dela como deveríamos? Por sorte, esta pergunta tem resposta e este é o significado verdadeiro deste versículo. Nosso Senhor analisa estas palavras e nos mostra porque não temos recebido, porque não temos achado, e porque a porta não nos tem sido aberta como deveria ser. Ele conhece o que somos, e nos estimula a servir-nos desta promessa graciosa. Noutras palavras, há que se observar certas condições para poder desfrutar destes grandes benefícios que nos são oferecidos

em Cristo. Quais são? Mencionemo-los de forma simples e breve.

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Se queremos passar pela vida de maneira triunfal, com paz e alegria no coração, dispostos a enfrentarmos tudo o que se nos possa apresentar, e ser mais que vencedores, apesar de tudo, há certas coisas que devemos observar, e aqui as temos.

A primeira é que devemos nos dar conta de nossa necessidade. É estranho, porém há pessoas que parecem pensar que a única coisa necessária são as promessas que Deus fez.

Contudo, isto não é suficiente, porque o problema básico do gênero humano é que não se dá conta do estado de necessidade em que se encontra.

Há muitos que pregam acerca do Senhor Jesus Cristo sem conseguirem nenhum efeito e este é o motivo: não têm doutrina do pecado, nunca convencem as pessoas de seu pecado. Sempre apresentam a Cristo e dizem que isto é suficiente. Porém não é suficiente; porque o efeito do pecado em nós é tal que nunca recorremos a Cristo a não ser que nos demos conta de que somos pobres.

Porém, não nos agrada nos considerarmos como pobres, e não nos agrada sentirmos nossa necessidade.

Assim, estão dispostos a escutarem sermões que apresentam a Cristo, porém não lhes agrada que se lhes diga que são tão incapazes, que Cristo teve que subir à cruz e morrer para que pudessem ser salvos.

Pensam que isto é ofensivo. Temos que nos dar conta da nossa necessidade. Os dois primeiros elementos essenciais para a salvação e para a alegria em Cristo são a consciência da nossa necessidade, e a consciência da riqueza da graça que há em Cristo.

Somente os que se dão conta destas coisas podem verdadeiramente “pedir”, porque somente o que diz “miserável homem que sou!” busca a libertação. Os outros não são conscientes de sua necessidade. O que sabe que está quebrado é o que começa a pedir. E então começa a se dar conta das possibilidades que existem em Cristo.

O que nosso Senhor destaca aqui, em princípio, é a importância decisiva de conhecer nossa necessidade. Ele diz por meio destes três termos: pedir, buscar, chamar.

Ao ler os comentaristas encontramos grandes discussões relativas a se buscar, dizendo que é mais vigoroso que pedir, e

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chamar mais vigoroso que buscar. Dedicam muito tempo para discutir tais pontos. E como de costume, costumam se contradizer. Uns dizem que pedir significa um desejo superficial; buscar um desejo maior; e bater à porta algo muito mais poderoso. Outros dizem que o homem que chama batendo à porta é o que está fora e que é mais elevado pedir que chamar. Dizem que o não cristão deve bater à porta e começar a buscar, e que por fim, ao estar frente a frente com o Senhor, pode começar a pedir.

Porém tudo isto está fora de propósito. Nosso Senhor simplesmente quer enfatizar uma coisa, a saber, que temos de mostrar persistência, perseverança, esforço contínuo. (Buscar com toda intensidade e fervor de espírito, como aqueles que têm e sentem realmente fome e sede de justiça; reconhecendo nossa real necessidade, é a chave de recebermos graça para sermos cada vez mais cristãos melhores. Em resumo: não temos isto porque não buscamos, uma vez que o Senhor tem prometido dar a quem buscar – nota do tradutor).

Há momentos de fazer balanço da vida, quando nos detemos e dizemos: “a vida segue; eu sigo, que progresso tenho feito nesta vida e neste mundo?”. Concluímos que não vivemos a vida cristã como deveríamos, não somos diligentes quanto deveríamos na leitura da Bíblia e na oração. Dizemos que vamos mudar tudo isto porque compreendemos que há um nível mais elevado que devemos alcançar, e desejamos chegar a ele.

Somos sinceros, somos muito sinceros, e verdadeiramente desejamos fazê-lo.

Consequentemente, durante os primeiros dias de um novo ano, lemos a Bíblia com regularidade, oramos e pedimos a Deus sua bênção. Porém, e isto nos ocorre a todos – logo começamos a falhar e a esquecer. No momento em que pensamos em dedicar-nos à leitura ou à oração, sucede algo imprevisto, como dissemos, algo que havíamos previsto, e todo nosso programa fica alterado. Ao fim de uma ou duas semanas descobrimos que temos esquecido completamente nossa excelente resolução. Isto é o que preocupa a nosso

Senhor. Se temos de alcançar realmente estas bênçãos que Deus nos tem reservado, devemos seguir pedindo.

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“Buscar” simplesmente significa seguir pedindo, e chamar significa a mesma coisa. É como uma intensificação da palavra “pedir”. Seguimos, persistimos; somos como a viúva insistente. Seguimos pedindo ao juiz, por assim dizer, como ela o fez, e nosso Senhor nos diz o que o juiz disse: “como esta viúva me incomoda, hei de fazer-lhe justiça, para que ela não continue a vir molestar-me.” (Lc 18.5).

A importância deste elemento da persistência não se pode exagerar. Encontra-se não somente no ensino bíblico, senão também na vida de todos os santos. O mais fatal na vida cristã

é contentar-se com desejos passageiros e não crescer espiritualmente. Se queremos realmente ser homens de Deus, se queremos realmente conhecê-lo, e andar com Ele, e experimentar essas bênçãos inesgotáveis que nos tem reservado, devemos persistir em pedi-las todos os dias. Temos de sentir esta fome e sede de justiça, e então seremos fartos. E isto não quer dizer que estaremos cheios de uma vez por todas, porque seguimos tendo fome e sede, como o apóstolo Paulo, deixando as coisas que ficam para trás, prosseguimos para o alvo, pelo prêmio da vocação celestial de Deus em Cristo Jesus (Fp 3.14). “Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas vou prosseguindo, para ver se poderei alcançar.” (Fp 3.12), disse também o apóstolo. Assim é. Esta persistência, este desejo constante, pedir, buscar e chamar. Devemos estar de acordo em que este é o ponto em que a maior parte de nós falhamos.

Retenhamos pois, este primeiro princípio. Examinemo-nos à luz desta passagem e do quadro do homem cristão que é apresentado pelo Novo Testamento. Contemplemos estas gloriosas promessas e perguntemo-nos: “Estou experimentando tais promessas?”. Se vemos que não, como todos, devemos reconhecer então que devemos voltar a esta grande afirmação. Isto é o que quero dizer com “possibilidades”.

Se devo começar pedindo e buscando, devo seguir fazendo isto até que esteja consciente de que o nível espiritual que alcanço é mais elevado. E assim devemos seguir. É uma batalha da fé; é o que persevera até o fim que será salvo neste

sentido. Persistência, continuidade, orar sempre e não desmaiar. Não somente orar quando desejamos uma grande

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bênção e logo parar; orar sempre. Persistência, isto é o primeiro. Dar-nos conta da necessidade, dar-nos conta da provisão, e persistência em buscá-la.

(Lembramos que tudo isto não tem a ver primeiro com os nossos próprios interesses, mas com os interesses de Deus, porque nos é ordenado buscar o seu reino e a sua justiça como prioridade de nossas vidas, e lembramos também que isto não coloca em perspectiva bênçãos ocasionais, mas o pedido fervoroso da alma por uma vida mais santa e útil nas mãos de Deus, para a realização dos seus santos propósitos através de nós. Afinal, pelo contexto do Sermão do Monte, no qual a promessa de Mt 7.7 foi feita, não se coloca em perspectiva pedirmos bênçãos a Deus que nos tornem prósperos segundo o padrão deste mundo, mas as operações da sua graça que nos tornem mais semelhantes a Cristo – nota do tradutor).

Examinemos agora o segundo princípio, a saber, dar-nos conta de que Deus é nosso Pai. Nosso Senhor fala acerca disto

a partir do versículo 9 e o apresenta assim: “Ou qual dentre vós é o homem que, se seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhas pedirem?” (Mt 7.8-11). (O texto paralelo de Lc 11.13 traz “dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem" no lugar de “boas coisas aos que lhas pedirem” de Mt 7.11, e isto é muito significativo porque revela qual é o caráter destas coisas boas, a saber, as bênçãos espirituais que nos são dadas e aplicadas pelo Espírito Santo. O reino de Deus e sua justiça, que buscamos, é o que nos será dado, as demais coisas necessárias à nossa sobrevivência neste mundo ser-nos-ão dadas como um acréscimo à nossa fidelidade em buscar estas bênçãos melhores e superiores, que são espirituais e que têm a ver com o nosso amadurecimento espiritual – nota do tradutor).

Se um pai terreno faz tanto por seus filhos, quanto mais o fará o Pai celestial?

Um dos maiores dos nossos problemas para vivermos a vida cristã consiste no nosso fracasso em conhecer a Deus como Pai, como deveríamos.

Este é nosso verdadeiro problema, e não o ter dificuldades acerca de bênçãos específicas. O problema básico segue

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sendo que não conhecemos, como deveríamos, que Deus é nosso Pai. Ah, sim, dizemos, sabemos isto e cremos nisto! Porém o sabemos na nossa vida e viver cotidiano? É algo do que estamos sempre conscientes? Se estivéssemos persuadidos disto, poderíamos sorrir diante de todos os imprevistos que nos esperam.

Como Deus é nosso Pai, nunca nos dará algo mau. Dar-nos-á somente o que é bom. Quem há entre os homens cujo filho lhe peça pão, e lhe dê uma pedra? Multipliquemos isto ao infinito e esta é a atitude de Deus para seus filhos. Em nossa necessidade somos propensos a pensar que Deus é contra nós quando nos sucede algo desagradável. Porém Deus é nosso Pai; e como nosso Pai nunca nos dará algo mau. Nunca! É impossível! Mesmo suas correções dolorosas são para o nosso bem, para participarmos mais da sua santidade.

O terceiro princípio que se aprende no nosso texto é que Deus, por ser Deus, nunca comete erros. Conhece a diferença entre o bom e o mau numa forma única. Tomemos um pai terreno; não dá pedras em vez de pães, porém, às vezes comete erros.

O pai terreno, com a melhor intenção, pensa às vezes, em certo momento que está fazendo algo para o bem de seu filho, porém descobre mais adiante que lhe prejudicou. Nosso Pai que está no céu nunca comete tais erros. Nunca nos dará nada que resulte em dano para nós, ainda que à primeira vista pareça bom. Esta é uma das coisas mais maravilhosas que podemos descobrir. Somos filhos de um Pai que não somente nos ama senão que cuida de nós permanentemente. Nunca nos dará nada mau. Porém acima de tudo, nunca nos enganará, nunca cometerá erros no que nos dará. Sabe tudo, seu conhecimento é absoluto. Se compreendêssemos que estamos nas mãos de um Pai assim, nossa visão do futuro seria totalmente transformada.

Finalmente, devemos recordar mais a cada dia os dons que tem para nós. Já nos referimos que a passagem paralela de Lc 11.13 traz “Espírito Santo” no lugar de “coisas boas”. E ao nos dar o Espírito Santo, nos dá todas as coisas e disposições que necessitamos, todas as graças, todos os dons. Tudo nos é dado nele. Pedro resumiu isto dizendo: “todas as coisas que

pertencem à vida e à piedade nos têm sido dadas pelo seu divino poder.” (II Pe 1.3). Agora se vê porque deveríamos dar

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graças a Deus de que pedir, buscar e chamar não signifique que tudo o que lhe peçamos será dado. Claro que não. O que significa é isto: “Peçamos uma dessas coisas que são boas para nós, e que se encontram dentro da vontade de Deus para nós, como a salvação da alma, a santificação, e tudo o que nos aproxime mais de Deus, e Ele nos dará estas coisas boas. Ele fará com que tudo coopere juntamente para o nosso bem, isto é, para cumprir todo o bem que tem projetado para cada um de nós, como seus filhos amados. E isto nos será concedido à medida da nossa fome e sede de justiça, que nos leve a pedir, buscar, chamar. E já dissemos, e voltamos a repetir que estes pedidos são sobretudo pedidos da alma, anelos do coração, por uma maior consagração a Deus.

Dar-nos-á coisas boas que são boas para nós, e a promessa é literalmente esta, que se buscamos estas coisas boas, a plenitude do Espírito, a vida de amor, alegria, paz, paciência etc, todas estas virtudes e glórias que se viram resplandecer com tanta intensidade no ministério terreno de Cristo, Ele nô-las dará. Se desejamos realmente ser mais como Ele é, e como

todos os santos, se realmente pedimos estas coisas, as receberemos; se as buscamos, as acharemos; se chamarmos à porta do céu ela será aberta para nós, e entraremos na posse das mesmas. A promessa é, que se pedimos as coisas boas, nosso Pai celestial nô-las dará.

Esta é a maneira de encararmos o futuro. Ver na Bíblia quais são estas coisas boas e buscá-las. O que importa acima de tudo, o melhor de tudo para nós, é conhecer a Deus, “o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviou”, e se buscarmos isto acima de tudo, se buscarmos em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, então temos a Palavra do Filho de Deus de que todas estas coisas nos serão acrescentadas. Deus nô-las dará com uma abundância que nem sequer podemos imaginar.

A Regra de Ouro – Mateus 7.12

“Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós a eles; porque esta é a lei e os profetas.” (Mt 7.12)

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Sempre há o perigo de considerar a lei como algo em si mesmo e por si mesmo, e de pensar que a única coisa que há que se fazer é observar todas as regras e que, se assim o fazemos e nunca nos desviamos delas, se nunca nos excedemos em cumpri-las nem as cumprimos deficientemente, tudo irá bem. Contudo, todas estas ideias acerca da lei são completamente falsas.

Talvez podemos dizer que o perigo em que nos encontramos é pensar na lei como algo negativo, algo proibitivo. Claro que há aspectos da lei que são negativos; porém o que nosso Senhor enfatiza aqui é que a lei que Deus deu aos filhos de Israel por meio dos anjos e de Moisés é algo muito positivo, é algo espiritual. Nunca quis ser algo mecânico, e a falácia básica dos fariseus e dos escribas, e de todos seus seguidores, foi que reduziram algo essencialmente espiritual e vivo a nível do mecânico, a algo que era um fim em si mesmo. Pensaram que como não haviam matado a ninguém, haviam observado a lei relativa ao homicídio, e que, como hão haviam cometido adultério físico, tudo estava bem no sentido moral.

Se fizeram culpados de não verem o desígnio espiritual, o caráter espiritual da lei, e sobretudo de não verem o grande fim e objetivo para o que se havia dado à lei.

Aqui, nosso Senhor diz tudo nesta síntese perfeita. O propósito básico e o espírito verdadeiro que está na raiz de tudo isto é que devemos amar o próximo com a nós mesmos, que temos que nos amar uns aos outros.

Sendo como somos, contudo, não basta que se nos diga que nos amemos uns aos outros; tem que ser detalhado. Como resultado da Queda somos pecadores; em consequência não basta dizer: “Amai-vos uns aos outros”. Nosso Senhor, em consequência, o detalha e diz: do mesmo modo que valorizas tua própria vida, recorda que os outros também valorizam as suas, e que se tua atitude para com um homem é adequada, não matarás a esse homem, porque sabes que valoriza sua vida como tu valorizas a tua. O vital, depois de tudo, é que ames a esse homem, que o compreendas e desejes o bem-estar do teu próximo, dom esmo modo como desejas teu próprio bem-estar. Esta é a lei e os profetas. Tudo se reduz a isto. As normas

detalhadas que são dadas no Velho Testamento – o que se te diz que faças, por exemplo, se vês que o boi do teu vizinho

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fugiu, com tens que levá-lo, ou se vês que algo vai mal em seus cultivos, como tens que informar-lhe imediatamente e fazer todo o possível para ajudá-lo.

Agora, devemos aplicar tudo isto ao mundo moderno e a nós mesmos. As pessoas ouvem a regra de ouro, a louvam como maravilhosa e estupenda, e como uma síntese perfeita de um tema importante e complicado. Porém a tragédia é que, depois de tê-la louvado, não a cumprem. E depois de tudo, a lei não foi dada para ser louvada senão para ser praticada. Nosso Senhor não pregou o Sermão do Monte para que vocês e eu o pudéssemos comentar, senão para que o cumpríssemos.

A razão para que todos os homens, por instinto e natureza, não se apressem a colocar em prática esta regra de ouro é porque são egoístas.

Tudo pode ser reduzido numa palavra: o ego. Nosso Senhor diz que deveríamos amar ao próximo como a nós mesmos. Porém, isso é o que não fazemos, e não queremos fazê-lo, porque amamos o eu demasiadamente e numa forma equivocada. Não fazemos aos demais como gostaríamos que eles fizessem a nós, porque estamos sempre pensando somente acerca de nós mesmos, e nunca nos dedicamos a pensar nos outros.

Como pode alguém colocar em prática esta regra de ouro? Como pode nossa conduta e atitude se conformar com o que nosso Senhor nos diz aqui? A resposta do evangelho é que tem que se começar com Deus. Qual é o maior mandamento? É este: “Amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração, e com toda a tua alma, e com toda a tua mente”. E o segundo é semelhante: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”

Se não amarmos primeiro a Deus não poderemos amar o próximo.

A Porta Estreita – Mateus 7.13,14

“13 Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela;

14 e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos são os que a encontram.” (Mt 7.13,14)

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A notável e surpreendente afirmação dos versículos 13 e 14, é importantíssima e vital. Podemos dizer sem temor de nos equivocar que Jesus concluiu realmente o Sermão do Monte propriamente dito, e que de agora em diante o que faz é arrematá-lo, aplicá-lo, fazendo ver a seus ouvintes a importância e necessidade de praticá-lo e cumpri-lo na vida diária.

Temos visto em nossos estudos que a seção do Sermão que ocupa o sétimo capítulo de Mateus tem uma unidade

essencial, um tema comum, a saber, o do juízo. A rigor, o Sermão é concluído no versículo 12, onde Jesus resumiu todos os princípios que queria inculcar (“Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós a eles; porque esta é a lei e os profetas.” V.12).

O objetivo do Senhor neste sermão, como temos visto, é o de conduzir os cristãos a darem conta de sua natureza e caráter como povo de Deus, e em seguida lhes mostrar como têm que manifestar essa natureza e caráter na vida diária. Nosso Senhor, o Filho de Deus, veio do céu à terra para fundar e estabelecer um novo reino, o reino dos céus. Veio aos reinos deste mundo, e seu propósito é chamar a si pessoas do mundo e constituí-las em reino. Por conseguinte, é essencial que proponha com toda clareza que este reino que veio estabelecer é completamente diferente de tudo o que o mundo tem conhecido, porque é o reino de Deus, o reino da luz, o reino dos céus. seu povo deve dar-se conta de que é algo único e distinto; por isso, lhes faz uma descrição do mesmo. Temos estudado essa descrição. Temos examinado o retrato geral que se faz do cristão nas Bem-Aventuranças. Temos escutado o Senhor dizer a este povo, que precisamente por ser esta classe de pessoas, que o mundo reagiria de forma especial em relação a elas; e que as perseguiria. Contudo, não têm que sair do mundo para se converter em monges e eremitas; têm que permanecer na sociedade como sal e luz; têm que guardar a sociedade da putrefação e da decomposição, e têm que ser luz; essa luz, sem a qual o mundo permanece num estado de trevas absolutas.

Uma vez feito isto, passa à aplicação prática e à elaboração disso. Recorda-lhes o tipo de vida que têm que viver, tem de

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ser completamente diferente, inclusive superior à das pessoas mais religiosas que existiam naquele tempo.

Contrasta seu ensino com o dos fariseus, dos escritas e dos sacerdotes da lei. Eram considerados como os melhores, os mais religiosos, e contudo mostra ao seu povo que a sua justiça deve superar a deles. E passa a lhes mostrar como isto deve ser feito dando-lhes instruções detalhadas como por exemplo como se deve dar esmolas, como se deve orar, e como devem jejuar. Finalmente se ocupa de toda a nossa atitude em relação à vida neste mundo, e de nossa atitude para com o julgamento das demais pessoas.

E agora, havendo feito isto, faz uma pausa, por assim dizer, para contemplar os seus e dizer: “bem, este é meu propósito. Que vão fazer? De nada aproveita escutar este sermão, se vão se contentar em escutá-lo. Que vão fazer?”. Passa, em outras palavras, à exortação, à aplicação.

O método do Senhor deve ser o nosso método. Não há verdadeira pregação se não se aplica a mensagem e a verdade que ela contém; não há verdadeira exposição da Bíblia se nos contentamos em explicar uma passagem e não fazer depois a devida aplicação. A verdade deve ser incorporada à vida, e tem de ser vivida. A exortação e a aplicação são partes essenciais da pregação. Vemos como nosso Senhor faz precisamente isto aqui. O resto deste sétimo capítulo não é senão uma grande aplicação da mensagem do Sermão do Monte para aqueles que o ouviram pela primeira vez, e para todos os que, em todos os tempos, pretendem ser cristãos.

Em consequência, agora passa a submeter à prova os seus ouvintes. Diz de fato: “tenho terminado o sermão. Agora devem se perguntar: o que vou fazer? Qual é minha reação? Vou me contentar com cruzar os braços e dizer com muitos outros que é um sermão maravilhoso, que é a mais grandiosa concepção da vida que o gênero humano tem conhecido – moral tão sublime, uma elevação tão maravilhosa – que é a vida ideal que todos deveriam viver?”. O mesmo se aplica a nós. É essa nossa reação? Limitarmo-nos a louvar o Sermão do Monte? Se é assim, segundo nosso Senhor, seria o mesmo que não tivesse sido pregado. O que Ele quer não é elogio; é prática.

O Sermão do Monte não deve ser simplesmente elogiado, tem que ser praticado.

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Assim segue dizendo que há outra prova, a prova do fruto. Há muitos que têm elogiado este sermão porém que nunca o têm encarnado em suas vidas. Cuidado com essas pessoas, diz nosso Senhor. O que importa realmente não é a aparência de uma árvore; a pedra de toque é o fruto que ela dá.

Deste modo há uma prova final, e é a que as circunstâncias nos aplicam. Que sucede quando o vento começa a soprar, e o furacão ameaça, e cai a chuva produzindo inundações que sacodem a casa da nossa vida? Ela se mantém de pé? Esta é a prova. Noutras palavras, o interesse que tenhamos por estas coisas de nada serve e não tem valor a não ser que signifique que temos algo que nos permitirá permanecer firmes nas horas mais tenebrosas e críticas de nossa vida. Assim é como Jesus faz a aplicação.

Ao escutar estas coisas, ao ouvi-las, já não basta elogiá-las; segundo nosso Senhor é sumamente perigoso. Este sermão é prático; foi pregado para ser vivido. Não é uma simples ideia ética; é algo que temos que realizar e por em prática. E somos exortados a fazê-lo sempre à luz do juízo, sabendo que Deus é Onipresente e julga todos os nossos pensamentos e ações. E isto não é apenas o ensino do Sermão do Monte, é o ensino de todo o Novo Testamento.

Tomemos qualquer passagem da Bíblia como a carta aos Efésios, capítulos 4 e 5. Ali temos exatamente o mesmo. O apóstolo lhes dá conselhos práticos, lhes diz que não mintam, que não furtem, que amem, que sejam amáveis e de coração terno. Isso não é senão uma reiteração do Sermão do Monte. A mensagem cristã não é uma ideia teórica; é algo que realmente tem de se converter numa marca de nossa vida diária. Este é o propósito do restante deste sermão.

Agora devemos examinar os versículos 13 e 14 com os quais nosso Senhor começa esta aplicação de sua própria mensagem. Ele nos diz que a primeira coisa que devemos fazer, depois de ter lido este sermão, é observar o tipo de vida a que nos chama, de dar-nos conta do que significa. Temos visto muitas vezes que o perigo, ao considerar o Sermão do Monte, é perder-se em detalhes, ou desviar-se com coisas específicas que não interessam. Este é um enfoque errado. Por

isso, Jesus nos exorta a que nos detenhamos a contemplar o sermão como um todo e refletir acerca dele. Qual é o

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elemento que sobressai como mais importante? Qual é o elemento da vida cristã que deve ser captado como sendo seu elemento básico? O Senhor nos responde dizendo que é a “estreiteza”. É uma vida estreita, é um caminho estreito. E aplicou isto de uma forma dramática afirmando que devemos entrar pela portar estreita e caminhar por um caminho também estreito.

Esta ilustração é muito útil e prática e o Senhor a apresenta numa forma gráfica que nos permite visualizar imediatamente a cena. Estamos caminhando, e de repente encontramos diante de nós duas portas. Há uma à esquerda que é ampla, e por ela entra uma multidão de pessoas. Do outro lado, há uma porta estreita pela qual pode entrar somente uma pessoa por vez. Ao olhar a porta ampla vemos que conduz a um caminho amplo e que uma grande multidão está caminhando por ele. Podemos ver o quadro com toda a clareza. E o Senhor nos diz que esse caminho estreito é o caminho que Ele deseja que sigamos, mas para isto devemos entrar pela porta estreita, que é a que conduz a ele. Ele nos convida para seguir este caminho porque é somente nele que podemos encontrar a Ele seguindo adiante de nós.

Imediatamente recordamos algumas das características da vida cristã à qual Jesus nos chama. É uma vida estreita e apertada desde o seu começo. Não é uma vida que é bastante ampla no começo e que à medida que a vamos vivendo vai se estreitando cada vez mais. Não! A própria porta, que é a forma de entrar nesta vida, é estreita. É importante sublinhar e reforçar este ponto porque, é essencial desde a perspectiva do evangelismo. Quando a sabedoria mundana e os motivos carnais entram no evangelismo, descobrirão que isto não é a porta estreita. Frequentemente isto dá a impressão que ser cristão não é muito diferente de não ser cristão, que não tem que se pensar no cristianismo como uma vida estreita, senão como algo sumamente atrativo e maravilhoso, e que se entra nessa vida de qualquer maneira. Segundo nosso Senhor, não é assim. O evangelho de Jesus Cristo é demasiado sincero para convidar a alguém dessa forma. Não se ocupa em persuadir-nos de que é algo muito fácil, e que somente mais tarde

começaremos a descobrir que é difícil. O evangelho de Jesus é algo que é anunciado desde o princípio como algo cuja

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entrada é estreita. Isto significa que se queremos entrar nesta vida há muitas coisas que teremos que deixar do lado de fora. Não há lugar para elas. Porque temos que começar passando por uma porta estreita e apertada. Agrada-me pensar nisto como se fosse um torniquete que admite uma pessoa por vez e não mais que isso. E é tão estreito que há certas coisas que simplesmente não podemos carregar conosco. É importante que consideremos este sermão para ver algumas destas coisas que devemos deixar do lado de fora.

A primeira que temos que deixar do lado de fora é o que se chama de mundanismo. Deixamos fora a multidão, o caminho do mundo, porque esta porta é ampla e conduz à perdição.

Tornar-se cristão é converter-se em algo excepcional e pouco frequente. Rompe-se com o mundo, com a multidão, com a grande maioria das pessoas. É inevitável. É importante que o saibamos. A forma cristã de viver não é popular. Nunca foi e nunca o será. É uma forma diferente, excepcional. Ninguém

pode levar a multidão consigo na vida cristã, porque terá que sair da multidão para entrar na porta estreita, e terá que fazê-lo sozinho, e sem acompanhantes, numa firme decisão pessoal, porque a porta é estreita. Implica inevitavelmente em ruptura.

Estamos num mundo cheio de tradições, de hábitos e de costumes, com os quais tendemos a nos conformar. É o fácil e o óbvio, e podemos dizer que a maioria das pessoas não têm nada que tanto odeiem quanto o serem diferentes.

Então uma das coisas mais difíceis que temos que enfrentar, quando nos convertemos, é o pensar que isso nos tornará diferentes. Porém isto tem que suceder. Uma das primeiras coisas que sucedem à pessoa que escuta a mensagem do evangelho é que diz para si mesma: “bem, seja o que for que ocorra com a maioria, eu tenho alma e sou responsável por minha própria vida.”. “Cada um levará a sua própria carga!”. Consequentemente, quando uma pessoa se torna cristã, começa a se ver como alguém separado deste grande mundo.

Estava vivendo intensamente com a multidão, porém se detém de repente. Este é sempre o primeiro passo para chegar a ser um cristão. E sente que deve se separar da multidão para

salvar sua alma e seguir a Cristo. E ainda que esta separação seja difícil, sabe que deve fazê-lo. A porta estreita pela qual

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passa somente uma pessoa por vez faz o homem reconhecer que é responsável diante de Deus, seu Juiz Eterno. A porta é estreita e apertada e nos conduz ao juízo, situando-nos cara a cara com Deus, e leva-nos a considerar a questão da vida e de nosso ser pessoal, de nossa alma e seu destino eterno.

Agora, uma coisa é deixar a multidão, porém outra muito diferente é deixar o caminho da multidão. A falácia final do monasticismo é isto. O monasticismo, na realidade se baseia na ideia que se deixarmos as pessoas, deixaremos o espírito do mundo. Mas não é assim. É possível deixar o mundo num

sentido físico, e se pode se afastar de uma multidão, porém na solidão do mosteiro, o espírito do mundo pode nos seguir. O mesmo pode ocorrer com a vida cristã. Há pessoas que têm se separado do grupo ao qual pertenciam, e contudo, alguém percebe que saiu do grupo, mas o espírito do grupo ainda permanece nele. Não abandonou o espírito do mundo, mas deve fazê-lo. Viver a vida do mundo e seguir o caminho do mundo de um modo diferente, não nos torna cristãos. Noutras palavras, devemos deixar do lado de fora da porta as coisas que agradam ao mundo. Isto não pode ser evitado. Basta ler o Sermão do Monte para chegar à conclusão que as coisas que pertencem à nossa natureza não regenerada e que agradam a esta natureza, devem ser deixadas do lado de fora dessa porta estreita.

Isto pode ser ilustrado. No Sermão do Monte aprendemos que devemos dominar o espírito que exige “olho por olho, e dente por dente”, que não devemos resistir ao mal lutando com as mesmas armas dele, e que devemos estar dispostos a sofrer por amor a Cristo com a atitude de quem oferece a outra face para ser ferida. Isto não se faz por instinto; não saem espontaneamente de nós e não nos agradam. “Ao que demanda contigo a túnica deixa-lhe também a capa!”. “A qualquer que te obrigue a caminhar uma milha vai com ele duas!”. “Amai os vossos inimigos, bendizei aos que vos maldizem, fazei o bem aos que lhes aborrecem, e orai pelos que lhes ultrajam e perseguem.”.

Não obedecemos estes mandamentos instintivamente, antes resistimos a fazê-lo. O instintivo é devolver o golpe, defender

nossos direitos e amar os que nos amam e odiar os que nos odeiam. Porém nosso Senhor nos disse que se queremos ser

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seus discípulos e viver no seu reino, devemos deixar do lado de fora o instinto mundano, as coisas que agradam a nossa natureza caída e que o que essa natureza faz. Não há lugar para tais coisas. Devemos nos dar conta desde o princípio que este tipo de equipamento não pode entrar conosco no caminho apertado. O Senhor nos adverte contra o perigo de uma salvação fácil, que geralmente é traduzida pelo convite: “vem a Cristo como és e estás e tudo irá bem!”. Não, o evangelho nos diz desde o começo que vai ser difícil. Significa uma ruptura radical com o mundo; é um tipo de vida completamente diferente. De modo que deixamos fora não somente o mundo, como também o caminho do mundo.

Mas não podemos deixar do lado de fora nosso antigo modo de vida se não deixamos também do lado de fora o nosso “eu”. E aqui é onde encontramos a pedra de tropeço maior. Uma coisa é deixar o mundo e o caminho do mundo, porém mais importante é deixar nosso eu. O eu é o homem adâmico, uma natureza caída; e Cristo diz que tem que ser deixado fora. “Despojai-vos do velho homem”, é o mesmo que dizer que deve ser deixado do lado de fora da porta estreita. O velho e o novo homem não podem passar juntos por esta porta que nos dá acesso ao caminho do reino de Deus. O velho tem que ficar do lado de fora.

O evangelho do Novo Testamento é muito humilhante para o eu e para o orgulho. No começo do Sermão nos é dito: “Bem-aventurados os pobres de espírito”. Mas a ninguém agrada ser pobre de espírito. Por natureza somos exatamente o oposto, porque todos nascemos com uma natureza orgulhosa, e o mundo faz tudo o que pode para estimular este orgulho desde o momento do nosso nascimento. A coisa mais difícil no mundo é fazer-se pobre de espírito. É humilhante para o orgulho, e contudo é essencial. A entrada desta porta estreita tem um aviso que diz: “deixem do lado de fora o seu eu”. Como podemos bendizer aos que nos maldizem, e orar pelos que se aproveitam de nós, a não ser que façamos isto de fato?

O eu não pode existir nesta atmosfera; deve ser crucificado. “Não julgueis para que não sejais julgados!”. Façam aos demais o que querem que vos façam, e assim por diante. O

Senhor nos diz isto desde o começo. Não há como se criar ilusões. Se alguém pensa que é uma vida na qual se poderá

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alcançar fama e ser louvado, e ser considerado maravilhoso, é melhor parar e retornar ao começo, porque o que entra por esta porta sabe que deve dizer adeus ao eu. É uma vida de humilhação. “Se alguém quer vir após mim!”. Que sucede? “Negue-se a si mesmo (sempre em primeiro lugar), e tome sua cruz e siga-me!”. Porém a auto negação, a negação do eu, não significa abster-se de prazeres e coisas que nos agradam; significa que negamos nosso direito mesmo ao nosso eu, que deixamos fora o nosso eu, e que passamos pela porta dizendo: “Já não vivo eu, mas Cristo vive em mim!”.

Jesus diz que a porta é estreita porque a vida cristã é difícil. Não é uma vida fácil. É muito maravilhosa para ser fácil. Significa viver como o próprio Cristo, e isto não é fácil. É por isso que Jesus diz que são poucos que acham esta porta estreita.

Todo mundo pode seguir o comum e o fácil, porém quem deseja alcançar as alturas, percebe que não há muitos que estejam tentando fazer o mesmo. É isto o que se dá com a vida cristã, é uma vida maravilhosa e elevada, que poucos encontram e entram nela, simplesmente porque é difícil. Além disso a porta é estreita porque sempre conduz ao sofrimento, e porque quando se vive a verdade sempre traz perseguição.

E a quem agrada ser perseguido? Não nos agrada que nos critiquem e que nos tratem com rudeza. Nos agradam as pessoas que falam bem de nós, e é muito irritante saber que nos odeiam e criticam; porém Cristo nos tem advertido que assim será se entrarmos por esta porta estreita. É estreita e difícil, e ao entrar por ela, devemos estar dispostos ao sofrimento e à perseguição.

Temos que estar dispostos a sermos mal-entendidos, temos que estar inclusive dispostos a que isto ocorra com aqueles que estão mais próximos de nós e quem queremos bem. Cristo não disse que veio trazer a paz para todos os relacionamentos, senão a espada, uma espada que talvez divida a mãe da filha, o pai do filho, e os da própria casa talvez sejam os nossos maiores inimigos. Por que? Porque ocorreu uma separação operada pela espada. Quando se entra por esta porta estreita não é possível mais estar unido em espírito com os que

entram pela porta espaçosa. Isto é muito difícil e muito duro. Porém Jesus é sincero conosco, dizendo que teremos que

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estar separados espiritualmente daqueles que não Lhe seguem.

Agora, esta vida não é difícil somente no começo, pois segue sendo depois. A porta estreita conduz a um caminho apertado. A vida cristã é difícil do começo até o fim. Não existem férias espirituais. A vida cristã é uma batalha da fé até o final. E há inimigos em ambos os lados deste caminho apertado. Estão ao longo da estrada até o seu final, as coisas que nos oprimem e as pessoas que nos atacam. Ninguém terá uma vida fácil quando está neste caminho. A verdadeira vida cristã, quando

realmente vivida será sempre difícil. Se alguém pensar que será difícil no começo e que progressivamente vai se tornando fácil, tem uma ideia completamente falsa do ensino do Novo Testamento. É sempre apertada, terá inimigos e adversários que nos atacarão até o último momento de nossas vidas neste mundo.

Estou desanimando alguém com estas palavras? Haveria algum ganho em dizer: “Bem, se é assim vou desistir?”. Antes de dizer isto gostaria de lhe dizer, antes de se decidir, que há algo sobre o final a que conduz este caminho. Porém afastado dele o que se terá? Não é melhor continuar seguindo por este caminho apertado? Mas em todo o caso, não tenhamos ilusões, a luta contra os principados e potestades, contra as trevas deste mundo e as hostes espirituais da maldade nas regiões celestes, prosseguem enquanto os homens estão nesta vida e neste mundo. No caminho da vida haverá tentações sutis, e teremos que vigiar e estarmos alertas, desde o princípio até ao fim. Nunca ninguém poderá descansar. Sempre terá que ter muito cuidado; sempre terá que vigiar com diligência, como Paulo disse, terá que vigiar todos os passos que tiver que dar. É um caminho apertado que começa assim e que assim continua.

O evangelismo genuíno, tal como o entendo, é o que apresenta aos homens a vida cristã como um todo, e devemos ter muito cuidado em não dar a impressão de que as pessoas podem acudir em massa, por assim dizer, a Cristo, que podem ter acesso à porta estreita sem levar em conta o caminho apertado a que conduz. O Senhor foi quem pronunciou as

parábolas acerca dos néscios que não calculam o que custam as coisas, como o homem que começou a edificar, sem levar

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em conta o custo, por isso teve que deixar de concluir o edifício. Assim também se deu no caso do rei que foi guerrear contra outro rei, sem considerar a força do inimigo. O Senhor nos diz que calculemos o que custa, e que avaliemos o que temos de fazer antes de começar. Jesus não veio somente para nos salvar do castigo do pecado, veio para fazer-nos santos, e para “purificar para si um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras”. Veio a este mundo para preparar o caminho de santidade, e seu desejo e propósito em relação a nós é que andemos nesse caminho seguindo suas pisadas, neste chamamento tão elevado, nesta vida gloriosa, e que vivamos da mesma maneira que ele viveu, resistindo inclusive até o derramar do sangue se for preciso. Essa foi sua vida, um caminho apertado e espinhoso; porém o seguiu. E o privilégio de todos nós é o de sair do mundo e entrar nessa vida seguindo

a Ele até o fim.

Falsos Profetas – Mateus 7.13-20

“13 Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela;

14 e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos são os que a encontram.

15 Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.

16 Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos?

17 Assim, toda árvore boa produz bons frutos; porém a árvore má produz frutos maus.

18 Uma árvore boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore má dar frutos bons.

19 Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada no fogo.

20 Portanto, pelos seus frutos os conhecereis.” (Mt 7.13-20)

Nos versículos 15 e 16, e até o final do sétimo capítulo de Mateus, nosso Senhor ocupa-se somente de um grande

princípio, de uma grande mensagem. Enfatiza somente uma coisa, a importância de entrar pela porta estreita e assegurar-

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se de que estamos realmente andando no caminho apertado. Em outras palavras, é uma espécie de reforço da mensagem dos versículos 13 e 14. Ali o apresenta em forma de convite ou exortação, que temos de entrar por essa porta estreita, e caminhar e nos mantermos caminhando por este caminho apertado. Agora o expande, mostrando-nos alguns dos perigos, dificuldades e obstáculos que se apresentam a todos os que se aplicam a fazer isso.

Jesus segue enfatizando este princípio vital, que o evangelho não é algo que basta ser ouvido, ou aplaudido, senão que deve ser aplicado.

Como disse Tiago, o perigo reside em se contemplar o espelho

e se esquecer imediatamente o que temos visto, em lugar de contemplar insistentemente o espelho dessa lei perfeita e recordá-la e colocá-la em prática.

Este é o tema que nosso Senhor segue sublinhando até o final do Sermão do Monte. Antes de tudo o apresenta em forma de dois perigos específicos e especiais que surgem no caminho.

Mostra-nos como temos que reconhecê-los e, uma vez reconhecidos, como enfrentá-los.

Logo, uma vez expostos estes dois perigos, conclui o argumento, e todo o Sermão, apresentando-o numa afirmação simples, franca, clara, em função da metáfora das duas casas, uma construída sobre a rocha e a outra sobre a areia.

Porém, desde o início até o fim é o mesmo tema, e o fator comum das três partes da afirmação geral é a admoestação terrível sobre o fato do juízo.

Isso, como temos visto, é o tema que é apresentado em todo este sétimo capítulo do evangelho de Mateus e é sumamente importante que nos demos conta disso.

Não captá-lo explica a maioria de nossos problemas e dificuldades. Explica o evangelismo superficial e inconsistente tão comum hoje em dia. Explica a ausência de vida santa que se percebe na maioria dos cristãos. Não é que necessitemos de ensinos especiais acerca dessas coisas. O que parece que todos esquecemos é que os olhos de Deus sempre nos acompanham, e que todos caminhamos para o juízo final.

Por isso, nosso Senhor segue repetindo isto. Apresenta-o de formas diferentes, porém sublinha sempre o fato do juízo, e a

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índole do juízo. Não é um juízo superficial, não é um simples exame de coisas externas, senão uma indagação do coração, um exame de toda a natureza.

Sobretudo, sublinha o caráter definitivo, absoluto, do juízo, e as consequências que lhe seguem.

Já nos disse nos versículos 13 e 14 porque devemos entrar pela porta estreita. A razão é, diz Jesus, que a outra porta é ampla e leva à perdição, a perdição que segue ao juízo final, no caso dos ímpios.

Nosso Senhor, evidentemente, estava tão preocupado com

isto que constantemente o repetia. Isso mostra de novo a perfeição do seu método como Mestre. Sabia a importância da repetição. Sabia quanto obtusos e lentos somos, e sempre dispostos a pensar que sabemos tudo, quando na realidade não o sabemos e em consequência necessitamos que as mesmas coisas nos sejam constantemente recordadas.

Nosso Senhor, portanto, nos recorda de novo estas coisas, antes de tudo dando-nos advertências específicas. A primeira é sobre os falsos profetas. “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.”.

O que devemos recordar é mais ou menos isto: Podemos dizer que estamos junto ao umbral desta porta estreita. Temos ouvido o sermão, temos escutado a exortação, e estamos pensando no que fazer. “Agora”, diz nosso Senhor, “a esta altura, uma das coisas com as que têm que ter cuidado é o perigo de escutar os falsos profetas. Sempre estão aí, sempre estão presentes, precisamente no umbral da porta estreita. Esse é seu lugar favorito. Se alguém começa a escutá-los está perdido, porque te persuadirão a que não entres pela porta estreita, e que não andes no caminho apertado. Tratarão de dissuadir-te de escutar o que te estou dizendo!”.

Existe pois, sempre o perigo dos falsos profetas que apresentam esta tentação tão sutil.

A pergunta que se apresenta imediatamente é a seguinte: “quem são estes falsos profetas? Como vamos reconhecê-los?”.

Esta pergunta não é tão fácil como parece, de ser respondida.

Uma escola de interpretação afirma que aqui se alude somente ao ensino dos falsos profetas. E que a sua doutrina se

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refere ao fruto que produzem, conforme referido pelo Senhor.

Uma outra escola discorda da primeira citada e afirma que esta referência aos falsos profetas não tem nada a ver com o

ensino, senão puramente com o tipo de vida que estas pessoas vivem. seu ensino seria acertado, porém suas vidas não corresponderiam ao seu ensino, por serem hipócritas.

Estas duas escolas têm razão em algo, mas também estão equivocadas em algo.

Ambos elementos devem ser considerados. Não se pode dizer que somente é questão de ensino herético, porque não é muito difícil detectar tais ensinos.

A maioria das pessoas que possuem um certo discernimento podem identificar um herege. E sem dúvida, a metáfora do Senhor sugere que há uma dificuldade no reconhecimento dos falsos profetas, que há algo sutil nisso. Ele fala em vestimentas de ovelhas na metáfora. Sugere que a verdadeira dificuldade, quanto a este tipo de falsos profetas, é que em princípio não se imagina o que sejam.

Tudo é sumamente sutil; tanto é assim que o povo de Deus pode ser levado ao engano por eles. Recordemos como Pedro se referiu a isto no segundo capítulo da sua segunda epístola. Estas pessoas, disse, “introduzirão encobertamente” os erros, parecem pessoas justas, trazem a vestimenta de ovelhas, e ninguém suspeita de qualquer falsidade.

Tanto o Antigo, quanto o Novo Testamento sempre fazem ressaltar esta característica do falso profeta.

O perigo verdadeiro provém de sua sutileza.

Toda exposição genuína deste ensino, por conseguinte, deve salientar devidamente este elemento específico.

Por esta razão, não se pode aceitar como sendo uma simples admoestação acerca dos hereges e seus ensinos.

O mesmo se aplica ao outro grupo.

É óbvio que não há nada que ofenda na conduta dos falsos profetas. Se fosse assim, todo mundo o reconheceria, e não seria sutil nem constituiria nenhuma dificuldade. Ninguém titubearia em deixar de segui-los.

O quadro que devemos ter diante de nós, portanto, deveria ser

este: o falso profeta é alguém que vem a nós e a princípio tem o aspecto de ser tudo o que se poderia desejar. É agradável e

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prazeroso; parece ser muito cristão, e parece dizer o que tem que ser dito. seu ensino no geral é muito bom, utiliza muitos termos que qualquer mestre cristão verdadeiro deveria usar. Fala sobre Deus, fala de Jesus Cristo, da cruz, enfatiza o amor de Deus, parece dizer tudo o que um cristão deveria dizer. Obviamente, está vestido de ovelha, e em sua forma de viver parece se harmonizar com isso. Em consequência ninguém suspeita que haja algo mau nele, não há nada que chame logo a atenção ou desperte qualquer suspeita, porque não há nada abertamente mau.

Qual é pois o mal, e o que pode ser mau numa pessoa assim?

No entanto esta pessoa está equivocada tanto em seu ensino quanto em sua forma de vida, porque, como veremos, estas duas coisas sempre andam juntas. Nosso Senhor disse: “pelos seus frutos os conhecereis”. O ensino e a vida humana não podem ser separados, e onde há ensino errôneo, de alguma maneira sempre haverá uma vida equivocada em algum

aspecto.

Como podem, pois, ser descobertas estas pessoas? Que há de mau em seu ensino? A forma mais adequada de responder é dizer que não há porta estreita neles, que não há caminho apertado. O que dizem está certo, porém não inclui isto. É um ensino, cuja falsidade tem que ser detectada não pelo que dizem, mas pelo que não dizem. E é aqui que nos damos conta da sutileza da situação. Como temos dito, qualquer cristão pode detectar quem diz coisas abertamente equivocadas, porém é injusto ou pouco caridoso dizer que a grande maioria dos cristãos de hoje parece não poder detectar ao homem que parece dizer coisas boas, porém que não diz coisas vitais.

E são justamente estas pessoas que não dizem coisas vitais que são as mais perigosas.

O falso profeta não tem porta estreita nem caminho apertado no seu evangelho. Não há nele nada que ofenda ao homem natural; agrada a todos. Veste-se de ovelha, é atrativo, agradável à vista. Apresenta uma mensagem tão bonita, confortante e consoladora. Agrada a todo mundo e todo mundo fala bem dele. Nunca o perseguem por seu ensino, nunca o criticam com rigor. Tanto os liberais como os

modernistas o louvam. Em suas palavras não há nada do escândalo da cruz.

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Agora, o que é esta porta estreita e este caminho apertado?

Lembram que Pedro disse em sua segunda carta que “houve também falsos profetas entre o povo de Israel” e que de igual modo haveria tais falsos mestres na Igreja?

Voltemo-nos então ao Antigo Testamento para ler o que diz sobre os falsos profetas, porque o modelo não muda.

Sempre estiveram presentes, e cada vez que aparecia um verdadeiro profeta, como Jeremias, ou outro, os falsos profetas sempre duvidavam dele, lhe resistiam, e lhe

acusavam e ridicularizavam.

Porém como eram eles?

Assim é como se lhes descreve: “curam a ferida da filha de meu povo com leviandade, dizendo: Paz, paz, e não há paz!”.

O falso profeta sempre é um pregador muito consolador. Ao escutá-lo dá sempre a impressão de que não há muitas coisas más. Admite desde logo, que há algo mau; não é o bastante néscio para dizer que não há nada mau. Porém diz que tudo vai bem e que tudo irá bem. “Paz, paz”, diz. “Não escutem alguém como Jeremias”, exclama. “é de mente estreita, é um herege, não tem espírito cooperador. Não o escutem, tudo está bem!”. “Paz, paz”.

Cura “a ferida da filha de meu povo com leviandade, dizendo: Paz, paz, e não há paz!”, e se acrescenta de forma aterradora, quanto ao modo como o povo de Deus recepcionava esta mensagem dos falsos profetas: “o meu povo assim o quis”. O povo desejava isto porque nunca lhes perturbava, nunca fazia com que se sentissem incomodados. Se tudo seguir como sempre foi, está tudo bem, não há porque se preocupar com uma porta estreita e um caminho apertado, nem de uma doutrina específica.

“Paz, paz!”, e acrescentaríamos: “prosperidade, prosperidade”, é muito consolador, muito tranquilizante, sempre é assim o falso profeta em seu vestido de ovelha, sempre inofensivo e agradável, sempre, invariavelmente, atrativo. Jamais apontará ao povo o dever de mortificar o pecado e de andar em temor e reverência diante de Deus. Nunca exporá toda a verdade da Palavra de Deus, particularmente os seus juízos contra o pecado.

De quê maneira isto se manifesta na prática?

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Diria que se manifesta de modo geral na quase ausência total de doutrina, quanto na mensagem.

Sempre fala de variedades, de coisas vãs, e de modo geral, nunca desce a detalhes doutrinais. Não lhes agrada a pregação doutrinal; sempre é muito vaga. Porém alguém talvez pergunte: “Que quer dizer com isto de descer a detalhes doutrinais, e como se relaciona isto com a porta estreita e o caminho apertado?”.

A resposta é que o falso profeta mui raras vezes nos diz algo acerca da santidade, da justiça e da ira de Deus. Sempre prega

acerca do amor de Deus, e nunca menciona as outras coisas. Nunca faz tremer a ninguém quando fala deste Ser santo e Majestoso com o qual todos devemos prestar contas. Não diz que crê nestas verdades. Não, não é essa a dificuldade. A dificuldade é que não diz nada acerca delas. Não as menciona. Não menciona as verdades que são destacadas na Bíblia, e é aí que está o perigo. Não diz coisas que sejam obviamente verdadeiras e justas. E por isso é falso profeta, porque todo verdadeiro profeta que fala da parte de Deus aos homens tem o dever de ensinar toda a verdade revelada. Ocultar a verdade é tão reprovável e condenável como proclamar uma heresia, e por isso o efeito de tal ensino é o de um “lobo devorador”.

Outra doutrina que o falso profeta nunca enfatiza é a do juízo final e do destino eterno dos condenados.

Nos últimos cinquenta ou sessenta anos, não se tem pregado muito acerca do juízo final, e tampouco acerca do inferno e da destruição eterna dos ímpios. Não, porque aos falsos profetas não lhes agrada ensinos como os que contém a segunda epístola de Pedro. Porém está também na carta de Judas, em João, no Sermão do Monte, proferido pela boca do próprio Jesus.

O ensino do falso profeta tampouco enfatiza a condição radicalmente pecaminosa do pecado e da incapacidade total do homem para fazer algo por sua própria salvação. Eles falam do pecado como se não fosse algo grave. Na verdade não lhes agrada falar sobre o pecado, e sobre a necessidade de mortificá-lo.

O falso profeta não enfatiza também a doutrina da

predestinação, da eleição, e da expiação e justificação pela graça. Eles falam da cruz de forma sentimental, mas nada

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sobre a ofensa da cruz. A pregação deles sobre a cruz, não é loucura para os gentios, nem escândalo para os judeus. Através da sua filosofia removem todo o efeito da cruz. Eles fazem dela algo maravilhoso, uma grande filosofia de amor e sentimento. Nunca conseguem vê-la como uma tremenda transação santa entre o Pai e o Filho, na qual o Pai fez com que o Filho se tornasse pecado por nós.

Tampouco enfatizam o arrependimento em seu sentido real. Apresentam uma porta muito ampla que conduz à salvação e um caminho muito amplo que conduz ao céu. Basta a pessoa confessar que Jesus é o Salvador, que no entendimento deles já ocorreu ali o arrependimento e a salvação.

Isto é muito diferente do evangelismo dos puritanos, de John Wesley, de George Whitefield e outros; porque aquele evangelismo conduzia ao temor do juízo de Deus, e à angústia da alma, às vezes por dias, semanas e meses. John Bunyan nos diz que durante dezoito meses sofreu a agonia do

arrependimento. Hoje em dia parece que não há muita possibilidade disto, porque as pessoas têm uma ideia superficial sobre o pecado e sobre a justiça de Deus. (Não se pensa que há condições para o perdão de pecados presentes, mesmo de cristãos, como o perdoar o próximo, e principalmente o arrependimento que consiste basicamente em três partes: contrição, confissão e conversão – II Crôn 7.14. O perdão sempre será concedido com base no sangue e nos méritos de Cristo, mas sempre também mediante o atendimento destas condições. Mas quantos pregam sobre isto, desta maneira, conforme é a verdade revelada por Deus nas Escrituras, quanto ao perdão de pecados? - nota do tradutor).

Pensa-se no pecado como o simples ato de errar e não a condição de estado ruim da alma que desperta a ira de Deus.

O falso profeta não pensa na necessidade de se tomar a cruz para se seguir a Cristo. Ele simplesmente se limita a curar a ferida superficialmente dizendo que tudo está bem, que há paz, que tudo o que se tem que fazer é vir a Cristo e se fazer cristão.

Vê-se assim que a porta e o caminho do falso profeta não são

estreitos e apertados, mas bastante amplos, conduzindo muitos à perdição, pela falsa ideia de que se arrependeram e

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se converteram de fato de seus pecados para Deus, enquanto não apresentam qualquer evidência de transformação operada pelo Espírito Santo em suas vidas.

O falso profeta não diz que temos que praticar o Sermão do Monte. Nunca o veremos pregando as coisas que Jesus ordena neste sermão. O falso ensino não se interessa pela verdadeira santidade, pela santidade bíblica.

Sustenta uma ideia de santidade parecida com a dos fariseus. Os fariseus escolhiam certos pecados dos quais eles mesmos não eram réus, segundo criam, e diziam que desde que as

pessoas não fossem culpadas daqueles pecados, os demais não importava. Ah! Quantos fariseus existem hoje em dia! A santidade se converteu em não se fazer três ou quatro coisas. Já não pensamos em função de “não ameis o mundo, nem as coisas que estão no mundo... os desejos da carne, a cobiça dos olhos e a soberba da vida. E esta soberba da vida é uma das maiores maldições na Igreja cristã. O falso ensino deseja uma santidade como a dos fariseus. É simplesmente questão de não fazer certas coisas acerca das quais nos temos colocado em acordo. Com isso temos reduzido a santidade a algo fácil e corremos em multidões ao caminho espaçoso, e tratamos de segui-lo.

Estas são algumas das características destes falsos profetas que vêm disfarçados de ovelhas. Oferecem sempre uma salvação fácil, um tipo de vida fácil. Não aconselham o auto exame diário; e chegam quase a afirmar que examinar a si mesmo é uma heresia.

Dizem que não temos que examinar a nossa própria alma, porque tudo o que temos que fazer é olhar somente para Jesus, e nunca a nós mesmos para descobrir o pecado.

Assim, desaconselham o que a Bíblia nos aconselha que façamos. Não lhes agrada o processo de auto exame e de mortificação do pecado, que ensinavam os puritanos e os grandes líderes do século dezoito, como Wesley, Whitefield, John Fletcher e Jonathan Edwards.

Eles não creem nisto porque é incômodo. Querem uma salvação fácil, uma vida cristã fácil. Nada conhecem do sentimento de Paulo, quando disse “os que estamos neste

tabernáculo gememos com angústia”. Nada sabem acerca de pelejar o bom combate da fé. Não sabem o que Paulo quer

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dizer quando afirma que nossa luta não é contra a carne e o sangue, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais (Ef 6.12). Não entendem isto, não vêm necessidade alguma de revestir-se de toda a armadura de Deus, porque não têm visto o problema, afinal para eles “tudo é tão fácil!”. Eles não incomodam o diabo com o seu falso evangelho, e o diabo também não lhes incomoda, porque nada perde com a pregação e ensino destes falsos profetas, ao contrário, só tem a ganhar.

Hoje em dia não agrada às pessoas este tipo de ensino contra os falsos profetas. Vivemos numa época em que as pessoas dizem que contanto que alguém professe ser cristão, devemos considerá-lo como irmão e seguir juntos. Porém a resposta é o que disse nosso Senhor: “Guardai-vos dos falsos profetas!”. Estas advertências terríveis e penetrantes estão no Novo Testamento devido precisamente ao que temos comentado. Claro que não devemos ser hipercríticos, porém tampouco devemos confundir a amizade e afabilidade com a santidade. Não se trata de personalidades. Não devemos desapreciar estas pessoas. De fato o Dr. Alexander MacLaren tem razão

quando afirma que são hipócritas inconscientes. Não é que não sejam agradáveis e complacentes, porque o são. Em certo sentido, este é o perigo maior, e isso é o que faz ser uma tal fonte de perigo. Ponho isto em relevo porque segundo nosso Senhor, é algo que sempre nos cerca. Há um caminho que conduz à perdição, e o falso profeta não crê na perdição ou então não dá a devida consideração a ela.

Não é acaso correto que a explicação do estado atual da Igreja cristã é precisamente isto que temos examinado?

Porque a Igreja está tão débil e ineficiente?

Não vacilo em responder que se deve ao tipo de pregação que se introduziu como consequência do movimento de alta crítica que começou no século dezenove, e que condenava totalmente a pregação doutrinal. Advogava uma pregação moral. Tomavam tais ilustrações da literatura e da poesia, e Emerson veio a ser um de seus sumo sacerdotes. Esta é a causa do problema. Prosseguiram falando de Deus, falando de

Jesus e de sua morte na cruz. Não se apresentavam como hereges evidentes, mas em seu desejo de contextualizarem a

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mensagem ao mundo moderno em que viviam, não mencionavam as coisas que são vitais para a salvação. Ofereciam essa mensagem vaga que nunca perturba a ninguém. Eram sempre tão modernos e agradáveis; estavam acompanhando a ordem do dia e não se poderia chamá-los de fora de moda. Agradavam ao gosto popular, e o resultado é o de igrejas medíocres na vida cristã que se encontram entre tantos de nós.

Estas coisas são amargas e desagradáveis, e tenho que confessar honestamente, que se não tivesse me comprometido a pregar o Sermão do Monte, como estou fazendo, nunca teria escolhido estas palavras como texto. Nunca teria pregado acerca delas. Nunca tenho escutado um sermão sobre elas. Pergunto-me quantos de nós o temos escutado? Não nos agrada, é molesto, porém não nos compete escolher o que nos agrade. Isto disse o Filho do homem, e o situa no contexto do juízo e da destruição.

Assim, pois, ainda que me custe que me chamem de caçador de heresias ou pessoa que se senta para julgar seus irmãos e todo mundo, tenho tratado honestamente de explicar a Bíblia, e rogo que pensemos outra vez nisso em oração, na presença de Deus, enquanto consideramos o valor da nossa alma imortal e seu destino eterno.

A Árvore e o Fruto – Mateus 7.15-20

“15 Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.

16 Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos?

17 Assim, toda árvore boa produz bons frutos; porém a árvore má produz frutos maus.

18 Uma árvore boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore má dar frutos bons.

19 Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada no fogo.

20 Portanto, pelos seus frutos os conhecereis.” (Mt 7.15-20)

No estudo relativo aos Falsos Profetas, nós vimos que o Senhor colocou em relevo a sutileza deles, porque vêm a nós

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vestidos de ovelhas, quando que no seu interior são lobos devoradores.

O falso profeta vestido de ovelha ensina que nunca se deve dizer nada que soe como crítica ou então que seja duro de se ouvir. Para não serem descobertos quanto à falta do verdadeiro fruto espiritual em suas vidas, é que ameaçam aos que estão debaixo da sua liderança a não efetuarem qualquer tipo de juízo, por este temor de ser revelado que eles são na verdade lobos vestidos de ovelhas.

Mas nosso Senhor queria enfatizar este ponto dizendo que os

falsos profetas são conhecidos por seus frutos, e que não se pode colher uvas de espinheiros ou figos de abrolhos; porque toda boa árvore dá bons frutos, porém a má árvore dá maus frutos. E toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada ao fogo.

O Senhor quis destacar que apesar de duas árvores serem parecidas em seu aspecto exterior, quando são julgadas pelo tipo de fruto que dão, percebe-se que são totalmente diferentes. Um se pode comer, porém o outro não. É evidente que há aqui um ensino muito profundo.

Com isto Jesus quis mostrar que ser cristão é algo que está na essência mesma da personalidade, que é algo vital e fundamental. Não se trata de aparências superficiais quanto a crenças. Parece querer nos ensinar sobre o perigo de nos enganarmos com as aparências. É o mesmo caso do uso da metáfora relativa aos falsos profetas que vêm vestidos de ovelhas. Noutras palavras, está em foco o perigo de parecer ser cristão sem sê-lo na realidade.

Já vimos que isto sucede no campo do ensino e da doutrina. Alguém pode parecer estar pregando o evangelho quando, na realidade, quando é julgado por provas genuínas, vê-se que não o faz. O mesmo acontece no caso da conduta e da vida. O perigo, neste caso, está em querermos ser cristãos acrescentando coisas à nossa vida, em vez de chegar a ser algo novo, em vez de se receber vida interior, em vez de que a natureza que está em nós se renove segundo a imagem do Senhor Jesus Cristo.

Assim, segundo o Senhor, alguém pode falar de maneira

adequada, pode parecer que vive bem, e contudo permanece sendo um falso profeta. Pode ter a aparência da vida cristã sem

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ser realmente um cristão. Isto tem sido uma fonte constante de problemas e perigos na história da Igreja. Porém o Senhor nos alerta desde o princípio que ser cristão significa uma mudança na vida e na própria natureza do homem. É a doutrina do novo nascimento. Nenhuma ação do homem vale nada para a sua salvação, a não ser que tenha mudado sua natureza.

Por isso devemos nos preocupar sobretudo com o estado do coração porque é o centro da personalidade. Assim é o que há no coração que sempre se manifesta. Manifestar-se-á nas crenças, no ensino e na doutrina.

O Senhor diz que é por este fruto que sai do interior, da natureza mesma, do coração, que podemos reconhecer a pessoa, de modo que possamos saber se é um falso profeta, apesar da aparência de ser cristão.

Estão indissoluvelmente unidos o que alguém crê e a vida. O que o homem pensa, isso ele é. O homem atua da maneira pela qual pensa. Em outras palavras, manifestamos inevitavelmente o que somos pelo que cremos e pensamos.

Não importa o cuidado que tenhamos, num momento ou outro se manifestará. O fruto de nossas crenças e pensamentos se manifestará.

Isto implica que por mais que alguém se afirme correto e santo, ortodoxo, reto e aplicado em obedecer o ensino de Jesus, isto será detectado se é verdade ou não, pelo tipo de ação que produzir em sua vida. Como pode o mau praticar o que é bom?

Talvez nos enganemos por um tempo. As aparências podem enganar muito, porém não duram. Os puritanos gostavam muito de tratar em detalhes a quem chamavam de “cristãos temporais”. Com isto queriam se referir às pessoas que pareciam estar debaixo da influência do evangelho, pessoas que davam a impressão de serem verdadeiramente convertidas e regeneradas. Falavam de forma adequada e mostravam mudança na vida, pareciam cristãos. Porém os puritanos lhes chamavam de cristãos temporais porque chegavam depois a dar provas inconfundíveis e claras de que nunca haviam chegado a ser verdadeiramente cristãos. Isto

ocorre muito nos avivamentos. Quantas vezes ocorre um despertamento religioso, ou emoção religiosa em que se

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costuma encontrar pessoas que, das quais podemos dizer, seguem a corrente. Não se dão conta do que acontece, porém caem sob a influência geral do Espírito Santo e por um tempo se sentem realmente afetados, porém, segundo este ensino, talvez nunca cheguem a ser verdadeiramente cristãos.

Em II Pedro 2 há uma exposição relativa a isto. O apóstolo descreve de forma clara e gráfica casos assim. Fala de pessoas que haviam entrado na igreja e haviam sido aceitas como cristãs, porém logo haviam saído. Descreve-as como cães que voltam ao vômito, e porcos lavados que voltam à lama. A porca pode ser lavada, e parecer limpa no exterior, porém sua natureza não foi mudada e isto a levará a amar a sujeira.

Em II Pe 1.4, ao se referir a verdadeiros cristãos o apóstolo diz que por terem se tornado participantes da natureza divina, escaparam da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.

Mas quando se refere a estes cristãos temporais, no capítulo segundo, não diz que escaparam da corrupção, mas das contaminações. E isto porque há uma espécie de purificação superficial que não muda a natureza. A purificação é importante, porém pode ser muito enganadora. O que

somente purifica o exterior, pode parecer cristão, porém, segundo a argumentação de nosso Senhor o que torna alguém um cristão é a natureza íntima, e essa natureza interior tem que se manifestar.

O Juízo Final há de revelar muitas surpresas para muitos que pensam ser cristãos zelosos por esta grande aplicação à simples purificação exterior, sem que tenham de fato nascido de novo. E alguns destes conseguem enganar a muitos por muito tempo, porque são meticulosamente farisaicos em sua atitude religiosa, levando até mesmo verdadeiros cristãos a pensarem que eles são de fato nascidos de novo, quando na verdade não são.

Mas na convivência com eles, os que são maduros espiritualmente, poderão observar que há algo que se manifesta na natureza deles, pelo fruto de sua conversação e modo de compreensão da vida cristã que revela que há algo

muito duvidoso na alegada conversão que alegam terem experimentado.

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A verdadeira crença básica do homem se manifestará na sua vida. Acaso se colhem uvas de espinheiros ou figos de abrolhos? Estas coisas nunca podem ser separadas. A natureza íntima se manifestará. Devemos portanto ter cuidado em admitir como cristão verdadeiro quem na realidade não passa de impostor em sua aparência externa. E somos exortados a nos disciplinarmos para buscar com cuidado o fruto.

Lembremos que é necessário também examinar quais são as características do bom fruto. Devemos buscá-las em nós

mesmos e nos demais. Devemos ter cuidado, porque aquele que se encontra fora da porta estreita nos dirá: “Não há necessidade de fazer tudo isto. Este é o caminho”. E podem nos enganar. Por isso devemos aprender a discriminar, e também, ao examinar o fruto, devemos ter presente este elemento de sutileza. Há tipos de vida que se parecem muito com o verdadeiro cristianismo, e obviamente, são as mais perigosas de todas. Parece cada vez mais claro que o maiores inimigos da fé cristã genuína não são os que se acham no mundo, perseguindo de forma agressiva o cristianismo ou prescindindo de forma aberta ao seu ensino; são muito mais aqueles que possuem um cristianismo falso e espúrio. São os que receberam a condenação que o Senhor lança nesta passagem contra os falsos profetas. Se alguém examinar a história da Igreja, desde seus começos, descobrirá que sempre foi assim. O cristianismo falso e fingido sempre tem sido o maior obstáculo e inimigo da verdadeira espiritualidade. E não há dúvida de que o maior problema nos dias atuais é o estado mundano da Igreja. Deveria preocupar-nos muito mais o estado da própria Igreja que o estado do mundo fora da Igreja. Parece cada vez mais evidente que a explicação do estado atual da Cristandade, se encontra dentro da Igreja e não fora.

Por isso somos chamados a provar os espíritos.

Temos diante de nós alguém que fez profissão de cristão. Não diz nada que seja obviamente errado, e parece viver uma boa vida cristã. A qual prova submeteremos tal pessoa? Podemos ter pessoas simpáticas, moralmente corretas, com uma

norma e código de vida pessoal elevados; parecem muito com os cristãos, embora talvez não o sejam. Como podem ser

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distinguidas? Temos aqui algumas perguntas às quais têm que responder. Antes de tudo, por que esta pessoa vive este tipo de vida? Tomemos o caso de um homem bom que não pretende ser cristão, ou um homem que assiste regularmente a um lugar de culto, porém que, julgado segundo as normas do Novo Testamento, não é cristão. Por que vivem como o fazem? Existem muitas razões para isso. Pode ser simplesmente questão de temperamento. Há pessoas com boa natureza. Têm um temperamento e caráter equilibrados; são tranquilos, não há neles nada naturalmente vicioso e ofensivo. Não têm que fazer nenhum esforço para ser assim; nasceram assim, são assim. É algo puramente físico e natural.

Em segundo lugar, essa pessoa vive este tipo de vida porque tem certas crenças ou aceita certo ensino moral? Há pessoas que são o que se pode chamar de bons pagãos. Essas pessoas têm normas muito elevadas e as praticam diariamente. Pode-se fazer isto completamente aparte do cristianismo. Assim pois, se julgamos somente pelas aparências gerais da vida de alguém, é possível nos enganarmos. Frequentemente se diz que há melhores cristãos fora da Igreja do que dentro. Isto quer dizer que podemos encontrar excelente moralidade fora da Igreja. Porém a moralidade talvez não tenha nada a ver com o cristianismo. Não tem conexão necessária com o mesmo. Os grandes filósofos gregos propuseram seus grandes ensinos morais antes que Cristo viesse. E é ainda mais significativo que os filósofos gregos foram às vezes opositores violentos do

evangelho cristão, eles foram os que consideram como loucura a pregação da cruz.

Em consequência é necessário não olhar somente ao homem e sua vida em geral. Temos que descobrir as razões e motivos de seus atos. Desde o ponto de vista cristão, existe uma só prova vital a este respeito. Este homem dá a impressão de que vive esse tipo de vida porque é cristão e devido à sua fé cristã? Se não vive assim por ser cristão, de nada vale; é o que nosso Senhor chama de maus frutos. O Antigo Testamento se refere a isto com muito vigor quando diz que todas as nossas justiças são como trapo de imundície. Aos olhos de Deus o que tem

valor, em última instância é somente o que é fruto do caráter cristão, o que nasce da nova natureza.

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Esta é a prova geral. Vejamos agora algumas provas específicas. Nisto devemos ter cuidado para não nos expormos a que nos acusem de espírito de crítica; ademais devemos ter o cuidado para que aquilo que dissermos não julgue a nós mesmos.

Ainda que a vida de alguém se conforme a um código moral geral, mas se não vê que a mensagem da cruz é que a justiça do homem nada vale e que o homem é um pecador sem esperança, tudo isto se revelará em sua vida. Haverá assim pontos falhos quanto ao que se exige para se caminhar no caminho apertado. E se no modo de viver geral é muito parecido com o cristão, se observará que nos detalhes haverá muitas falhas. Há neles uma falta de qualidade e uma ausência da atmosfera peculiar que sempre se encontra na pessoa verdadeiramente espiritual.

Mas a grande prova que se deve buscar em todo aquele que se diz cristão é a prova das bem-aventuranças, porque o cristão verdadeiro é pobre de espírito, chora pelo pecado, é manso, tem fome e sede de justiça, é pacificador, é puro de coração etc.

Contudo alguém dirá: “Mas não há cristãos em que não há

evidências visíveis destas bem-aventuranças, por viverem carnalmente?”. Isto é a verdade, e é daí que decorre a dificuldade para se saber quem é verdadeiramente cristão hoje em dia, porque são poucos os que procuram confirmar a sua eleição vivendo diligentemente em santificação. Mas, em todo o caso, quantos destes não correm o risco, por falta destas evidências, de se julgarem cristãos, quando na verdade podem não sê-lo efetivamente, porque se exige evidência de santificação, exige-se segundo nosso Senhor, este fruto positivo do Espírito Santo na vida, para a plena certeza da esperança. Aquele que não o possui não pode estar seguro da sua salvação.

É por estas provas que se excluem os bons pagãos, os falsos profetas e os cristãos temporais, porque são provas da natureza íntima do homem e do seu verdadeiro ser.

Somente a árvore boa pode produzir o fruto do Espírito Santo.

O homem que for somente moralmente justo não pode produzi-lo.

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O Senhor nos recorda nesta passagem que se alguém não é humilde, tem que se ter muita cautela com ele. Pode estar vestido de ovelha, porém não é verdadeira humildade, não é verdadeira mansidão. E se a doutrina de alguém é equivocada se manifestará nisto. Será afável, e agradável, será atraente para o homem natural e carnal, porém não dará a impressão de ser alguém que se tem visto como pecador a caminho do inferno e que tem sido salvo somente pela graça de Deus.

O homem do Novo Testamento é sóbrio, grave, humilde, manso. Possui o gozo do Senhor no coração, se, porém, não é efusivo, não é ruidoso, não é carnal em sua vida. É alguém que diz com Paulo: “os que estamos neste tabernáculo gememos com angústia” (II Cor 5.4). Não se interessa na sua maneira de vestir com a pompa e com o externo, não se interessa em causar impressão; é manso e se preocupa com Deus e com sua relação com Ele. E a prova definitiva, sem dúvida, é a humildade. Se em nós há a soberba da vida e do mundo, necessariamente, não sabemos grande coisa da verdade; e deveríamos examinarmo-nos de novo para nos assegurarmos da nova natureza. O que temos no interior se manifestará no exterior. Se tenho mente mundana, ainda que pregue uma grande doutrina, e ainda que tenha renunciado a certas coisas, se manifestará em minhas palavras ociosas (Mt 12.36). Mostramos realmente o que somos quando não estamos de sobreaviso. Podemos dar a impressão que somos cristão, porém nossa verdadeira natureza se manifestará.

A forma como alguém prega pode ser mais significativa do que diz, porque pela maneira com que fala revela quem realmente é. Os métodos de uma pessoa às vezes desmentem a mensagem que prega. O que prega o juízo e a salvação, e contudo, ri, e brinca, nega o que está pregando. A confiança em si mesmo, o depender da habilidade humana e da personalidade, proclamam que este homem possui uma natureza muito afastada do Filho de Deus, que foi manso e humilde de coração. Um homem assim não é como o apóstolo Paulo, que ao pregar em Corinto, não foi confiando em si mesmo e na sua sabedoria, senão com fraqueza e muito temor

e tremor. Como nos traímos, quando manifestamos o que realmente somos com nossos atos espontâneos!

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Mas ainda que nos enganemos em nossos juízos quanto a identificar se somos e quem é de fato verdadeiramente cristão, lembremos que Deus nunca se engana. Toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançado no fogo. Que nos esforcemos então para achar este bom fruto em nós, andando humildemente na presença do Senhor. Que Deus tenha misericórdia de nós. Que nos abra os olhos para estes princípios vitais e nos capacite a exercer este discernimento relativamente a nós mesmos e a todos os que possam se tornar perigosos para nossas almas e que estejam falsificando gravemente a causa de nosso bendito Senhor neste mundo pecador e necessitado. Concentremo-nos em assegurar-nos que possuímos a natureza divina, e que participamos da mesma, que a árvore é boa, porque se a árvore for boa, o fruto também será necessariamente.

Por D. M. Lloyd Jones ( traduzido e adaptado por Silvio Dutra)

Falsa Paz – Mateus 7.21-23

“21 Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.

22 Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitos milagres?

23 Então lhes direi claramente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade.” (Mt 7.21-23)

Um simples homem jamais teria falado tais palavras, senão o próprio Filho de Deus. Quantas vezes este texto é pregado nas Igrejas?

Não devem muitos se declarar culpados do fato de que ainda afirmem crer em toda a Bíblia, na prática, entretanto, frequentemente negam parte dela simplesmente porque não favorece a carne e lhes perturba?

Mas os que são fiéis a Deus devem examinar toda a sua Palavra

e devem evitar a todo custo os argumentos que procuram obscurecer o ensino direto e claro da Bíblia.

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Estas palavras do texto mostram muito claramente o que ocorrerá no dia do juízo, quando todos terão que se apresentar diante de Deus.

Todos os cenários humanos desaparecerão e a verdade de cada pessoa será revelada pelo Filho de Deus que conhece o que realmente cada pessoa é, e quais de fato tiveram suas naturezas mudadas pela regeneração do Espírito Santo.

Este assunto é tão importante para o Senhor que Ele não se limitou a descrever a sutileza dos falsos profetas, pois prosseguiu alertando aos eleitos de Deus o perigo que eles

correm em serem iludidos pelas muitas falsidades que os cercam neste mundo.

Ele declarou que há uma porta estreita e um caminho apertado que define a vida cristã, ou a senda da salvação. Não há outros. E esta porta e este caminho são definidos por Ele no Sermão do Monte. Mas estão cheios de perigos, e de atalhos e desvios na pessoa dos falsos profetas e falsos irmãos, dos quais os verdadeiros eleitos deverão se precaver a bem de suas almas, para não se verem privados da verdade ou fascinados pelas práticas deles, contra um viver segundo a exata vontade de Deus.

Os gálatas se deixaram fascinar pelos falsos mestres judaizantes que ministravam entre eles como verdadeiros cristãos. Os efésios viram homens pervertidos se levantarem do próprio meio deles, atuando como pastores, com o propósito de desviá-los da verdade.

“Guardai-vos dos falsos profetas!”. É a advertência do Senhor para os eleitos. Fujam do ensino deles. Não se coloquem debaixo da autoridade deles. Não foram enviados por Ele à sua Igreja. São o joio que o Inimigo plantou por não terem os eleitos vigiado e orado o tanto quanto deviam.

Então após ter concluído o Sermão do Monte quanto ao que sejam os cristãos e qual seja o dever deles em seu comportamento e vida, diante de Deus, Jesus passa agora a alertá-los quanto às dificuldades e perigos que terão que enfrentar neste caminho apertado, e às renúncias que terão que fazer para não somente entrarem pela porta estreita, como também para prosseguirem fielmente em sua

caminhada no caminho apertado, de modo que possam viver de modo digno da sua vocação.

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E no propósito de alertar os eleitos diz que não é simplesmente por fazerem uma profissão de reconhecimento da sua autoridade, dizendo “Senhor! Senhor!” que se poderá saber que são seus de fato. O Senhor ensina que o que importa não é tanto o que o homem crê senão o que o homem faz, porque disse que é o que faz a vontade do Pai que entra no reino dos céus, e não quem diz simplesmente que crê nele, e afinal não tem as evidências de um novo nascimento em sua vida, pela santificação que se segue à regeneração.

Mais uma vez o Senhor está se esforçando para abrir os nossos olhos para o terrível perigo do autoengano e da autoilusão.

Se dantes o perigo se referia aos falsos profetas, agora, neste texto, refere-se a nós mesmos. E Jesus destaca que diante de Deus nada tem valor senão a verdadeira santidade (Hb 12.14). Com isso o Senhor nos alerta que apesar do que afirmemos, não podemos estar na presença de Deus se não somos verdadeiramente justos e santos. É o que a Bíblia ensina desde o começo até o fim. Na verdade ela foi revelada por Deus a nós para nos alertar sobre o modo da nossa redenção do pecado para a santidade. E é nisto que consiste uma verdadeira fé, que traz evidências de regeneração e santificação, e que não consiste em meras afirmações verbais de crenças e de elogios a Deus.

Ele não está criticando quem diz “Senhor! Senhor!”, até porque é o que dirão os verdadeiros eleitos, pelo Espírito (I Cor 12.3), mas para que não nos iludamos com uma religiosidade que consista apenas em se proferir palavras, e que não atinge

o coração, purificando-o e transformando-o.

Mas o homem não regenerado, não nascido de novo, pode aceitar o ensino bíblico como uma espécie de filosofia, como uma verdade abstrata e daí chamar Jesus de Senhor, mas Jesus ensinou que isto não tornará tal pessoa digna de entrar no reino dos céus.

Se nós lermos as obras dos puritanos, veremos que dedicaram não somente capítulos, senão volumes inteiros ao assunto da “falsa paz”. Este perigo tem sido reconhecido ao longo dos séculos. É o perigo de confiar na fé, em vez de Cristo, de confiar na fé sem te sido realmente regenerado pelo Espírito.

É possível também que estas pessoas talvez não sejam somente cristãos sobre a verdade, senão também fervorosos

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e zelosos. Não são apenas cristãos intelectuais. Há um elemento de sentimento, de emoção, porque não dizem apenas “Senhor.”, mas “Senhor! Senhor!”. Parecem cheios de fervor em fazer coisas que julgam estar fazendo para Cristo e sendo aceitas por Ele. Não é porventura o que ocorre com a maioria dos que estão na Igreja Romana? Mas não são poucos deste tipo que se encontram também nas Igrejas Protestantes. Estes dizem muitas coisas adequadas acerca de Jesus, contudo não entraram no reino de Deus.

Como pode se explicar isto? Digamos porque deve se distinguir fervor e zelo espiritual de zelo e entusiasmo carnais. O que se faz para Cristo deve nascer de uma nova natureza recebida do Espírito, e não por uma questão de temperamento carnal. É possível ficar impressionado e emocionado debaixo da pregação de vários sermões e pensar até que se é de Cristo, quando na verdade não ocorreu nenhum verdadeiro arrependimento e conversão. E por que devemos considerar estas coisas? Simplesmente para ficarmos julgando a outros? Não, principalmente para vermos em que bases temos crido que somos de Cristo, de maneira que não nos iludamos com uma falsa paz, e um falso juízo de

que somos dele simplesmente porque profetizamos em seu nome, expelimos demônios e realizamos maravilhas, uma vez que o próprio Cristo nos adverte que é possível fazer tudo isto e por fim não ser conhecido por Ele, permanecendo debaixo da escravidão ao pecado.

Fazer estas coisas referidas com zelo e fervor não significa

verdadeira espiritualidade. A carne pode falsificar quase tudo.

Depois de ter falado de uma falsa confissão, baseada numa falsa fé que não pode salvar, Jesus passou a ensinar que ninguém deve confiar nas obras que faz em seu nome para ser salvo por meio delas. Porque disse àqueles que afirmaram profetizar, expelir demônios e fazer maravilhas em seu nome

que nunca os conheceu. Ninguém pode ser salvo por obras, porque a salvação é pela graça, mediante a fé, sem as obras.

Trazendo para o nosso próprio tempo a referência que Jesus fez ao profetizar em seu nome, e ainda assim não ser conhecido por Ele, pode significar também o fato de alguém

pregar a doutrina correta e em nome de Cristo, e, contudo, estar fora do reino de Deus. Nós vemos isto frequentemente

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na Bíblia. Não foi o que se deu com Balaão, com Saul, com Judas e outros? É possível falar a verdade e não viver a verdade. Por isso Paulo nos diz o seguinte em I Cor 9.27 quanto ao que fazia em relação a si mesmo, por saber deste grande perigo: “Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à submissão, para que, depois de pregar a outros, eu mesmo não venha a ficar reprovado.”. Quando fala de colocar o seu corpo em servidão, não somente pensa nos pecados da carne, mas se refere a toda a sua vida. O homem tem que colocar o corpo em servidão e submissão a Deus tanto quando sobe ao púlpito quanto quando caminha na rua. Submeter o corpo à servidão significa dominar, controlar e sujeitar tudo o que a carne deseja fazer. A carne sempre tenta dominar a mente.

Pensemos em Fp 1.15, onde Paulo afirma que estas pessoas pregam a Cristo por inveja e contenda. seu motivo é equivocado, seus pensamentos são errôneos; porém pregam a Cristo, dizem coisas adequadas acerca de Cristo. Paulo se alegra de sua pregação, ainda que eles estão equivocados porque o fazem com um espírito errôneo guiado pela inveja e pelo desejo de sobressair sobre o apóstolo. Devemos concluir então que é possível que o homem pregue a doutrina correta

e contudo estar fora do reino. Isto significa que haverá muitos homens que haviam pregado e que foram louvados como pregadores e que ficarão fora do reino. Disseram o que é justo e de modo maravilhoso, porém nunca tiveram neles a vida e a verdade. Tudo era carnal.

E estes homens podem ter até mesmo expelido demônios em

nome de Jesus, porque Ele pode dar poder a um homem que não O conheça, tal como se deu com Judas, e tais homens permanecerão perdidos.

E finalmente Jesus diz que estas pessoas poderão dizer que fizeram muitas maravilhas em seu nome, e contudo estarem fora do reino. Lembramos dos magos que fizeram maravilhas

nos dias de Moisés. Pensamos nas palavras de Paulo em II Tes 2.8 do grande poder que terá o Anticristo para fazer sinais e prodígios mentirosos pela eficácia de Satanás.

O poder natural do homem pode imitar os dons do Espírito Santo, até certo ponto, mas o verdadeiro entendimento e vida

espiritual são concedidos por Deus somente àqueles que nascem de novo, e mesmo a estes se continuarem em

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fidelidade oferecendo seus corpos como sacrifício vivo e santo a Deus, de maneira que possam mais do que conhecer, experimentar a boa, perfeita e agradável vontade de Deus (Rom 12.2), porque o Espírito fala à Igreja mas somente aqueles que têm ouvidos espirituais afinados podem ouvir e entender as coisas do Espírito que se discernem espiritualmente, isto é sendo espirituais, e não carnais, sendo cristão espiritual, obediente ao Senhor que anda humildemente na sua presença, honrando e praticando a sua Palavra.

Deste modo pouco adianta tentar convencer alguém acerca de verdades espirituais que se discernem espiritualmente, ainda que seja um pastor, quando esta pessoa anda e vive na carne, ainda que pense que tem andado no Espírito.

É por isso que o autoengano é uma realidade ensinada claramente por Jesus no nosso texto, e Ele é muito enfático ao mostrar que ao final das contas o que importa não é o que os

homens afirmem acerca da verdade e o juízo que eles têm acerca do que é verdadeiramente espiritual porque é o Senhor mesmo quem julga a todos e a todas as coisas. Todos serão julgados pelos padrões de Cristo revelados na Palavra, e não pelo nosso próprio entendimento do que somos perante Ele. Estas pessoas às quais Ele se refere dizendo que nunca as conheceu, pensavam que eram conhecidas dele e que Lhe agradavam por seus louvores e obras.

Não devemos esquecer que o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz e os seus ministros, isto é, aqueles que ele usa, em ministros da justiça bíblica (II Cor 11.14). E Satanás persuade a muitos não cristãos que eles o são de fato, para cumprir o seu propósito de enganar os eleitos e deter o avanço da obra de Deus na terra.

Para confirmar esta falsa convicção nos falsos cristãos lhes dará poder para realizarem sinais e maravilhas, e isto é permitido por Deus porque não deram crédito à verdade, senão à mentira.

Foi por isso que Jesus advertiu os discípulos a não se alegrarem simplesmente com o fato de verem que os espíritos malignos se lhes sujeitavam, mas por terem os seus nomes

arrolados no céu. Eles não deveriam se deixar iludir pela simples realização de sinais e maravilhas, porque isto não é

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uma credencial segura para identificar os verdadeiros filhos de Deus.

Não se deixem persuadir por sinais e maravilhas para identificarem os verdadeiros homens de Deus. Vejam o fruto deles. Vejam se as vidas deles se conformam às bem-aventuranças. Se são pobres de espírito, mansos, humildes, se gemem em espírito diante do mundanismo, se são graves e sóbrios, se são homens santos de Deus. Se são longânimos, misericordiosos, pacificadores, íntegros, não amantes dos prazeres, se têm uma vida piedosa. Se são pacientes com os fracos. Se não buscam glória para si mesmos, mas somente para o Senhor. Se louvam a glória da graça de Deus que os salvou. Estas são as credenciais que devem ser usadas para sabermos se alguém está de fato servindo a Deus e não a si mesmo, ou aos homens. Não deixemo-nos levar pelas aparências, mas pela própria realidade porque é ela que conta diante de Deus, e que para tanto todo o nosso julgamento seja segundo a reta justiça, segundo os critérios e padrões do Senhor em sua Palavra.

Lembremos que é o Senhor mesmo quem profere as palavras de Mateus 7.21-23, e que elas se referem ao dia do juízo, quando Ele será o Juiz, de modo que não haja nenhum engano. Lembremos que Ele disse sobre submetermos todo juízo ao crivo de Deus, para que seja reto, e não ao dos homens: “E ele lhes disse: Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece os vossos corações; porque o que entre os homens é elevado, perante Deus é abominação.” (Lc 16.15).

Leiamos o Novo Testamento e não tentemos omitir ou dar um outro sentido às Palavras de Jesus e dos apóstolos, e então veremos quais são as evidências concretas de um verdadeiro filho de Deus. Meditemos nelas, apliquemos estas evidências a nós mesmos e aos demais. Façam isto, diz o Senhor, e jamais se equivocarão, nunca ficarão do lado de fora da porta estreita e do caminho apertado.

Quando o cenário terreno tiver desaparecido e tivermos que estar frente a frente com Cristo, teremos que enfrentar esta verdade aterradora pela qual teremos que responder.

Deste modo, podemos ver quão perigosa é para contribuir para este auto engano a que nos temos referido uma falsa

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doutrina relativa à segurança da salvação que baseia a segurança em certas afirmações que nós mesmos fazemos. O homem que é verdadeiramente salvo e que tem uma segurança genuína da sua salvação faz e deve fazer estas afirmações, porém a simples afirmação não é garantia e nem assegura necessariamente que seja salvo.

Consequentemente, devemos ter cuidado com esta tentação muito sutil, e recordar a forma pela qual as pessoas se persuadem erroneamente a si mesmas. Dizem: “Creio que Jesus é o Filho de Deus e que morreu por meus pecados, e por isso confesso que Ele é o meu Salvador!”. Não se lhes pergunta se chegaram a ter uma experiência de salvação, se o conheceram como seu Salvador, mas se simplesmente creem no que têm dito. O cristão verdadeiro afirma estas coisas, porém não se limita a dizê-las. Mas estes que não chegam a ter uma experiência real de conversão creem na própria fé deles e não no Senhor Jesus Cristo. Isto é o que se chama de fideísmo.

Devemos então estar alertas contra o terrível perigo de se basear a segurança da nossa salvação na repetição de certas afirmações e fórmulas.

Por isso a Palavra ordena que nos examinemos a nós mesmos e que não façamos repousar a nossa vida espiritual em certas fórmulas decoradas e recitadas. Devemos pedir ao Senhor que sonde o nosso coração e nos dê um espírito reto e santo. E para tanto, devemos cooperar com Ele no exame que o Espírito fará do nosso coração, para nos revelar os pecados que precisam ser confessados e deixados.

De nada adianta tentar equilibrar nossa vida pondo coisas distintas nos pratos diferentes da balança. Por exemplo, se nossa consciência nos condena pela vida que vivemos, pomos no outro prato alguma boa obra que fazemos. E pensamos que as coisas que nos condenam serão assim anuladas. É o sangue de Jesus que purifica a nossa consciência. É pela fé na sua morte vicária que somos limpos e purificados de toda injustiça. Mas é preciso ter humildade e deixar o Espírito realizar o seu trabalho no nosso coração, criando em nós uma nova disposição em nossos espíritos.

Assim, devemos dar ouvidos às acusações que são feitas pelas nossas consciências, de maneira que possamos nos

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arrepender destas coisas das quais somos justamente acusados. É assim que se obtém uma boa consciência que não pode nos acusar, uma vez estando no caminho da verdade. Agora importa que uma boa consciência sempre nos julgará pelos padrões da Bíblia, e daí a importância de conhecermos a verdade tal como ela é, porque teremos uma má consciência que nos condenará segundo os nossos próprios padrões e critérios, ou então que nos absolverá quando deveria nos condenar, pela falta de conhecimento da verdade.

A Bíblia ensina claramente que temos que pregar o evangelho, a verdadeira mensagem, mas que também temos que praticá-lo. E diz que devemos fazer isto com sobriedade e com gravidade, com temor e tremor, com demonstrações de Espírito e de poder, não com palavras persuasivas de sabedoria. Porém, hoje em dia os métodos de evangelização são uma contradição flagrante destas palavras e são justificados pelos que os praticam em função dos resultados. Eles dizem que olham para os resultados. E por causa dos resultados põem de lado as afirmações diretas e claras da Bíblia. Isto é crer na Bíblia? É isto fazer da Bíblia a nossa autoridade final?

Se pretendemos evitar uma terrível desilusão no dia do juízo, aceitemos a Bíblia tal como é. Não discutamos com ela, não a critiquemos, não a manipulemos, não a forcemos, mas submetamo-nos ao que ela nos diz.

O que nosso Senhor dirá no dia do juízo àqueles que se enganaram a si mesmos é que têm feito todas estas coisas por seu próprio poder. Nunca teve nada a ver com eles. Por isto o mais importante para nós não é nos interessarmos em primeiro lugar por nossas próprias atividades e pelos resultados, senão por nossa relação com o Senhor Jesus Cristo. Nós o conhecemos e Ele a nós?

Devemos submeter-nos a Ele e ao seu ensino, tal como lhe agradou revelá-lo a nós na Bíblia, e se o que fazemos não se conforma com isso, é uma afirmação da nossa vontade, é desobediência que é tão repulsiva quanto o pecado de feitiçaria.

Aqueles aos quais Ele dirá que nunca os conheceu tudo

fizeram para agradarem a si mesmos, e não para agradarem a Ele. Examinemo-nos pois, seriamente, à luz destas verdades.

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Os Dois Homens e as Duas Casas – Mateus 7.24-27

“24 Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática, será comparado a um homem prudente, que edificou a casa sobre a rocha.

25 E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa; contudo não caiu, porque estava fundada sobre a rocha.

26 Mas todo aquele que ouve estas minhas palavras, e não as põe em prática, será comparado a um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia.

27 E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa, e ela caiu; e grande foi a sua queda.” (Mt 7.24-27)

Nosso Senhor não diz que somente desceu a chuva, mas que também os rios vieram e sacudiram a casa. Sempre me parece que isto representa o mundo, em geral, no sentido bíblico da palavra, ou seja, a perspectiva mundana, o tipo mundano de vida.

Nos agrade ou não, sejamos cristãos verdadeiros ou falsos, o mundo chega a sacudir esta nossa casa, desencadeando toda sua fúria contra nós.

(Além do mundo, devemos considerar os ataques desferidos contra a nossa casa espiritual, pela nossa própria natureza terrena – carne, e pelos principados e potestades malignos – nota do tradutor).

Os ataques do mundo podem ser traduzidos por sedução ou por perseguição.

Todos sabemos algo sobre o que significa sentir que a casa quase desaba às vezes. Não é exatamente que o cristão deseja abandonar sua fé, porém o poder do mundo pode ser tão grande que às vezes se pergunta se seus fundamentos resistirão.

O jovem, tem uma maravilhosa fé em Cristo, porém, cedo ou tarde, talvez até a metade da vida, começa a pensar em seu futuro, em sua carreira, em toda sua posição na vida; e começa

a vacilar e duvidar, entra em jogo o processo lento de envelhecimento, e também uma espécie de debilidade – esse

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é o mundo que dá com ímpeto contra a casa, submetendo-a a prova.

Depois vem o vento. Que quer dizer isto que sopraram ventos? São ataques de Satanás. O diabo tem muitas formas diferentes de nos atacar. Segundo a Palavra de Deus, pode se transformar em anjo de luz e citar a Bíblia. Pode nos separar por meio do mundo. Porém, às vezes nos ataca diretamente; pode lançar-nos dúvidas e negações. Pode nos bombardear com pensamentos sujos, maus, blasfemos. Leiamos as vidas dos santos de outras épocas e encontraremos que se viram submetidos a este tipo de coisas. O diabo promove ataques violentos, para derrubar a casa, por assim dizer, e os santos ao longo dos séculos têm sofrido por causa do poder desta forma de ataque.

Talvez temos conhecido homens bons que se têm visto sujeitos a isto, cristãos excelentes que têm vivido vidas piedosas; então, um pouco antes do fim, talvez no leito de morte, passam por um período de trevas e o diabo os ataca violentamente. Na realidade, “não conhecemos luta contra sangue e carne, senão contra principados, potestades, contra os governadores das trevas deste séculos, contra as hostes espirituais da maldade nas regiões celestes. Em Efésios 6, o apóstolo Paulo nos diz que a única forma de resistir é se revestindo de toda a armadura de Deus. E nesta passagem nosso Senhor diz também somente o fundamento sólido que Ele dá, permitirá que nossa casa resista.

Estas coisas nos chegam a todos nós. Porém, está claro, em última instância, de forma certa e inevitável, chega a própria morte. Alguns têm que suportar a chuva, outros os rios, e outros os ventos e furacões, porém todos temos que nos encontrar e fazer frente com a morte. Nos chegará a todos de alguma forma e submeterá à prova o próprio fundamento sobre o qual temos edificado.

Como resistimos a estas coisas? Em muitos sentidos, o labor principal da pregação do evangelho é preparar os homens para resistirem a estas coisas. O que importa não é a ideia que se tenha da vida, nem dos sentimentos que tenhamos, se alguém não pode resistir a estas provas que temos

enumerado, o fracasso é completo. Sejam quais forem os dons de um homem ou seu chamamento, por mais nobre e bom

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que seja, se sua ideia e filosofia da vida não o têm provido destas certezas, é um néscio, e tudo o que tem lhe falhará e se derrubará sob seus pés precisamente quando necessita de mais ajuda. Já temos experimentado algumas destas provas.

Muitos parecem passar muito bem neste mundo, porém, seu final não é em paz. Pobre criatura! Não se tem preparado para isso, não está consciente de que se irá, se agarra ao que seja, e não morre em paz.

Escutemos o Salmo 112.7: “Não terá temor de más notícias; seu coração está firme, confiado em Jeová”. Não tem medo das pestilências, não tem medo de que cheguem as guerras, não tem medo nem sequer das más notícias. Não diz : ”que vamos fazer dia após dia?” Nunca – “seu coração está firme, confiando em Jeová”. Escutemos também estas palavras magníficas de Isaías 28.16: “O que crê não se apresse”, ou se preferem: “O que crer não será confundido, o que crer não será apanhado de surpresa”. Por que? Porque tem prestado

atenção, vem se preparando, de modo que, seja o que for que lhe chegue, tem fundamento sólido. Não tem pressa, nunca se apressa. Nosso Senhor mesmo o tem ensinado perfeitamente na parábola do semeador. Nos diz que o falso cristão “não tem raiz em si”. Resistiu por um tempo, porém quando chegou a perseguição, tudo se acabou. “O que foi semeado entre espinhos, este é o que ouve a Palavra, porém o afã deste século, e o engano das riquezas sufocam a Palavra, e se faz infrutífera”. O ensino da Escritura a este respeito é interminável.

Isto é algo que se ensina de forma positiva na Bíblia, e que a experiência cristã confirma.

Leiamos o relato daqueles primeiros cristãos que, ao serem perseguidos, e inclusive condenados à morte, davam graças a Deus de que fossem considerados dignos de sofrer por seu nome.

O ensino, pois, se resume nisto, somente os homens que têm feito estas coisas, das quais nosso Senhor fala no Sermão do Monte, possuem estas experiências. O falso cristão descobre que quando necessita de ajuda, considerava como a fé não lhe ajuda. Lhe abandona quando mais necessita dela. Não há

nenhuma dúvida relativamente a isto. O fator comum na vida de todos os que têm se enfrentado com as provas da vida de

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forma triunfal e gloriosa, é que têm sido sempre homens que se têm entregado para viver o Sermão do Monte.

Como posso me assegurar de que estou edificando a casa sobre a rocha? Como ponho realmente estas coisas em prática? É a pergunta mais importante deste mundo. Nada há mais vital que recordar diariamente estas coisas. Às vezes creio que não há nada mais perigoso na vida cristã do que uma vida devocional mecânica. Ouço pessoas falarem superficialmente sobre fazer suas “devoções” diárias. Esta atitude superficial, em meu modo de entender, é absolutamente trágica. Significa que a estas pessoas se lhes tem ensinado que é bom para o cristão, como primeira atividade do dia, ler um pouca da Bíblia, e logo oferecer uma

oração, antes de ir trabalhar. Alguém cumpre este costume e pronto. Claro que é uma coisa boa, porém pode resultar sumamente perigosa para a vida espiritual, caso se converta em algo puramente mecânico.

Diria pois, que o que se tem que fazer é o seguinte: certamente tem que se ler a Bíblia e orar; porém não numa forma mecânica, não porque se tem dito a alguém que tem que fazê-lo, não porque se espera que se faça. Perguntemo-nos se vivemos o Sermão do Monte, se estamos realmente o vivendo. Não nos falamos a nós mesmos o suficiente; este é nosso problema. Falamos demasiadamente com os demais e não o suficiente conosco.

Devemos dizer para nós mesmos: “Nosso Senhor pregou este sermão porém de nada nos valeria se não fizermos o que Ele diz”. Ponhamo-nos à prova segundo os ensinos do Sermão do Monte.

Conclusão do Sermão do Monte – Mateus 7.28,29

“28 Ao concluir Jesus este discurso, as multidões se maravilhavam da sua doutrina;

29 porque as ensinava como tendo autoridade, e não como os escribas.” (Mt 7.28,29)

Nos dois últimos versículos deste capítulo o escritor sagrado

nos diz o efeito que este Sermão do Monte produziu no auditório. Desta forma nos oferece ao mesmo tempo a

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oportunidade de examinar em geral que efeito deveria produzir sempre este sermão nos que o leem ou o examinam.

Nestes dois versículos o interesse está mais centrado no Pregador do que no Sermão.

Se nos pede, por assim dizer, que uma vez examinado o Sermão, olhemos Aquele que o pronunciou e pregou.

Ao examinar o Sermão do Monte, nunca devemos nos deter nem sequer no ensino moral, ético e espiritual; devemos ir mais além de todas estas coisas, por maravilhosas que sejam, por vitais que sejam, até a pessoa do próprio Pregador.

A autoridade do Sermão deriva do Pregador.

No caso dos demais mestres que o mundo tem conhecido, o importante é o ensino; porém estamos diante de um caso no qual o Mestre é mais importante do que o que ensina. Em certo sentido não se pode dividir, nem separar um do outro. Porém não haveria o ensino sem o Pregador, porque é o reflexo da sua Pessoa divina.

Se alguém pergunta: “Por que devo prestar atenção a este Sermão, por que devo pô-lo em prática, porque devo crer que é o mais vital desta vida? “ A resposta é: devido à Pessoa que o pregou. Esta é a autoridade, esta é a sanção do Sermão.

A primeira coisa que temos que observar nesta passagem é que produziu admiração. A primeira coisa, que está clara, é a autoridade geral com que falou – este homem que fala com autoridade e não como os escribas. Este aspecto negativo é muito interessante – que seu ensino não era segundo o estilo dos escribas. A característica do ensino dos escribas era que sempre citavam a autoridades e que nunca emitiam pensamentos originais; eram experientes, não tanto na lei mesma, quanto nas distintas exposições e interpretações da lei que haviam sido propostas desde o tempo de Moisés.

Depois, sempre citavam os experts nestas interpretações.

(Não havia nas ministrações dos escribas, como não há em muitas pregações na Igreja em nossos dias, pouco ou nada da vida do Espírito Santo, inspirando os pregadores no conteúdo do que devem falar, senão citações deste e daquele intérprete das Escrituras – nota do tradutor).

Há que se destacar que havia também confiança e segurança no que o Senhor falou no Sermão do Monte.

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O Senhor afirma que veio cumprir a lei e os profetas. Afirma que é Aquele para o qual apontaram todos os profetas do Antigo Testamento. É Ele que cumpre em sua própria Pessoa as promessas.

Este é o que havia de vir, o esperado. Diz tudo isto no Sermão do Monte.

O Senhor proclamou no final do Sermão que Ele será o Juiz do mundo. “Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor! etc. “E então lhes declararei: nunca vos conheci, apartai-vos de mim, praticantes da iniquidade!”.

Como alguém disse muito bem:

“Aquele que esteve sentado no Monte para ensinar, é o mesmo que ao final se assentará no trono de sua glória para que todas as nações do mundo compareçam diante dele, e Ele emitirá juízo definitivo sobre elas!”

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Mateus 8

A Cura de um Leproso – Mateus 8.1-4

“1 Quando Jesus desceu do monte, grandes multidões o seguiam.

2 E eis que veio um leproso e o adorava, dizendo: Senhor, se quiseres, podes tornar-me limpo.

3 Jesus, pois, estendendo a mão, tocou-o, dizendo: Quero; sê limpo. No mesmo instante ficou purificado da sua lepra.

4 Disse-lhe então Jesus: Olha, não contes isto a ninguém; mas vai, mostra-te ao sacerdote, e apresenta a oferta que Moisés determinou, para lhes servir de testemunho.” (Mateus 8.1-4)

O primeiro versículo recorre ao fim do Sermão do Monte, porque as pessoas que o ouviram estavam maravilhadas da doutrina do Senhor, e o efeito foi, que quando Ele desceu do monte, grandes multidões o seguiram.

Nestes versos, temos o relato da cura de um leproso por Cristo.

Sabemos, pelo evangelho de João, que o primeiro milagre que Jesus fez foi a transformação de água em vinho nas bodas de Caná, e temos o registro em Mateus, antes de Jesus ter proferido o Sermão do Monte, que Ele havia curado a muitos, como se vê no final do quarto capítulo.

Temos então, aqui, o registro do primeiro milagre de cura que o Senhor fez depois de ter pregado o Sermão do Monte.

Nos dias de Jesus a lepra era uma doença incurável. Portanto, através desta cura Ele mostrou que era o único que poderia também curar a enfermidade incurável do pecado, a qual continua, até os dias de hoje, e para sempre, sendo uma doença incurável.

Os leprosos eram considerados imundos pela Lei, e deviam viver fora das cidades de Israel.

De igual modo o pecado torna o homem imundo para viver no céu, e caso não seja purificado não poderá jamais entrar no reino de Deus.

Com a cura do leproso Jesus demonstrou que somente Ele é

competente para salvar os que se encontram banidos da presença de Deus, por causa da enfermidade do pecado.

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O leproso foi sábio em reconhecer que Jesus tem todo o poder para curar qualquer enfermidade incurável, mas isto está na esfera e dependência da sua vontade, e por isso lhe disse: “Senhor, se quiseres, podes tornar-me limpo.”

Ele se aproximou do Senhor e o adorou, mas reconheceu que não poderia exigir nada de Jesus, caso não fosse da sua soberana vontade.

O Senhor não somente teve misericórdia do leproso, como tem de todos os que sofrem, como também, no seu caso, disse que era da sua vontade purificá-lo, e o curou.

Pelos mais variados motivos, como por exemplo o de provar a nossa paciência e fidelidade na tribulação, Deus poderá não nos curar de nossas enfermidades, mas nos assistirá com a sua graça, tal como fizera com o apóstolo Paulo quanto ao seu espinho na carne.

É muito importante o fato de Jesus ter tocado o leproso para curá-lo, porque isto demonstra que Ele não tem nenhum

receio relativo a qualquer contágio do pecado, quando também nos toca para nos salvar, fazendo habitar em nós o Espírito Santo.

Segundo a lei, se alguém tocasse num leproso seria considerado imundo cerimonialmente, e impedido de participar do serviço de adoração no templo, até que fossem cumpridos o tempo e as exigências previstas na lei para a sua purificação.

Ao tocar no leproso, curando-o, Jesus demonstrou que não está sujeito, tal como nós, a ser contaminado pelas impurezas de outros.

Motivo porque não podia ser considerado que havia violado a lei de Moisés, porque tal prescrição da Lei tinha em vista ensinar sobre a contaminação do pecado, que deveria ser evitada, sob pena de ser castigada, em caso de descumprimento da norma legal.

Quando um leproso era curado de sua lepra, deveria se apresentar ao sacerdote com as ofertas exigidas pela lei, para testemunho da sua purificação.

Como a lepra era incurável, então toda cura que havia no passado, era o resultado de um milagre operado por Deus.

Jesus, comprovou então a sua divindade, ao curar o leproso quando o tocou.

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E para que se cumprisse a lei, lhe ordenou que se apresentasse ao sacerdote, mas que não contasse o modo pelo qual foi curado, porque não era ainda chegada a hora do Senhor ser conduzido à morte pelos líderes religiosos de Israel, portanto, a razão de seu pedido ao leproso, para manter a origem do milagre em segredo, tinha em vista não precipitar uma perseguição antes da hora.

A Cura do Servo de um Centurião - Mateus 8.5-13

“5 Tendo Jesus entrado em Cafarnaum, chegou-se a ele um centurião que lhe rogava, dizendo:

6 Senhor, o meu criado jaz em casa paralítico, e horrivelmente atormentado.

7 Respondeu-lhe Jesus: Eu irei, e o curarei.

8 O centurião, porém, replicou-lhe: Senhor, não sou digno de que entres debaixo do meu telhado; mas somente dize uma palavra, e o meu criado há de sarar.

9 Pois também eu sou homem sujeito à autoridade, e tenho soldados às minhas ordens; e digo a este: Vai, e ele vai; e a outro: Vem, e ele vem; e ao meu servo: Faze isto, e ele o faz.

10 Jesus, ouvindo isso, admirou-se, e disse aos que o seguiam: Em verdade vos digo que a ninguém encontrei em Israel com tamanha fé.

11 Também vos digo que muitos virão do oriente e do ocidente, e reclinar-se-ão à mesa de Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos céus;

12 mas os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes.

13 Então disse Jesus ao centurião: Vai-te, e te seja feito assim como creste. E naquela mesma hora o seu criado sarou.” (Mateus 8.5-13)

Nós temos aqui o relato de Jesus curando o servo de um centurião romano que sofria de paralisia e que se encontrava atormentado.

Isto se deu em Cafarnaum, onde Cristo estava habitando na ocasião (Mt 4.13).

O centurião era um oficial do exército romano, e provavelmente o principal comandante na área de

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Cafarnaum, que mantinha uma guarnição na referida localidade.

Ao ter atendido ao rogo do centurião e curado o seu servo, nosso Senhor estava dando cumprimento à profecia relativa a Ele de que seria uma luz para iluminar os gentios, tanto quanto estava destinado para ser a glória do seu povo de Israel.

Ao curar o servo do centurião à distância, sem necessitar tocar nele, Jesus mostrou que tem poder para curar de todas as formas, quer seja de perto, quer seja de longe, quer a quem visse ou a quem não visse, com os olhos de carne.

O centurião procurou Jesus demonstrando grande fé e humildade, quando Lhe disse que reconhecia a sua autoridade para dar ordens para serem cumpridas, e que também reconhecia a sua excelência a ponto de não ser digno de recebê-lo em sua casa.

Todos que se aproximam do Senhor à busca de uma bênção deveriam se espelhar no exemplo que nos foi deixado pelo centurião.

Aquele oficial romano demonstrou uma piedade e cuidado pelo bem-estar do seu próximo, a ponto de estar disposto a se humilhar por amor de um servo. Não foi por si mesmo ou por um filho que recorreu a Cristo, mas por um criado de sua casa.

Quão grande valor o Senhor dá à intercessão que é feita em favor de outras pessoas, porque isto dá mostras de não sermos governados pelo egoísmo, mas pelo amor ao próximo que é ordenado por Deus a todos os homens.

O centurião não demitiu o criado enfermo apesar de ter-se tornado um peso para ele, e sem utilidade para desempenhar suas funções, e além disso é dito que estava horrivelmente atormentado.

Este amor e cuidado do centurião por aqueles que se encontravam debaixo das suas ordens, explica em parte o fato deles serem muito obedientes a ele, porque onde houver verdadeiro interesse e cuidado pelos que estão debaixo do nosso cuidado, isto lhes inspirará a serem gratos, respondendo com o desejo de servir com atenção e diligência, como forma de retribuição.

Não foi confiado em sua própria bondade que o centurião se aproximou de Jesus.

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Ele reconheceu a sua indignidade diante da majestade e santidade do Senhor.

Este reconhecimento cabe a todos os homens, porque todos somos pecadores.

Ele honrou tanto a Cristo com a sua grande fé, que afirmou que confiava que o Senhor poderia curar o seu servo à distância.

Ele deu mostras com isso de reconhecimento do grande poder de Jesus.

E tal confiança é muito apreciada por Deus, porque sem fé é impossível agradá-lo.

O Senhor se agradou muito da confissão de fé do centurião, porque nela havia a marca do significado da verdadeira obediência que Deus espera de nós. Não pelo constrangimento da sua presença divina, mas pelo crédito e

honra a tudo que nos tem ordenado na sua Palavra.

Uma obediência que tem o caráter daquilo que se diz em Ef. 6.6:

“não servindo somente à vista, como para agradar aos homens, mas como servos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus,”

A fé do centurião na Pessoa de Cristo deu ocasião para que o Senhor profetizasse que aquilo era apenas um sinal, uma pequena mostra da grande conversão a Ele que ocorreria em todas as partes do mundo, inclusive no Ocidente, o que tem de fato ocorrido nestes cerca de dois mil anos de Cristianismo.

Não foi no panteão de deuses romanos que o centurião romano depositou a sua confiança, mas em Cristo, e assim tem sido com muitos em todas as nações pagãs.

Os próprios judeus que eram tidos na conta de filhos do reino de Deus, porque eram eles que estavam naturalmente destinados a recepcionarem a Jesus como Salvador e Senhor deles, vieram por fim a se endurecer em sua grande maioria, rejeitando-O, dando com isso cumprimento às profecias relativas a eles, especialmente as que encontramos no livro do profeta Isaías, no qual se revela claramente que a mensagem do evangelho seria rejeitada pelos judeus mas seria obedecida pelos gentios.

A consequência disto e o que Jesus afirma nos versos 11 e 12:

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“11 Também vos digo que muitos virão do oriente e do ocidente, e reclinar-se-ão à mesa de Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos céus;

12 mas os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes.”

A citação “filhos do reino” é uma referência aos israelitas,

porque eram o povo de Deus na antiga aliança, e era a eles que o reino estava destinado, mas eles o rejeitaram, ao terem rejeitado a Jesus.

Assim, os gentios (os não israelitas) que se convertem a Cristo estarão no reino dos céus, e os israelitas que rejeitaram a Cristo, no inferno, que consiste nas trevas exteriores, longe das luzes do reino dos céus, onde há choro e ranger de dentes.

A Cura da Sogra de Pedro – Mateus 8.14,15

“14 Ora, tendo Jesus entrado na casa de Pedro, viu a sogra deste de cama; e com febre.

15 E tocou-lhe a mão, e a febre a deixou; então ela se levantou,

e o servia.” (Mateus 8.14,15)

Nós temos aqui o relato da cura da sogra de Pedro.

Ela estava com febre, e geralmente febres são apenas sintomas de algum mal que esteja acometendo o nosso organismo, geralmente infecções.

Então, ao fazer cessar a febre, Jesus curou a enfermidade que estava dando causa à mesma.

A sogra de Pedro encontrava-se acamada na casa do apóstolo, e tão logo foi curada por Jesus, levantou-se e O servia.

A saúde que o Senhor nos concede é para servi-lo.

Por isso não deveríamos nos entristecer somente pela enfermidade propriamente dita, mas pelo fato de nos impossibilitar de nos dar continuidade ao nosso serviço para

Cristo.

Um simples toque de Jesus na mão da sogra de Pedro a curou.

O poder de cura atravessou todo o seu corpo e atingiu a parte que estava abrigando a doença, porque não é de se supor que fosse qualquer problema em sua mão que estivesse dando ocasião à febre.

Disto aprendemos, que não há necessidade, como muitos imaginam, que toquemos na parte do corpo em que esteja

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supostamente localizada a enfermidade, para que uma pessoa seja curada, quando oramos por ela.

Muitas Curas Operadas por Jesus – Mateus 8.16,17

“16 Caída a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados; e ele com a sua palavra expulsou os espíritos, e curou todos os enfermos;

17 para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías: Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e levou as nossas doenças.” (Mateus 8.16,17)

Nesta passagem nós temos o relato do método que o Senhor empregava usualmente para curar e expulsar espíritos malignos: simplesmente pela sua palavra de ordem.

Nosso Senhor revelou o seu completo poder sobre as obras de Satanás, para destruí-las.

Se o pecado não tivesse entrado no mundo não haveria doenças e nem possessões malignas, então, ao curar os enfermos e endemoninhados, Jesus demonstrou o seu poder para também remover a causa de tais males, que é o pecado, conforme foi profetizado acerca dele nas Escrituras:

“Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido.” (Is 53.4)

“levando ele mesmo os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro, para que mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados.” (I Pe 2.24)

Jesus pode curar enfermidades e expulsar demônios porque carregou sobre Si mesmo todos os nossos males na cruz.

Ele teve que pagar este altíssimo e doloroso preço para que pudéssemos ser curados e libertados.

É portanto, grande demonstração de gratidão para com o Senhor, e de tributação de louvor e honra ao seu grande nome, depositar total confiança nele para que sejamos curados, e principalmente salvos do poder de destruição do pecado.

Não é dito na passagem que Ele tivesse recusado a qualquer tivesse vindo a Ele. Ele não o fez e jamais o fará.

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O Senhor entrará na casa do coração de qualquer que lhe der acolhida, e lhes abençoará com a sua presença.

Jesus Põe à Prova os que Queriam Segui-lo - Mateus 8.18-22

“18 Vendo Jesus uma multidão ao redor de si, deu ordem de partir para o outro lado do mar.

19 E, aproximando-se um escriba, disse-lhe: Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores.

20 Respondeu-lhe Jesus: As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça.

21 E outro de seus discípulos lhe disse: Senhor, permite-me ir primeiro sepultar meu pai.

22 Jesus, porém, respondeu-lhe: Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus próprios mortos.” (Mateus 8.18-22)

Jesus não poderia se fixar numa determinada localidade de Israel, porque seu ministério deveria atingir todas as partes daquela nação, conforme estava determinado pelo desígnio eterno do Pai.

Ele foi dado como o Grande Profeta para todos os israelitas. E portanto, deveria percorrer todos as cidades e lugarejos da nação.

Por isso, nós o vemos aqui nesta passagem se deslocando de Cafarnaum para o outro lado do Mar de Tiberíades, também conhecido como Mar da Galileia, junto ao qual ficava a citada cidade.

“Respondeu-lhes Jesus: Vamos a outras partes, às povoações vizinhas, para que eu pregue ali também; pois para isso é que vim.” (Mc 1.38)

Em seu ministério terreno, nosso Senhor deveria se limitar aos termos de Israel, porque, a ministração junto aos gentios deveria ser feita pela Igreja, somente depois que o Espírito Santo fosse derramado depois da sua morte e ressurreição, o que ocorreu a partir do dia de Pentecostes.

Por isso se afirma nas Escrituras que Jesus foi ministro da

circuncisão, a saber, junto aos judeus, porque foi a eles que foram feitas as promessas e as alianças:

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“Digo pois que Cristo foi feito ministro da circuncisão, por causa da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos pais;” (Rom 15.8)

Por isso foi necessário que, mesmo pela Igreja, primeiro se pregasse o evangelho aos judeus, e importava que eles o

rejeitassem, para que fosse estendido aos gentios.

A pregação do evangelho é um alto privilégio que está reservado para aqueles que são chamados e enviados por Deus para fazê-lo, como vemos em Rom 10.15.

Jesus foi eleito e chamado pelo Pai para pregar o evangelho, e o Senhor chamou os apóstolos e discípulos para fazê-lo.

Agora, nós temos o relato de um escriba se apresentando a nosso Senhor, dizendo-lhe que o seguiria aonde quer que Ele

fosse.

O escriba fizera isto por sua própria iniciativa, sem ter recebido qualquer chamado do Senhor para fazê-lo.

Daí ter recebido a resposta dissuasiva que Jesus lhe dera:

“As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça.”

O Senhor lhe apontou o custo que é cobrado àqueles que Lhe seguem.

E não temos o registro de qualquer tréplica que tivesse sido apresentada pelo escriba, depois de ter ouvido tal afirmação do Senhor.

É bem provável que tenha percebido em si não a falta de desejo para seguir a Cristo, porque é possível que fosse sincero tal desejo, mas faltava-lhe a autoridade necessária para fazê-lo, autoridade esta que é concedida pela graça do Senhor somente para aqueles que são por Ele chamados, tal

como foi, por exemplo o caso dos apóstolos, e de todos aqueles que Ele continua chamando ao longo da história da Igreja, para pregarem o evangelho.

No verso 21 nós temos o registro do motivo alegado por um dos discípulos do Senhor para retardar o atendimento à sua chamada para segui-lo.

Ele pediu que esperasse primeiro que chegasse o dia da morte do seu pai, para que somente, depois de então, pudesse segui-lo para pregar o evangelho.

A resposta do Senhor para ele está registrada no verso 22:

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“Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus próprios mortos.”

O Senhor não consentiu com o pedido daquele discípulo, porque o dever de todo discípulo do Senhor é segui-lo.

É dever de todo cristão estar onde estiver o seu Senhor. Então Jesus lhe ordenou: “Segue-me”.

E logo em seguida apresentou-lhe um argumento consistente para fazê-lo: os que receberam vida devem anunciar a vida aos que estão mortos espiritualmente para que também vivam.

Jesus Acalma uma Tempestade – Mateus 8.23-27

“23 E, entrando ele no barco, seus discípulos o seguiram.

24 E eis que se levantou no mar tão grande tempestade que o barco era coberto pelas ondas; ele, porém, estava dormindo.

25 Os discípulos, pois, aproximando-se, o despertaram, dizendo: Salva-nos, Senhor, que estamos perecendo.

26 Ele lhes respondeu: Por que temeis, homens de pouca fé? Então, levantando-se repreendeu os ventos e o mar, e seguiu-se grande bonança.

27 E aqueles homens se maravilharam, dizendo: Que homem é este, que até os ventos e o mar lhe obedecem?” (Mateus 8.23-27)

Nós vimos no verso 18 que Jesus havia ordenado aos seus discípulos que atravessassem para o outro lado do Mar de Tiberíades, e eles estavam navegando para a região de Gadara, situada na tribo de Gade, no lado oriental do Jordão.

Na passagem anterior nosso Senhor havia deixado de modo bastante claro que renúncias e dificuldades são impostas a todos aqueles que O seguirem.

E aqui, esta verdade está ilustrada de maneira prática, porque tendo decidido atravessar para o outro lado do Jordão através

do mar, quando poderia fazê-lo por terra, percorrendo quase que a mesma distância, Jesus deu aos discípulos uma oportunidade de terem a fé deles provada, porque lhes sobreveio grande tempestade quando se encontravam em seu pequeno barco no mar.

Tranquilo e seguro quanto à providência divina para garantir

o cumprimento da sua missão, o Senhor dormia no barco em meio à furiosa tempestade.

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Alarmados e em grande desespero, os discípulos acordaram o Senhor rogando-lhe que lhes acudisse.

Devia ser de tal ordem o grande temor deles que foram repreendidos em vez de confortados.

O Senhor lhes disse que não deveriam temer, uma vez que se encontravam debaixo do seu cuidado e companhia, e lhes revelou que a causa de tão grande temor era a pequena fé deles na sua pessoa divina.

Sabendo que necessitavam ter a fé aumentada, e que isto não sucederia em tão pouco tempo, por causa da fraqueza da fé dos discípulos, nosso Senhor não permitiu que a prova se prolongasse, aumentando ainda mais a tormenta deles, e por isso se levantou repreendendo os ventos e o mar, de maneira que se seguiu grande bonança.

O modo de os discípulos se manifestarem diante do milagre realizado, revela que apesar de Jesus ter realizado muitos outros milagres anteriormente diante deles, ainda não conheciam a sua natureza divina e o seu pleno poder sobre todas as coisas, de maneira que o viam até então, como um homem dotado de poderes extraordinários, mas seus olhos espirituais não tinham ainda sido abertos para poderem ver que nosso Senhor é o Deus que pode todas as coisas.

Há um grande ensino para a Igreja nesta passagem, porque ela se encontra neste mundo, como os discípulos se encontravam naquele pequeno barco, sendo batido pela fúria das tempestades que tentam impedir que o barco chegue a seu destino.

Se tivermos uma fé grande não será necessário que o Senhor repreenda a fúria das tribulações e perseguições que nos acompanham tão de perto em nossa jornada neste mundo, porque perseverando em nossa confiança no Senhor, somos mais do que vencedores e nenhuma porta do inferno poderá prevalecer contra a sua Igreja.

Devemos então descansar nossos corações em todas as circunstâncias difíceis da vida, sabendo que Jesus não somente tem poder para curar enfermidades, mas até mesmo para fazer cessar a fúria dos mares, o vendaval e as tempestades, porque tudo tem que obedecer a sua palavra de

ordem, pela qual criou todas as coisas, quer visíveis, quer invisíveis.

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Mateus 9

A Cura de um Paralítico em Cafarnaum - Mateus 9.1-8

“1 E entrando Jesus num barco, passou para o outro lado, e chegou à sua própria cidade.

2 E eis que lhe trouxeram um paralítico deitado num leito. Jesus, pois, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: Tem ânimo, filho; perdoados são os teus pecados.

3 E alguns dos escribas disseram consigo: Este homem blasfema.

4 Mas Jesus, conhecendo-lhes os pensamentos, disse: Por que pensais o mal em vossos corações?

5 Pois qual é mais fácil? dizer: Perdoados são os teus pecados, ou dizer: Levanta-te e anda?

6 Ora, para que saibais que o Filho do homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados (disse então ao paralítico): Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa.

7 E este, levantando-se, foi para sua casa.

8 E as multidões, vendo isso, temeram, e glorificaram a Deus, que dera tal autoridade aos homens.” (Mateus 9.1-8)

Jesus retornou de Gadara, que ficava no lado oriental do Jordão, e retornou para a cidade onde fora residir depois de ter sido batizado por João, a saber, em Cafarnaum, onde Pedro também residia.

As passagens paralelas a esta narrativa se encontram em Marcos 2.1-12, e em Lucas 5.17-26. Nestes textos paralelos é informado que o paralítico foi introduzido através do telhado, na casa em que Jesus se encontrava, provavelmente a casa de Pedro, porque o Senhor dissera que não tinha sequer onde reclinar a cabeça, isto é, uma residência própria e fixa.

Todos os eventos narrados neste capítulo aconteceram em Cafarnaum. E a primeira ocorrência naquela cidade foi a salvação e a cura de um paralítico.

Era de tal ordem a paralisia deste homem que teve que ser carregado em sua cama por alguns amigos até a presença de Jesus. E nosso Senhor viu não somente a fé do paralítico como

também daqueles que lho haviam trazido até Ele, pois é dito no verso 2: “Jesus, pois, vendo-lhes a fé...”

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Deus opera de muitos modos para atrair as pessoas a Cristo, para que sejam salvas.

A uns pela busca de cura do corpo, a outros pela busca de cura da alma, e pelos mais variados motivos – tudo usa, todas as circunstâncias, conforme o conhecimento perfeito que possui do interior de cada pessoa, para conduzi-las à salvação.

Até mesmo aqueles que não podem tomar qualquer iniciativa para virem a Cristo, como foi por exemplo o caso dos dois endemoninhados gadarenos, livrará dos laços do diabo, pelo seu próprio poder, àqueles que tem determinado manifestar a sua misericórdia, para que sejam salvos.

Não importa se podemos caminhar por nossos próprios meios ou se outros têm que nos conduzir ao Senhor, uma coisa é certa, Ele não perderá a nenhum daqueles que Lhe foram dados pelo Pai.

Como aquela paralisia, naquele caso, foi o meio usado para que houvesse a busca de nosso Senhor pelo paralítico, Ele não concentrou sua atenção na enfermidade, mas na transformação do paralítico em filho de Deus, perdoando-lhe todos os seus pecados (v. 2).

Ele poderia até mesmo permanecer com a paralisia, como tantos outros em toda a história da humanidade, porque aquilo que é realmente de importância, a única coisa que nos é necessária, já havia sido feita em relação ao destino eterno do seu espírito.

O que deu ocasião à cura da paralisia foi a murmuração de alguns escribas, que disseram consigo mesmos que Jesus estava blasfemando ao dizer que os pecados do paralítico haviam sido perdoados.

Ninguém ao redor ouviu o que eles diziam em seus corações, com exceção do Senhor, que tem o poder de conhecer os nossos pensamentos, e por isso lhes disse: “Por que pensais o mal em vossos corações?”.

Ele não precisaria fazer nenhuma outra coisa para provar-lhes a sua divindade, quando lhes demonstrou a sua onisciência, e capacidade de ler pensamentos.

Todavia, Deus não tem o dever de provar coisa nenhuma a qualquer pessoa, e por isso nosso Senhor curaria o paralítico,

não por ter sido provocado por aqueles escribas, mas para manifestar a sua misericórdia, que é a causa de sermos

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perdoados por Ele, e não por qualquer bondade própria ou mérito que haja em nós.

Quem pode mais pode menos.

É mais fácil curar uma enfermidade física do que justificar um pecador, perdoando todos os seus pecados.

O trabalho de salvação de uma alma é muito maior e de duração eterna, do que a cura do corpo.

No entanto, para a percepção humana, limitada e falha, incapaz de perceber os poderes que operam salvando o espírito, justificando e dando um novo nascimento espiritual ao salvo, e que considera portanto, ser uma evidência de poder muito maior ver uma cura física sendo efetuada, Jesus disse o que lemos no verso 5:

“Pois qual é mais fácil? dizer: Perdoados são os teus pecados, ou dizer: Levanta-te e anda?”

Realmente, é mais fácil dizer perdoados são os teus pecados, do que levanta-te e anda, segundo a avaliação humana, à qual

nos referimos anteriormente.

Por isso nosso Senhor disse que levantaria o paralítico, para que os circunstantes soubessem que Ele tem autoridade sobre a terra para perdoar pecados (v. 6).

O efeito da cura foi que as multidões temeram e glorificaram a Deus.

Quão cega é a natureza humana!

Tão incapaz de ver o mundo espiritual, e necessitada de ver sinais para poder crer no poder de Cristo, dando a devida honra à sua divindade.

Convém que seja diferente disso, ao menos quanto aos que foram libertados da escravidão ao pecado. Convém crescer na fé, e ter os olhos espirituais cada vez mais abertos, para discernir o mundo espiritual, dando honra e glória ao Senhor, em espírito, sem que haja necessidade de qualquer manifestação visível da sua glória e poder, porque somos chamados a caminhar por fé e não por vista.

A Chamada de Mateus – Mateus 9.9-13

“9 Partindo Jesus dali, viu sentado na coletoria um homem

chamado Mateus, e disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu.

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10 Ora, estando ele à mesa em casa, eis que chegaram muitos publicanos e pecadores, e se reclinaram à mesa juntamente com Jesus e seus discípulos.

11 E os fariseus, vendo isso, perguntavam aos discípulos: Por que come o vosso Mestre com publicanos e pecadores?

12 Jesus, porém, ouvindo isso, respondeu: Não necessitam de médico os sãos, mas sim os enfermos.

13 Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifícios. Porque eu não vim chamar justos, mas pecadores.” (Mateus 9.9-13)

O evangelista Mateus registrou aqui como foi o modo da sua própria chamada por Cristo para o apostolado.

Ele era até então um publicano, ou seja, um coletor de impostos para Roma, sendo um judeu.

As passagens paralelas de Marcos 2.15 e Lc 5.29, registram que a casa em que Jesus se encontrava, conforme relatado nesta passagem era a casa do próprio Mateus, a quem Marcos e

Lucas chamam de Levi, nos seus respectivos evangelhos.

Lucas afirma que Mateus ofereceu um grande banquete em sua casa, e que numerosos publicanos e outros estavam com eles à mesa.

Pode-se inferir portanto, que depois de ter sido chamado por Jesus, Mateus pensou em dar este grande banquete em honra ao Senhor.

É certo que muitos daqueles publicanos e demais pecadores que se encontravam à mesa com Jesus, não eram pessoas honestas e de boa reputação, porque, de outra sorte os fariseus não teriam protestado perguntando aos discípulos do Senhor, por que o Mestre deles comia em companhia de publicanos e pecadores, diferentemente deles, fariseus, que privavam apenas da companhia de pessoas religiosas.

Como o Senhor ouviu o que tinham falado, respondeu com as seguintes palavras: “Não necessitam de médico os sãos, mas sim os enfermos. Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifícios. Porque eu não vim chamar justos, mas pecadores.”

O espírito de julgamento, hipercrítico, que o Senhor havia condenado no Sermão do Monte, aparece de maneira muito

clara na pessoa dos fariseus, nesta passagem, e em muitas outras, dos evangelhos.

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O orgulho religioso e a justiça própria foram manifestados na pergunta que os fariseus fizeram aos discípulos de Jesus.

Corremos sempre o mesmo risco que eles, se somos fermentados pela hipocrisia, que nos cega, e não permite que enxerguemos, que aos olhos de Deus não há um só justo, que possa se apresentar diante dele sem pecado, pela sua justiça própria.

Todos os homens justos terão sido obrigatoriamente justificados pela graça de Jesus.

Deste modo, neste mundo, nosso Senhor será sempre achado

trabalhando para chamar pecadores à salvação, até mesmo entre os piores deles, porque, conforme a Bíblia afirma, não há um justo sequer aos olhos de Deus, que não necessite ser perdoado e lavado de seus pecados.

É importante portanto, observar, que o que há de mais condenável é a falta deste reconhecimento da nossa condição pecaminosa diante de Deus, como existia nos fariseus, do que a condição reconhecida de pecadores, como estava em Mateus e certamente, num bom número daqueles publicanos e demais pecadores, que estavam à mesa do banquete juntamente com Jesus.

Devemos vigiar, e tomar cuidado para não sermos tomados por este espírito de falta de misericórdia, e que condena até mesmo o próprio Cristo por se mostrar favorável aos pecadores.

Jesus é o único e grande médico do espírito. Nenhum outro pode curar a enfermidade do pecado, e livrar da morte espiritual e eterna que é ocasionada pelo pecado.

Ele tem prazer em exercer o seu ofício, e criticá-lo nesta sua função, significa atribuir grande desonra ao seu santo nome, Jesus, que significa o Salvador.

Ele veio para nos salvar de nossos pecados, e será portanto, honrado somente por aqueles que se submetem ao remédio da graça que Ele veio nos administrar para sermos curados.

Os fariseus argumentavam que somente aqueles que conhecessem as Escrituras, tal como eles, poderiam estar reunidos em nome de Deus, então Jesus citou o texto das Escrituras no qual o Senhor falou através do profeta Oseias:

“Pois misericórdia quero, e não sacrifícios; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos.” (Os 6.6).

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Esta citação feita por Jesus mostra em que consiste a verdadeira religião: não em observâncias externas; não no cumprimento dos ritos e cerimônias externas do Antigo Testamento para a oferta de sacrifícios no templo; não em disputas e debates teológicos, mas em fazer o bem aos corpos, almas e espíritos de outros, em justiça e paz, levando-lhes a mensagem da salvação, em demonstração de misericórdia.

Do Jejum – Mateus 9.14-17

“14 Então vieram ter com ele os discípulos de João, perguntando: Por que é que nós e os fariseus jejuamos, mas os teus discípulos não jejuam?

15 Respondeu-lhes Jesus: Podem porventura ficar tristes os convidados às núpcias, enquanto o noivo está com eles? Dias virão, porém, em que lhes será tirado o noivo, e então hão de jejuar.

16 Ninguém põe remendo de pano novo em vestido velho; porque semelhante remendo tira parte do vestido, e faz-se maior a rotura.

17 Nem se deita vinho novo em odres velhos; do contrário se rebentam, derrama-se o vinho, e os odres se perdem; mas deita-se vinho novo em odres novos, e assim ambos se conservam.” (Mateus 9.14-17)

Nós lemos no texto paralelo desta passagem, em Mc 2.18, o seguinte:

“Ora, os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando; e foram perguntar-lhe: Por que jejuam os discípulos de João e os dos fariseus, mas os teus discípulos não jejuam?”

Este texto paralelo registra que os discípulos de João e os fariseus estavam em acordo prático, quanto à questão do jejum.

Nós já comentamos na parte relativa ao jejum, no Sermão do Monte, que os fariseus haviam acrescentado à prática religiosa, um jejum obrigatório não previsto na Lei de Moisés.

É bem provável que João e seus discípulos tenham sido influenciados por tal prática e se submeteram à mesma, uma vez que era generalizada em Israel.

Poderia, portanto, parecer aos discípulos de João que era uma violação da lei, ou então algo pecaminoso em si mesmo, não

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observar aquele jejum prescrito pelos fariseus, para determinados dias da semana.

Nós vemos que não foi sem razão que Jesus advertiu os seus discípulos quanto ao cuidado que deveriam ter para não se contaminarem com o fermento dos fariseus.

É muito comum que pessoas piedosas se deixem levar por práticas religiosas que lhes sejam impostas como obrigatórias, sem que haja qualquer base ou ordenação bíblica para as mesmas.

Quão difícil é dissuadir aqueles que adotam tais práticas quanto ao fato de não serem exigidas por Deus, porque admiti-lo, geralmente ofende suas consciências fracas e sensíveis.

Tanto que Jesus não condenou a prática dos fariseus e dos discípulos de João, mas, como jejuavam desfigurando o rosto, e como motivo de tristeza, deu-lhes a resposta de que não havia motivo para que os seus discípulos fizessem um jejum de tal tipo, enquanto tinham a sua companhia com eles, sendo

a sua permanente alegria.

Quando Ele lhes fosse tirado temporariamente, em sua morte na cruz, então teriam motivo de tristeza, e poderiam jejuar tal como faziam os discípulos de João.

No entanto, Cristo veio inaugurar uma Nova Aliança, diferente em muitos aspectos da Antiga, que regia os discípulos de João, que se encontravam debaixo das disposições do Antigo Testamento.

Nosso Senhor não veio colocar um remendo de pano novo no vestido da Antiga Aliança, que vigorava no Velho Testamento, mas trazer a veste nova da sua justiça.

Muitos pensam que ao ter dito as palavras do verso 16, que nosso Senhor veio colocar remendo novo em vestido novo.

Todavia, não é o caso, porque este vestido novo não necessita de remendo, porque a justiça com a qual fomos justificados é perfeita e eterna.

Usando uma outra metáfora, nosso Senhor disse que o vinho novo da Nova Aliança não é colocado em odres velhos, mas em recipientes novos, para que sejam conservados tanto o odre quanto o vinho.

O cristão é uma nova criatura. Ninguém pode fazer parte desta

Nova Aliança se não for justificado e se não nascer de novo do Espírito.

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A obra de salvação não é uma obra de remendo do pecador, mas a formação de uma nova criação. Deus destrói o velho para erigir o novo. Tudo o que herdamos de Adão será removido pela mortificação do pecado, para que permaneça somente aquilo que temos herdado em Cristo e por Cristo.

A Ressurreição da Filha de Jairo e a Cura Uma Mulher Enferma – Mateus 9.18-26

“18 Enquanto ainda lhes dizia essas coisas, eis que chegou um chefe da sinagoga e o adorou, dizendo: Minha filha acaba de falecer; mas vem, impõe-lhe a tua mão, e ela viverá.

19 Levantou-se, pois, Jesus, e o foi seguindo, ele e os seus discípulos.

20 E eis que certa mulher, que havia doze anos padecia de uma hemorragia, chegou por detrás dele e tocou-lhe a orla do manto;

21 porque dizia consigo: Se eu tão-somente tocar-lhe o manto, ficarei sã.

22 Mas Jesus, voltando-se e vendo-a, disse: Tem ânimo, filha, a tua fé te salvou. E desde aquela hora a mulher ficou sã.

23 Quando Jesus chegou à casa daquele chefe, e viu os tocadores de flauta e a multidão em alvoroço,

24 disse; retirai-vos; porque a menina não está morta, mas dorme. E riam-se dele.

25 Tendo-se feito sair o povo, entrou Jesus, tomou a menina pela mão, e ela se levantou.

26 E espalhou-se a notícia disso por toda aquela terra.” (Mateus 9.18-26)

Nos textos paralelos de Marcos e Lucas (Mc 5.21-26; Lc 8.40-52) nos é informado que o nome deste chefe da sinagoga era Jairo. A história da ressurreição da sua filha está entrelaçada com a da cura da mulher que sofria de hemorragia, porque esta cura foi efetuada pelo Senhor quando se encontrava a caminho da casa de Jairo.

É interessante observar que o evangelho de Marcos registra que a menina que foi ressuscitada tinha doze anos de idade, e a mulher que foi curada tinha hemorragia há doze anos.

Jesus estava diante de dois casos impossíveis de serem resolvidos pelos homens, o primeiro (cura da hemorragia) do

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qual os médicos da época não estavam conseguindo curar há doze anos; e o segundo, que será impossível aos médicos de qualquer época, a saber: ressuscitar alguém que tenha morrido.

Seria de se esperar que a mulher tivesse confiança para tocar em Jesus para ser curada, porque até então, ele havia realizado inumeráveis milagres de cura; mas como não havia ainda ressuscitado nenhum morto, foi grande a fé que o chefe da sinagoga, Jairo, teve nele para que ressuscitasse sua filha dentre os mortos.

A cura da hemorragia daquela mulher ajudaria a fortalecer a fé de Jairo, porque de tudo o que podemos ver nos relatos paralelos de Marcos e Lucas, tão logo Jesus terminou de encorajar a mulher que fora curada, dizendo-lhe que a sua fé nele lhe havia salvado, chegaram pessoas da casa de Jairo dizendo-lhe que não incomodasse mais ao Senhor, porque a sua filha tinha realmente morrido.

Percebendo que estas palavras haviam produzido um golpe em Jairo, nosso Senhor lhe encorajou dizendo que não

temesse e continuasse crendo.

Assim se dá conosco, sempre que recorremos a Jesus em busca de auxílio, porque se Satanás e os demônios não se anteciparem tentando nos dissuadir de importunar o Senhor, fazendo-o com sugestões dirigidas diretamente às nossas mentes, para que duvidemos e enfraqueçamos na fé, eles o farão através da agência de pessoas, ainda que sejam as da nossa própria casa.

Quão importante é pois, ficar firme na nossa fé no Senhor, e não dar ouvido a qualquer ação contrária à fé que nos venha com o intuito de colocá-la à prova.

Sabendo que a provação da fé de Jairo ainda prosseguiria em sua casa, o Senhor não permitiu que entrassem no quarto onde a menina se encontrava, senão somente seus pais, e Pedro, Tiago e João.

Os escarnecedores e incrédulos que haviam rido, quando Jesus disse que a menina não estava morta, mas apenas dormia, tiveram que ficar do lado de fora, porque não lhes

seria dada a honra de verem a menina sendo ressuscitada e levantada pelo poder de Deus.

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Foi apenas com a palavra de ordem que Jesus pronunciou em aramaico “Talita cumi”, que significa ”menina levanta-te” que Ele a ressuscitou, enquanto a firmava pela mão.

Aqueles que estavam alvoroçados e os tocadores de flauta, que entoavam cânticos de lamento, porque não tinham nenhuma esperança e em ninguém em quem confiar na hora da morte, tiveram que silenciar diante do milagre que o Senhor realizou.

Sosseguemos portanto, os nossos corações, mesmo na hora da morte daqueles que conhecem ao Senhor, daqueles que têm fé no seu nome, porque têm dele a promessa da ressurreição futura, conforme o poder que demonstrou em seu ministério terreno, ressuscitando não somente esta menina, como também a outros, para que saibamos que Ele mesmo é a ressurreição e a vida.

Por isso, vê a morte diferentemente de nós, como um sono profundo e longo, porque somente Ele tem a autoridade para nos despertar deste tipo de sono.

Os incrédulos que estavam na casa de Jairo não puderam ver como a menina foi ressuscitada, mas tiveram que se calar diante da evidência de que havia sido trazida de novo à vida, e assim, esta notícia foi espalhada por toda aquela terra, dando ocasião para que muitos viessem a crer futuramente no Senhor.

A Cura de Dois Cegos e de Um Mudo – Mateus 9.27-34

“27 Partindo Jesus dali, seguiram-no dois cegos, que clamavam, dizendo: Tem compaixão de nós, Filho de Davi.

28 E, tendo ele entrado em casa, os cegos se aproximaram dele; e Jesus perguntou-lhes: Credes que eu posso fazer isto? Responderam-lhe eles: Sim, Senhor.

29 Então lhes tocou os olhos, dizendo: Seja-vos feito segundo a vossa fé.

30 E os olhos se lhes abriram. Jesus ordenou-lhes terminantemente, dizendo: Vede que ninguém o saiba.

31 Eles, porém, saíram, e divulgaram a sua fama por toda aquela terra.

32 Enquanto esses se retiravam, eis que lhe trouxeram um homem mudo e endemoninhado.

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33 E, expulso o demônio, falou o mudo e as multidões se admiraram, dizendo: Nunca tal se viu em Israel.

34 Os fariseus, porém, diziam: É pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios.” (Mateus 9.27-34)

Importava que Jesus operasse todos estes grandes milagres em seu ministério terreno, especialmente para que fosse confirmado para todas as gerações depois dele, que somente Ele é o Messias prometido nas Escrituras, em tudo aquilo que foi registrado quanto ao que faria, quando fosse manifestado na plenitude do tempo.

Estes dois milagres aqui narrados estavam previstos nos desígnios eternos de Deus para o ministério do Messias, como se vê na seguinte profecia:

“5 Então os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos surdos se desimpedirão.

6 Então o coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo cantará de alegria; porque águas arrebentarão no deserto e ribeiros no ermo.” (Is 35.5,6)

Muitas outras coisas foram profetizadas para confirmar que Jesus é o Messias, como vemos nas seguintes passagens entre outras:

“6 Eu o Senhor te chamei em justiça; tomei-te pela mão, e te guardei; e te dei por pacto ao povo, e para luz das nações;

7 para abrir os olhos dos cegos, para tirar da prisão os presos, e do cárcere os que jazem em trevas.” (Is 42.6,7)

“4 Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido.

5 Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e esmagado por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.

6 Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós.” (Is 53.4-6)

“1 O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a

restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos;

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2 a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os tristes;

3 a ordenar acerca dos que choram em Sião que se lhes dê uma grinalda em vez de cinzas, óleo de gozo em vez de pranto, vestidos de louvor em vez de espírito angustiado; a fim de que se chamem árvores de justiça, plantação do Senhor, para que ele seja glorificado.” (Is 61.1-3)

Jesus estava voltando da casa de Jairo, para a sua residência, provavelmente a casa de Pedro em Cafarnaum, quando dois cegos lhe seguiam pelo caminho clamando: “Tem compaixão de nós, Filho de Davi.”

Estes dois homens conheciam a promessa relativa à casa de Davi, e que seria levantado dela Alguém que tornaria a levantar a referida casa (tabernáculo), para restaurar-lhe a antiga glória, com uma glória ainda muito maior e eterna.

Eles puderam reconhecer pelo Espírito que Jesus era o descendente de Davi, no qual se cumpririam todas as boas promessas que Deus havia feito no passado através dos profetas de Israel.

Isto não poderia ter sido entendido por eles, senão somente por meio da fé. E esta fé que é dom de Deus, lhes havia sido dada não apenas para que fossem curados da cegueira física, mas para que alcançassem a salvação de suas almas, pelo conhecimento de Cristo, na condição de Filho do Deus vivo (Jo 17.3).

Por isso Jesus lhes disse que fossem curados então segundo esta fé que haviam demonstrado ter nele. Não estava portanto dizendo que deveriam se esforçar para terem fé para serem curados, mas que pela fé que lhes foi concedida por Deus para que cressem, é que seriam curados.

Esta fé havia sido confirmada antes de serem curados, quando nosso Senhor lhes perguntou se eles criam que Ele poderia curá-los. Eles responderam afirmativamente. O Senhor não lhes fez tal pergunta para saber se tinham fé, mas para que fizessem a confissão, por meio da qual somos salvos. Porque não basta crer no coração, é necessário confessar com a boca que Jesus é o Senhor, para que Ele seja glorificado.

Como nós veremos adiante, havia muita dureza e

incredulidade nos habitantes de Cafarnaum, motivo porque nosso Senhor repreendeu tal cidade, assim como as

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de Corazin e Betsaida, e possivelmente foi este um dos motivos de Jesus não ter curado os cegos na rua, mas no interior da casa, ao mesmo tempo que lhes ordenou que a ninguém contassem o que lhes havia feito.

Contudo, não se contendo em si de alegria, desobedeceram à ordem do Senhor, não por rebeldia, mas por imprudência, vindo a espalhar por toda aquela região o que Ele havia feito.

Quando os que haviam sido cegos se retiravam da casa onde Jesus estava, trouxeram-lhe um homem mudo e endemoninhado.

Naquele caso, o que estava produzindo a mudez era o próprio demônio, que tendo sido expulso por Jesus, o que era mudo passou a falar. Isto também chegou ao conhecimento das multidões, apesar deste milagre ter sido feito também no interior da casa.

E as pessoas se admiraram dizendo que nunca tal se viu em Israel. No entanto, não creram em Cristo entregando-lhe seus corações e se arrependendo de seus pecados, apesar dos sinais que fizera no meio deles.

“Ai de ti, Corazin! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom, se tivessem operado os milagres que em vós se operaram, há muito elas se teriam arrependido em cilício e em cinza.” (Mt 11.21)

“E tu, Cafarnaum, porventura serás elevada até o céu? até o inferno descerás; porque, se em Sodoma se tivessem operado os milagres que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje.” (Mt 11.23)

Os fariseus foram ainda mais além do que estas pessoas que ficaram maravilhadas e não se converteram, porque disseram que era pelo príncipe dos demônios que Jesus expulsava os demônios.

Jesus Pregando ao Longo do País – Mateus 9.35-38

“35 E percorria Jesus todas as cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino, e curando toda sorte de doenças e enfermidades.

36 Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque

andavam desgarradas e errantes, como ovelhas que não têm pastor.

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37 Então disse a seus discípulos: Na verdade, a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.

38 Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara.” (Mt 9.35-38)

Depois da cura dos dois cegos e do mundo endemoninhado, em Cafarnaum, Jesus saiu por todas as cidades e aldeias de Israel, tanto ensinando nas sinagogas, quanto pregando o evangelho e curando todo tipo de doenças e enfermidades, e se compadecia das multidões, vendo-as como ovelhas desgarradas e errantes, por serem ovelhas que não tinham pastor que as apascentassem.

Os líderes religiosos de Israel sempre haviam explorado o rebanho do Senhor, em vez de apascentá-lo com a verdade. Nunca tiveram um sincero cuidado com as ovelhas, antes as deixaram desgarradas, longe do redil.

Então, veio nosso Senhor, o bom Pastor, em busca destas ovelhas desgarradas, que não se encontram somente em Israel, mas em todas as partes do mundo, estas últimas, Ele disse que as reuniria depois, no mesmo rebanho, pelo ministério do Espírito Santo, depois que Ele morresse, ressuscitasse, e subisse aos céus em glória.

O rebanho do Senhor não é massa de manobra nas mãos dos líderes religiosos, para usarem as ovelhas para atenderem aos seus próprios interesses e projetos, que apesar de chamarem de religiosos, na verdade não passam de projetos políticos que visam à própria glória pessoal, ainda que seja dita em nome de Cristo, porque isto é muito sutil, e permanece imperceptível aos olhos espirituais daquele que não anda em sincera humildade e piedade com nosso Senhor.

Os escribas, os fariseus, os sacerdotes de Israel, não tinham qualquer cuidado ou interesse, segundo Deus, pelas ovelhas do seu pasto.

Então, Jesus não confiaria a nenhum deles, na condição em que se encontravam, o cuidado de apascentarem o seu rebanho, senão àqueles que estavam sendo chamados pelo Pai, para tal propósito.

Todavia, o Senhor revelou que esta chamada de líderes autênticos é realizada por Deus, atendendo ao clamor da

Igreja, para que levante tais obreiros aprovados para a sua seara, porque por maior que seja a quantidade de tais

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obreiros, sempre será pequena em relação às necessidades da grande seara que é o mundo.

Não é fácil o trabalho de cuidar e encaminhar na verdade os que vão se convertendo ao Senhor. Além de ser um trabalho difícil, em sua própria natureza, tem também esta dificuldade da necessidade de se atender não a poucos, mas a muitos, porque são muitos os eleitos do Senhor em toda a terra.

Por isso Jesus comparou este trabalho ao que é realizado na colheita num campo, porque é sempre muito maior a quantidade daquilo que se colhe, do que a dos colhedores.

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Mateus 10

O Envio dos Apóstolos – Mateus 10.1-4

“1 E, chamando a si os seus doze discípulos, deu-lhes autoridade sobre os espíritos imundos, para expulsarem, e para curarem toda sorte de doenças e enfermidades.

2 Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão;

3 Felipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu;

4 Simão Cananeu, e Judas Iscariotes, aquele que o traiu.” (Mateus 10.1-4) Até este ponto, nós vimos apenas Jesus pregando, ensinando, curando, ressuscitando, expulsando demônios, fazendo cessar a fúria das tempestades, e o seus discípulos se limitando a acompanhá-lo.

Todavia, aumentando as frentes de trabalho e as necessidades a serem atendidas, nós vimos no capítulo anterior o Senhor dizendo aos discípulos para orarem para que Deus enviasse outros trabalhadores para a sua seara.

Nós vemos no relato paralelo de Marcos e Lucas, que Jesus havia passado toda uma noite em oração, e que ao descer do monte pela manhã, designou doze dentre os seus discípulos, aos quais chamou de apóstolos, e temos aqui o registro dos seus nomes, bem, como, no restante deste capítulo, quais foram as instruções específicas que o Senhor lhes dera naquela ocasião.

O Senhor lhes deu, especialmente: “autoridade sobre os espíritos imundos, para expulsarem, e para curarem toda sorte de doenças e enfermidades.”

Isto não significa que teriam autoridade por si mesmos, independentemente do Senhor, mas que Deus operaria com o seu poder através deles. É importante frisar esta verdade, num tempo em que grassa a triste heresia que muitos estão ensinando e praticando, dizendo que Jesus já nos deu a autoridade necessária, e que

tudo agora está por nossa conta, sem que haja necessidade de incomodá-lo com nossas orações, pedindo-lhe o que podemos

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fazer pelo nosso próprio poder, conforme a autoridade que Ele já nos deu.

Isto não confere de modo algum, com o próprio testemunho dos apóstolos, como por exemplo o de Pedro, diante dos israelitas, quando o Senhor curou o coxo que estava no templo, pela instrumentalidade de Pedro e João:

“Pedro, vendo isto, disse ao povo: Varões israelitas, por que vos admirais deste homem? Ou, por que fitais os olhos em nós, como se por nosso próprio poder ou piedade o tivéssemos feito andar?” (Atos 3.12)

Depois de lhes ter falado sobre Jesus, Pedro lhes disse o seguinte:

“E pela fé em seu nome fez o seu nome fortalecer a este homem que vedes e conheceis; sim, a fé, que vem por ele, deu a este, na presença de todos vós, esta perfeita saúde.” (Atos 3.16)

Os apóstolos tiveram que primeiro aprender de Cristo antes de poderem ser enviados por Ele às cidades, mas continuariam em total dependência dele para poderem realizar o seu ministério, e nós tanto quanto eles, continuamos na mesma dependência tanto de aprendizado prévio, quanto do poder da sua graça, para a obra que nos tiver designado.

Tal como fizera em relação aos primeiros discípulos, o Senhor primeiro nos chama à conversão e a segui-lo para aprender dele, e depois, nos chamará para a realização da sua obra, e a alguns chamará de modo especial, tal como havia feito com os apóstolos, para o exercício do ministério pastoral.

E estes que são assim chamados de um modo distintivo, serão conhecidos pela evidência de terem recebido da parte do Senhor, “autoridade sobre os espíritos imundos, para expulsarem, e para curarem toda sorte de doenças e enfermidades”, sendo que na autoridade sobre os espíritos imundos está incluída também a capacitação sobrenatural recebida para discernir o ensino de demônios e espíritos enganadores, para a manutenção da verdade da Palavra entre os cristãos.

Mateus nomeou os apóstolos em duplas, provavelmente,

conforme os pares que o Senhor designou naquela ocasião, quando foram enviados por Ele. Então temos: 1) Pedro e

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André; 2) Tiago e João; 3) Felipe e Bartolomeu; 4) Tomé e Mateus; 5) Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu; 6) Simão Cananeu e Judas Iscariotes.

Lucas registra que Tadeu tinha também o nome de Simão, que era chamado de Zelote; e que Simão Cananeu era também chamado por Judas, filho de Tiago. E tal como Mateus, Lucas também apresenta os nomes dos apóstolos aos pares.

Instruções para os Apóstolos – Mateus 10.5-15

“5 A estes doze enviou Jesus, e ordenou-lhes, dizendo: Não ireis aos gentios, nem entrareis em cidade de samaritanos;

6 mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel;

7 e indo, pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus.

8 Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça dai.

9 Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre, em vossos cintos;

10 nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de alparcas, nem de bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento.

11 Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, procurai saber quem nela é digno, e hospedai-vos aí até que vos retireis.

12 E, ao entrardes na casa, saudai-a;

13 se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas, se não for digna, torne para vós a vossa paz.

14 E, se ninguém vos receber, nem ouvir as vossas palavras, saindo daquela casa ou daquela cidade, sacudi o pó dos vossos pés.

15 Em verdade vos digo que, no dia do juízo, haverá menos rigor para a terra de Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade.” (Mateus 10.5-15)

É preciso entender que enquanto nosso Senhor esteve neste mundo, cumprindo seu ministério junto à circuncisão (judeus), o ministério de seus discípulos, especialmente dos apóstolos, deveria ser uma extensão exata do próprio ministério do Senhor, e daí a ordem para que não fossem aos

gentios, mas que pregassem e ministrassem exclusivamente aos judeus.

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Somente depois que o Senhor fosse glorificado, depois de sua morte e ressurreição, e que o Espírito Santo fosse derramado, que eles poderiam ministrar aos gentios, mas ainda assim, teriam que pregar primeiro o evangelho aos judeus.

Isto nos ajuda a entender a grande quantidade de curas de enfermos, ressurreição de mortos, purificação de leprosos e expulsão de demônios, que realizaram, conforme nosso Senhor lhes havia ordenado.

Importava que se visse que os seguidores de Cristo não somente estavam debaixo de suas ordens, como também estavam capacitados por Ele, e somente eles, a realizarem as mesmas obras que Ele realizava.

Tudo isto se vê claramente nestas instruções que nosso Senhor lhes deu, e que foram registradas nesta passagem por Mateus.

Muito aprendemos desta limitação inicial imposta pelo Senhor aos apóstolos, para que não caiamos na tentação de realizar um ministério mais extenso do que aquele que o Senhor tiver designado para nós, ou então fora do momento apropriado.

Tudo deve seguir as suas ordens nos trabalhos realizados pela sua Igreja, e quando digo Igreja, não me refiro exclusivamente à Igreja local, mas a todos os recursos humanos e meios que Deus, em sua providência, usa, para a sua exclusiva glória.

O alvo do ministério dos apóstolos, ao serem enviados no início pelo Senhor, era apenas as ovelhas perdidas da casa de Israel. Então temos aqui uma limitação dentro da limitação, porque não somente deveriam se limitar aos termos de Israel, mas concentrar seus objetivos nos eleitos daquela nação.

Paulo dizia que tudo fazia por amor aos eleitos.

Nosso Senhor afirmou que não rogava pelo mundo, mas por aqueles que lhes foram dados pelo Pai (Jo 17.9).

Evidentemente, isto não exclui o dever de amar a todas as pessoas, sem fazer qualquer tipo de acepção, mas devemos estar conscientes que os benefícios permanentes do evangelho serão eficazes somente naqueles que amarão a Cristo, e que atendem à sua chamada ao arrependimento e à conversão.

Por isso deveriam pregar que “É chegado o reino dos céus.”

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Este reino está destinado àqueles que são descritos nas bem-aventuranças, a saber: pobres de espírito; contritos de coração que choram por causa do pecado; mansos; famintos e sedentos de justiça; misericordiosos; limpos de coração; pacificadores e perseguidos por causa da justiça.

Tal como os apóstolos haviam sido salvos pela graça, de igual modo deveriam tudo fazer de graça e pela graça.

Eles deveriam vencer a tentação de fazerem um comércio com as coisas relativas à graça do Senhor, e para que soubessem que a mesma graça que lhes havia salvado, continuaria provendo todas as necessidades deles, para que não estivessem ansiosos quanto ao que comer, beber e vestir, desviando-se assim da missão que deveriam cumprir, para se dedicarem exclusivamente a atividades seculares, com vistas à sua subsistência.

Por isso nosso Senhor lhes ordenou o seguinte:

“Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre, em vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de alparcas, nem de bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento.”

Eles estavam a serviço exclusivo do evangelho e deveriam portanto ser supridos somente pelo próprio evangelho, isto é, viveriam do fruto do trabalho do seu ministério.

Pessoas gratas a Deus seriam levantadas por Ele para suprirem as necessidades dos apóstolos, mas eles nada deveriam cobrar pela cura de enfermos, expulsões de demônios, pela salvação de almas, ou por qualquer outro benefício decorrente do trabalho deles.

Por isso Jesus ordenou aos apóstolos que não fizessem qualquer provisão prévia para poderem sair para pregar o evangelho (v. 9,10).

Eles sairiam no cumprimento de uma missão curta e logo retornariam a estar sob os cuidados diretos do Senhor, em pessoa. A graça de Deus lhes proveria todo o necessário através de pessoas dignas, de maneira que nosso Senhor lhes ordenou o seguinte:

“11 Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, procurai saber quem nela é digno, e hospedai-vos aí até que vos retireis.

12 E, ao entrardes na casa, saudai-a;

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13 se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas, se não for digna, torne para vós a vossa paz.

14 E, se ninguém vos receber, nem ouvir as vossas palavras, saindo daquela casa ou daquela cidade, sacudi o pó dos vossos pés.

15 Em verdade vos digo que, no dia do juízo, haverá menos rigor para a terra de Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade.”

Os apóstolos deveriam se informar quanto a quem era digno nas cidades e aldeias que visitassem. Deus moveria os corações destas pessoas dignas, para que hospedassem os apóstolos e provessem suas necessidades até que se retirassem do meio deles.

Caso eles errassem quanto à dignidade da casa em que se hospedassem, poderiam reconhecer tal erro porque perceberiam a falta de paz na casa, apesar de terem saudado seus habitantes com a paz do Senhor.

Evidentemente, deveriam se retirar e procurar outra hospedagem, e caso esta fosse negada por alguma pessoa, ou até mesmo por toda a cidade, não deveriam ficar intimidados com isto e nem paralisarem a sua missão, porque neste caso deveriam sair da cidade sacudindo até o pó dos seus pés, em testemunho contra a rejeição não propriamente deles, mas do Senhor, porque quem rejeita aos que são enviados por Cristo, rejeitam ao próprio Cristo. Tal como uma coisa vil como o pó, também eles seriam espalhados como o vento, no dia do Grande Juízo de Deus.

E, como juiz de vivos e mortos, o Senhor julgará os tais com maior rigor, do que aquele que haverá para os habitantes de Sodoma e Gomorra, no dia do Juízo, porque a estes não foi enviado por Deus, nenhum mensageiro da parte de Cristo, com as boas novas de salvação, a saber, o evangelho.

Então, quando rejeitados, devemos deixar a questão do juízo nas mãos do Senhor, e continuar fazendo o nosso trabalho onde ele seja bem recebido.

Instruções para os Discípulos – Mateus 10.16-42

“16 Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas.

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17 Acautelai-vos dos homens; porque eles vos entregarão aos sinédrios, e vos açoitarão nas suas sinagogas;

18 e por minha causa sereis levados à presença dos governadores e dos reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios.

19 Mas, quando vos entregarem, não cuideis de como, ou o que haveis de falar; porque naquela hora vos será dado o que haveis de dizer.

20 Porque não sois vós que falais, mas o Espírito de vosso Pai é que fala em vós.

21 Um irmão entregará à morte a seu irmão, e um pai a seu filho; e filhos se levantarão contra os pais e os matarão.

22 E sereis odiados de todos por causa do meu nome, mas aquele que perseverar até o fim, esse será salvo.

23 Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra; porque em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel antes que venha o Filho do

homem.

24 Não é o discípulo mais do que o seu mestre, nem o servo mais do que o seu senhor.

25 Basta ao discípulo ser como seu mestre, e ao servo como seu senhor. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos?

26 Portanto, não os temais; porque nada há encoberto que não haja de ser descoberto, nem oculto que não haja de ser conhecido.

27 O que vos digo às escuras, dizei-o às claras; e o que escutais ao ouvido, dos eirados pregai-o.

28 E não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo.

29 Não se vendem dois passarinhos por um asse? e nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai.

30 E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados.

31 Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos passarinhos.

32 Portanto, todo aquele que me confessar diante dos

homens, também eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus.

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33 Mas qualquer que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus.

34 Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada.

35 Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra;

36 e assim os inimigos do homem serão os da sua própria casa.

37 Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim.

38 E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim.

39 Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim acha-la-á.

40 Quem vos recebe, a mim me recebe; e quem me recebe a mim, recebe aquele que me enviou.

41 Quem recebe um profeta na qualidade de profeta, receberá a recompensa de profeta; e quem recebe um justo na

qualidade de justo, receberá a recompensa de justo.

42 E aquele que der até mesmo um copo de água fresca a um destes pequeninos, na qualidade de discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá a sua recompensa.” (Mateus 10.16-42)

Depois das instruções para a missão temporária que havia dado aos doze quando lhes enviou a pregar somente em Israel, durante seu ministério terreno, nosso Senhor passou a relacionar os sofrimentos dos seus ministros na realização do trabalho deles, em todos os períodos da história da Igreja, a começar pelas perseguições que sofreriam da parte dos próprios judeus, logo após o derramar do Espírito no dia de Pentecostes, e que culminariam com as grandes aflições que os ministros de Cristo terão que suportar próximo da sua segunda vinda.

Para suportarem tais perseguições e aflições, os discípulos de Cristo devem aprender a renunciarem às suas próprias vidas, amando-O acima de tudo e de todos, sabedores que até mesmo no meio de seus familiares segundo a carne sofrerão resistências por causa do amor deles a Cristo e à justiça do

evangelho, conforme nosso Senhor nos advertiu nesta passagem.

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Isto é necessário para que se possa perseverar na fé e na doutrina de Cristo.

Há grande recompensa para todos os que forem fiéis a Deus e contribuírem para o avanço do reino de Cristo na terra, de modo que até mesmo um copo de água fresca dado a alguém empenhado na obra do Senhor, terá a sua recompensa.

Está determinado por Deus que a obra do evangelho avance em meio a perseguições e tribulações. E por serem semelhantes ao seu Senhor, os cristãos serão odiados pelos

não cristãos, e estão encarregados de pregar o evangelho como ovelhas no meio de lobos, motivo porque não devem ser ingênuos, mas prudentes, enquanto mantêm a simplicidade que é devida a Cristo. A prudência da serpente foi recomendada porque quando diante de um agressor em potencial, ela não passa a atacá-lo, mas se retira prudentemente. De igual modo os cristãos devem evitar confrontos desnecessários com os que se opõem à pregação do evangelho.

A vontade do Senhor é a de que os seus servos não devem se expor desnecessariamente a dificuldades que sofrem normalmente neste mundo, e por isso lhes recomendou a prudência das serpentes e a inofensividade das pombas com vistas à preservação deles.

A inofensividade das pombas é recomendada ao lado da prudência das serpentes, porque quando estas últimas são atacadas, também revidam ao ataque, mas os cristãos, tal como as pombas não devem revidar os ataques que lhes são desferidos.

Estevão, o primeiro mártir do Cristianismo foi conduzido ao sinédrio para ser julgado e condenado à morte por apedrejamento, pelos seus próprios compatriotas, de maneira que com isto, começou a se dar cumprimento à profecia do Senhor do verso 17, de que os discípulos seriam conduzidos aos sinédrios, que era a corte judaica para o julgamento de questões religiosas relativas aos judeus.

De igual modo, a profecia de que seriam açoitados nas sinagogas, foi experimentada não apenas por Paulo, como

também por outros, conforme testemunho que encontramos na Bíblia e na história da Igreja.

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Paulo se refere em II Cor 11.24, quanto a ter recebido o total de 195 chibatadas dos judeus, provavelmente em suas sinagogas, em cinco ocasiões diferentes, por causa do evangelho.

O próprio chefe da sinagoga de Corinto, chamado Sóstenes foi açoitado pelos judeus por ter-se convertido a Cristo (At 18.17).

Paulo foi perseguido intensamente pelos judeus, aos quais pregou em suas sinagogas espalhadas pelo mundo antigo, e foi conduzido à presença de governadores e de reis, pelo desígnio prévio do Senhor para lhes servir de testemunho, tanto a eles quanto aos gentios (v. 18).

Todavia, em meio a todas as perseguições que sofreram, e que ainda têm sofrido, os ministros e demais servos do Senhor têm sido capacitados pelo Espírito Santo, não necessariamente para livrá-los, mas para darem um testemunho corajoso relativo a Cristo, tal como havia feito Estevão no passado.

Para muitos, a chamada para dar testemunho do evangelho

significará colocar em risco até mesmo a segurança relativa à própria vida. Todavia, o Senhor nos ordena que não temamos aqueles que podem somente tirar a vida do corpo, e que nada mais podem fazer além disso. Somente Deus deve ser temido quanto ao nosso destino eterno porque é Ele que tem o poder de lançar não somente o corpo como também o espírito, no inferno.

O cristão está a serviço de Deus e Ele o manterá em vida neste mundo até que cumpra o ministério que lhe tem designado para ser cumprido.

Se até de pássaros que são seres dos quais Deus cuida apenas providencialmente, não como Pai, de quanto mais não cuidará dos cristãos que são seus filhos (v. 29).

Nenhum pássaro morrerá se tal não for permitido por Deus. Muitos mais nenhum de seus filhos será morto pelos seus perseguidores se não houver uma permissão e um propósito específico de Deus nisto.

De modo que nosso Senhor expressou o cuidado de Deus em relação a seus filhos com as seguintes palavras:

“30 E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados.

31 Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos passarinhos.”

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Diante de tal cuidado, a missão de todo cristão é confessar Cristo diante dos homens. Devem ser conhecidos na condição de seus servos e proclamarem o evangelho às claras, de cima dos eirados.

São estes que confessam Cristo como Senhor e Salvador deles, que são os que Ele também confessa como sendo seus diante do Pai, nos céus.

Por conseguinte, todos os que não conhecem ao Senhor, e que não O confessam diante dos homens, não podem contar com tal confissão de Cristo em relação a eles, na presença do Pai.

Tal confissão de Cristo não se trata simplesmente de abrir a boca e pregar o evangelho a outros, mas antes, e sobretudo ter o testemunho de uma vida transformada e que seja obediente à sua vontade, conforme se infere das suas seguintes palavras:

“38 E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim.

39 Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim acha-la-á.”

Quanto não se pode dizer acerca do significado de se tomar a cruz, negar-se a si mesmo e seguir o Senhor.