marx lógica e política tomo iii - ruy fausto

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Ruy Fausto MARX: LÓGICA E POLÍTICA Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética Tomo III editoraH34

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  • Ruy Fausto

    MARX: LGICA E POLTICA

    Investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica

    Tomo III

    editoraH34

  • EDITORA 34

    Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 [email protected]

    Copyright Editora 34 Ltda., 2002Marx: Lgica e Poltica (tomo III) Ruy Fausto, 2002

    A FOTOCPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO ILEGAL, E CONFIGURA UMA

    APROPRIAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

    Imagem da capa:Paul Klee, Zeichen verdichten sich (Signos se adensando), 1932,desenho com pincel, 31,2 x 48,7 cm, Paul Klee-Stiftung, Kunstmuseum Bern

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica:Bracher & Malta Produo Grfica

    Reviso:Alexandre Barbosa de Souza

    I a Edio - 2002

    Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

    Fausto, RuyF268m M arx: Lgica e Poltica: investigaes para

    uma reconstituio do sentido da dialtica (tomo III) /Ruy Fausto. So Paulo: Ed. 34, 2002.320 p.

    ISBN 85-7326-243-5

    1. Filosofia. 2. M arx, Karl, 1818-1883.3. Dialtica. I. Ttulo.

    CDD - 100

  • M ARX: LGICA E POLTICAT O M O III

    N ota introdutria...................................................................................................... 9Hoje (introduo geral)............................................................................ ............... 11

    I. A apresentao marxista da histria: modelos ........................................... 91

    II. Sobre o conceito de capital. Idia de uma lgica d ialtica..... ................. 187

    III. Dialtica marxista, historicismo, anti-historicismo.................................... 229

    IV. A dialtica do Capital e as suas implicaes (tica e marxismo,prolegmenos) ..................................................................................................... 273

    Sumrio sistemtico parcial (tomos I a III) de Marx: Lgica e Poltica,investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica ................ 317

    Siglas e abreviaes.................................................................................................... 319

  • MARX: LGICA E POLTICA

    Investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica

    Tomo III

    memria de meu pai, Simon Fausto memria de minha me, Seva Fausto (Salem)

  • NO TA INTRODUTRIA

    Como os anteriores, este terceiro volume de M arx: Lgica e Poltica, investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica deveria conter quatro textos.

    A apresentao marxista da histria: modelos , redigido em 1988/89 a partir de materiais anteriores, faz parte da minha tese de livre-docncia (M arx , Lgica, Histria) defendida na Universidade de So Paulo em 1989. Um fragmento da ltima seo do texto foi publicado pela revista Lua Nova (So Paulo, n 19, novembro de 1989), sob o ttulo A ps-grande indstria nos Grundrisse (e para alm deles) 1.

    Sobre o conceito de capital: idia de uma lgica dialtica , escrito em 1993/ 94, foi publicado em francs (Paris, L Harmattan, 1996). Modifiquei o texto em mais de um ponto. A traduo de Slvio Rosa Filho.

    Dialtica marxista, historicismo, anti-historicismo , igualmente redigido em francs, , na sua primeira forma, de 1973. Com vrias modificaes, aqui retomadas, tambm foi includo na tese de livre-docncia. Uma parte dele foi publicada no volume Conhecimento, linguagem, ideologia (So Paulo, Perspectiva, 1989), organizado por Marcelo Dascal.

    A dialtica do Capital e suas implicaes (tica e marxismo, prolegmenos) (1997) foi apresentado em francs ao Coloquio M arx aujourdhui (Paris, 1997). Eu traduzi.

    Para apresentar esses ensaios, decidi redigir uma introduo, que, por vrias razes, acabou tomando dimenses muito maiores do que as que eu havia suposto. Sobre o carter desse texto, que acabou ultrapassando de muito o seu teor primitivo de introduo geral, explico-me melhor em seguida.

    Agradeo a Francisco M iraglia Netto, matemtico e lgico, professor titular da USP, que teve a gentileza de ler e discutir comigo a segunda seo deste livro ( Sobre o conceito de capital: idia de uma lgica dialtica ). Evidentemente, ele no tem nenhuma responsabilidade pelos meus eventuais passos em falso, em terreno to escarpado. Como indicarei no lugar correspondente, meu mestre e amigo Jean-Toussaint Desanti, assim como o meu ex-aluno Olivier Fecome leram e comentaram comigo a verso francesa desta mesma segunda seo. Desde j agradeo.

    Carlos Fausto, antroplogo, professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, a quem dediquei o segundo volume de M arx: Lgica e Poltica... foi ainda uma vez um leitor crtico insubstituvel, tanto no plano da forma como no do contedo. N o hesito em dizer que sem o seu olhar crtico, o conjunto deste volume seria bastante diferente do que apresento aqui. Ainda uma vez meus agradecimentos (sem que ele tenha responsabilidade pelas posies que assumo ou por aquilo que esse livro tem de imperfeito), esperando que o nosso dilogo se prolongue enquanto durar o mais velho de ns dois.

    Marx: Lgica e Poltica 9

  • ,

  • H O JE (INTRODUO GERAL)

    1. In t r o d u o

    Para este volume III de M arx: Lgica e Poltica, investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica, no pretendia fazer seno uma nota introdutria, anloga que abre o volume II. M as as mudanas que ocorreram no mundo, dos anos 80 ao final do milnio, as mutaes que tiveram lugar no cenrio poltico e intelectual brasileiro, e last but not least, a ruptura do 11 de setembro de 2001, decidiram-me a fazer uma apresentao bem maior, antecipando em parte o que, em princpio, s deveria vir no ltimo volume da srie. Impossvel publicar um livro tcnico sobre M arx, em que se trata, entre outras coisas, de poltica, sem dizer alguma coisa sobre o que se pode pensar do que se passa hoje no mundo. O que gostaria de dizer nesta introduo certamente excessivo, dado o volume dos temas que tenho em vista tratar, mas no vejo como me subtrair a eles. O leitor me perdoar se ultrapasso a temtica do volume, mas esta, e mais ainda a temtica do conjunto da srie, suficientemente vasta para justificar esse excurso pelo presente.

    A exposio ter dois eixos: 1) uma parte geral, esboo de filosofia da histria e de teoria das formas sociais contemporneas a partir da crtica do marxismo, e 2) uma crtica breve, mas que pretende visar o essencial de algumas das tendncias tericas, e em parte tambm prticas, da esquerda e da pseudo-esquerda brasileiras. O primeiro ponto fundamenta em alguma medida o segundo, mas h descontinuidades entre os dois, dado o carter muito especfico deste ltimo, e a impossibilidade de desenvolver o bastante o primeiro.

    Que isto me agrade ou no, o presente texto a introduo de um livro que inclui no ttulo o nome de M arx. Se o fato no me contraria propriamente, complica certamente o trabalho. Continuo a ter uma opinio muito alta da obra de M arx como no t-la? mas creio que deixei de ser marxista h j uns vinte anos (a introduo ao primeiro volume, que de 1983, j era explicitamente crtica). Se me disponho a continuar publicando a srie com o ttulo original no vejo razes maiores para abandon-lo, embora o subttulo fosse desde o incio mais expressivo , esta introduo deve falar, entre outras coisas, do marxismo, o que, mesmo em forma crtica, tem como efeito marxizar o texto mais do que gostaria. Entretanto, alm do fato de que M arx continua sendo uma referncia importante, h uma outra razo que leva a privilegiar essa referncia: escrevo em portugus, e, em primeiro lugar, para um pblico brasileiro. Ora, indiscutvel que, apesar de algumas mudanas, a atmosfera brasileira , a esse respeito, muito diferente da europia. Para o melhor e para o pior, M arx continua tendo aqui um lugar que h muito tempo

    Marx: Lgica e Poltica 11

  • perdeu na Europa tambm para o melhor e para o pior. Meu objetivo principal no entretanto fazer a crtica do marxismo; esta um meio para um outro objetivo, que o de tentar pensar de forma lcida a realidade poltica e tica deste incio de milnio.

    Advirto desde j que no pretendo me limitar aos macro-problemas ou macro- objetos. Contra uma tradio de pensamento que s aparentemente foi superada, darei um lugar considervel aos micro-problemas. Sem dvida, isto amplia ainda mais o tema, e como justificativa s posso dizer de novo que tambm destes no h como escapar. Os macro-problemas nos remetem ao micro-problemas, embora, tambm aqui, e isto um resultado, no haja continuidade simples entre uns e outros.

    2 . O M e l h o r M a r x is m o

    A crtica do marxismo enfrenta uma dificuldade. Freqentemente, os argumentos crticos so insuficientemente rigorosos, e um bom leitor de M arx pode responder a eles de maneira convincente. S que a resposta em geral ilusria, no sentido de que, mesmo se ela restitui toda a riqueza e o rigor do pensamento de M arx, se suficiente no que se refere leitura do texto de M arx, ela apesar de tudo insuficiente para as necessidades tericas e prticas do presente. Assim, um bom conhecimento de M arx , sob certas condies, e paradoxalmente, um entrave crtica do marxismo (embora, na realidade, ele seja uma condio necessria dessa crtica). Nesse sentido, toda a crtica de M arx deve partir do que ousaria chamar de melhor marxismo, o mais sutil, o mais complexo, o mais distante da leitura vulgar. Este o verdadeiro ponto de partida, sem o que lutaremos contra moinhos de vento. Porm uma vez reconstrudas as poderosas mquinas de guerra tericas do marxismo, trata-se de mostrar quais so os seus pontos cegos, por onde, apesar de tudo, elas se revelam inadequadas se que alguma vez foram plenamente adequadas para enfrentar os problemas do nosso tempo. Nessa segunda parte tentarei expor, na medida do possvel de maneira rigorosa, alguns dos movimentos e teses principais do corpus marxiano, em conexo com uma crtica possvel, que, entretanto, por ora ficar apenas no horizonte. Os temas ora concernem diretamente contedos, ora se referem ao que se poderia chamar em termos muito gerais de form a ; ora ficam entre uma coisa e outra. Tratarei sucessivamente: 1) de um grupo de problemas que concernem ao progresso histrico, mas que nos levam num mesmo movimento questo da democracia e, de modo mais geral, da relao entre economia e poltica; e no plano mais propriamente formal, problemtica da necessidade e da contingncia histricas; 2) da questo do comunismo (ou do socialismo); 3) do lugar da tica (tanto o da tica da poltica como o da tica em geral); e finalmente 4) dos problemas meta-histricos da relao entre homem e natureza, e homem individual e espcie. E claro que abordarei mais ou menos sucintamente esses vrios pontos, mas espero tocar no que essencial. Todas essas questes esto muito estreitamente ligadas, e muito difcil falar de cada uma delas separadamente2.

    12 Ruy Fausto

  • Histria, democracia, economia e poltica; necessidade e contingnciaN o que se poderia considerar como as melhores verses no corpus marxiano

    (penso em particular nos Grundrisse) a histria no aparece como uma unidade, pelo menos no plano da posio. H antes histrias do que histria. Cada modo de produo tem sua histria prpria, e um mecanismo interno e diferenciado que leva sua prpria dissoluo3. H uma necessidade interna dos modos de produo. Entre os modos, h perodos de transio. Nestes, a necessidade progressivamente constituda, a partir de processos em que existe mais contingncia do que necessidade, mesmo se a partir de pressupostos dados pelos elementos liberados pela dissoluo dos modos anteriores. S se tem unidade da histria sob a forma pressuposta (em sentido dialtico, no como fundamento das histrias postas, mas como fio que as liga num discurso segundo ), seja esse fio caracterizado como pr- histria, histria da explorao (excluindo um eventual momento inicial comunitrio), ou histria natural. Assim, coexiste descontinuidade posta, e continuidade pressuposta. Essa concepo tem por base a distino entre os vrios modos de produzir, portanto, a economia; entretanto, h modos em que o econmico em sentido moderno, a busca do lucro ou antes da valorizao do valor decisiva, e h outros em que isto no ocorre. M ais precisamente, s no capitalismo que se tem essa caracterstica, em oposio aos outros modos. N o sentido moderno do econmico , a idia geral de histria em M arx no assim economicista , porque se ope o econmico em sentido moderno, mas que o seu sentido prprio, ao no-eco- nmico . N o entanto, em forma geral, mesmo se pressuposta, o econmico, isto , a referncia fundamental produo subsiste. Quanto relao entre o econmico e o poltico, como tambm o ideolgico, preciso observar, contra a leitura vulgar, que a posio de cada um desses momentos pressupe os outros, ou o momento seguinte , portanto, nenhum deles meramente econmico, ou poltico ou ideolgico4. Entretanto, apesar disso, a dependncia entre econmico (econmico posto, poltico e ideolgico pressuposto) e poltico (poltico posto, econmico pressuposto) etc., afirmada, e com ela o primado do econmico (posto). Isso vale tambm para os vnculos entre o econmico (ou scio-econmico) e outras relaes no interior da sociedade civil (por exemplo, as relaes entre sexos), como tambm para o estatuto das lutas de classes relativamente a outros tipos de luta no interior da sociedade civil.

    Voltando ao problema da necessidade e da contingncia. Vimos que a contingncia tem um papel na histria (alis ela tambm tem um papel no interior da histria dos modos, mas subordinada necessidade). A afirmao do papel da contingncia nas transies valeria tanto para o passado como para o futuro, isto , valeria tambm para a passagem da pr-histria histria, para o movimento que conduziria ao comunismo. M as, apesar disso, preciso observar que a liberdade (a contingncia vale aqui como liberdade) condicionada pelos elementos liberados pela morte do modo anterior. Esse condicionamento, pelo menos para o caso da passagem ao comunismo, no estabelece possibilidades variadas. A passagem ao comunismo parece ser apresentada como um ato de liberdade, mas no se v como se poderia passar a outra coisa, a no ser que voltssemos ao passado, ficssemos eternamente no interior do velho sistema, ou houvesse auto-destruio da humani-

    Marx: Lgica e Poltica 13

  • dade (a rigor, nenhuma dessas trs hipteses considerada por M arx). Assim, h liberdade na construo do comunismo, mas, retomando uma velha frmula de um outro pensador ou de outros pensadores , estaramos como que condenados a esta liberdade5. Eis a os traos gerais da melhor idia de histria que encontramos em M arx, como da relao necessidade e contingncia (e tambm liberdade), assim como da relao entre poltica e economia. Sobre a idia de progresso, prefiro examin-la na terceira parte, j num contexto crtico. Por ora, bastaria dizer que, para M arx, os vrios modos de produo constituem de alguma forma uma srie em progresso. M as veremos o que isto poderia significar e as suas dificuldades.

    ComunismoO comunismo, como fim da pr-histria, resultado da revoluo proletria e

    de um longo perodo de transio, se apresenta de um modo um pouco paradoxal primeira vista, em M arx. De um lado, no plano do contedo, se lhe concede um mximo. A sociedade comunista pensada como uma sociedade mais ou menos transparente, onde no haveria Estado, e nem mesmo leis. Ao mesmo tempo, do ponto de vista formal, essa forma social mais pressuposta do que posta pelo discurso. Ela sempre visada no horizonte ; mesmo se comentadores bem informados recolheram um nmero relativamente grande de textos a respeito6. E, se isto ocorre, porque, como expliquei abundantemente7, h uma oposio de tipo dialtico entre os meios visados para a realizao do comunismo, que seriam meios violentos, e o carter no-violento da sociedade comunista. Assim, fala-se pelo menos intensivamente pouco do comunismo, mas ao mesmo tempo ele apresentado como a forma social por excelncia, uma forma em que se realizam plenamente todas as qualidades reputadas como humanas . Mesmo se ela rigorosamente justificada no interior do marxismo e da dialtica, essa dupla situao um mximo de contedo e um mnimo de forma tem de ser rediscutida.

    ticaReferi-me necessidade sempre segundo M arx do emprego de meios

    violentos para a destruio do capitalismo. Isso nos conduz ao estatuto da tica no marxismo. O marxismo contm a rigor uma tica da poltica, mas no uma tica em geral8. M arx e Engels supem que a passagem ao comunismo se far a partir de uma revoluo violenta que por abaixo o poder capitalista. Esta a tese genrica, embora, desde o incio, eles admitam uma exceo, a Inglaterra, e mais tarde ampliem o quadro das excees9. M as a revoluo violenta a regra. Ela se justificaria, por um lado, por razes prticas: o poder capitalista, salvo as excees, no aceitaria as regras do jogo democrtico, ou este seria insuficiente para afast-lo do poder. Ela se legitimaria por outro lado, pelo fato de que o capitalismo exerce violncia sobre os proletrios. A violncia aparece assim como contra-violncia, e como tal legitimada (esta justificao tica no est, porm, explicitada nos textos)10. Isso no implica, entretanto, justificar qualquer violncia. A violncia revolucionria violncia que se apresenta como contra-violncia, por isso mesmo nem todos os meios so vlidos. A violncia afetada pela no-violncia, que o seu fim. Se isso evidente em termos tericos, no muito fcil encontrar textos de M arx e

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  • Engels que ponham os pingos nos iis a respeito desse ponto. M arx e Engels condenaram os atos terroristas dos Fenianos (organizao nacionalista irlandesa) que provocaram a morte de civis11. M as, para alm de uma tica da poltica (e vimos que mesmo esta fica mais ou menos implcita), no h, a rigor, lugar para uma tica em Marx. De Kant a Hegel, a tica j se deslocara: a Moralitt tem um lugar como momento em Hegel, mas ela no legisla no plano da Sittlichkeit, a eticidade , que concerne cidade. Isto no significa que Hegel fosse amoralista, mas sim que ele no acreditava que, de fato e de direito, a moralidade fosse primeira no interior da esfera da grande poltica, isto , da Histria. (Kant tambm no acreditava que de fato fosse assim, e mesmo como possibilidade futura tinha grandes dvidas, mas no abandonava, por isso, a idia de uma legislao universal da razo prtica.) De Hegel a M arx, a tica sofre um novo abalo. De novo, no se trata de afirmar que h a amoralismo ou cinismo, nem, como j vimos, no plano da poltica, nem no plano pessoal. Lendo a correspondncia de M arx e Engels, v-se como questes empricas de natureza tica afloram, aqui e ali, embora a tica (ou a moral, como ele diz geralmente), ou incorporada ideologia ver o Manifesto, por exemplo e portanto incorporada crtica do modo de produo capitalista (crtica cuja infra-estrutura a crtica da economia poltica), ou ento permanece no tema- tizada em termos tericos. Sem desaparecer sob a forma de temas empricos, a tica individual assim reduzida a menos do que uma super-estrutura ideolgica. A super-estrutura ideolgica constituda pelo discurso que justifica, idealizando, o modo de produo. A moral para M arx faz parte dessa justificao, mas a moral naquilo que ela tem de mais prximo da poltica. A tica individual um pouco uma formao ideolgica segunda no interior dessa formao ideolgica, e, nesse sentido, no h lugar para uma tematizao terica que lhe seja prpria. As razes mais profundas dessa atitude esto na idia marxiana de progresso e no papel determinante que nela tem o comunismo como fim da pr-histria. Privilgio do comunismo e irrelevncia da tica se condicionam reciprocamente.

    Homem/ natureza, homem individual/ espcie humanaDa anlise das formas gerais do processo histrico segundo M arx, para o papel

    que tm no corpus marxiano o socialismo e, negativamente, a tica, passamos da histria, enquanto pr-histria , a duas instncias que vo ou iriam alm dela, embora em sentidos diferentes: o ps-histrico (ps-pr-histrico) e o transcendental. Discutir o estatuto da relao homem/ natureza e homem individual/ espcie humana em M arx tambm nos leva alm da histria em sentido estrito, mas num outro sentido. Leva-nos, digamos, aqum da histria, pois, no interior do marxismo, a relao homem/ natureza, assim como a relao homem individual/ espcie humana esto presentes, mas no no plano do discurso posto, mas s como pressuposies. Mais precisamente, como meta-pressuposies, no sentido que elas esto a- qum, mesmo do discurso pressuposto, que estabelece um fio de sentido entre os vrios modos de produo12. Assim, o marxismo no deixa de tematizar essas relaes, porm M arx refiro-me ao velho M arx, no ao de 1844 as tematiza no mais do que como pressuposies (em sentido dialtico, fundamentos negados ) do discurso substantivo, e tambm como meta-pressuposies das pressupo-

    Marx: Lgica e Poltica 15

  • sies quase-totalizadoras. Por isso mesmo uma conseqncia importante , se verdade que M arx no deixa de indicar os efeitos desastrosos sobre a terra ou o meio ambiente da maneira capitalista de produzir, suas observaes no vo alm de certos limites, e no so propriamente constitutivas da concepo que ele tem da histria do capitalismo no sculo X IX e de suas perspectivas para o futuro. Resta saber se esse estatuto de pressuposto hoje suficiente para dar conta da histria do nosso tempo.

    Creio ter indicado a em grandes linhas um certo nmero de temas e teses principais, em torno dos quais se move o marxismo. Pelo menos para alguns deles, penso ter dado o que me parece ser a verso mais rica e fecunda. Observe-se que, quase sempre, essa verso a que no faz economia das distines e figuras dialticas, a primeira das quais a distino entre pressuposio e posio: por exemplo, h um discurso posto sobre as histrias dos modos de produo e um discurso pressuposto sobre a histria em geral; h uma relao de pressuposio e posio e no simples distino de nveis separando os momentos (em sentido dialtico, no temporal) econmico, poltico, ideolgico etc. Tem-se tambm a contradio entre partes que no so partes de um todo, porque rompem esse todo (o que uma conseqncia da distino pressuposio/ posio), e alm disso descontinuidades entre, de um lado, processos necessrios afetados pela negao interna e, de outro, momentos de contingncia (ou de constituio da necessidade, no interior de uma contingncia posta) etc. E atravs da dialtica objeto muito conhecido e por isso desconhecido em geral como o objeto rigoroso que que o discurso marxista ganha rigor e tem um lugar privilegiado no interior no s da histria da filosofia, mas tambm, e melhor, na histria das cincias do homem. O problema entretanto o de saber se mesmo esse melhor m arxism o suponho que o seja, pelo menos ainda serve , hoje.

    3 . C r t ic a d o M e l h o r M a r x is m o

    Retomemos agora cada um desses pontos. As observaes crticas que farei tm por base principalmente a histria do sculo X X histria prtica, mas tam bm em alguma medida terica , o que no quer dizer que uma parte delas pelo menos no pudesse ser legitimada a partir de dados anteriores. N o so as grandes mutaes que se operam no interior da economia capitalista, nem mesmo as mutaes na ideologia do capitalismo, que vo pr em xeque a construo geral do marxismo. O grande desenvolvimento de lutas que no so lutas de classe tem um significado maior nesse sentido, mas tambm no a que aparecem os problemas mais importantes para a construo clssica. O marxismo, essencialmente uma teoria crtica do capitalismo, suporta bem, em geral, as mutaes que sofreu o sistema. Entenda-se: no quero dizer com isto que, no plano especfico das leis ou regularidades do sistema, no haja muito a mudar, digo apenas que as categorias crticas gerais mesmo se como veremos elas so, sob um aspecto, unilaterais e estreitas

    16 Ruy Fausto

  • parecem suficientemente slidas quando se trata de dar as grandes linhas de uma anlise crtica do sistema. Dir-se- ento: nesse caso, o marxismo vai bem... Se o que acabo de dizer verdade, de fato no devemos nem podemos nos desembaraar, sem mais, do marxismo, sempre que se tratar de uma anlise crtica do capitalism o1-3. Essas afirmaes parecem, entretanto, significar mais do que significam, porque se supe, erradamente, que tudo ou quase tudo, no sculo X X e, mais ainda, hoje, capitalismo (ou ento variante, ou desvio imanente do capitalismo). M ais precisamente, diante de uma forma contempornea, ou se supe que ela capitalista, incluindo as variantes deste, ou ento ela socialista (nas suas vrias supostas expresses). Veremos o gro de verdade que existe nisso. Se pensarmos que houve no sculo X X , e h no sculo XX I, real e virtualmente mais do que capitalismo e transio ao socialismo, as coisas j mudam de figura.

    O ponto de partida poderia ser a idia marxiana do progresso. Se perguntarmos qual o estatuto do progresso em M arx, estaremos diante de um problema cuja resposta est longe de ser fcil14. Claro que existncia de progresso cientfico e tcnico no oferece nenhuma dificuldade, mas a questo no est a. Em que medida se poderia falar em progresso (digamos progresso poltico, ou, se M arx aceitasse essa frmula, progresso tico-poltico), de modo de produo a modo de produo? Supe-se que os vrios modos de produo estejam em progresso . M as o que poderia significar isto? Que haja descontinuidade ou continuidade entre os modos no representa um problema, no sentido de que no se trata agora de analisar a forma das passagens, mas de saber em que medida, de modo a modo, h progresso na liberdade e na reduo da explorao15. Saber se quaisquer que tenham sido os mecanismos das passagens (e retomando uma expresso hegeliana) a histria uma histria da apresentao progressiva da liberdade e da autonomia econmica . A resposta de M arx positiva, mas complexa a sua legitimao nos limites do marxismo. Digamos, para simplificar: do pr-capitalismo ao capitalismo, h certamente progresso formal no que se refere liberdade. Essa forma no certamente pura fico; mas ela bastaria para falar em progresso? Seria preciso considerar tambm a histria interna do capitalismo, no s a relao do capitalismo com o passado. M arx supe que na histria interna a explorao aumenta16. Assim, a categoria do progresso aparece em forma problemtica. O progresso enquanto progresso s tem uma legitimao inequvoca: a possibilidade de dar os pressupostos para a emergncia da sociedade comunista (a distncia relativa em relao a esta possibilidade). E s nesse sentido que o capitalismo representaria certamente um progresso, enquanto progresso. Quanto ao mais, a categoria dominante no a do progresso, e tambm no a da regresso, a categoria tanto anti- aufklrer (anti-iluminista), como anti- superstio (anti- anti-ijufklrer ) do pro- gresso-regresso. E esta categoria, de origem hegeliana, que domina a idia da histria do capitalismo em M arx. Pressuposto dessa idia, cuja riqueza e importncia no se trata de negar, a considerao do modo de produo capitalista como uma espcie de unidade, cuja essncia dada precisamente pelo momento em sentido tcnico em que a economia posta; o resto est tambm presente, mas segundo. Em outros termos, a idia do progresso-regresso no em si mesma,

    Marx: Lgica e Poltica 17

  • mas como categoria hegemnica, e no limite exclusiva de algum modo solidria do privilgio da leitura da relao (scio-) economia/poltica em termos da posio do primeiro termo e da pressuposio do seguinte. O que tem como conseqncia a possibilidade de definir o modo de produo s dizendo a base econmica ou scio-econmica. Ora, haveria uma outra possibilidade, a de definir o capitalismo na sua forma dominante atual, dizendo tambm a forma poltica democracia capitalista, o que nos leva a pens-lo de uma forma virtualmente contraditria. O bserve-se que, qualquer que seja a modo pelo qual ele a enuncia, tambm para M arx h evidentemente contradies virtuais no capitalismo, mas, com a definio que propus, a contradio iluminada diferentemente. Definindo o capitalismo atual como democracia capitalista17 Castoriadis prefere: oligarquia liberal 18 , separamos a forma poltica da forma scio-econmica, o que tem ou pode ter como resultado uma outra teoria do progresso, uma teoria em que o progresso-regresso tem um lugar, mas em que tambm poderia ter um lugar, entre outras coisas, o progresso, simplesmente^. Quaisquer que tenham sido as descontinuidades do passado, isso significaria introduzir um certo tipo de continuidade no plano crtico (no plano da apreciao , embora o termo no seja o melhor). A forma democrtica que em M arx no pura fico, mas no vai muito longe como realidade ganharia uma outra espessura. E por que ela deve ganhar outra espessura? Parece-me que o fato de que o sculo X X conheceu a emergncia de movimentos eminentemente anti-democrticos, um dos quais deixava subsistir o capitalismo, sem que entretanto, apesar do que pensa certa tradio marxista, este o definisse; e o outro, liquidava tanto a democracia como o capitalismo, sem entretanto corresponder idia que M arx tinha do comunismo ou mesmo da transio para o comunismo. Assim, em grande parte a experincia do sculo (lida a partir dos seus melhores especialistas), que leva a essas consideraes crticas. M as vejamos isto mais de perto, sem aprofundar muito, porm, pois retomaremos as concluses na quinta parte desta introduo geral, depois de um interregno crtico sobre o Brasil.

    Nazismo e bolchevismo-stalinismo de um lado digo bolchevismo-stalinis- m o , no porque acho que as duas coisas sejam idnticas, mas porque a primeira, malgr elle em grande parte, prepara objetivamente o leito da segunda , democracia, de outro, aparecem como plos polticos no interior da histria do sculo X X . Plos polticos, mesmo se a democracia s aparece sob a forma contraditria da democracia capitalista20.

    Comecemos pelas duas formas que opusemos ao capitalismo. O interesse delas para uma teoria geral da histria que elas representam sem dvida uma regresso em relao democracia, mesmo em relao democracia sob a forma virtualmente contraditria do capitalismo. Nazismo e bolchevismo-stalinismo nos mostram a possibilidade, no pensada absolutamente por M arx, de formas modernas em termos tcnicos e em parte em termos de organizao de novas criaes histricas, que representam entretanto, do ponto de vista da histria da liberdade, e tambm da explorao, um retrocesso histrico. Aqui no se tem progresso-regresso, mas regresso histrica (em termos tico-polticos). sobre o fundo deles que a democracia enquanto tal aparece como progresso. Poder-se-ia dizer assim que h trs tendncias progresso-regresso, progresso, e regresso21.

    18 Ruy Fausto

  • Evidentemente, essa concepo s pensvel se supusermos, contra a opinio marxista dominante, que nazismo e bolchevismo-stalinismo no so pensveis como simples variantes das formas conhecidas, capitalismo e socialismo (ou transio para o socialismo). N a realidade, o peso da tradio marxista que leva a ver no nazismo um simples avatar do capitalismo; e na sociedade bolchevista-stalinista (a URSS dos anos 30, por exemplo), ou uma forma, eventualmente deformada ou degenerada , de sociedade de transio para o socialismo mas como simples variante dela22 ou, no outro extremo, uma simples variante do capitalismo, capitalismo de Estado por exemplo. N a realidade, o privilgio abusivo da definio atravs da chamada infra-estrutura scio-econmica que leva a esse tipo de erro. A forma nazista essencialmente diferente da forma democracia capitalista , mesmo se, na sociedade nazista, o capitalismo de grande indstria sobrevive, e tem um peso especfico . Do mesmo modo, a sociedade stalinista no uma sociedade capitalista, ainda que, no interior dela haja algo como mercadoria (com uma determinao de preos modificada). As mercadorias esto l, mas estas no bastam nem para afirmar que l se tem capitalismo, nem para dizer que se trata de uma sociedade mercantil ou produtora de m ercadorias , se com isto se pretende definir, mesmo genericamente, essa forma. Do mesmo modo, ela no certamente comunista o que, a rigor, poucos pensaram , mas tambm no sociedade de transio ao comunismo, o que seria dar uma definio teleolgica sem muito sentido. Se dissermos que ela degenerada ou deformada o que tem em si mesmo a sua verdade porm supondo que ela continua sendo socialista, damos uma definio gentica confusa em que a gnese vira essncia23. Define-se, num caso, atravs de um futuro que ela ainda no ; no outro, por um passado, idealizado, que se reconhece que ela no encarna mais, mas que se pretende conservar como sujeito no presente. Seria preciso, pelo contrrio, separar essas formas das outras, um pouco como o marxismo separa os modos de produo . Aqui se trata de um registro intencionalmente mais geral, o das formas sociais , mas a distino qualitativa tem de ser introduzida, como M arx fazia para os seus modos de produo . Deixo de lado, por ora, as conseqncias desse primeiro esboo de um novo esquema das formas sociais, para retom-lo como tambm a teoria do progresso na quinta parte.

    Essas consideraes so inseparveis da anlise das dificuldades no que concerne idia do comunismo. Que se pensem outras formas sociais alm do capitalismo, das formas que o precedem, e do comunismo, mostra j a necessidade de ir mais longe no que se refere ao problema da necessidade histrica. Vimos que no melhor marxismo essa necessidade constituda progressivamente por um processo em si mesmo contingente, mas que se faz a partir de pressupostos liberados pelo modo anterior. O resultado, vimos tambm, que, se o processo de constituio de um novo modo no em si mesmo, desde o incio, necessrio, no se supe entretanto pelo menos para o caso da passagem ao comunismo que o que interessa aqui uma variedade de possibilidades, mas no mximo a alternativa entre a passagem ou o bloqueio na forma antiga (ou retrocesso a formas anteriores), no muito mais que isso. Ora, a necessidade de considerar outras formas sociais

    Marx: Lgica e Poltica 19

  • contemporneas mostra que as alternativas prospectivas para o alm-capitalismo boas ou ms so mais vastas do que se poderia pensar. Nesse sentido o comunismo deixa de ser o que representava em M arx (em termos de modalidade dialtica): uma possibilidade concreta, para se transformar, em algo como uma possibilidade histrica abstrata, um possvel histrico simplesmente24.

    Entretanto, a idia do comunismo no posta em xeque s pela necessidade geral de atenuar o papel da necessidade histrica (entre as formas sobretudo), mesmo se, no melhor marxismo, essa necessidade, como j vimos, no era absolutamente rgida. todo o estatuto formal e material da idia de comunismo que tem de ser rediscutida. Vimos que o comunismo em M arx se apresenta de uma forma aparentemente paradoxal : ele pensado, no plano do contedo, como uma forma social que, na linguagem do realismo lgico, tem um mximo de realidade (trata-se de uma sociedade que encarnaria a verdadeira sociabilidade, sem Estado nem leis), e que, ao mesmo tempo, no plano da forma da forma em sentido dialtico no pode ser posta e deve ficar pressuposta. Vimos tambm que as duas determinaes, de certo modo opostas, se condicionam: porque o comunismo representa um mximo de realidade que ele no pode ser posto. O ra, a necessria mudana do registro modal da histria a que fiz referncia, porm mais do que isto, certas razes ligadas ao contedo, obrigam a rever o estatuto paradoxal , a invert- lo de certo modo25. Assim, a rediscusso no vem apenas do fato de que o comunismo aparece hoje como menos necessrio , do que poderia parecer a M arx. H razes internas ligadas ao contedo que tornam a idia do comunismo altamente problemtica. M esmo se isso pode parecer uma concesso a um a-historicismo burgus e uma retomada de um argumento antigo utilizado por pensadores conservadores, parece-me que h razes antropolgico-histricas para recusar a possibilidade e tambm a desejabilidade do comunismo. Razes antropolgico-his- tricas: nesse ponto preciso fazer apelo menos histria prtica do sculo X X do que histria terica do sculo, e j do final do sculo X IX , para no recuar mais. O argumento se encontra em algum lugar em Castoriadis: a idia de uma sociedade transparente, sem Estado nem leis seria compatvel com o que hoje sabemos sobre o indivduo, sua estrutura pulsional, sua ruptura interna, dividido que est entre um eu, uma ou algumas instncias auto-repressivas e um territrio de pulses que tem relaes conflitivas com as outras duas instncias? A idia de uma sociedade sem Estado nem leis compatvel com esse retrato do que seria o sujeito? Bem entendido, poder-se-ia duvidar de que essa descrio seja objetiva; dir-se- por outro lado argumento clssico que esta a estrutura do sujeito burgus, mas que este um produto histrico: a histria forjar um outro sujeito. Entretanto, que o sujeito tal como o conhecemos hoje seja, em parte pelo menos, um produto da histria no implica em que todas as suas caractersticas sejam reversveis; quanto segunda parte do argumento, se a histria pode sem dvida modificar os indivduos, nada nos leva a crer que essa possibilidade seja ilimitada. Supor uma sociedade transparente sem Estado nem leis, funcionando entretanto sem maiores dificuldades, significa acreditar numa formidvel plasticidade do sujeito humano, plasticidade que prpria de um certo humanismo desenvolvido a partir de Rousseau (que ultrapassa porm, em otimismo, o que Rousseau pensava do indivduo huma-

    20 Ruy Fausto

  • no). Essa concepo fora posta em xeque, embora de forma unilateral sem dvida, pelos escritores negros da burguesia , como diziam os frankfurtianos, os Hobbes, Sade, Maquiavel, e volta a ser posta em xeque, sempre de forma unilateral, pelos pensadores da segunda metade do sculo XIX. Freud traduz os resultados em forma cientfica, e certamente com menos unilateralidade, apesar de tudo. A idia de uma sociedade transparente no afinal de contas uma idia pr-freudiana? Pode- se supor como realista o projeto desse tipo de sociedade, mesmo se para um futuro mais ou menos distante, tendo em conta tudo o que se sabe sobre o indivduo desde Freud? A meu ver a resposta negativa, e ela implica tambm na no deseja- bilidade de um projeto desse tipo, que, pela sua inviabilidade, s pode desembocar em resultados opostos aos objetivos visados.

    M as ao discutirmos a questo, pomos em xeque, em boa medida, a segunda caracterstica da idia marxiana do comunismo: o de que ela no deve nem pode ser posta, que ela deveria permanecer pressuposta. A mudana no registro da modalidade nos leva26 no s a abandonar o contedo da idia marxiana da sociedade reconciliada (para utilizar de novo uma conceituao adorniana), mas a abandonar tambm o dispositivo formal em que ela se introduz. Em outras palavras: a histria do sculo X X histria prtica, mas tambm terica nos conduz de certo modo a inverter as exigncias de M arx: preciso renunciar ao contedo comunista da idia da sociedade que ultrapassa a pr-histria, isto , deve-se abandonar a utopia de uma sociedade sem Estado nem leis; e inversamente necessrio pr (e no s pressupor), isto tematizar e discutir plenamente a idia e a possibilidade dessa sociedade, que, pela alterao do seu contedo, no ser mais comunista, mas poderia ser chamada de socialista. Assim, contedo e forma se alternam ou se invertem.

    A crtica da idia marxiana de progresso, como simples progresso-regresso marcado por rupturas catastrficas; e o questionamento do contedo e da forma do comunismo ou, corrigindo, do socialismo , so evidentemente inseparveis de uma releitura do estatuto da tica. Tanto da tica da poltica como da tica em sentido geral. Vimos que, se ele supe excees, M arx prope para o caso geral uma revoluo violenta, sendo a violncia justificada pelas necessidades polticas prticas (quebrar a resistncia das classes dominantes), e sendo legitimada pelo fato de ser contra-violncia. Assim, a legitimao da violncia reside na distino entre contra-violncia e violncia, s a primeira ganhando legitimao2'. M as razes internas e externas exigem que se repense a relao entre violncia e contra-violncia, e em geral a idia de violncia revolucionria. N o se trata em absoluto de banir toda legitimao da violncia como contra-violncia (pensemos na resistncia contra os poderes totalitrios), mas o fato de que h violncia no interior da ordem burguesa no justifica mais o apelo revoluo violenta. O que afirmo est ligado idia de uma relativa autonomia da instituio democrtica, e de que ela representa um progresso. Mesmo a servio de projetos de reforma que introduziriam maior igualdade, a ruptura da ordem democrtica corre o risco de implicar numa regresso. Essa possibilidade amplamente confirmada pela histria do sculo XX. As revolues ditas proletrias, ou proletrias e camponesas, liquidaram a demo

    Marx: Lgica e Poltica 21

  • cracia, e trouxeram finalmente muito pouca igualdade. O seu destino foi afinal, primeiro a sociedade burocrtica com o seu cortejo de horrores, incluindo a liquidao de milhes de pessoas; depois, o retorno do capitalismo, s vezes um capitalismo autocrtico, e at um capitalismo totalitrio, que rene o pior de duas formas de regime. Esse processo regressivo se deu desde os primeiros anos da revoluo russa, seno desde os primeiros dias, embora s mais tarde tenha se desenvolvido na ordem stalinista28.

    A prudncia diante da violncia no tem apenas justificao externa, a que se baseia na experincia do sculo X X ; ela poderia ser fundada internamente, a partir do que j foi dito. Se a violncia se legitima como contra-violncia, isto , a partir da revelao da violncia inerente sociedade burguesa, a crtica dessa legitimao faz valer que no qualquer violncia que funda qualquer contra-violncia: seria preciso justificar a proporcionalidade ou justia da retorso. A resposta clssica parece excessiva, embora seja difcil dizer precisamente por que. N o fundo, a reafirmao da democracia, mesmo se imperfeita, que de novo est no centro da discusso. O uso da violncia, parece, s se legitima se houver trangresso das regras democrticas por parte dos adversrios: nesse caso, a violncia dos oprimidos e explorados proporcional violncia sofrida, e se legitima como contra-violncia. Se isto no ocorrer, ela parece apesar de tudo excessiva. A violncia dos oprimidos se configura como contra-violncia enquanto defesa da legalidade. mais ou menos o que diziam Kautsky ou M artov h mais de trs quartos de sculo. Dir-se- que tudo isto abstrato, e depende das circunstncias. Sem dvida, mas aqui se pretende indicar somente as condies gerais de legitimao.

    At aqui, quanto tica da poltica. E a tica em geral? Vimos que se, de Kant a Hegel, a tica se regionaliza ou mais exatamente, se torna momento , o que tecnicamente, no esqueamos, remete determinao ou o destino de ser negado , em M arx ela se dilui enquanto tema, como uma form ao teoricamente irrelevante no interior da ideologia dominante. M as o questionamento do comunismo altera no s o estatuto da tica da poltica, como tambm o da tica em geral. A pressuposio da sociedade transparente espcie de teologia negativa e a diluio da tica vo juntas. O comunismo como pressuposio da reconciliao mxima absorvia toda possibilidade de uma instncia transcendental. Caindo a teologia negativa, o transcendental aflora de novo. N o h como escapar dele, porque no existe mais juzo final, momento ltimo em que se contariam e, ao mesmo tempo, se desagregariam o justo e o injusto. A tica a tica individual reaparece assim como problema. N o h domnio em que reine maior confuso do que o que concerne tica; refiro-me opinio popular, mas duvidoso que os filsofos vo hoje muito mais longe. Duas coisas so importantes. A primeira insistir sobre a existncia de uma confuso, no que se refere ao individual e ao universal. A partir de um lugar comum, segregado pela ideologia dominante, supe-se que h de um lado questes universais, e de outro, problemas que concernem s ao indivduo. Isto poderia ser aceitvel, se fossem feitas as distines necessrias no interior desse individual . Ora, as questes individuais ou so considerados de forma mais ou menos negativa (em sentido pejorativo) assim, para mostrar que um problema no tem interesse universal e que concerne s ao egosmo do particular, diz-se:

    22 Ruy Fausto

  • uma questo pessoal , ou ento se supe que elas sejam moralmente indiferentes. H sem dvida questes que so tica ou moralmente indiferentes. E, curiosamente, o melhor exemplo delas est nas que remetem a uma rea tradicionalmente, mas por erro ou preconceito, associada tica ou m oral quando no se distingue uma coisa da outra, como tambm no distinguirei aqui29 : a rea do comportamento sexual. N a realidade, fora os casos de violncia entre os quais, bem entendido, se inclui a pedofilia, lembro isso dadas as enormidades proferidas por certos pensadores da galxia de 196830, essa rea no tpm nenhum interesse para a tica. As questes que pertencem a essa esfera poderiam justamente ser chamadas de privadas ou pessoais, em sentido prprio, porque concernem estritamente ao indivduo ou aos indivduos envolvidos; sobre elas, a tica no tem nada a dizer31. Porm o privado, pessoal, em sentido estrito, no se confunde com o que individual mas no pessoal no sentido de privado, entendendo por individual-no- pessoal, o domnio de certos atos praticados fora da esfera pblica, ou fora das esferas pblicas mais abrangentes, mas que tm um interesse universal. N a realidade, a universalidade de um ato (universalidade positiva ou negativa) no advm do fato de que ele concerne imediatamente esfera pblica mesmos s esferas pblicas menos abrangentes , mas do fato de que a tica pode reconhecer nele matria para julg-lo correto ou incorreto, moral ou amoral (no sentido de imoral, j que este ltimo termo tomou um sentido muito estrito e equvoco, na direo evocada pouco acima). E ele tem universalidade independentemente de haver sano jurdica prevista, e em geral de interessar ao direito. N o darei exemplos pelo menos por ora, mas creio que a distino teoricamente evidente; no entanto, ela objeto de todo tipo de confuso32. Um ato pode ser individual no se referir imediatamente esfera das instituies pblicas e ser entretanto, positiva ou negativamente universal, no sentido de interessar tica.

    A segunda observao, mais especifica e, digamos, no to urgente, porque se situa no interior de um desenvolvimento j mais teorizante, de que a necessidade de pensar a tica no significa imediatamente pelo menos, ou estritamente, fazer da tica o fundamento da poltica. Digo que preciso tematizar a tica; que lugar ele ter, se fundamento ou no, um problema a discutir, e que, nos limites deste texto pelo menos, no poder ter mais do que um comeo de soluo (ver a sexta parte desta introduo geral).

    As relaes entre o homem e a natureza, e entre o homem individual e a espcie humana esto pressupostos e no postos no discurso de maturidade de M arx. O que significa que eles ficam fora do discurso de ordem propriamente cientfica, e, objetivamente, que eles antes constituem o fundo da histria ou da pr- histria do que so propriamente elementos constitutivos dela. Refiro-me, bem entendido, natureza como conjunto dos objetos naturais, que tm como outro a espcie humana; e relao dessa espcie em conjunto, com cada homem individual33. Ora, o desenvolvimento das tcnicas de destruio, assim como a explorao de energias e tcnicas com fins pacficos mas potencialmente perigosas, alterou a situao. Ultrapassou-se o limite de uma certa utilizao dos meios de produo e de destruio34. N o momento em que grandes m assas humanas esto ameaadas

    Marx: Lgica e Poltica 23

  • por tcnicas de produo ou de destruio, passamos a uma outra idade histrica, em que o homem a espcie humana e a Natureza no so mais pressuposies. Homem e natureza vieram a ser postos pela histria. Em certo sentido, postos em forma negativa. Como observei em M LPI: O segundo ponto para a crtica do marxismo eu escrevia no incio dos anos 80 o da nova dimenso que ganha a histria com a inveno de novos meios de destruio. (...) N o basta dizer, a esse respeito, que em lugar de passar da pr-histria histria, histria que representaria a posio do homem, ficou-se na pr-histria. A histria do sculo X X remete na realidade posio do homem mas posio negativa do homem. Isto quer dizer que, em certo sentido, se passou histria, mas como advento no da vida genrica, mas da morte genrica, da destruio genrica. Passamos a alguma coisa que ao mesmo tempo histria e pr-histria, histria na pr-histria. Talvez pudssemos cham-la de anti-histria 35. Esse tipo de observao segue em linhas gerais os caminhos do pensamento de Frankfurt, talvez mesmo alguma formulao literal. Significa que no mais possvel nem rigoroso apenas pressupor a natureza e a espcie, porque ambas passaram a estar presentes enquanto tais na histria. De algum modo essa posio tambm positiva, no sentido de que tambm os efeitos benficos se universalizaram numa escala superior. (A propsito da posio positiva da espcie seria o caso de assinalar que essa humanidade a ser posta deve ser a humanidade dos homens e das mulheres. O M arx humanista de 1844 pensava em termos do homem e da mulher; mas quando ele abandona o humanismo, seu universo, agora prometeano, torna-se ao mesmo tempo mais ou menos androcntrico.) M as essa universalizao no se confunde com a que assinalaria a passagem ao Sujeito, tal como era pensada por M arx, em termos de fim da pr- histria, e s representa propriamente uma mutao histrica pelas suas conseqncias negativas. a possibilidade de destruio de grandes massas humanas, seno da espcie humana, possibilidade posta pelas novas tcnicas de produo e destruio, que opera essa mutao. Esta atinge a meta-histria mais do que a histria simplesmente: mas, precisamente, essa meta-histria agora posta como histria. Ela passou a ser um estrato constitutivo do conjunto da histria. Digamos, primeiro ps-se a histria universal ela nem sempre existiu , diz M arx nos Grund- risse36 l onde s havia histrias locais. Agora como se a histria universal pusesse a histria da espcie, com o que se passa a um novo registro histrico. Os acontecimentos que se iniciaram com o 11 de setembro de 2001 assinalam tambm sua maneira esta passagem.

    4 . C o n s id e r a e s C r t ic a s S o b r e A l g u m a s T e n d n c ia s d a E s q u e r d aE DA PSEUDO-ESQUERDA BRASILEIRAS

    Os elementos crticos indicados na seo anterior sero retomados na quinta e na sexta partes. Eles fornecem, entretanto, materiais suficientes para que se possa interpor, como anunciado, uma crtica breve de algumas das tendncias tericas (e em parte tambm prticas) da esquerda e do que poderamos chamar de pseudo-esquerda brasileiras. Antes de mais nada, assinalo os limites dessas anli

    24 Ruy Fausto

  • ses crticas. N o pretendo analisar em conjunto as principais tendncias tericas ou filosficas que se poderiam encontrar no Brasil, e mesmo no que se refere a marxismos incluindo anarco-marxismos e pseudo-marxismos s me ocuparei de alguns casos37. Escolho aqueles que me parece necessrio e urgente criticar.

    Tentemos organizar um pouco o objeto, mesmo se ele parcial. H por um lado as tendncias que grosso modo podemos chamar de marxistas ortodoxas. A seria preciso distinguir a ideologia dos polticos que representam partidos de esquerda ou simplesmente a ideologia desses partidos e a ideologia e a teoria dos intelectuais. Sobre a ideologia dos homens polticos de esquerda, seria preciso distinguir. Se, digamos, tomarmos como referncia a atitude para com o atual poder to- talitrio-capitalista chins (um bom objeto para estudar os descaminhos de uma certa esquerda), h no limite lderes da extrema esquerda que, por exemplo, defendem abertamente a poltica colonialista do poder chins no Tibet, em nome do progresso e dos interesses da revoluo! H outros que, se no vo at a, tecem loas ao desenvolvimento industrial da China, luta contra o analfabetismo, sem pronunciar uma palavra sequer sobre as transgresses aos direitos do homem . Mesmo se em geral terminam dizendo que a situao do Brasil diferente o que assinala um progresso em relao a posies anteriores , de qualquer modo assustador ver como se retomam os argumentos favorveis URSS utilizados pela maioria da esquerda nos anos 30, e tambm depois. Parece que no se extraiu nenhuma lio da histria mundial, j que se continua a julgar regimes e formas sociais s pelos seus sucessos econmicos reais ou supostos. Bem entendido, nem todos os nossos homens polticos de esquerda reagem assim.

    Passando dos polticos aos intelectuais. Em tese, seria necessrio distinguir o discurso propriamente terico dos intelectuais, e suas intervenes mais especificamente ideolgicas. Porm a distino no sempre clara, j que freqentemente um registro invade o domnio do outro. Em geral, tomando como referncia os melhores textos em crtica literria, histria etc., o nvel das anlises marxistas no Brasil , como se sabe, muito alto. M as provvel que o trabalho seja prejudicado em alguma medida por uma viso um pouco unilateral da histria do sculo X X . Tentarei me ocupar desse problema em outra ocasio. J anteriormente, em entrevista citada, indiquei que o que me parece suscetvel de crtica seria no o fato de que as anlises sejam sociologizantes sempre que no for reducionista, esse caminho no s vlido mas dentro de certos limites se impe , a dificuldade estaria talvez antes na idia que se faz da histria social e econmica, em particular do sculo X X . O papel da emergncia dos poderes burocrticos e das ideologias de esquerda ligadas a ela levado suficientemente em conta? O deciframento da produo cultural no seria excessiva e unilateralmente marcada pelo apelo ao movimento do capital e suas conseqncias? uma hiptese a examinar.

    Nas intervenes pblicas, quando se trata de lutas universitrias ou outras, a ideologia dos intelectuais marxistas penso agora nos que participam mais diretamente dessas lutas freqentemente marcada por um discurso marxista clssico sobre a luta de classes, que, verdadeiro em suas linhas mais gerais, muito esquemtico e arcaico para as exigncias atuais. Isso enfraquece as posies crticas no interior dessas lutas, que so de grande importncia.

    Marx: Lgica e Poltica 25

  • At aqui no citei nomes, mas no posso deixar de mencionar algum que considero um amigo. impossvel no se manifestar sobre o rumo que tomam as intervenes de Paulo Eduardo Arantes desde a publicao do seu livro O fio da meada38. A crtica difcil, tambm porque as intervenes recentes de Arantes so, em grande parte, de natureza oral; mas elas so suficientemente freqentes e convergentes, para que uma resposta se imponha. Limito-me aqui a fazer consideraes gerais; para os detalhes, ver, sobretudo, o texto indicado em nota. Depois de ter escrito um livro muito importante sobre Hegel, Hegel, a ordem do tem- po39, dois livros de excelente nvel no plano da anlise scio-filosfica (Sentimento da dialtica e Ressentimento da dialtica40), alm de uma anlise, discutvel talvez, mas extremamente brilhante de uma histria universitria local (Um departamento francs de ultramar)41, Arantes enveredou cada vez mais, em oposio ao que era a sua tendncia inicial, na direo de um discurso reducionista e anti-filosfico (seno anti-terico), cuja legitimidade terica e poltica se revela, a meu ver, cada vez mais duvidosa. Esses traos j so visveis em O fio da meada. Nesse livro, ele registra o atestado de bito da filosofia (p. 112), a falncia do gnero filosofia em geral (p. 148), a exausto histrica do gnero (p. 28). E no se trata apenas de constatar um processo que seria da ordem do real. Arantes assume como tese e no sentido mais forte terico e prtico essa liquidao. As interlocutoras de Arantes o livro seria um dilogo a quatro, mas h razes para supor que estas ltimas, embora tenham o nome de pessoas reais, sejam, no livro, simples heternimos do autor vo direto ao que importa. Se Arantes, ele mesmo, pe- se a refletir por que diabos um tipo como Adorno continuou a falar em filosofia (...) (p. 52), uma delas explica: Em matria de filosofia, no renego nem escondo minha linha justa : filosofia falsa conscincia de uma sociedade falsa e ponto. Por isso me d urticria toda vez que ouo algum adorniano pontificando: a filosofia sobrevive porque a promessa de sua realizao no se cumpriu, ou seja, j que a Revoluo foi breca, filosofemos (p. 29). E assim por diante. Essa liquidao sumria da filosofia se combina com uma poltica tambm sumria em que a revoluo de 1848 aparece como momento negativamente fundante, e em que, a respeito dos totalitarismos do sculo X X , no se vai muito alm de vagas frmulas do tipo retrocesso stalinista (p. 46). Desse livro para c, o tom piora ainda mais: crtica desabusada dos frankfurtianos, anlises sumrias da histria da filosofia do sculo X X a partir do movimento do capital, certo esnobismo anti-terico, e politicamente uma sorte de nihilismo (bem visvel tambm no final de O fio da meada) paradoxalmente ligado, segundo fontes idneas, a intervenes que justificam ditaduras burocrticas, a cubana em todo caso... Arantes pensa talvez que com isto est na vanguarda do pensamento crtico. N ada mais enganoso. Como j disse em outro lugar, seu modelo em parte a Ideologia alem de M arx (incorporando m otivos do Capital), livro brilhante porm dogmtico e ideolgico nas suas simplificaes anti-filosficas. (A crtica s ideologias para alm dos limites vira de fato ideologia-, um pouco de dialtica nos ajuda a pensar esse paradoxo .) Esse estilo de pensamento conduz a uma espcie de liquidao no s da filosofia, mas tam bm da teoria em geral, em benefcio de uma hipstase do tempo histrico, concebido essencialmente como meio em que se d o movimento do capital e a luta de

    26 Ruy Fausto

  • classes. Se teoricamente, esse estilo de pensamento de um esquematismo esterilizante, politicamente, apesar das aparncias, no serve ao progresso social . De fato, se quisermos pr esse estilo em correspondncia com movimentos sociais ou polticos (reais ou virtuais, o que possvel) no com lutas dos explorados e oprimidos que ele mostraria afinidade, mas, como no caso do pensamento de Lukcs nos seus piores momentos, com a sociedade burocrtica e as polticas burocrticas que ele se revelaria afim. A rage contra a crtica de Frankfurt, o esprito anti- filosfico radical, a simplificao brutal dos problemas em nome de um saber histrico pronunciado em forma oracular, apesar da sua sofisticao formal, no servem a nenhum movimento de libertao. E, nas condies do Brasil, seu sucesso eventual seria desastroso.

    Para alm do marxismo, mas no to alm como veremos, seria preciso fazer a crtica de uma outra tendncia, pouco conhecida fora do Brasil, mas que teve e tem bastante audincia aqui. Refiro-me aos escritos de Robert Kurz e de seu grupo. E preciso se ocupar deles, no porque na minha opinio o que eles escrevem seja muito importante, mas por causa do sucesso que tm no Brasil.

    O projeto de Kurz pode ser definido primeiro como uma tentativa de radicalizar a crtica marxiana, dando nfase menos crtica do capital, do que crtica daquilo que seria o fundamento deste, a forma mercadoria. Alm da sua aparente radi- calidade, essa perspectiva teria tambm a vantagem da amplitude, porque, no quadro dela, todas as sociedades contemporneas civilizadas seriam subsumidas por um s conceito, o de pertencerem ao sistema produtor de mercadorias ou sistema mundial de produo de mercadorias (ver O colapso da modernizao4,1, por exemplo, pp. 65, 88, 91, 92, 103...). Entram nessa categoria, digamos, a sociedade russa dos anos 30, a sociedade americana dos anos 90, a sociedade alem dos anos 30/40 ou as sociedades escandinavas dos anos 60. Para o dia de hoje, digamos, tanto a sociedade norueguesa como a da Coria do Norte. Mesmo se o autor supe que passando de algumas delas para outras, as leis internas podem se inverter, em todos esses casos trata-se de sociedades que produzem mercadorias e esta conceituao as define, pelo menos em termos gerais.

    M ais do que isto, todas essas sociedades so sociedades de trabalho , e com essa determinao chega-se ao cerne da teoria e do projeto de Robert Kurz: as sociedades contemporneas so sociedades em que domina o trabalho (isto , a separao entre trabalho e lazer) e a crtica do trabalho (ver por exemplo, ibidem , pp. 26 ss.) aparece assim como seu grande projeto terico seno prtico. Kurz parte da tese em grandes linhas correta de que M arx tem uma atitude ambgua em relao ao trabalho no sentido de que, se encontramos no corpus marxiano a crtica do trabalho (h, como veremos, mais de uma crtica), nela est presente tambm a idealizao deste (de fato, segundo a Crtica do programa de Gotha, na sociedade comunista o trabalho se tom aria uma necessidade natural ). essa ideologia do trabalho fazendo pendant onipotncia da forma mercadoria que deveria ser combatida.

    Por que meios? Kurz no acredita em meios polticos. Trata-se no de tomar o poder, mas de promover um movimento de desvinculao (ver Antieconomia

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  • e Antipoltica43, passim), que ter como resultado a desapoderao do poder (Entmachtung der Macbt) (ibidem, p. 51). O meio principal de luta a criao de redes de cooperadores (comeando pelo consumo), margem da economia mercantil. As lutas dentro do sistema (por melhores salrios ou mesmo em torno da jornada de trabalho44) contam no mximo com a tolerncia dele, mas so lutas que no nos levaro nem a longo prazo, aparentemente para alm dele. De lutas pela democracia, nem se fale: Sob as asas da pax americana, estamos justamente s voltas com o triunfo da circulao, da concorrncia e da democracia, que se precipita de seu apogeu rumo crise histrica terminal (ibidem, p. 31). O totalitarismo substancial da modernidade o da forma-mercadoria e, portanto, o da prpria democracia (ibidem, p. 35). O que resumido por um epgono: A democracia no o antagonista do capitalismo mas sua forma poltica, e ambos esgotaram seu papel histrico45.

    As formas embrionrias de uma nova emancipao social tm por base em alguns textos at mais do que isto a economia natural micro-eletrnica (mikroelektronische Naturalwirtscbaft) que escapa fundamentalmente do valor e por ele no pode mais ser apreendida46 . A utilizao da energia solar vai no mesmo sentido (ibidem, p. 14). A partir dessas formas embrionrias desenvolver-se-o as redes (Antieconomia e antipoltica , p. 50), com prticas de desvinculao. Graas a um terremoto da sociedade mundial (que viria aparentemente em primeiro lugar da nova contradio interna foras produtivas/ relaes de produo), entraramos num perodo de transio que durar, no mximo (...) algumas dcadas (ibidem, p. 43), e nos conduzir verdadeira sociabilidade (A Honra perdida do Trabalho , p. 22). Esta ter sem dvida instituies (Dominao sem sujeito 47, p. 45), mas no comportar nem propriedade privada, nem mercadoria, nem Estado: [Bettelheim] no enxergou que a forma da propriedade privada (...) inerente a todo modo de produo fundado no valor. (...) Nesse sentido, todo Estado , por definio um Estado burgus, assim como toda nao, na sua essncia uma nao burguesa, todo dinheiro, como forma universal de mediao, um dinheiro burgus etc. (Antieconomia e Antipoltica , pp. 20-1).

    Que dizer dessa mquina terica e crtica? Diria trs coisas. De um lado, a leitura de M arx que faz Kurz, em termos de explicao de textos, de bom nvel, se compararmos com a que circula por a (quero dizer internacionalmente, porque a leitura nacional une fois n est pas coutume melhor do que a internacional). M as, desculpe o leitor, no h nada que l se encontre que j no tenha sido feito aqui e perdoe de novo o leitor h j uns vinte ou vinte-cinco anos, e com mais dialtica. Em segundo lugar e sobretudo: no com boas leituras de M arx que podemos resolver os problemas do presente. Bem entendido: Kurz diria que est de acordo com esta ltima afirmao. M as vejamos. H dois problemas no discurso kurziano (como se diz no Brasil). De um lado ele est muito preso a M arx, excessivamente como veremos. Por outro lado, se ele de fato o critica, essa crtica no escapa da alternativa seguinte: ou as crticas no so novas (o tema do M arx prometeano data pelo menos dos frankfurtianos, portanto dos anos 30; a crtica da ideologia do trabalho, sem ir mais longe, foi feita por muita gente, e sobretudo por Gorz, a quem Kurz de fato se refere mas para recusar suas teses); ou en

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  • to parece-me evidente elas so muito insuficientes para constituir uma teoria capaz de dar conta dos problemas que levanta a histria e a poltica contemporneas, sendo mesmo, em alguns aspectos polticos sobretudo pura e simplesmente regressivas em relao a M arx.

    N o plano terico, Kurz toma distncia em relao a M arx sobretudo em dois pontos. A crtica ao capital se transforma em crtica da forma mercadoria; ou, mais precisamente, acentua-se a crtica da mercadoria mais do que a crtica do capital. Em segundo lugar, a ambigidade de M arx em relao ao trabalho mais exatamente, eu diria, o seu esprito prometeano , objeto principal, alis, da crtica de Frankfurt d origem a uma crtica radical do trabalho. Deixo de lado, por ora, as diferenas no plano da poltica.

    O deslocamento da crtica do capital para a crtica da forma mercadoria Kurz reconhece parece implicar na introduo de uma abstrao extremamente pobre comparada com a riqueza das antigas formas de crtica48. E por que esse deslocamento? E que Kurz obrigado a enfrentar o problema das sociedades burocrticas que existiram no passado e ainda existem no presente. Seria forte demais afirmar que elas so capitalistas como pretenderam alguns. N o seja por isso; h uma outra resposta fcil. Essas sociedades tinham contato com o mercado mundial onde existe troca de mercadorias, e no plano interno sua organizao econmica comportava um tipo de forma pelo menos anloga da mercadoria. Substituamos a crtica do capital pela crtica da mercadoria (ou alteremos o centro da crtica), e tudo entrar nos eixos. S que restam alguns pequenos problemas. Se supusermos assim que a mercadoria a forma essencial de todas as sociedades contemporneas ( difcil fugir dessa leitura do seu texto, e Kurz deve aceit-la), a sociedade nazista tem de ser explicada a partir da mercadoria, e tambm, por exemplo, a sociedade stalinista dos anos 30. A decifrao do significado de Auschwitz e do Goulag no exigiriam a anlise das formas de dominao e das formaes ideolgicas que esto na sua base. A soluo seria simples: o segredo de um e de outro est na forma mercadoria. Ora, isto simplesmente absurdo49. A forma mercadoria domina certo o comrcio mundial (alm de ser a forma elementar no o fundamento, como diz Kurz, mas o fundamento negado o fundamento do modo de produo capitalista); mas o fato de que ela seja dominante no mercado mundial no significa que as sociedades de todos os pases que participam de alguma forma desse mercado sejam sociedades em que predomina a mercadoria. Como explicarei melhor nas sees finais desta introduo geral, o capitalismo com a sua forma elementar mercadoria a configurao dominante que d de certo modo o fundo do processo mundial (alm de se encontrar internamente como forma na maioria das sociedades). M as que ele d o fundo do processo mundial no significa (no significou absolutamente no passado, e continua no significando) que as formas que nele se inserem sejam necessariamente formas sociais capitalistas com a sua clula elementar mercadoria, ou que elas sejam simplesmente variantes das sociedades mercantis . Das relaes externas no se deduz sem mais as relaes internas. Afirmar o contrrio no s introduzir uma homogeneizao grosseira em formas sociais essencialmente diferentes (j dei os exemplos), como significa pensar a essncia de uma sociedade como a que existe hoje na Coria do Norte e

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  • existiu no passado na URSS, ou a que existiu na Alemanha, a partir mais do que isto: em termos da forma mercadoria. Se Kurz levado a esse resultado, , por um lado, porque apesar de tudo ele incapaz de se liberar do legado marxista. Ora, se partirmos das perspectivas marxianas para a histria futura, e se no quisermos supor que se tratava de sociedades pr-socialistas, a nica soluo supor que as sociedades do tipo bolchevique-stalinista (ou nazista) ou so sociedades capitalistas sui-generis, ou so pelo menos sociedades mercantis. M as ateno digo isto no para salvar o marxismo, mas para precisar o que representa o kurzismo se a teoria de Kurz sobre a histria do sculo X X segue o marxismo no sentido de que ela se apresenta como uma espcie de arranjo , de teoria dos epicentros destinada a evitar a morte da teoria geocntrica50 , em termos de mtodo, de procedimento terico, considerando tudo o que a histria nos oferece de novo, no tem nada de m arxiano . M arx sabia descrever de perto e com rigor as formas sociais. O seu problema que ele viu mal o lugar do capitalismo na histria, em particular na histria futura (o que, diga-se de passagem, no se justifica sem mais pela poca em que viveu: certas questes-chave sobre o futuro foram vistas melhor por certos contemporneos seus). Ora, Kurz no analisa sociedades. Ele analisa pouco mais do que o mercado mundial. E a razo disto que a sua perspectiva no s monista mas tambm utpica (o que, apesar de tudo, no era o caso de M arx). Explico: se ele dissolve todos os objetos sociais na noite em que todos os gatos so pardos da mercadoria, porque ele raciocina do ponto de vista no sentido mais subjetivo da sociedade transparente que representa o seu ideal de sociedade, isto , ele argumenta do ponto de vista de Sirius. Dessa estrela longnqua, nada de novo sob o sol. Vemos mercadorias por toda parte.

    O segundo aspecto a crtica do trabalho. H em M arx, provavelmente, quatro tipos de textos sobre o trabalho51. H pelo menos um, o da Crtica do programa de Gotha, j referido, em que ele faz o elogio do trabalho. H outros, como uma passagem da Ideologia alem e outra dos Manuscritos de 1844 , em que fala numa perspectiva simetricamente oposta, de fim do trabalho . Em terceiro lugar, h textos que no caem em nenhum desses dois plos, sobretudo o passo bem conhecido do final do volume III do Capital. Nele, M arx fala da reduo progressiva do tempo de trabalho, insistindo entretanto que o trabalho permaneceria sempre, ou quase sempre, como alguma coisa do domnio da necessidade, alm da qual entenda-se, no mbito do tempo histrico em parte, mas sobretudo, pelo menos por um muito longo perodo, no mbito do tempo dos indivduos se encontra o domnio da liberdade. O quarto tipo de textos o que se encontra nos Grundrisse, nos quais se descreve a transformao do trabalho em atividade cientfica, graas revoluo tcnica da ps-grande indstria .

    Embora sua posio no seja muito clara, podemos dizer o seguinte: Kurz se inscreve evidentemente contra o primeiro texto e, como veremos, critica explicitamente o terceiro. Restam os dois outros. A posio de Kurz, salvo erro, converge com o segundo e com o quarto grupo. As referncias revoluo microeletrnica , mutatis mutandis, lembram muito os Grundrisse. M as, aparentemente, ele a enfatiza mais para mostrar seus efeitos que ele supe destruidores sobre a economia do valor o que a transposio de um dos temas centrais dos Grundrisse , do

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  • que para demonstrar que atravs dela o trabalho se tornaria agradvel, isto , que deixaria de ser trabalho . A revoluo tecnolgica no parece funcionar nos textos de Kurz como a nica razo da futura morte eventual do trabalho. Nesse sentido, sua perspectiva tem tambm alguma coisa a ver seja com a Ideologia alem (em que o essencial a crtica da diviso do trabalho), seja, e particularmente, com os Manuscritos de 1844 (os quais, diga-se de passagem, so muito diferentes teoricamente da Ideologia alem). H em Kurz um ideal de imediatidade e de concre- ticidade52 que lembra os Manuscritos, ideal que cruza com a antecipao (ps- industrial) dos Grundrisse53. M as o que pensar dos textos de M arx, e em geral do problema do trabalho (que na realidade o da oposio entre trabalho e lazer)? Dos textos de M arx, o melhor a meu ver o que se encontra no livro III do Capital. Pela razo seguinte: muito pouco provvel que o trabalho isto , uma atividade que sem ser necessariamente torturante realizada entretanto no porque nos cause prazer, mas essencialmente por necessidade social54 , pouco provvel que o trabalho venha a desaparecer. M arx tem o mrito realista de afirmar que o trabalho no desaparece (mas se reduz), e ao mesmo tempo o mrito radical de no considerar a esfera do trabalho como domnio da liberdade. Kurz protesta contra esse texto (ver Ps-marxismo e fetiche do trabalho , pp. 16-7), porque v nele uma concesso esfera da necessidade, ao mundo burgus e ao do conjunto da pr- histria ; ao mesmo tempo em que, como vimos, denuncia a reduo do tempo de trabalho como algo que no teria mais do que uma significao quantitativa (como se trabalhar 45 horas por semana em cinco dias ou trabalhar 9 horas por semana em trs dias fosse essencialmente a mesma coisa). Ora, o que leva Kurz a supor essa desapario radical do trabalho ? Aqui entramos na discusso sobre o ideal de sociedade reconciliada (para usar da terminologia de Frankfurt) proposto por Kurz. Observei anteriormente que o contedo e a forma da idia de sociedade comunista em M arx so de certo modo opostas, ele pensa essa sociedade com um mximo de transparncia, e ao mesmo tempo, no plano lgico, no pe a idia dela, mas somente a pressupe. Tentei mostrar que seria preciso alterar as duas coisas, de algum modo intervert-las: tematizar a idia dessa sociedade, do que resulta a impossibilidade de pens-la como transparente. Ora, Kurz no faz isto, e o seu procedimento agrava as dificuldades do marxismo. Quanto ao contedo da sociedade reconciliada , ele segue em grandes linhas o caminho de Marx. Retoma com pouca diferena o ideal de transparncia. Sem dvida, segundo ele, a sociedade onde reina verdadeira sociabilidade deve ter instituies . M as ela no deve ter Estado. Sem voltar aos argumentos anteriores, perguntaria: Kurz cr realmente que a Histria (no fundo se trata da bem conhecida deusa histria ) produzir homens que escaparo de toda violncia. N o haver mais indivduos que praticam agresses, violncias, homicdios? Questes ingnuas se dir de quem no teria ultrapassado os limites da idia burguesa de indivduo ( temor pequeno-burgus diante da crise )55. N o se trata porm de viso burguesa, mas da recusa de toda sorte de angelismo, ou de providencialismo histrico, incorporando o que hoje sabemos da estrutura do sujeito. Essa estrutura pode ser modificada, mas no de forma ilimitada. H nos textos de Kurz um nmero razovel de referncias a Freud56, mas ela no tira nenhuma concluso importante das suas leituras. A noo de su

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  • jeito que pressupe a verdadeira sociabilidade de Kurz pr-freudiana, como a que pressupe a verdadeira sociabilidade de M arx. S que M arx viveu no sculo X IX , o que no justifica mas atenua a gravidade das suas iluses. De fato, se na hiptese de um desenvolvimento favorvel supusermos que pensvel e provvel que pulses violentas subsistiro e continuaro a se atualizar (mesmo se em menor escala), preciso admitir que a sociedade que surgir desse desenvolvimento feliz haver de ter leis, e portanto no s Direito mas tambm Estado. Disto decorre o seguinte: existiro tambm atividades de tipo administrativo, que remetero s necessidades sociais (e que no sero em si mesmas atraentes ), e com elas e para alm delas haver abstrao social, embora seja perfeitamente pensvel e realista que essa esfera da abstrao seja reduzida a um domnio quantitativamente muito estreito (e como diz M arx no texto referido texto que alis corresponde ao desenvolvimento que Gorz d ao problema nele o trabalho se exerceria nas melhores condies possveis)57.

    E se Kurz retoma, com pouca diferena, o ideal de transparncia de M arx, ele agrava as dificuldades da perspectiva marxiana, na medida em que ele pe (no apenas pressupe) a verdadeira sociabilidade 58. E este o segredo, no plano da teoria, da viso vol doiseau da histria contempornea, como simples histria do sistema de produo de mercadorias: Kurz no pode 1er a histria contempornea porque incapaz de pr entre parnteses o seu ideal de transparncia. M arx teve muitos pecados, mas no esse.

    E a mesma coisa d o sentido geral da poltica de Kurz. Por muito que M arx se tenha iludido com construes do tipo ditadura do proletariado , ele era um poltico realista (no um Realpolitiker, duas coisas que Kurz, e mais ainda os epgonos, confundem) e tinha o senso da luta poltica, da necessidade de estabelecer diferenas entre os partidos e entre os homens polticos, do longo trabalho de organizao de foras etc. A partir da homogeneizao das formas sociais a que procede Kurz no h como preferir uma sociedade a outra. Entre Roosevelt e Hitler nada de novo sob o sol? Pois h pelo menos um texto de Kurz em que ele pe o nazismo e o New Deal, pelo menos genericamente no mesmo plano59; e isto uma conseqncia necessria da sua teoria. No mesmo sentido vai a poltica sem mediaes que consiste em transformar em palavras de ordem o que se l num texto hiper-terico como os Grundrisse. (Exemplo, o clebre Manifesto contra o trabalho., que comentarei logo mais adiante.) Kurz responderia que isto parece chocante porque novo, e que a estaria a sua originalidade. Novo? Original? Por mais que Kurz tome distncia em relao ao anarquismo60 so os aspectos anti-moder- nos de certos anarquistas o que ele critica seu projeto prtico coincide em grandes linhas com o dos anarquistas: a rejeio da poltica61. Bem entendido, uma idia pode ser muito velha e ser verdadeira. M as nada nos leva a crer que requentar essa velha sopa (temperada com a modernidade ps-industrial dos Grundrisse) nos conduzir a algum resultado. A que levar, num pas como o Brasil, a rejeio em bloco de toda poltica62?

    H no pensamento de Kurz alguma coisa de paradoxal. Ele parece conduzir a um resultado oposto daquilo que representa o seu impulso e o seu ponto de par

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  • tida. De fato, a idia de que a sociedade sem Estado esteja inscrita no atual desenvolvimento das foras produtivas implica, em forma negativa embora, uma formidvel hipstase terica e prtica da economia. Bem entendido, como homem dos sculos X X / X X I, ele diz que obviamente no h garantia de que a superao tenha sucesso. O salto pode no ocorrer, vir muito tarde, ser muito curto, errar o alvo. O ser humano pode tambm destruir a si prprio (...) 63. M as tudo isso no elimina o fato de que finalmente com base na contradio entre as novas foras produtivas (a microeletrnica principalmente) que ele constri a hiptese e a possibilidade para ele bem concreta de uma sociedade no s sem mercadoria e sem propriedade privada, mas sem abstrao e sem Estado. N o seria conceder demais s foras produtivas , e em geral astcia da razo 64 na histria? A crtica kurziana, que se pretende liberada de toda superstio no est longe de desembocar num providencialismo (e nos jovens epgonos o providencialismo economicista65 mais do que aparente). M ais do que isto, eu diria que a tentativa de pensar todas as configuraes sociais do sculo X X a partir da essncia-mercadoria tem um resultado inverso ao que visado por Kurz. H uma tal invaso do tema da mercadoria e da sociedade produtora de mercadorias que se tentado a dizer que em Kurz h alguma coisa como o fetichismo do fetichismo da mercadoria , ou, simplificando, h um fetichismo terico (ou terico-prtico) da mercadoria. A mercadoria objeto de uma espcie de fetichizao. De fato, no universo de Kurz, ela explica tudo. At aquilo com que tem muito pouco a ver. Assim, os seus textos acabam tendo um resultado oposto daquele que eles visam, a crtica desmistificante acaba na mistificao. Quanto ao tema do trabalho, no queria seguir o caminho aparentemente fcil de dizer que finalmente ele acaba servindo o trabalho. M as um pouco isto o que acontece, ou pelo menos que corre o risco de acontecer. Dado o fato de que o trabalho permanece e permanecer como necessidade (mesmo se como necessidade marginal em termos do tempo do indivduo), o discurso sobre o fim do trabalho gira em falso e talvez ainda pior do que isto. Como acontece com extremos abstratos, h uma passagem evidente do fim do trabalho ao elogio do trabalho como necessidade natural . De fato, por fim do trabalho se entende uma situao em que todas as atividades produtivas se tornaro nas palavras de Kurz fonte de prazer, de contemplao ou reflexo66. Ora, suponhamos que pelas razes expostas ou por outras essa pretenso seja excessiva e que a reduo radical da jornada, ligada idia de uma execuo nas melhores condies possveis seja a perspectiva mais racional. Se assim, corremos o risco de que o nosso projeto utpico se converta numa exigncia sem justificativa e coercitiva, feita aos indivduos, a de que tenham prazer (ou reflitam e contemplem) s porque exercem uma atividade socialmente til. Exagero? Isto foi o que aconteceu em M arx, o que se v quando se comparam os textos em que ele critica o trabalho com o que ele diz sobre este ltimo na Crtica do programa de Gotha. Houve um curioso deslizamento, em grande parte inscrito na ordem das coisas. Deslizamento que no deixou de ser bem aproveitado sabemos por que poderes.

    E, para concluir, como se explica o sucesso de Kurz no Brasil? Ele oferece muito (fim do Estado, fim da propriedade privada etc.), e se apresenta ao mesmo tempo como crtico mais radical de M arx. Esse radicalismo simplificador e na reali

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  • dade dogmtico muito atraente, principalmente para certo tipo de pblico. Ele atraente porque acaricia o utopismo no sentido do plo, e simplifica as questes mais difceis. Por outro lado, ele no abandona os quadros tericos do marxismo67. Ele nunca abandona o privilgio absoluto da sucesso, e quando se trata de analisar o novo (novo como forma e novo como temporalidade), ele se refugia num apelo ao passado (veja-se a tentativa de pensar o fenmeno URSS em termos de acumulao primitiva, economicismo redutor que desconhece a poltica). E a cada passo o tempo, o amadurecimento das condies que est presente, a idia de que chegamos ultima forma e crise terminal 68 dela, no melhor estilo clssico. Ora, esse apego a M arx evidentemente serve, porque o pblico de esquerda hesita em se separar de M arx por motivos ideolgicos-afetivos, e alm disso tem reais dificuldades para passar para um registro terico que, apesar de tudo, tem de ser bem diferente. Com tudo isso, mais um estilo de profeta hiper-crtico, o sucesso de Kurz explicvel. Temo os efeitos desse sucesso, tanto no plano terico como no plano prtico. N o plano terico, o resultado a tendncia a no pensar os problemas, mas dilu-los na noite em que os gatos so pardos da crtica da mercadoria. No plano prtico, o resultado a recusa da poltica, o infantilismo de manifestos que reclamam o fim do trabalho (afinal o que se pretende com isso?69), e outros impasses que, se no forem criticados a tempo, no faro mais do que aumentar a confuso geral.

    Para analisar o significado da posio de J. A. Giannotti, outra figura que conviria examinar, seria preciso considerar conjuntamente seus textos tericos, seus artigos polticos, e tambm sua atividade prtica no interior da Universidade, em sentido amplo. As trs coisas no se confundem, mas elas esto mais ligadas do que se supe. Analisei, mesmo que em geral em forma no muito desenvolvida, tanto os aspectos tericos como os aspectos prticos e ideolgicos de Giannotti, em meus livros70, artigos e entrevistas71. Aqui gostaria de analisar o significado global prtico e terico do que ele escreve e faz. Para isso, apesar das aparncias, creio que os artigos recentes em que discute as relaes entre filosofia e poltica representam um bom ponto de partida e talvez mais do que isto. N o seu texto O dedo em riste do jornalismo moral72, ele escreve73: (...) particularmente na democracia, quando os interesses gerais e comuns so discutidos at que se decida pela maioria (...) que se percebe com nitidez sua zona cinzenta de amoralidade . E continua: (...) Isso implica obedecer a determinadas regras que asseguram a legitimidade do procedimento, tais como eleger representantes (...), determinar prazos, ordem na apresentao das propostas (...) etc. At aqui, ele parece descrever o que seria uma situao de fato. M as, em seguida, o fato ganha necessidade, e com isso sem dvida legitimao: N o h, porm, como impedir a manipulao desse regulamento, pois somente dessa maneira a regulamentao da criao de regras pode funcionar para regular a disputa entre amigos e adversrios . (...) N o dissenso, a regra que regula o exerccio de outra regra necessariamente possui sua zona de indefinio . Que essa zona de indefinio equivale zona de amoralidade referida acima confirmado pouco mais adiante numa passagem lapidar: As leis guardis que regem a polis, para serem praticadas, requerem uma zona de amoralidade sem a qual no

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  • poderiam funcionar . E por que requerem ? O autor d duas razes: A primeira que o poder s se torna necessrio quando se distribuem recursos escassos . Como preciso, por exemplo, liberar verbas primeiro a uns e depois a outros, insensato exercer [o poder de contemplar uns antes dos outros] beneficiando o inimigo . A segunda razo de ordem mais subjetiva: (...) executores [da lei] s podem existir a partir de uma particularidade. O deputado ou senador, prefeito ou governador (...) um ser social particular cujas necessidades devem ser satisfeitas . Questo prvia: num artigo pouco posterior Para a virtuosa M arilena 74, trplica rplica de Marilena Chau, o autor adverte que no se deve confundir amoralidade, suspenso do juzo moral em certas circunstncias, com imoralidade, a permisso de infringir qualquer regra . Giannotti no estaria justificando a violao de certas regras, mas a suspenso do juzo m oral . M as que significa nesse contexto a suspenso do juzo m oral ? De duas coisas uma. Ou essa suspenso no implica trangresso, mas ento no h mais o que discutir e o problema simplesmente no existe. Ou ela implica transgresso, e a precisaramos saber que regras se transgride, como justificar essa transgresso etc. claro que a segunda hiptese que a correta (seno teramos o seguinte: ao votar no Senado uma medida moralmente duvidosa, o senador X, qual um discpulo do ceticismo antigo, suspende o juzo moral no momento da votao...). claro que no se trata disto, mesmo se Giannotti tenta atenuar o efeito de suas teses radicais j desde o primeiro artigo com a expresso zona de indefinio (mas a zona de amoralidade a verdade da zona de indefinio e no o contrrio), reservando a expresso im oral para (...) aqueles que pedem democracia e igualmente (...) transparncia de todas as manifestaes da ao coletiva 75.

    Isso posto, que valem as razes de Giannotti para justificar a instaurao da sua zona de amoralidade ? Comeo com o segundo argumento, que grosseiro. O deputado (...) um ser social particular cujas necessidades sociais devem ser satisfeitas . Um homem poltico tem, de fato e de direito, necessidade de satisfao. N o h atividade humana sem investimento do eu. M as isso no significa que h de direito uma dualidade no interior da ao poltica (portanto da ao poltica ideal) entre o indivduo particular e o indivduo universal, dualidade que justificaria a amoralidade. No verdadeiro homem poltico (estamos no registro no do que a poltica, em particular a poltica brasileira, mas do que ela deve ser, e isso um ideal regulador do qual se aproximam figuras histricas), a satisfao do eu vem junto com interesses universais (mais do que se submete a eles)76. Tomemos um grande homem poltico (no vou dar exemplos, mas pode-se encontr-los mesmo em adversrios polticos, e isto vale para qualquer pessoa): claro que ele tem tambm vida individual, interesses individuais etc. M as de direito esses interesses no interferem ou no interferem essencialmente na sua atividade poltica. Isto significaria que, ao trabalhar para o universal, ele pe de lado o seu eu ? N o. A idia dos sacrifcios pela poltica em geral ilusria. Porm isto no quer dizer, e a est o erro, que ele sobrepe seus interesses pessoais poltica, ou que ponha essa ltima a servio dos primeiros. Agindo, ele satisfaz o seu eu , mas esse eu est acoplado ao universal. Em outras palavras, satisfao do eu no a mesma coisa que necessidades particulares . E da exigncia de satisfazer o eu (desde que

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  • ele seja universalizado) no se deduz de direito a necessidade de nenhuma zona de amoralidade ... A fragilidade da outra razo decorre do que foi dito. A escolha deve ser decidida por critrios to universais quanto possvel. Essa universalidade se realiza a cem por cento? Difcil que seja assim, mas no grande poltico (no sentido em que o defini, e essa figura existiu e existe historicamente) a convergncia pelo menos tendencial e essencial; e isto basta. De qualquer modo, nele, os interesses do eu no se manifestam pela via da satisfao das necessidades sociais (entenda-se, privadas), mas na satisfao que o seu eu tira da realizao das tarefas univer