martins rua 2009 discurso cientifico contemporaneidade

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  • O discurso da cincia na contemporaneidade: nada existe a menos

    que observemos (The discourse of science in the contemporaneity: Nothing exists unless we observe

    it.)

    Marci Fileti Martins*

    Resumo Nesse trabalho, pretendo refletir sobre possveis paradoxos e rupturas que passam a constituir o discurso cientfico na atualidade. Isso ser feito de forma indireta, j que tomo como observatrio o discurso de divulgao cientfica, atravs do qual a cincia ganha novos sentidos ao, intensamente, sair dos seus lugares de produo e circulao tradicionais (as instituies acadmicas com seus papers e congressos, por exemplo) para se constituir noutro espao social e histrico, em que re-significada atravs de materiais miditicos (revistas, jornais, programas de TV, internet). Interessa-me analisar nos materiais de divulgao cientfica, certos enunciados como incerteza, incompletude, imperfeio, provisrio, no pode ser comprovado jamais, nada existe a no ser que observemos e ns precisamos da incerteza, o nico modo de continuar, os quais materializam certos sentidos sobre cincia aparentemente conflitantes com o funcionamento de um discurso da cincia concebido tanto como uma atividade de triagem entre enunciados verdadeiros e enunciados falsos, quanto como a produo de um sujeito da cincia que est presente pela sua ausncia (PCHEUX, 1975: 1997-98). Palavras-chave: discurso da cincia; divulgao cientfica; paradoxos e rupturas Abstract In this paper I reflect on possible paradoxes and gaps which begin to shape the current scientific discourse. This is performed indirectly, as I depart from the scientific dissemination discourse, through which science incorporates new meanings by moving from its traditional places of production and circulation (e.g., academic institutions and their papers, congresses) to other social and historical settings where it is resignified through different media (magazines, newspapers, TV shows, internet). I analyze scientific dissemination material in search for expressions such as uncertainty, incompleteness, imperfection, temporary, can never be proved, nothing exists unless we observe it, and we need uncertainty because this is the only way to continue. These expressions materialize certain meanings of science which apparently clash with the idea of a scientific discourse conceived as both an activity of selecting among true statements and false statements and the production of a subject of science who is present in the absence (Pcheux 1975, pp.1997-98). Keywords: science discourse; scientific dissemination; paradoxes and gaps * Profa. Dra. da Ps-Graduao em Cincias da Linguagem da UNISUL, Palhoa-SC. Endereo para correspondncia: Rua Chals do Cafezal, 232, Fortaleza da Barra da Lagoa, Florianpolis-SC, CEP: 88061435- E-mail: [email protected]

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    INTRODUO

    O que se denomina divulgao cientfica hoje, segundo alguns pesquisadores,

    (BUENO, 1984; ZAMBONI, 2001) pode ser relacionada a um conjunto de materiais

    que vo desde revistas, programas de TV e de rdio passando por livros didticos, aulas

    de cincias do segundo grau, at revistas em quadrinhos. E tem, imaginariamente,

    como funo colocar em linguagem acessvel os fatos/pesquisas cientficas, os quais

    seriam hermticos e incompreensveis para os sujeitos no especialistas.

    Interessa-me, dentre esses materiais, aqueles produzidos na articulao entre a

    cincia e a mdia, pelo que , tradicionalmente, chamado jornalismo cientfico. Nesta

    relao, o discurso da cincia re-significado a partir da sua publicizao, ou seja, a

    cincia "retirada" do seu meio de circulao tradicional e levada a ocupar um lugar no

    cotidiano do grande pblico. O efeito de sentido que a se estabelece o que podemos

    chamar de efeito de informao cientfica, em que o conhecimento cientfico passa

    a informao cientfica. (ORLANDI, 2001).

    Neste funcionamento o discurso de divulgao atua como um discurso sobre

    (MARIANI, 1998) em que, ao falar sobre cincia coloca-se entre esta e os sujeitos no

    especialistas buscando estabelecer uma relao com um campo de saberes j conhecido

    pelo interlocutor. Os sentidos a produzidos, por um lado, mostram a cincia, na maioria

    das vezes, apenas em seus resultados, como produtos acabados (notcia) e, por outro,

    constroem a imagem de um leitor de cincia que se constitui pela falta de

    conhecimento/informao, o que imprime a necessidade de um didatismo ao discurso de

    divulgao. De tal modo, atravs de recursos lingsticos como definies, explicaes,

    estatsticas, citaes, analogias, e outros como esquemas, desenhos e fotos, este discurso

    desloca o conhecimento cientfico que passa a significar a partir das condies de

    produo do discurso jornalstico.

    O discurso de divulgao cientfica, nesse caso, se inscreve num espao de

    negociao entre as formaes discursivas (FD) da mdia (jornalismo), da cincia e do

    grande pblico (no especialistas), sendo esta negociao determinada por uma

    interdiscursividade que vai ela mesma produzir, atravs de encadeamentos e

    articulaes a delimitao entre estas FDs, as quais no se constituem

    independentemente, mas sim reguladas no interior do interdiscurso. De fato, a relao

    interdiscursiva, como prope Guimares (apud ORLANDI 1996: 68) no se d partir

    de discursos j particularizados, ela prpria, a relao entre discursos, que d a

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    particularidade, ou seja, so as relaes entre discursos que particularizam cada

    discurso.

    Desse modo, proponho pensar a divulgao cientfica, especificamente, na sua

    relao com a FD da cincia, naquilo que essa FD particulariza o discurso de

    divulgao. Para isso, parto de certos enunciados do discurso de divulgao cientfica

    como incerteza, incompletude, imperfeio, provisrio, no pode ser

    comprovado jamais, nada existe a no ser que observemos e ns precisamos da

    incerteza, o nico modo de continuar, que materializam certos sentidos sobre cincia

    aparentemente conflitantes com o funcionamento de um discurso concebido tanto

    como uma atividade de triagem entre enunciados verdadeiros e enunciados falsos,

    quanto como a produo de um sujeito da cincia que est presente pela sua ausncia

    (PCHEUX, 1975: 71-98).

    Essas formulaes sobre a cincia, assim, apontam para um deslocamento no

    imaginrio cientfico ao evidenciarem uma ruptura com certos sentidos at ento

    construdos sobre verdade e subjetividade. Interessa-me, portanto, como prope

    Pcheux (1983), alcanar a objetividade material contraditria do interdiscurso que

    determina o discurso da cincia e o de sua divulgao buscando compreender as

    condies de produo histricas e ideolgicas que tornam possveis o surgimento

    desses enunciados, desses sentidos sobre cincia.

    O IMAGINRIO DE CINCIA NA CONTEMPORANEIDADE

    Einstein concebeu a teoria da relatividade, segundo a qual o espao-tempo curvo e torna-se dinmico. Isso significa que est sujeito teoria quntica e que o Universo em si tem todas as formas de histrias possveis. A maioria dessas histrias seria muito inadequada para o desenvolvimento da vida, mas poucas preenchem as condies necessrias. No importa que essas poucas sejam muito menos provveis em comparao com as demais: os universos sem vida no teriam ningum para observ-los1

    Inicio me posicionando, posteriormente, ao que Pcheux e Fichant (1977)

    chamam de corte galilico2, num momento da histria da cincia moderna, em que

    1 HAWKING ,2005: XIII) 2 No processo histrico de formao da fsica cientfica, Pcheux e Fichant (1977) chamam de corte epistemolgico o ponto sem regresso (REGNAUT, apud PCHEUX e FICHANT, 1977) a partir do qual esta cincia comea. Corte galilico, assim, seria um ponto sem regresso a partir do qual novos sentidos comeam a aparecer resultando no que se denominou de cincia moderna. Segundo Guimares (1997;

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    surgem certos fundamentos denominados Princpio da Incerteza, de Heisemberg (1927),

    Teorema da Indefinibilidade, de Tarski (1930) e Teorema da Incompletude, de Gdel

    (1931). O aparecimento dessas acepes na fsica e na lgica-matemtica, que

    representam, em certa medida, uma ruptura com o paradigma determinista dominante,

    so decisivas para compreendermos a constituio do discurso da cincia na

    contemporaneidade.

    Rolnik (1995), tratando especificamente de questes envolvendo a subjetividade

    na contemporaneidade, destaca certas mudanas que comeam a operar j no modelo

    mecanicista e determinista da cincia dita moderna, mudanas que apontam para uma

    ruptura que estaria por vir. A autora prope que, mesmo no tendo lugar para a

    instabilidade, j que o mundo e os corpos que o constituem funcionariam como um

    relgio, no modelo mecanicista, com a introduo da termodinmica, o sentido de

    instabilidade comea a aparecer. Isso se deve a uma das leis da termodinmica, a da

    entropia. Segundo essa lei todos os corpos estariam sujeitos a mudanas, as quais

    levariam esses objetos destruio. Nesse momento da histria da cincia (fsica), a

    destruio, entendida como o caos, considerada como avesso da ordem, como seu

    negativo, ou seja, haveria a possibilidade de separao entre os objetos regulados pela

    ordem e o resto, os quais nem se constituiriam, seriam somente uma espcie de campo

    energtico indiferenciado. Contudo, segundo Rolnik (1995: 51):

    as turbulncias vividas no campo da ordem, seriam sinais de transformao deste campo em energia diferenciada; ou seja, a instabilidade aqui entendida como sinal do caos que se aproxima e que acabar por engolir o mundo.

    Junto a isso, outro elemento desestabilizador surge, j que na terceira metade do

    sculo XX, a comunidade cientfica se depara com os efeitos provocados pelas idias de www.geocities.com/Vienna/2809/descartes.html), Galileu foi mentor da mudana de paradigma e viso de mundo da cincia de sua poca, j que veio corroborar o sistema de Coprnico, demonstrando que o conhecimento da natureza poderia ser adquirido por meio de um trabalho laborioso independente do aval religioso. Alm disso, ainda de acordo com Guimares (1997), Galileu foi o primeiro a combinar sistematicamente a experimentao cientfica com o uso da linguagem matemtica: Isso no foi feito apenas porque a matemtica a linguagem com que Deus fez o universo, como diria ele, mas porque se prestava perfeio para que hipteses fossem divulgadas e compreendidas apenas por alguns poucos iniciados, escapando, assim, da fiscalizao inquisitorial. Como disse Fritjof Capra, Os dois aspectos pioneiros do trabalho de Galileu - a abordagem emprica e o uso de uma descrio matemtica da natureza - tornaram-se as caractersticas dominantes da cincia no sculo XVII e subsistiram como importantes critrios das teorias cientficas at hoje (GUIMARES, 1997).

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    Albert Einstein. Einstein prope que o tempo e o espao no so absolutos nem to

    pouco independentes j que se constituem relativamente (Teoria da Relatividade Geral)

    e mais ainda, so deformveis pela matria (Teoria da Relatividade Restrita). A partir

    disso, o espao e o tempo deixam de ser concebidos separadamente e passam a ser

    considerados como algo nico. Surge o espao-tempo. O conceito de gravidade

    tambm totalmente revisto sendo entendido no mais como uma fora que atrai os

    objetos, mas como uma fora resultante da deformao do espao-tempo que empurra

    os corpos em direo a outros objetos de maior massa. A teoria da relatividade, assim,

    de uma forma desestabilizadora, apontava para uma viso da realidade que, ao mesmo

    tempo, que se mostrava para os no especialistas contra-intuitiva, era para a cincia

    estabelecida um ponto de ruptura com seus pressupostos mecanicista e determinista.

    Entretanto, a mesma linguagem matemtica e lgica que possibilitou o

    desenvolvimento da mecnica newtoniana e seus efeitos, tambm foi responsvel pelas

    descobertas de Einstein, o que no implicava, portanto, estar em jogo, no discurso da

    cincia, nesse momento, uma negao de certo pr-construdo envolvendo a

    infalibilidade da lgica-matemtica. Dito de outra maneira, os sentidos constitudos pela

    relatividade garantem, ainda, para a lgica-matemtica o status de metalinguagem, que

    atravs da demonstrao (axiomtica e algortmica) e da verificao (objetiva) capaz

    de descrever, de forma inequvoca os fenmenos. Isso envolve a aceitao de um real

    independente do sujeito e acessvel por essa metalinguagem. Um enunciado de Einstein,

    logo aps a Segunda Guerra Mundial, em 1948, quando lhe oferecem a presidncia do

    novo estado de Israel, da qual ele declinou, materializa os sentidos do discurso da

    cincia que sustentava sua posio enquanto cientista: A poltica para o momento,

    mas uma equao para a eternidade (Hawking, 2002: 26).

    Curiosamente, no discurso da cincia assim logicamente constitudo, outra

    ruptura, essa agora muito mais desestabilizadora comea a se estabelecer. Determinada

    pelo processo de demarcaes e acumulao ideolgica que, segundo Pcheux e

    Fichant (1977), precede necessariamente o momento do corte e determina a conjuntura

    na qual este se produzir, essa ruptura ou corte o que se convencionou chamar

    mecnica quntica, a qual traz profundas implicaes para a maneira como a cincia, a

    partir desse momento, passa a ver a realidade e a participao do sujeito no processo

    cientfico.

    O aspecto perturbador da teoria quntica envolve as idias de Wener

    Heisenberg, que, em 1926, formulou o Princpio da Incerteza. Esse princpio surge da

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    necessidade prtica de prever a posio e a velocidade futuras de uma partcula a partir

    dos postulados feitos por Max Planck, que, em 1900, afirmou que a luz sempre vem em

    pequenos pacotes chamados quanta. Segundo Heisenberg (apud Hawking, 1988), os

    postulados de Planck implicavam que quanto mais exatamente se tentasse medir a

    posio de uma partcula, menos exatamente se conseguiria medir sua velocidade e

    vice-e-versa. O Princpio da Incerteza, que formaliza a restrio exatido com que se

    podem efetuar medidas simultneas, assinala o fim do sonho de uma teoria da cincia

    que propunha um modelo de universo completamente determinstico:

    (...) no se podem por hiptese prever eventos futuros com preciso, uma vez que tambm no possvel medir precisamente o estado presente do universo [...] a mecnica quntica, portanto, introduz um inevitvel elemento de imprevisibilidade ou casualidade na cincia (HAWKING,1988: 65).

    Alm disso, a mecnica quntica mostra que, neste processo de medio, h

    ainda uma indeterminao no que diz respeito s caractersticas do elemento avaliado,

    que pode tanto se comportar como uma partcula quanto como uma onda (de luz). O

    que determinar se ele uma partcula ou uma onda a observao. A mecnica

    quntica, desse modo, situa-se, em certa medida, numa relao contraditria com

    funcionamento do discurso cientfico, que se constri pela objetividade e neutralidade

    ao excluir o sujeito do processo.

    Mesmo que, para muitos, o observador no seja um sujeito autoconsciente,

    mas sim um dispositivo fsico que faz a medida, os sentidos a instaurados sobre a

    subjetividade surgem colocando em questo a posio de neutralidade do sujeito da

    cincia estabelecida, de onde agora emergem efeitos de uma outra posio do sujeito da

    cincia: aquela constituda uma noo de subjetividade que rompe com a neutralidade

    do sujeito do discurso cientfico. assim que Niels Bohr, em 1955, falando da fsica

    quntica que ajudou a criar, mostra essa outra cincia com seu outro sujeito que,

    contraditoriamente, constitui-se tanto pelos sentidos mecanicistas quanto pelos

    qunticos. Ele diz, em seu artigo Fsica Atmica e Conhecimento Humano:

    Em vista da concepo mecanicista da natureza no pensamento filosfico, compreensvel que s vezes se tenha visto na noo de complementaridade uma referncia ao observador subjetivo, incompatvel com a objetividade da descrio cientfica [...]

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    Longe de conter qualquer misticismo alheio ao esprito da cincia, a noo de complementaridade aponta para condies lgicas da descrio e da experincia na fsica atmica (BORN, 1995:115).

    Entretanto, no mesmo artigo, Born j anunciava certos efeitos dessa outra

    subjetividade ao afirmar tambm que:

    [...] devemos manter uma distino clara entre observador e contedo da observao, mas devemos reconhecer que a descoberta do quantum lanou uma nova luz sobre os prprios fundamentos da descrio da natureza, revelando pressupostos at ento despercebidos no uso racional dos conceitos em que se baseia a comunicao da experincia. [...] Enquanto, na concepo mecanicista da natureza, a distino sujeito-objeto era fixa, d-se espao a uma descrio mais ampla atravs do reconhecimento de que o uso coerente de nossos conceitos requer tratamentos diferentes para essa separao (BORN, 1995: 115-116). (Grifo nosso)

    Segundo Covalon em seu artigo Conscincia Quntica ou Conscincia

    Crtica3, foram outros fsicos, notadamente, Eugene Paul Wigner, que rompendo de

    forma mais decisiva com o preconstrudo mecanicista, destaca a necessidade do

    observador:

    Isso decorre do fato da teoria quntica ser de carter no determinstico, ou seja, trata-se de uma teoria para a qual a fixao do estado inicial de um sistema quntico (um tomo, por exemplo) no suficiente para determinar com certeza qual ser o resultado de uma medida efetuada posteriormente sobre esse mesmo sistema. Pode-se, contudo, determinar a probabilidade de que tal ou qual resultado venha a ocorrer. Mas, quem define o que estar sendo medido e tomar cincia de qual resultado se obtm com uma determinada medida o observador. Com isso, nas palavras de E. P. Wigner, "foi necessria a conscincia para completar a mecnica quntica". (COVALON, 2001)

    Contudo, mesmo aceitando, como tambm afirma Covalon (2001), que a

    introduo de elementos subjetivos na Fsica Quntica considerada altamente

    3 www.comciencia.br/reportagens/fisica/fisica14.htm

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    indesejvel, tendo sido tentadas diferentes formulaes para contornar esse problema,

    quero destacar aqui, que os pressupostos qunticos foram decisivos para a

    materializao de certas contradies no discurso da cincia de uma forma at agora

    incontornvel. E os seus efeitos podem ser observados, j que o sujeito que antes se

    constitua no discurso da cincia, exclusivamente, presente pela sua ausncia

    (PCHEUX, 1975: 71-98) passa a ser objeto de debate, agora, por sua possvel

    participao no processo de produo de conhecimento. E essa discusso decorre da

    assuno diria espetacular da mecnica quntica, que garante para o sujeito essa posio

    necessria e at ento negada para a construo da realidade.

    Quero tratar agora, de maneira bastante sucinta, de outros fundamentos que

    tambm constituem o campo das cincias exatas: o Teorema da Indefinibilidade, de

    Tarski e o Teorema da Incompletude, de Gdel. Esses fundamentos compem,

    juntamente com as noes da mecnica quntica, as relaes de sentidos que instituem o

    discurso da cincia contemporaneamente. O Teorema da Indefinibilidade, do polons

    Albert Tarski, proposto em 1930, afirma que o conceito da verdade para as sentenas

    de uma linguagem dada no pode ser consistentemente definido dentro dessa

    linguagem, de modo que para se chegar verdade que sustenta uma sentena

    necessrio, afim de evitar paradoxos semnticos, distinguir a linguagem de que se est

    falando (linguagem objeto) da linguagem de que se est usando (metalinguagem).

    Uma implicao disso envolve a necessidade de uma interpretao da linguagem

    utilizada, ou seja, deve-se aceitar, como prope Santos (2003)4, que uma mesma cadeia

    de sons ou de sinais escritos pode pertencer a linguagens diferentes, ser em ambas uma

    frase, mas com significados diferentes de tal modo que, numa, ela verdadeira,

    enquanto na outra falsa, ou seja, no diremos que uma frase verdadeira, mas sim que

    ela verdadeira numa certa linguagem. Assim, Tarski conclui que o que devemos

    procurar definir no um predicado geral de verdade, mas uma srie de predicados

    distintos (SANTOS, 2003: 24). Davidson, ao escrever sobre a proposta de Tarski,

    afirma: A menos que estejamos preparados para dizer que no existe nenhum conceito

    nico de verdade (mesmo enquanto aplicado a frases), mas apenas um nmero de

    conceitos diferentes para os quais usamos a mesma palavra, temos de concluir que h

    algo mais a respeito do conceito de verdade (DAVISON apud SANTOS 2003: 24).

    4 www.ifl.pt/main/Portals/0/ifl/people/pdfs/RSantos6.pdf

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    Essa situao envolvendo a constituio dos sentidos da lgica no discurso da

    cincia, mostra tambm um rompimento com o pr-construdo da lgica clssica

    (disjuntiva e portanto absoluta no que diz respeito a verdade). De fato, de acordo com

    Chateaubriand (2008)5 a concepo semntica da verdade de Tarski conduziu

    consolidao da concepo lingstica e matemtica da lgica na sua forma atual. Diz

    ainda, que a concepo absolutista de lgica que se encontra em Frege, em Russell e at

    mesmo em Hilbert, deu lugar a uma concepo relativista de lgica centrada na teoria

    de modelos e na teoria da prova como teorias de sistemas formais. O que,

    evidentemente, a aproxima dos fundamentos da mecnica quntica.

    J o teorema da Incompletude de Gdel proposto pelo matemtico Kurt Gdel,

    em 1931, na mesma poca das propostas de Tarski, envolve tambm uma ruptura com o

    discurso da cincia nos seus sentidos at esse momento constitudos sobre a natureza da

    matemtica. O teorema, nas palavras de Hawking (2001: 139), prope que dentro de

    qualquer sistema formal de axiomas, como a matemtica atual, sempre persistem

    questes que no podem ser provadas nem refutadas com base nos axiomas que definem

    o sistema. Em outras palavras, Gdel mostrou que certos problemas no podem ser

    solucionados por nenhum conjunto de regras e procedimentos. Hawking diz ainda que

    foi um grande choque para a comunidade cientfica, pois derrubou a crena generalizada

    de que a matemtica era um sistema coerente e completo baseado em um nico

    fundamento lgico.

    Isso posto, podemos considerar que esses fundamentos, construdos pelos

    sentidos da incerteza (HEISEMBERG, 1927), do indefinvel (TARSKI, 1930) e da

    incompletude (GDEL, 1931), materializam a discursividade da cincia

    contempornea, que se constri contraditoriamente ao negar os sentidos at ento

    construdos sobre a verdade e a subjetividade. De fato, a verdade absolutizada atravs

    dos grandes esquemas explicativos, j no mais se sustenta de forma hegemnica, j

    que, segundo Lyotard (2002), as transformaes de ordem cultural pelas quais passa a

    sociedade contempornea, envolvem o fim das metanarrativas. Conseqentemente,

    segundo ele, os grandes esquemas explicativos teriam cado em descrdito e no haveria

    mais garantias, posto que mesmo a cincia j no poderia ser considerada como a fonte

    da verdade.

    5 http://edsongil.wordpress.com/2008/08/17/semantica-formal/

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    A subjetividade, por sua vez, sustenta-se pelo embate entre o sujeito dono de

    si e apartado da realidade que procura representar e o outro, constitudo pela incerteza

    e pela necessidade freqente de transformao:

    A meu ver, cada um de ns, hoje, feito de uma briga ferrenha entre, de um lado, um agonizante homem moderno, porta-voz ou cavalo de seus fantasmas, fazendo de tudo para sobreviver e, de outro lado, um homem contemporneo, porta-voz ou cavalo do estranho que o habita, fazendo de tudo para advir. (ROLNIK, 1995: 57)

    O DISCURSO DA CINCIA E O DISCURSO DE SUA DIVULGAO: ENCADEAMENTOS, ARTICULAES E DELIMITAES

    Muita gente (inclusive eu) acha que o surgimento de um Universo to complexo, estruturado com base em leis simples, exige o apelo de algo chamado princpio antrpico, que nos remete de volta posio central, a qual por excesso de modstia, no reivindicamos, desde que fomos destronados por Coprnico6.

    Retomando a questo inicial envolvendo o aparecimento de alguns enunciados

    no discurso de divulgao cientfica, que parecem contradizer os sentidos deterministas

    do discurso da cincia, proponho agora que esses enunciados materializam, na

    divulgao cientfica, o discurso da cincia determinado pelo aparecimento da mecnica

    quntica e pelos teoremas da indefinibilidade e da incompletude. O enunciado da

    Revista Superinteressante, da edio 107, de agosto de 1996:

    Voc acha que o gato desta pgina est saltando do telhado de c para o telhado de l? Pura impresso. o mesmo gato em dois telhados ao mesmo tempo. Impossvel? No para a Fsica Quntica. Ela acaba de provar que um tomo capaz de estar em dois lugares na mesma frao de segundo.

    materializa no discurso de divulgao, sentidos sobre cincia, em que o pr-construdo

    da mecnica quntica determinante. A referncia ao gato remete ao experimento de

    raciocnio, conhecido pelo nome de Gato de Schrdinger, proposto pelo austraco

    Erwin Schrdinger. O experimento busca ilustrar o carter de incerteza que acompanha

    6 HAWKING, 2005: XII e XIII.

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    a caracterizao dos objetos qunticos: uma partcula/onda s se torna partcula ou onda

    a partir da ao do observador.

    O experimento de Schrdinger busca elucidar ainda que o gato poderia, em certo

    momento, estar vivo e morto ao mesmo tempo, assim como uma partcula e uma onda

    que seriam onda/partcula ao mesmo tempo. Observemos outro enunciado na mesma

    matria da revista Superinteressante, da edio 107, de agosto de 1996:

    O problema que para as regras qunticas nenhuma das duas possibilidades poderia ser excluda. Enquanto a caixa estivesse fechada e ningum olhasse l dentro, o gato permaneceria num estado indefinido, morto e vivo a um s tempo. Foi uma situao como essa que os fsicos americanos David Wineland e Chris Monroe criaram agora no laboratrio. No a mesma coisa, claro, pois eles observaram um simples tomo balanando de um lado para outro numa gaiola magntica. (Superinteressante, agosto, 1996)

    Nesses enunciados da Revista Superinteressante outros sentidos do discurso cientfico

    (pr-quntico) so questionados pela fsica quntica, agora envolvendo as teorias da

    lgica que funcionam nos termos de Pcheux (1975: 71) como uma atividade de

    triagem entre enunciados verdadeiros e enunciados falsos. De fato, a lgica clssica

    possibilitou o desenvolvimento tanto da fsica determinista/einsteineana quanto da fsica

    quntica. Contudo, os paradoxos que emergiram da mecnica quntica colocam em

    colapso a prpria lgica assentada em sentidos disjuntivos ou..., ou.... j que, voltando

    ao gato, haveria um estado indefinido em que o gato estaria vivo (partcula) e ao mesmo

    tempo morto (onda), mas destaque-se: isso ainda no seria a realidade, seria apenas

    probabilidade, pura matemtica, a realidade: o gato vivo ou morto, se constituiria no

    momento da observao.

    Outros materiais de divulgao de cincia, agora, um texto do cientista e

    divulgador de cincia Marcelo Gleiser produzido para a revista poca, uma revista no

    especializada em divulgar cincia, se mostra tambm revelador ao materializar o pr-

    construdo que nega os pressupostos mecanicistas e deterministas do discurso da

    cincia. Os enunciados Existe harmonia no mundo? e Qual o papel da imperfeio?

    (GLEISER, 2006: 88) produzem um efeito de sentido em que a imperfeio aceita

    como tendo j um espao, uma significao no discurso cientfico e conseqentemente

    no de divulgao. A dvida, neste caso, refere-se aos sentidos da harmonia.

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    De fato, a busca pela harmonia e, conseqentemente, pela beleza e simetria

    constituem o discurso da cincia desde Pitgoras, passando por Kepler chegando at a

    atualidade. Segundo Oliveira (2006)7, enquanto para Pitgoras e Kepler a harmonia era

    constitutiva das esferas celeste ou do cosmos, o que demonstraria a perfeio desses

    objetos, na atualidade, a harmonia pode ser entendida como a busca por leis fsicas

    fundamentais que, em princpio, descreveriam todos os fenmenos da natureza.

    Contudo, contemporaneamente, essa procura por leis fundamentais esbarra em

    contradies criadas dentro prprio discurso da cincia, tanto pela mecnica quntica

    quanto pela incompletude da matemtica e indefinibilidade da verdade na lgica. O

    discurso de divulgao materializa essa contradio ao relacionar os sentidos de

    imperfeio e de desequilbrio com os de equilbrio e imutabilidade quando no

    mesmo texto da revista poca, Marcelo Gleiser afirma:

    Vou escrever sobre a importncia da imperfeio. Todas as coisas fundamentais que existem dependem de um desequilbrio. Quando o sistema est equilibrado no se transforma [...] no h criao, nada acontece. (poca, 2006: 88).

    De tal modo, a relao interdiscursiva entre o discurso da cincia e o da

    divulgao, que particulariza esse ltimo, pode aqui ser compreendida como resultado

    da relao que articula e delimita o prprio discurso da cincia. Dito de outro modo, o

    discurso da cincia na atualidade resultado de demarcaes ou rupturas intra-

    ideolgicas definidas como aperfeioamento, correes, crticas, refutaes, negaes

    de certas ideologias ou filosofias juntamente com um processo de cumulao

    (PCHEUX e FICHANT, 1977), em que essas demarcaes estariam como que

    maturando para, ento, finalmente surgirem como sentidos determinantes dentro do

    discurso da cincia.

    Os enunciados, agora, da revista Scientific American Brasil e do livro de

    divulgao Uma Breve Histria do Tempo, de Stephen Hawking, respectivamente,

    materializam essa contradio no discurso cientfico apontando para um ponto sem

    regresso a partir do qual a cincia contempornea estaria comeando:

    [...] Apesar de perspectivas to distintas, ambas as abordagens descreveriam tudo que existe no Universo. No haveria maneira

    7 www.pordentrodaciencia.blogspot.com/2006/09/harmonia-csmica.html

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    de determinar qual descrio verdadeira[...](Scientific American Brasil, dezembro de 2005: 57). (Grifo nosso) [...] Qualquer teoria fsica sempre provisria, no sentido de que no passa de hiptese: no pode ser comprovada jamais. No importa quantas vezes os resultados de experincias concordem com uma teoria, no se pode ter certeza de que, da prxima vez, o resultado no vai contradiz-la.[...] (HAWKING, 1988: 23) (Grifos nossos)

    A conjuntura delineada nesse trabalho, portanto, me permite considerar um

    funcionamento para o discurso da cincia, em que convergem FD resultantes desse

    complexo demarcao/cumulao/transformao. Essas FD articulam-se tanto por uma

    lgica 1 (determinista), uma lgica 2 (relativista), uma matemtica 1 (determinista),

    uma matemtica 2 (matemtica ps-Gdel) e, finalmente pela FD da mecnica quntica,

    que se constitui pelos sentidos da incerteza, da probabilidade e da subjetividade. Essa

    constituio do discurso da cincia, por sua vez, vai produzir encadeamentos,

    articulaes e delimitaes no e com o discurso de divulgao regulando, em certa

    medida, neste ltimo, o que o sujeito divulgador pode e deve dizer sobre cincia.

    Contudo, do mesmo modo que no discurso cientfico, no discurso de divulgao

    tambm se inscrevem sentidos de uma cincia clssica, determinista. Assim, no

    estamos tratando, aqui, de um funcionamento discursivo homogneo, nem para o

    discurso da cincia nem para o discurso de divulgao.

    ALGUNS ENCAMINHAMENTOS

    Pcheux (1975) afirma que as condies de apario do que ele denomina

    cincias da natureza esto ligadas s novas formas de organizao do processo de

    trabalho impostas pela instaurao do modo de produo capitalista, assim como pelas

    novas condies da reproduo da fora de trabalho correspondente a essas formas de

    organizao:

    essas condies de apario esto ligadas, por isso mesmo, s ideologias prticas do modo de produo capitalista e relao que essas ideologias mantm com as dos modos de produo anteriores, e, atravs delas, com as cincias j comeadas (essencialmente, o continente matemtico). Em outras palavras, as idias cientficas, as concepes gerais e particulares

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    (epistemologicamente regionais) historicamente apontveis para cada poca dada em suma-, as ideologias tericas e as diferentes formas de filosofia espontnea que as acompanham no esto separadas da histria (da luta de classes). (PCHEUX, 1988:190-191).

    Uma questo que surge, ento, envolve a compreenso das condies de

    reproduo da fora de trabalho e das ideologias, que na conjuntura delineada nessa

    pesquisa, sustentam a produo do conhecimento cientfico e sua divulgao pela mdia.

    Algumas cifras apontam o lugar privilegiado, por exemplo, da fsica quntica na

    conjuntura econmica da atualidade, j que os investimentos nessa rea chegam a 6

    bilhes de dlares em tecnologia de imagem para a medicina, 10 milhes de dlares em

    medicina nuclear, 30 milhes em armas nucleares, 40 milhes em energia nuclear.

    Assim, se levamos em considerao que, numa sociedade capitalista como a nossa, o

    poder para poder dizer e poder fazer sustentado por condies de produo em

    que o capital tem preponderncia, parece no faltar para cincia quntica o que

    Pcheux (1975: 192) denomina pontos de apoio para uma transformao do campo,

    pontos de apoio onde as coisas andam. As idias qunticas, assim, tm uma

    materialidade especfica, que envolve sua inscrio em um processo histrico

    determinado fortemente por uma produo econmica, em que 30% da economia bruta

    do mundo devido ao conhecimento de como as partculas subatmicas funcionam.

    A divulgao cientfica feita pela mdia pode ser considerada um dos pontos de

    apoio da cincia quntica e esse ponto de apoio se d sob a forma de uma evidncia

    pela qual ficam apagadas as relaes de desigualdade-subordinao que determinam os

    interesses tericos em luta numa conjuntura dada (PECHEUX, 1975: 190). So

    palavras do fsico Leon Lederman, coordenador do Laboratrio Nacional de Acelerao

    de Partculas de Illinois, que trabalha produzindo conhecimento e tecnologia qunticos:

    [...] Parece uma arrogncia csmica acreditarmos que podemos prosseguir com uma declarao de que nada existe a menos que o observemos. No corao da fsica quntica est a incerteza. No apenas o Princpio da Incerteza, mas todo o conceito de incerteza. Ele parece cativante se espalha por toda a cincia. Mas ns sabemos que a mecnica quntica funciona, olhe a sua volta. S no sabemos por que funciona. (LEDERMAN, 2001. Episdio Tudo sobre a Incerteza, Programa Discovery na Escola) (Grifo nosso)

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    As idias de Lederman, assim, vo aparecer como uma revelao, como uma

    descoberta e uma conseqncia imediata disso , na verdade, um efeito de

    continuidade, que pode ser observado na conservao da posio de poder da cincia.

    Agora, esse lugar de poder, no mais garantido somente pela capacidade da cincia de

    explicar de forma inequvoca a realidade, mas tambm pela sua capacidade de dominar

    o conhecimento para a produo de uma tecnologia extremamente poderosa e cara. A

    afirmao de Lederman, quando assegura que se sabe como a mecnica quntica

    funciona, mas no se sabe por que funciona, ilustra esse ponto. Nesse contexto, em

    que o investimento nos produtos e no nos processos parece ser a tnica, a ruptura com

    os sentidos de um discurso cientfico entendido como uma atividade de triagem entre

    enunciados verdadeiros e enunciados falsos, o qual resultado da produo de um

    sujeito da cincia presente pela sua ausncia (PCHEUX, 1975:1997-98), fica

    mitigada.

    A parte disso, mesmo enfraquecido, esse conjunto de dizeres que surge parece

    aproximar o discurso dos cientistas e tecnlogos daquele dos literatos8. Discursos

    esses, segundo Pcheux (1982), separados por uma tradio escolar-universitria

    francesa, a qual construiu um abismo entre duas culturas designadas literria e

    cientfica:

    Ao longo de toda uma histria das idias que vai do sculo XVIII ao sculo XX (atravs de Auguste Comte A era da cincia e o positivismo lgico, face aos romantismos, s filosofias da histria e s disciplinas da interpretao), essas duas culturas no param de se distanciar uma da outra, veiculando, cada uma, no somente suas esperanas e iluses, como tambm suas manias e seus tabus, ignorando de uma maneira mais ou menos deliberada a prpria existncia da outra. (PECHEUX,1994: 56)

    Os enunciados da revista National Geographic Brasil e do programa de TV

    Discovery na Escola parecem mostrar essa aproximao entre os literatos e cientistas,

    quando observamos que os cientistas, o arquelogo Niels Lynnerup e o fsico Leon

    8 Por tradio, segundo Pecheux (1994), os profissionais da leitura de arquivos so os "literatos" (os historiadores, filsofos, pessoas relacionadas s letras), os quais esto autorizados a ler e interpretar e, por sua vez, esto sujeitos ao equvoco. Por outro lado, os cientistas so os que produzem tecnologia, criam, utilizam instrumentos e lidam com universo das significaes estabilizadas.

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    Lederman, respectivamente, no julgam imperativo livrar o seu discurso da

    ambigidade atravs de uma teraputica da linguagem que fixaria enfim o sentido

    legtimo das palavras, das expresses e dos enunciados (PECHEUX, 1982: 60):

    Niels Lynnerup, que usou o que a cincia tem de mais poderoso para penetrar nos segredos do Homem de Grauballe e que pode ver em seu computador as imagens tridimensionais dos ossos, msculos e tendes desses corpos, no se incomoda com os mistrios renitentes. Coisas estranhas acontecem no pntano. Sempre haver alguma ambigidade. Ele sorri. At gosto da idia de haver mistrios que nunca desvendaremos. (National Geographic Brasil, 2007: 94) (Grifo nosso) S podemos dizer que a natureza parece ser assim: a palavra incerteza por toda parte. [...] O Princpio da Incerteza pode ser chamado de princpio da tolerncia no sentido de engenharia sim, eles fazem funcionar mesmo se o ajuste no for perfeito. Mas tolerncia no sentido humano, precisamos ter pessoas perguntando umas s outras o que voc acha? Qual a sua opinio? Pode ser confortante para algumas pessoas ter certeza, certeza de que vai comer, certeza de que vai beber, de que vai fazer amor, mas certeza absoluta? Certeza absoluta entorpecimento, enfado. Ns precisamos da incerteza, o nico modo de prosseguir (LEDERMAN, 2001, Episdio Tudo sobre a Incerteza, Programa Discovery na Escola) (Grifo nosso)

    Resta saber se o discurso dos cientistas, a quem chamam de fabricantes-

    utilizadores de instrumentos e que por muito tempo, achavam poder escapar questo

    de saber para que eles servem e quem os utiliza (PCHEUX, 1982:.61), pode, numa

    sociedade como a nossa, se sustentar por deslocamentos que jogam com o equvoco,

    com a ambigidade. Talvez seja necessrio que tambm os literatos, que, segundo

    Pcheux (1982), acreditam poder ficar distncia da adversidade que ameaa

    historicamente a memria e o pensamento, abandonem a casa de seu mundo de arquivo

    particular. Leon Lederman j abandonou o seu mundo e est perguntando o que

    achamos: qual a nossa opinio?

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  • Para citar essa obra: MARTINS, Marci Fileti. O discurso da cincia na contemporaneidade: nada existe a menos que observemos. RUA [online]. 2009, no. 15. Volume 2 - ISSN 1413-2109 Consultada no Portal Labeurb Revista do Laboratrio de Estudos Urbanos do Ncleo de Desenvolvimento da Criatividade http://www.labeurb.unicamp.br/rua/ Laboratrio de Estudos Urbanos LABEURB Ncleo de Desenvolvimento da Criatividade NUDECRI Universidade Estadual de Campinas UNICAMP http://www.labeurb.unicamp.br/ Endereo: Rua Caio Graco Prado, 70 Cidade Universitria Zeferino Vaz Baro Geraldo 13083-892 Campinas-SP Brasil Telefone/Fax: (+55 19) 3521-7900 Contato: http://www.labeurb.unicamp.br/contato