martin-logan odyssey américa proibidaminada pelo azul discreto do logotipo da ml, e se esconde...

2
Em artigo intitulado Beleza Americana, ousei propor ao primeiro-ministro, cuja paixão pela música é conhecida, a compra de umas colu- nas Martin Logan Statement, que são hoje o exemplo maior – também no preço – da arte e engenho dos americanos no campo da re- produção sonora. Vivia-se então no oásis da euforia bolsista e os projectos megalómanos abundavam e pa- reciam perfeitamente exequíveis. Contrariando todas as previsões macroeco- nómicas, sou agora obrigado a escrever um artigo rectificativo que reduz – não em 10% mas para 10% – o orçamento necessário pa- ra comprar umas Martin Logan, como contri- buto para o esforço de contenção e redução do défice comercial sem afectar a bondade qualitativa da minha proposta inicial: as Odys- sey custam assim não 20 mil mas «apenas» 2 mil contos. As Odyssey, que são basicamente umas Prodigy (também aqui a seu tempo divulga- das: «O dia dos prodígios») em escala mais re- duzida, são a última etapa desse grandioso trabalho que consistiu em casar pela primei- ra vez um painel electrostático (médios e agu- dos) com um altifalante dinâmico (graves) sem que o ouvinte descortinasse de imedia- to onde se situava a fronteira acústica entre os dois. Durante anos tentei sem sucesso a cópu- la perfeita entre um painel electrostático Schackman e um altifalante de graves Kef, e os meus ouvidos estão particularmente bem sintonizados para este tipo de descontinuida- des. Talvez por isso, nunca fui um fanático das ML. Apanhava-as sempre em falta na passa- gem do testemunho: aquela terra de ninguém onde uma membrana, fina e leve como o ar, é obrigada a abrir mão do direito inalienável da música a respirar livremente, face ao poder ditatorial de um altifalante convencional, que se esforça sem êxito por esconder a opaci- dade do seu carácter. Até na música impera a diplomacia da força. Ainda recentemente, em casa de um au- diófilo ortodoxo de grande sensibilidade esté- tica e auditiva, um par de Quad 63, mesmo em condições precárias de colocação, mos- traram à saciedade como a «hibridez» de umas ML Ascent é um compromisso inaceitá- vel para quem sabe ouvir os sons que dão for- ma à música. Mas eis que a odisseia da ML na busca do velo de ouro do som termina onde as Odyssey começam. As águas puras, transparentes e claras do rio de registos agudos e médios de- saguam agora no oceano profundo dos graves sem que a rica fauna de sons se ressinta das inevitáveis diferenças de temperatura e acabe por morrer na praia da sala de audição por fal- ta de ar. É agora necessário subir muito alto, como na fotografia aérea, para que a zona de transição seja detectada na foz do piano, no delta das vozes e no estuário dos violoncelos e guitarras, confundindo-se com um vago efei- to de caixa. Que, aliás, é possível eliminar quase por completo, ao forrar (a ML vai ter de me pagar direitos por esta) com uma fina ca- mada de espuma (esponja de cor negra com perfil de bicos resulta bem) a intersecção dos dois elementos acústicos, isto é, a parede da caixa de graves imediatamente atrás da secção inferior do painel electrostático, onde se forma uma espécie de «garganta funda» ilu- minada pelo azul discreto do logotipo da ML, e se esconde também a luz-piloto da sobre- carga (se não os quer perder de vista, basta recortar os respectivos orifícios na espuma). Esta cópula perfeita (com preservativo de espuma para não engravidar os registos mé- dio-graves) deve-se em especial à utilização da técnica designada por ForceForward (na- da de segundos sentidos...) que consiste na montagem de um segundo altifalante na tra- seira da caixa de graves. Não para emular o efeito dipolo (emite som para a frente e para trás) do painel electrostático, mas para can- celar o reforço na zona dos 50Hz (que torna o som «boomy», tonitruante), e anular o can- celamento nos 100Hz (que retira impacto às percussões), típico da maior parte das salas de audição. Tornando o som mais ágil e arti- culado, obtém-se uma muito maior conso- nância entre dois tipos de transdução tão di- ferentes entre si ao ponto de serem incompa- tíveis. Na prática, isto significa que a colocação das Odyssey na sala deixaria de ser proble- mática, não fora o facto de os painéis preci- sarem de espaço atrás de si (não tanto para os lados onde se observa um nulo acústico) para melhor recriarem a ilusão de espaço e profundidade do palco sonoro. A posição de cada uma das colunas relativa ao ouvinte, em termos de distância, de inclinação e de di- recção continua, contudo, a ser crítica para se obter o desejado efeito holográfico – é como mergulhar mentalmente num holograma que TEXTO DE JOSÉ VICTOR HENRIQUES Na sua longa odisseia pelos mares transparentes da reprodução sonora, a Martin-Logan desembarcou de novo na ocidental praia lusitana América proibida MARTIN-LOGAN ODYSSEY Odyssey, o casamento perfeito entre poder e transparência A beleza e elegância do design e a estranha transparência do elemento activo, na sua moldura metálica de delicados favos, que permite ver através da música, não é alheia a este «encan- tamento» colectivo

Upload: others

Post on 13-Feb-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: MARTIN-LOGAN ODYSSEY América proibidaminada pelo azul discreto do logotipo da ML, e se esconde também a luz-piloto da sobre-carga (se não os quer perder de vista, basta recortar

Em artigo intitulado Beleza Americana, ouseipropor ao primeiro-ministro, cuja paixão pelamúsica é conhecida, a compra de umas colu-nas Martin Logan Statement, que são hoje oexemplo maior – também no preço – da artee engenho dos americanos no campo da re-produção sonora.

Vivia-se então no oásis da euforia bolsista eos projectos megalómanos abundavam e pa-reciam perfeitamente exequíveis.

Contrariando todas as previsões macroeco-nómicas, sou agora obrigado a escrever umartigo rectificativo que reduz – não em 10%mas para 10% – o orçamento necessário pa-ra comprar umas Martin Logan, como contri-buto para o esforço de contenção e reduçãodo défice comercial sem afectar a bondadequalitativa da minha proposta inicial: as Odys-sey custam assim não 20 mil mas «apenas» 2mil contos.

As Odyssey, que são basicamente umasProdigy (também aqui a seu tempo divulga-das: «O dia dos prodígios») em escala mais re-duzida, são a última etapa desse grandiosotrabalho que consistiu em casar pela primei-ra vez um painel electrostático (médios e agu-dos) com um altifalante dinâmico (graves)sem que o ouvinte descortinasse de imedia-to onde se situava a fronteira acústica entreos dois.

Durante anos tentei sem sucesso a cópu-la perfeita entre um painel electrostáticoSchackman e um altifalante de graves Kef, eos meus ouvidos estão particularmente bemsintonizados para este tipo de descontinuida-des. Talvez por isso, nunca fui um fanático dasML. Apanhava-as sempre em falta na passa-gem do testemunho: aquela terra de ninguémonde uma membrana, fina e leve como o ar,é obrigada a abrir mão do direito inalienável

da música a respirar livremente, face ao poderditatorial de um altifalante convencional, quese esforça sem êxito por esconder a opaci-dade do seu carácter. Até na música impera adiplomacia da força.

Ainda recentemente, em casa de um au-diófilo ortodoxo de grande sensibilidade esté-tica e auditiva, um par de Quad 63, mesmoem condições precárias de colocação, mos-traram à saciedade como a «hibridez» deumas ML Ascent é um compromisso inaceitá-vel para quem sabe ouvir os sons que dão for-ma à música.

Mas eis que a odisseia da ML na busca dovelo de ouro do som termina onde as Odysseycomeçam. As águas puras, transparentes eclaras do rio de registos agudos e médios de-saguam agora no oceano profundo dos gravessem que a rica fauna de sons se ressinta dasinevitáveis diferenças de temperatura e acabepor morrer na praia da sala de audição por fal-ta de ar. É agora necessário subir muito alto,como na fotografia aérea, para que a zona detransição seja detectada na foz do piano, nodelta das vozes e no estuário dos violoncelose guitarras, confundindo-se com um vago efei-to de caixa. Que, aliás, é possível eliminar

quase por completo, ao forrar (a ML vai ter deme pagar direitos por esta) com uma fina ca-mada de espuma (esponja de cor negra comperfil de bicos resulta bem) a intersecção dosdois elementos acústicos, isto é, a parededa caixa de graves imediatamente atrás dasecção inferior do painel electrostático, ondese forma uma espécie de «garganta funda» ilu-minada pelo azul discreto do logotipo da ML,e se esconde também a luz-piloto da sobre-carga (se não os quer perder de vista, bastarecortar os respectivos orifícios na espuma).

Esta cópula perfeita (com preservativo deespuma para não engravidar os registos mé-dio-graves) deve-se em especial à utilizaçãoda técnica designada por ForceForward (na-da de segundos sentidos...) que consiste namontagem de um segundo altifalante na tra-seira da caixa de graves. Não para emular oefeito dipolo (emite som para a frente e paratrás) do painel electrostático, mas para can-celar o reforço na zona dos 50Hz (que torna osom «boomy», tonitruante), e anular o can-celamento nos 100Hz (que retira impacto àspercussões), típico da maior parte das salasde audição. Tornando o som mais ágil e arti-culado, obtém-se uma muito maior conso-nância entre dois tipos de transdução tão di-ferentes entre si ao ponto de serem incompa-tíveis.

Na prática, isto significa que a colocaçãodas Odyssey na sala deixaria de ser proble-mática, não fora o facto de os painéis preci-sarem de espaço atrás de si (não tanto paraos lados onde se observa um nulo acústico)para melhor recriarem a ilusão de espaço eprofundidade do palco sonoro. A posição decada uma das colunas relativa ao ouvinte, emtermos de distância, de inclinação e de di-recção continua, contudo, a ser crítica para seobter o desejado efeito holográfico – é comomergulhar mentalmente num holograma que

TEXTO DE JOSÉ VICTOR HENRIQUES

Na sua longa odisseia pelos mares transparentes da reprodução sonora,

a Martin-Logan desembarcou de novo na ocidental praia lusitana

América proibidaMARTIN-LOGAN ODYSSEY

Odyssey, o casamento perfeitoentre poder e transparência

A beleza e elegância do design e a estranha transparência doelemento activo, na sua moldurametálica de delicados favos, quepermite ver através da música,não é alheia a este «encan-tamento» colectivo

Page 2: MARTIN-LOGAN ODYSSEY América proibidaminada pelo azul discreto do logotipo da ML, e se esconde também a luz-piloto da sobre-carga (se não os quer perder de vista, basta recortar

à vista desarmada parece não fazer sentido.Dizer que a performance das Martin Logan

Odyssey não cessa de me surpreender pelapositiva é dizer pouco; não dizer que toda a fa-mília as prefere às portentosas WilsonWatt/Puppies System 6 – provavelmente asmelhores colunas de som do mundo dentroda sua classe – seria mentir, por muito absur-do que isso se apresente ao meu entendi-mento das coisas do som; esconder que al-guns amigos seleccionados consideram o somdas Odyssey pouco menos que mágico, seriafaltar à verdade.

Por certo que a beleza e elegância do de-sign e a estranha transparência do elementoactivo (membrana de Mylar), na sua moldurametálica de delicados favos, que permite veratravés da música e mergulhar no espaço vir-tual, onde evoluem vozes e instrumentos tor-nados reais pela perfeição na reprodução detons e timbres, não é alheia a este «encan-tamento» colectivo. Mas, quando dou comi-go a ouvir diferenças entre cabos que antesme pareciam iguais, entre diferentes micro-fones utilizados num mesmo «take», entre ins-trumentos de timbres aparentemente indistin-tos; quando o prazer de ouvir música é inde-pendente do nível de pressão sonora, pergun-to-me se o rigor da fase – só possível quan-do todos os sons (acima dos 250Hz, nestecaso) têm origem num mesmo plano – nãoé o factor mais importante para um meca-nismo de audição humano incapaz de detec-

tar diferenças de amplitude inferiores a 1dB(uma diferença de potência de 26%) mas ca-paz de detectar variações no domínio da fre-quência de 0,06% e no domínio do tempo de0,5 milisegundos! Não é pela intensidade(amplitude) do choro mas pela diferença detimbre (frequência) que uma mãe detecta elocaliza o filho entre várias crianças. Talvez se-ja por isso que a minha esposa gosta tantodelas. Estou certo que Catarina vai ser damesma opinião.

Sendo pai, não terei essa capacidade ina-ta, mas consigo distinguir umas Martin Lo-gan Odyssey entre as dezenas de outras colu-nas de som que ouvi até hoje. E apetece-mepegar-lhes ao colo e beijá-las – ficar com elaspara sempre. ■[email protected]

As Odyssey foram acolitadas pelo se-guinte equipamento complementar:Leitor SACD Sony XB770 QSPreamplificador: Krell KCTAmplificadores: Krell FPB250McCabos: Nordost ValhallaPode ouvir as Odyssey/Prodigy (sem pa-gar nada!)Em Lisboa: Viasónica, Calçada Poço deMouros, 55 (ao Chile), telef. 21 8135083No Porto: Imacústica, R. Duque de Salda-nha, 424, telef. 22 5377319