marlon hernandes cantarin - uel.br · dedico este trabalho à minha mãe inaura hernandes ......

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MARLON HERNANDES CANTARIN “OH! EU SOU QUÍMICO!”: UM OLHAR LATOURIANO DE PERFORMANCE EM UM LABORATÓRIO DE QUÍMICA DO ENSINO MÉDIO Londrina - PR 2014

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  • MARLON HERNANDES CANTARIN

    OH! EU SOU QUMICO!: UM OLHAR LATOURIANO DE

    PERFORMANCE EM UM LABORATRIO DE QUMICA DO

    ENSINO MDIO

    Londrina - PR

    2014

  • MARLON HERNANDES CANTARIN

    OH! EU SOU QUMICO!: UM OLHAR LATOURIANO DE

    PERFORMANCE EM UM LABORATRIO DE QUMICA DO

    ENSINO MDIO

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Ensino de Cincias e

    Educao Matemtica, da Universidade

    Estadual de Londrina, como requisito

    parcial obteno do ttulo de mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Moiss Alves de

    Oliveira

    Londrina

    2014

  • MARLON HERNANDES CANTARIN

    OH! EU SOU QUMICO!: UM OLHAR LATOURIANO DE

    PERFORMANCE EM UM LABORATRIO DE QUMICA DO ENSINO

    MDIO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Ensino de Cincias e Educao

    Matemtica, da Universidade Estadual de

    Londrina, como requisito parcial obteno do

    ttulo de mestre.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________

    Prof. Dr. Moiss Alves de Oliveira

    Universidade Estadual de Londrina

    _____________________________

    Prof. Dr. Marcelo Pimentel da Silveira

    Universidade Estadual de Maring

    _____________________________

    Prof. Dr. Rosana Figueiredo Salvi

    Universidade Estadual de Londrina

    Londrina, 28 de abril de 2014.

  • Dedico este trabalho minha me Inaura Hernandes

    Cantarin (in memorian), a meu pai Joo Cantarin, pelos

    incansveis dilogos durante esta jornada, a meu irmo

    Marton, que sempre trouxe palavras de nimo para seguir

    em frente e, em especial, esposa Elisangela Franco

    Cantarin e minhas duas princesas Yasmin e Giovanna,

    que foram meu flego constante, essncia e incentivo a

    cumprir esta misso acadmica.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao iniciar a ao de agradecer, vem a pergunta: a quem realmente

    demonstrar gratido? uma atitude rdua que pode deixar no caminho marcas de injustia.

    Em primeiro lugar, a Deus, que foi minha fonte de inspirao, fora e determinao para

    trilhar cada passo nesta jornada. Mas quero aqui valorizar a todos que me auxiliaram a

    produzir este enovelado de elocues, pessoas especiais e determinantes nesta caminhada que

    traz sinais de pausa, mas que podem sempre estar em aberto.

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Moiss Alves de Oliveira, por toda a cautela,

    pacincia e sabedoria em orientar algum que estava (des)territorializado com o fluxo terico.

    Pelas vrias chamadas quando me deslocava de nossa linha de pesquisa, pela escrita

    marlatouriano, mas, acima de tudo, pelo que significa e pelo que contribuiu para minha

    formao acadmica, os meus cordiais agradecimentos.

    Ao Grupo de Estudos Culturais das Cincias e da Educao, que, em

    alguns momentos, contribuiu com a pluralidade de olhares a visualizar as fragilidades deste

    trabalho em constante transformao.

    Aos Professores Drs. Rosana Figueiredo Salvi e Marcelo Pimentel da

    Silveira, por terem prontamente aceitado a fazer parte da banca de defesa deste trabalho, pelo

    leque de sugestes que contriburam para uma maior valorizao desta pesquisa. Fica aqui, o

    meu muito obrigado.

    minha chefia Professora Yolanda, sua assessora tcnica, Professora

    Kelly, e coordenadora da Educao Bsica Pedagoga Solange, do Ncleo Regional da

    Educao de Cianorte, por toda a credibilidade, confiana e oportunidade que me concederam

    durante todo este trajeto a conquistar este sonho.

    Ao meu grande amigo e irmo Renato, por todo o apoio tcnico e esttico a

    este trabalho, no medindo esforo para me ajudar em qualquer dia da semana noite,

    sbados e domingos, inclusive em feriados, valeu mesmo companheiro, h atitudes que ficam

    rubricadas em nossa histria, obrigado por fazer parte.

    No podia esquecer tambm de agradecer ao Silvio, Felipe, Liana, Valria

    e Rogrio, amigos do NRE, que me auxiliaram tambm em algumas etapas deste trabalho,

    ouvindo, discutindo e contribuindo com a desconfortvel escrita deste texto.

  • A todos aqueles que, na ausncia de minhas atribuies no trabalho,

    substituram-me e deram andamento s atividades, para que eu pudesse seguir esta trajetria.

    Portanto, obrigado em especial a Ftima, Andria, grupo de Qumica do NRE de Cianorte

    e outros que tambm me sustentaram nestes momentos.

    Aos meus actantes, alunos do 3 ano B, direo, equipe pedaggica e

    funcionrios, que foram primordiais para o desenvolvimento desta pesquisa. Em especial,

    Professora Irene, que abriu as portas de seu espao pedaggico para um estrangeiro

    etnogrfico, a qual sempre esteve disposio para contribuir com o enriquecimento deste

    trabalho, que Deus abenoe sempre voc e sua famlia.

    Enfim, obrigado a todos que corroboraram com o desenvolvimento deste

    trabalho e seu respectivo pesquisador, propiciando a me tornar um sujeito mais reflexivo,

    crtico e de olhar desapegado. O campo de lutas continua; assim, se cheguei at aqui foi

    graas a todos vocs que me apoiaram, deram fora, sustentaram-me nos momentos difceis.

    a todos, enquanto meus aliados e actantes, que dedico este material de pesquisa, fica a

    eterna...

  • Existem momentos na vida onde a questo

    de saber se se pode pensar diferentemente

    do que se pensa, e percerber

    diferentemente do que se v,

    indispensvel para continuar a olhar ou a

    refletir

    Michel Foucault

  • CANTARIN, Marlon Hernandes. Oh! Eu sou qumico!: um olhar latouriano de

    performance em um laboratrio de Qumica do Ensino Mdio. 2014. 174f. Dissertao

    (Mestrado em Ensino de Cincias e Educao Matemtica) Universidade Estadual de

    Londrina, Londrina, 2014.

    RESUMO

    Este trabalho de pesquisa foi realizado no Colgio Estadual Itacelina Bittencourt EFM, na

    cidade de Cianorte, noroeste do Paran. Buscamos, pelas lentes dos Estudos Culturais da

    Cincia, em uma perspectiva latouriana, realizar um estudo etnogrfico acerca do fluxo das

    diferenas no laboratrio de Cincias desse colgio. Nosso interesse central acompanhar e

    descrever como, no caso especfico de uma atividade prtica de Qumica para alunos do 3

    ano do Ensino Mdio, os actantes estabelecem conexes evocando constantemente o par

    humano e no humano. O laboratrio escolar e seus instrumentos, durante a realizao da

    atividade prtica, so institudos como um lcus, ou seja, um espao de significao, saindo

    de um arsenal de recursos tericos e materiais para uma viso panormica, rumo

    concretizao do efeito pedaggico pretendido pela professora de Qumica. Os no humanos

    ensinam tanto como o humano na captura e sedimentao de informaes, atuam no processo

    de (re) produo do laboratrio como local no apenas do saber qumico, mas tambm na

    incluso de comportamentos e valores prprios da suposta comunidade cientfica. Portanto, as

    atitudes dos alunos em relao prtica demonstraram uma performance, quando, por

    exemplo, um desses, ao entrar no laboratrio, afirma: sou qumico, professora. Uma das

    possibilidades de leitura dessa prtica oportuniza observar o princpio da simetria na

    performance desse par. Naquele contexto, no laboratrio, observamos um processo de

    mobilizao de elementos humanos e no humanos, os quais, na relao, foram alistados em

    nome da retrica da cincia e que, ao mesmo tempo, tornam o laboratrio um local, um

    espao de translao, em que emerge um tipo especfico de performance: a de qumico.

    Palavras-chave: Laboratrio escolar. Actantes. Performance.

  • CANTARIN, Marlon Hernandes. Oh! I am a chemist!: a Latourian gaze at performance

    in a high school Chemistry laboratory. 2014. 174f. Dissertation (Masters in the Teaching

    of Science and Mathematical Education) Universidade Estadual de Londrina, Londrina PR

    Brazil, 2014.

    ABSTRACT

    Current research was performed in the government-run Itacelina Bittencourt High School in

    Cianorte, a town in the northwestern region of the state of Paran, Brazil. Investigation was

    undertaken from the perspective of Science Cultural Studies within a Latourian stance on the

    ethnography of the flow of differences in the Science Laboratory of the school. The main

    interest was the follow up and description of how agents in the specific case of a Chemistry

    practical activity for school-leaving students establish connections through the constant

    suggestions of the human and non-human pair. During the practical activity, the school

    laboratory and its instruments are a locus, or rather, a significant space, emerging from an

    arsenal of theoretical and material resources towards an overall view and the concretization of

    the pedagogical effect aimed at by the Chemistry teacher. Non-humans teach as much as

    humans in the retrieval and sedimentation of information. They act in the (re)production of

    the laboratory as a place of knowledge on chemistry and in the inclusion of behavior and

    values proper to the scientific community. Consequently, the students attitudes with regard

    to experience showed a performance as, for instance, when one of them stated at the door of

    the laboratory: Teacher, I am a chemist! One possible interpretation of such a practice is the

    opportunity to see the symmetry principle in the pairs performance. The mobilization of the

    human and non-human factors may be observed in the context of the laboratory, listed in the

    name of the rhetoric of science within the relationship. At the same time, they transform the

    laboratory into a place, a translation space, in which a specific type of the chemists

    performance emerges.

    Keywords: School laboratory. Agents. Performance.

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Smbolos que auxiliaram nas descries iniciais. ....................... 62

    Quadro 2 Nomes fictcios dos alunos. ........................................................... 71

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Estante onde ficavam os livros de todas as disciplinas do 3 ano B. ...................... 44

    Figura 2 TV Pendrive da sala de aula do 3 ano B perodo diurno. ................................... 46

    Figura 3 Ala administrativa e o laboratrio. .......................................................................... 51

    Figura 4 Sala de hora-atividade dos professores. .................................................................. 52

    Figura 5 Sala do 3 ano B: professora de Qumica, alunos e pesquisador em uma das aulas

    tericas. ..................................................................................................................................... 53

    Figura 6 Laboratrio de Cincias. ......................................................................................... 54

    Figura 7 Pedagoga transmitindo recados aos alunos durante a atividade prtica. ................. 57

    Figura 8 Pedagoga acompanhando uma das atividades prticas. .......................................... 57

    Figura 9 Diretora Charlote durante uma aula terica no laboratrio. .................................... 57

    Figura 10 Anlise dos documentos do Colgio Itacelina Bittencourt na biblioteca. ............. 67

    Figura 11 Actantes humanos e no humanos deslocando interesses. ..................................... 79

    Figura 12 Actantes combinando-se em torno do conceito de hidrocarbonetos. .................. 100

    Figura 13 Actantes realizando os procedimentos prticos. ................................................. 115

    Figura 14 Actantes emitindo a voz Eu sou qumico. ....................................................... 122

    Figura 15 Atores hbridos. ................................................................................................... 128

    Figura 16 Interao entre o par de agentes. ......................................................................... 130

    Figura 17 Actantes Efeito de sentido a flor. .................................................................. 133

    Figura 18 Actantes Efeito de sentido o cavalinho. ....................................................... 134

    Figura 19 Atores em ao. ................................................................................................... 136

    Figura 20 As vozes dos elementos humanos e no humanos. ............................................. 136

    Figura 21 Par humano e no humano promovendo estratificaes. .................................... 142

    Figura 22 Atores hbridos desviando-se da performance planejada. .................................. 144

  • SUMRIO

    1 SINALIZAES DE UM ENSAIO DE CAMPO ............................................................ 12

    2 ELEMENTOS TERICOS QUE ME MOVEM ............................................................. 20

    2.1 SINTONIZANDO A FREQUNCIA TERICA .............................................................................. 20

    2.2 CONECTANDO-SE PERFORMANCE ...................................................................................... 27

    2.3 RELEVNCIAS DOS ESTUDOS DE LABORATRIO ................................................................... 31

    3 GARIMPANDO UMA TRILHA METODOLGICA .................................................... 38

    3.1 ACHANDO UMA PORTA: A EMISSO DO PASSE LIVRE ............................................................ 38

    3.2 DOS BASTIDORES AO: ANUNCIANDO OS ACTANTES ....................................................... 42

    3.3 OS LAOS EM TORNO DO LABORATRIO .............................................................................. 48

    3.3.1 As Primeiras Conexes .................................................................................................... 50

    3.3.2 O Laboratrio e Suas Circulaes ................................................................................... 53

    3.4 O ESTILO METODOLGICO: REFLEXO DAS VOZES DO CAMPO ................................................ 59

    4 AS PRIMEIRAS INTERAES COM AS ATIVIDADES DO COLGIO ................. 76

    4.1 A TV PENDRIVE ENQUANTO ALIADA NO-HUMANA ............................................................ 78

    4.2 O ALICIAMENTO DO LIVRO DIDTICO DE QUMICA .............................................................. 96

    5 AS VASCULARIZAES DO LABORATRIO ESCOLAR .................................... 108

    5.1 O FLUXO SANGUNEO DOS NOVOS ALICIADOS .................................................................... 109

    5.2 A PARIDADE DE ACTANTES MUDANDO O EFEITO DO SENTIDO............................................. 126

    6 ALGUMAS CONSIDERAES ..................................................................................... 150

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 160

    ANEXO .................................................................................................................................. 171

  • 12

    1 SINALIZAES DE UM ENSAIO DE CAMPO

    Esta proposta de dissertao traz, em certa medida, um estudo etnogrfico

    de um observador que leva consigo a experincia de professor e qumico a pesquisar um

    laboratrio1 escolar do Ensino Mdio, do municpio de Cianorte. Como sujeito da

    experincia, enquanto acadmico na Graduao em Qumica e, depois, como professor dessa

    disciplina no Ensino Mdio tanto de escolas pblicas como privadas, minhas heranas

    epistemolgicas faziam-me transitar nos laboratrios dessas instituies de ensino e visualiz-

    los como grandes aliados para o ensino de Qumica.

    Enquanto professor de Qumica, ao deslocar meus alunos ao laboratrio

    escolar, tinha a viso de que este auxiliava na ilustrao dos conceitos qumicos, que poderia

    instigar e motivar os alunos com o intuito de despertar seu interesse para a cincia qumica

    escolar. Como cita Hodson (1988, p. 14), a tica que tinha desse espao era a de um modelo

    verificador da cincia, de confirmao das teorizaes qumicas pelo poder de visualizao

    que trazia para aqueles que ali transitavam. E, ao mesmo tempo, observava o envolvimento

    dos alunos no espao laboratorial, ao comprovar as teorizaes qumicas por meio de prticas

    que demonstravam ser verdades cientficas. Essa era minha inteno ao conduzir os alunos

    ao laboratrio, com o intuito de mostrar o que essa disciplina poderia oferecer, objetivando

    que estes adquirissem um fascnio por essa cincia escolar.

    Depois que passei a ser coordenador de Qumica do Ncleo Regional da

    Educao, cuja nomenclatura oficial na SEED2 tcnico-pedaggico, minha viso desse

    espao laboratorial modificou em funo da intensidade quanto ao uso dos documentos

    oficiais, como PPP3, PPC

    4, PTD

    5, RE

    6, DCEs

    7 e CEA

    8 e pelo auxlio pedaggico que conferia

    aos professores dessa disciplina referente aos municpios jurisdicionados a essa instituio.

    Assim, o laboratrio, em minha tica, perpassou o status de ilustrao, desmitificao terica

    e aplicao mecanicista de procedimentos laboratoriais com resultados deslumbrantes,

    passando a ser visto como um instrumento que auxiliava em reflexes e conexes com o

    cotidiano, a desenvolver a argumentao cientfica, que estabelece articulaes entre teoria e

    1 Palavra adaptada do francs laboratoire, que designa lugar onde so feitas experincias. Tambm derivada do latim

    cientfico laboratorium, que significa local de trabalho (PARAN, 2008). 2 Secretaria de Estado da Educao. 3 Projeto Poltico Pedaggico. 4 Proposta Pedaggica Curricular. 5 Plano de Trabalho Docente. 6 Regimento Escolar. 7 Diretrizes Curriculares Estaduais. 8 Caderno de Expectativa de Aprendizagem.

  • 13

    prtica, em que os alunos participam do desenvolvimento dos conceitos qumicos, no qual os

    professores estabelecem o papel de mediadores e no como um facilitador do conhecimento,

    propiciando que os professores oportunizem seus alunos a se deslocar do senso comum ao

    cientfico.

    Assim, o laboratrio escolar poderia propiciar um ensino de Qumica por

    meio de problematizao, sem ser visto como um local de utilizaes pontuais, mas sim de

    continuidade com as teorizaes qumicas e suas relaes com a sociedade. Em relao ao

    papel da experimentao no ensino de Cincias, Giordan (1999, p. 43) menciona que os

    alunos [...] costumam atribuir experimentao um carter motivador, ldico [...]. Quanto

    aos docentes, [...] no incomum ouvir de professores a afirmativa de que a experimentao

    aumenta a capacidade de aprendizado [...], pois, segundo o relato desses profissionais da

    educao, a experimentao possibilita que os alunos se envolvam com maior propriedade nos

    temas da cincia. Realmente, essa foi uma das caractersticas que encontrei durante minha

    funo enquanto coordenador, ou seja, laboratrios escolares que se configuravam como

    verdadeiros locais de ao, enquanto outros se apresentavam como lugares estticos, com

    atribuies que se deslocavam do seu papel no ambiente escolar. Tais dicotomias foram

    criando em mim um desejo de estudar esse espao mais de perto.

    Somado a isso, chego docncia no nvel superior de ensino, onde tive a

    oportunidade, por dois anos, de ministrar as disciplinas de Qumica e Fsica Ambiental,

    Qumica Geral e Orgnica, Fsica e Metodologia e Instrumentao para o Ensino de Cincias,

    disciplinas que tambm me conduziam, juntamente com os acadmicos, ao espao

    laboratorial, trazendo sinalizaes desse local como um ponto de passagem obrigatrio.

    Guiado por esta hibridizao de experincias com o laboratrio escolar e

    acadmico, com a vontade de estudar com maior propriedade esse local no qual circula o

    elemento cognitivo, atrelado ao senso crtico que adquiri durante essa trajetria e com um

    intuito de trazer novos olhares ao sistema educacional, ingressei no Programa de Ensino de

    Cincias e Educao Matemtica da UEL9, com o objetivo de realizar pesquisas referentes aos

    estudos de laboratrio. Assim, como menciona Larrosa (2002, p. 24), ao relacionar o sujeito a

    sua experincia, [...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar [...] suspender a

    opinio, suspender o juzo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ao [...],

    estabeleo relao com esta pesquisa, sendo preciso reduzir nossas aes, gerar interrupes e

    acompanhar com mais afinco e pacincia o tempo e o espao quanto ao que o campo ir nos

    9 Universidade Estadual de Londrina.

  • 14

    falar, sem nos apegarmos ao que representa a Cincia e o que , mas descrev-la pelo que ela

    faz e chegar a ser o que .

    Dessa forma, esta pesquisa tem como eixo central a perspectiva de Bruno

    Latour, considerado por muitos como filsofo, socilogo e at antroplogo, ttulos dos quais o

    prprio autor busca fugir, e, caso realizasse uma tentativa de se posicionar, considerar-se-ia

    como um sujeito hbrido (LATOUR, 2004b), entre as classificaes que a comunidade

    cientfica poderiam lhe nomear.

    Bruno Latour nasceu na cidade de Beaune, Borgonha, em 1947, proveniente

    de uma famlia de viticultores, onde teve os primeiros passos como filsofo e antroplogo. De

    1982 a 2006, foi professor do Centre de Sociologie de IInnovation na cole Nationale

    Suprieure des Mines em Paris e, por vrios perodos, professor visitante na UCSD, na Escola

    de Economia de Londres e da disciplina de Histria da Cincia no departamento da

    Universidade de Harvard. A partir de outubro de 2013, professor do Centennial, no LSE,

    Londres, alm de ser diretor do programa TARDE (Teoria Ator-rede e Pesquisa em

    Ambientes Digitais). (FREIRE, 2006; LATOUR, 2011).

    Enquanto pesquisador, Latour realizou investigaes na rea de Sociologia

    de Desenvolvimento e acabou se interessando pelas Cincias Sociais, migrando para a

    Antropologia e, posteriormente, realizando estudos etnogrficos sobre laboratrios cientficos,

    com o intuito de analisar a Cincia em ao e, consequentemente, como esta produz fatos e

    artefatos.

    Na Frana, Latour e Michel Callon, ambos pertencentes ao Centre de

    Sociologie de lInnovation (CSI) da cole Nationale Suprieure des Mines, sugerem a criao

    de uma nova disciplina, denominada Antropologia da Cincia, tendo como objeto de estudo a

    inovao cientfica e a tcnica, com um olhar desapegado da cincia convencional,

    alimentando-se da Filosofia das Cincias de Michel Serres, do qual tomaram de emprstimo o

    termo traduo, tendo tambm como fonte de suas discusses o princpio metodolgico de

    simetria do filsofo e socilogo David Bloor, em relao ao seu Programa Forte de

    Sociologia, do qual Latour buscou ampliar as discusses e reflexes, pautado em sua prpria

    perspectiva em relao cincia (FREIRE, 2006).

    Valendo-me do olhar latouriano de que o contexto e o contedo no podem

    ser utilizados para explicar a prtica laboratorial10

    , pois so produtos do trabalho dos autores

    10 Para Hodson (1988, p. 2), existe uma diferena entre experimento e prtica laboratorial: O trabalho laboratorial pode ser

    conduzido [...], para demonstrar um fenmeno, ilustrao de um princpio terico, coletagem de dados, teste de hipteses,

    desenvolvimento de tarefas bsicas de observao e mensura, familiarizao com os aparatos e propiciao de um show de

    sinais luminosos, estrondos e efervees. Assim, experimentos tomam dimenses mais amplas, que perpassam as

  • 15

    para resolver suas diferenas e inventar o contexto em que atuam, busco trazer associaes

    dessa perspectiva para o laboratrio escolar e suas relaes com a cincia qumica (LATOUR,

    1994). Refiro-me sobre contexto e contedo no sentido de que o que acontece durante uma

    prtica de laboratrio escolar no se limita apenas a esses termos, pois as movimentaes que

    ali so geradas fazem parte de uma rede de conexes complexa e imbricada, que precisamos

    olhar com maior cautela e minuciosidade, para compreender os elementos significativos que

    por ali circulam.

    importante salientar que Latour realizou estudos etnogrficos com

    cientistas em laboratrios de pesquisa, experincias estas diferenciadas do contexto escolar no

    qual inicio minha jornada como pesquisador. Assim, busco trazer reflexes e analogias de sua

    perspectiva para um laboratrio escolar e as possveis contribuies que esse exerccio pode

    gerar ao ensino de Qumica.

    Em particular, pretendo, por meio de meu objeto de estudo, o laboratrio

    escolar, pelo olhar latouriano, trazer reflexes e discusses sobre as possibilidades que a TV

    multimdia, o livro didtico de Qumica, o laboratrio escolar e outros aliados no humanos11

    nas contingncias do Colgio Estadual Itacelina Bittencourt12

    , do municpio de Cianorte, em

    conjunto com a professora de Qumica e os alunos do 3 ano B trouxeram de significaes

    para uma performance especfica desses actantes, levando alguns humanos/no humanos,

    durante as cenas prticas, a emitirem vozes de que eram qumicos.

    A expectativa deste trabalho trazer o exerccio de olhar para as aulas

    tericas/prticas com o princpio de simetria sobre as aes que so movimentadas pelos

    actantes13

    humanos e no humanos, desfocando da possvel centralidade da dimenso

    cognitiva, como se o contedo e o contexto gerassem uma mistura homognea,

    proporcionando, assim, uma ampliao da tica desordenada e heterognea desse coletivo que

    aplicaes realizadas em um contexto escolar, so eventos projetados e amplamente controlados por cientistas, e que suprem

    suas necessidades por meios poderosos de aquisio e teste de conhecimento, que se tornam grandes aliados para que um fato

    se efetive, ganhe reconhecimento e aceitabilidade da comunidade cientfica. Assim, este trabalho utilizar como padro o

    termo prtica laboratorial, ao se referir s atividades realizadas no laboratrio escolar. 11 Bruno Latour utiliza esse termo com hfen (no-humano[s]). Optamos por utiliz-lo sem hfen (no humano[s]) em

    virtude do Acordo Ortogrfico de Lngua Portuguesa, o qual instituiu que todas as palavras precedidas do termo no no

    devem ser hifenizadas. 12 Foi a primeira instituio de ensino a ser inaugurada no municpio de Cianorte, em 1955, momento em que essa cidade se

    destacava pela expanso da cultura cafeeira, em uma regio que apresentou um crescimento rpido, ligado s questes

    econmicas e demogrficas, fazendo com que uma empresa pioneira, a Companhia Melhoramentos Norte do Paran,

    juntamente com sua comunidade, unissem-se para criar essa escola. O nome do colgio originrio de uma homenagem feita

    mestra do Paran Itacelina Teixeira de Bittencourt, nascida em 04 de fevereiro de 1886, em Curitiba, Paran, a qual

    apresenta uma relao com a figura do qumico, pois se casou com o qumico industrial e funcionrio pblico federal senhor

    Dmaso Correia de Bittencourt (BITTENCOURT, 2012). 13 Ao utilizar o termo latouriano actantes, no contexto escolar, refiro-me aos alunos, professora de Qumica, TV

    Pendrive, ao livro didtico de Qumica, ao laboratrio escolar e a todos os outros instrumentos e reagentes do laboratrio e da

    sala de aula terica, que, na relao, foram os atores que mobilizaram significaes, associaes e conexes.

  • 16

    maestra as cenas de atuao nesse contexto escolar; bem como instigar reflexes de que o

    conhecimento qumico apenas um dos elementos circulantes desses espaos experimentais e

    das associaes que permitem conectar em uma rede laboratorial escolar enquanto um tecido

    cultural.

    Visualiza-se que os laos entre os sujeitos e objetos so mais estreitos do

    que imaginamos, e que se ali so anunciadas determinadas performances, estas so frutos da

    interao entre o conjunto desses actantes. A noo de buscar tratar com os mesmos termos os

    vencidos e vencedores nesse ambiente pedaggico de ensino e a natureza e a sociedade me

    instigaram a trilhar uma jornada em uma perspectiva latouriana.

    Percebi, em minhas pesquisas bibliogrficas, que os estudos de laboratrios

    escolares em uma perspectiva dos Estudos Culturais da Cincia ainda so tmidos; assim,

    olhar a cincia escolar de forma aberta e incerta, sem ancorar na natureza do que ali acontece,

    instigou-me a iniciar essa jornada enquanto pesquisador.

    Busquei estudar o laboratrio escolar do colgio onde desenvolvi minhas

    pesquisas colocando entre parnteses minhas crenas sobre a cincia e a sociedade, no

    fixando olhares no ncleo desse ambiente laboratorial, mas sim tentando acompanhar o que o

    leva a ser um grande aliado no processo de ensino da Qumica.

    Decidi aterrissar nesse campo do saber, afastando-me da guilhotina do

    corte epistemolgico, como afirmam Latour e Woolgar (1997), sem me posicionar a deslocar

    do central e ficar no perifrico e vice-versa, pois essa atitude tornar-me-ia assimtrico. A

    noo bsica deste trabalho acompanhar os movimentos dos actantes de forma simtrica, o

    que os leva a anunciar performances especficas, com ulterioridade e sem rtulos.

    Os professores tambm falam de cincia e nesse sentido que busco trazer

    associaes com a perspectiva latouriana, levantando discusses desse autor para a cincia

    escolar e, em certos momentos, at desconfiando de forma respeitosa com a qual os

    informantes falam, mas estando ciente de que eles so minha bssola. O intuito aproximar-

    me dessa cincia escolar, mas contornar o discurso pedaggico e analisar as possveis

    metalinguagens14

    que forem se apresentando nesse processo escolar, permanecendo

    independente desse campo e da distncia, no sentido no de ficar sem me aproximar, mas de

    no me vincular e filiar a essa cincia, caractersticas dos Estudos Culturais, que me moveram

    a este estudo etnogrfico.

    14 Abbagnano (2007) refere-se a uma linguagem semanticamente fechada, ou seja, a possibilidade de que a cincia seja

    singular, que apresenta uma nica voz, ordenada com apenas uma nota musical. Contrariamente, partimos para a concepo

    de que a cincia plural e coletiva.

  • 17

    Alm disso, refletimos que muitos daqueles que parecem apenas ser

    figurantes no processo de ensino possuem voz e ao tanto como aqueles que possam ganhar

    papel de destaque no desenvolvimento do saber. Achar que um ambiente escolar meramente

    uma correia de transmisso purificar, causar uma desproporo e fragmentar o ensino de

    Qumica.

    Como dizem Latour e Woolgar (1997), acrescento aqui, neste trabalho,

    apenas um pequeno gro de areia no ensino de Qumica e, se existe competncia em um

    ambiente laboratorial, ela no tem exclusividade, pois no singular. Desse modo, se

    perguntarmos quem movimenta o ensino de Qumica, quem ir responder? O professor, os

    alunos, os objetos, ou seja, quem realmente poderia estar habilitado para trazer essa resposta?

    Por isso, no cabe a ns buscar elucidar a autoria dessas aes, mas acompanhar o que eles

    fazem, no nos apegando nos discursos ordenados ali sinalizados e atentando para a entropia

    lingustica desenhada com a prtica laboratorial.

    No se objetiva criticar a cincia escolar ali apresentada, mas trazer alguns

    termos latourianos para a discusso no ensino de Qumica e desfiliar-se de ideias de que a

    performance esteja especificamente atrelada linguagem da ao humana, assim como

    deslocar-se a pensar que a direo de um script coletivo, isto , olhar a cincia como um

    processo interativo e vocal com pluralidade, fruto de uma relao.

    O laboratrio escolar que escolhi estudar pode ser visto como apenas uma

    malha dessa rede de ensino, um dos mais antigos do municpio e da regio, surgindo com o

    reconhecimento do Ensino Mdio e da necessidade que houve, dcadas atrs, de oferecer um

    ambiente escolar aos filhos dos funcionrios da empresa colonizadora CMNP15

    , detentora da

    cultura cafeeira na regio e, consequentemente, da economia desse municpio. Foi nessa

    instituio de ensino na qual tambm iniciei meus primeiros passos como docente.

    Mais instigante ainda buscar compreender que o laboratrio desse espao

    escolar no possui limites e demarcaes, com muros, ao exercitar os olhares latourianos, e

    apresenta competncia local; mas, se ela existe, realmente est to territorializada assim? Ou

    seja, resume-se aos actantes ali existentes? Ser que a cincia s aconteceu ali naquele

    momento, sem preocupaes em reconstruir o mundo interior desse ambiente escolar, uma

    descrio vista do exterior sobre um ambiente com o qual tenho certa familiarizao, por ser

    tambm professor? Como indaga Serres (1987), Como o objeto chega ao coletivo?. O que

    15 Companhia Melhoramentos Norte do Paran.

  • 18

    fazem os actantes desse contexto escolar nesse laboratrio? Isso feito sem usar mapa e

    instrumentos de definio.

    Como menciona Latour (2006a, p. 339), quando realiza um dilogo com um

    estudante de Sociologia da London School of Economics sobre a TAR16

    , [...] ela deve ser

    til, mas apenas se no for aplicada a nada. Trago esse olhar para este trabalho de pesquisa,

    no sentido de deixar apenas que os actantes tenham espao para expressar por si mesmos suas

    vitalizaes nas cenas de atuao, sem me ater em emitir inferncias sobre meu objeto de

    estudo, ou seja, os estudos de laboratrio no espao escolar, mas apenas descrev-lo da

    melhor forma possvel, sem tecer julgamentos e tentativas de enquadrar as aes desse

    coletivo em uma moldura.

    Assim, introduzimos o mundo dos objetos nesta pesquisa, mostrando que

    estes tambm possuem temperatura como os sujeitos no processo de ensino da Qumica.

    Busca-se acompanhar a cincia qumica escolar, sem se ater a classificaes sobre aqueles

    que movimentam as cenas laboratoriais, trazendo a discusso de que o coletivo de actantes

    que traz significaes qumicas e, consequentemente, performances, que o desenvolvimento

    do conhecimento qumico17

    seria mais produtiva se ocorresse de forma polifnica, ou seja,

    sem apagar possveis vozes dos alunos e no humanos no palco onde esses atuam, na tentativa

    de clarificar e filtrar o que realmente est alinhado aos interesses da cincia.

    Tambm trazemos o pensamento de que podemos olhar para as diversas

    conexes e associaes que permeiam as teorizaes qumicas durante uma prtica de

    laboratrio, mostrando que as cenas que acontecem em um espao laboratorial fazem parte de

    uma rede imbricada e complexa, que estende as malhas de significaes. Talvez a estejam

    possveis contribuies para o ensino da Qumica.

    Esta pesquisa encontra-se dividida em quatro captulos, com subdivises,

    como irei demonstrar a seguir, com um breve resumo sobre o que eles apresentam referente

    ao estudo etnogrfico realizado no colgio em questo.

    Em Elementos tericos que me movem, busco trazer ao leitor uma

    discusso dos termos latourianos que mais me moveram no campo, fruto das vozes do

    coletivo dos protagonistas que mobilizaram as significaes qumicas e suas associaes,

    16 Nas palavras de Latour (2004b, p. 397), a Teoria Ator-Rede consiste em [...] seguir as coisas atravs das redes em que elas

    se transportam, descrev-las em seus enredos [...], mas, para o autor, ela no funciona especificamente como uma teoria com

    possveis aplicabilidades e quadros de referncia, mas sim como um mtodo com a possibilidade de seguir a produo da

    diferena de um coletivo heterogneo de actantes. 17 Uso essa expresso analogamente perspectiva latouriana de que cada etapa ou procedimento, por exemplo, de uma

    prtica laboratorial, fazem parte do interesse da cincia escolar quanto a uma teorizao qumica especfica, e que em nosso

    olhar interessante acompanhar esses intermedirios que possam contribuir para a performance do elemento cognitivo no

    laboratrio, a cincia em ao que nos move e no o produto final.

  • 19

    como: actantes, humanos/no humanos, simetria, assimetria, traduo, translao, metfora e

    heri, elementos todos conectados a um tipo especfico de performance, a figura do qumico

    que se anunciou durante os procedimentos das prticas laboratoriais.

    No captulo Garimpando uma trilha metodolgica, apresento o tipo de

    pesquisa etnogrfica ao qual me associei, como instrumento metodolgico para descrever os

    actantes nas aulas tericas e prticas, ferramentas que utilizei para o registro das vozes dos

    elementos humanos/no humanos, identificao dos informantes desse espao escolar, os

    laos em torno do laboratrio, algumas particularidades desse local de prticas laboratoriais e

    suas circulaes e, por ltimo, as minhas primeiras conexes com esse campo.

    Os captulos seguintes so resultado da anlise dos registros de campo.

    Assim, em As primeiras interaes com as atividades do colgio, passo a descrever os

    primeiros contatos com meus informantes, a professora de Qumica e seus alunos do 3 ano B

    perodo diurno e os aliados no humanos (TV Pendrive e livro didtico de Qumica), que,

    na interao, ganharam o status de humanos/no humanos, sendo arregimentados aos

    interesses dessa cincia escolar, promovendo significaes, associaes, entrelaamentos e

    conexes com o laboratrio escolar e, ao mesmo tempo, propiciando visualizar a

    multiplicidade de vozes que esse contexto escolar poderia oferecer ao ensino da Qumica.

    Na sequncia, apresenta-se As vascularizaes do laboratrio escolar, em

    que so apresentadas as vascularizaes que ocorrem durante as prticas laboratoriais, no

    como vasos condutores, mas trazendo a discusso de que esse local de atrao e potencial de

    visibilidade conecta-se a uma performance especfica, ou seja, a figura do qumico resultado

    da mobilizao dos humanos e no humanos, que nem sempre caminham no sentido do

    discurso pedaggico, pois promovem aes imprevisveis ao mudar naturalmente o efeito de

    sentido durante a interao do coletivo.

    Momentos imprevisveis estes que, conectados aos argumentos de Law

    (1989), o qual associa a cincia de laboratrio com as atitudes de um empresrio, trouxeram,

    como reao da porta-voz dessa cincia escolar e seu discurso pedaggico, novas estratgias

    para que os actantes fossem captados aos objetivos das prticas ali executadas. Traz

    discusses sobre a porosidade do laboratrio escolar, de como essa rede laboratorial escolar

    complexa e imbricada, pois esse coletivo heterogneo que atua no laboratrio estende as

    malhas de significaes, fatos que fazem com que o pesquisador/observador siga os passos

    desses atores na tentativa de maximizar o que esses movimentam, analisar as convergncias

    ou divergncias que levaram a traduzir a performance ali apresentada sem ancorar em sua

    origem, trazendo discusses e reflexes para o ensino da Qumica.

  • 20

    2 ELEMENTOS TERICOS QUE ME MOVEM

    Este captulo apresenta os principais termos latourianos que movimentam a

    anlise e discusses dos registros de campo desta pesquisa, assim como outros elementos

    tericos dessa perspectiva que se conectam com a tematizao proposta, proporcionando ao

    leitor uma ideia do pensamento latouriano e a pluralidade de significaes que podem ser

    associadas ao ensino de Qumica.

    Ao ajustar o rumo terico, transitei brandamente por vrios conceitos e

    definies, que foram se inscrevendo durante essa jornada etnogrfica. Cabe, neste captulo,

    discutir melhor os conceitos utilizados neste trabalho para saturar as discusses e

    interpretaes do que o coletivo movimenta por essa rede laboratorial escolar. Ao exercitar,

    como cita Oliveira (2009), a tarefa solidria de escolher um autor e sua perspectiva,

    acabamos deixando um rastro de esquecimento de outras possibilidades tericas que

    tambm poderiam ser sintonizadas a este trabalho, sem apregoar a ideia de me desvincular de

    movimentos estruturalistas ou emitir rtulos, mas trazer o exerccio de pensar sobre o

    referencial latouriano e as influncias dos Estudos Culturais da Cincia como mais uma

    alternativa de olhar os estudos de laboratrios no contexto escolar.

    No busco uma origem nem um ponto de chegada, mas, como menciona

    Latour (1994, p. 51), algo [...] que desdobra ao invs de desvelar, que acrescenta ao invs de

    amputar, que confraterniza ao invs de denunciar [...], ao se referir ao olhar no moderno,

    talvez a estejam minhas associaes, sem fazer juzo de valor sobre outros mtodos que

    poderiam ser viveis ou crticas sobre a territorializao das teorizaes qumicas, mas a

    possibilidade de mostrar algo com outras lentes, em uma cintica ligeiramente diferente do

    que possa ter aparecido na tica do laboratrio escolar quanto ao ensino de Qumica, trazendo

    reflexes sobre as produes que navegam por esse espao laboratorial, a partir dessa (re)

    olhada.

    2.1 SINTONIZANDO A FREQUNCIA TERICA

    Neste subitem, apresentam-se os principais elementos tericos que

    movimentam o objeto de estudo sobre as contingncias desse tecido cultural, ou seja, o

    laboratrio escolar desse colgio e suas conexes. Assim, poderia se perguntar: quem so os

    actantes? Utilizo esse termo pela tica de Latour (2000; 2001; 2012), o qual sinaliza que tanto

  • 21

    as pessoas como as coisas tm emisses de vozes, so representadas. Durante as encenaes

    tericas e prticas, aparece a figura dos actantes, que so constitudos por um coletivo de

    elementos humanos e no humanos heterogneos e que produzem significaes para a cincia

    qumica escolar, termo este tomado de emprstimo da Semitica, como menciona o prprio

    autor, para incluir o papel dos no humanos de forma integrada com os elementos humanos

    no contexto escolar.

    esse conjunto entrelaado e imbricado que nos proporcionar refletir

    sobre o desempenho que os actantes anunciam e como os aliados (TV Pendrive, livro didtico

    de Qumica, laboratrio escolar e outros protagonistas) interferiram no perfil desses actantes.

    Na perspectiva latouriana, os actantes so informantes que trazem elementos

    significativos e, portanto, responsveis pela cena de atuao, so as vozes do campo,

    disseminadores de um sistema de linguagem, elementos heterogneos que movimentam aes

    em prol dessa cincia (LATOUR, 2000).

    Mas poderiam perguntar: como visualizamos a paridade dos atores humanos

    e no humanos em um contexto escolar? E quem seriam eles? No da simples aproximao

    do sujeito e objeto que se anunciam os atores humanos e no humanos; na realidade, a

    interao, a relao entre estes, que proporciona a existncia dessa coletividade. Quanto mais

    o objeto for usado, mais significao este oportunizar, mais no humano tornar-se- e,

    consequentemente, o sujeito reportar tambm o status de humano.

    Ao exercitar a ideia de que o ensino de Qumica movimentado por esse

    conjunto de humanos/no humanos, pode-se oferecer a oportunidade de ampliar as conexes e

    associaes mobilizadas por esses actantes, possibilitando visualizar as cadeias operatrias

    que fazem parte do processo de desenvolvimento dos conhecimentos qumicos, gerando

    relaes dialgicas que estendam os olhares dessa cincia escolar pelas complexas e

    imbricadas redes em que se transita, e que as performances anunciadas por essa cincia so

    frutos da ao desse coletivo heterogneo, de uma cincia sempre em movimento e no

    estanque.

    Uma proveta graduada s ser considerada um no humano se estiver

    promovendo uma ao em conjunto com os alunos e o (a) professor (a), por exemplo, em um

    laboratrio, pois na relao que eles aparecem e geram vitalidade s cenas prticas. E quanto

    mais esses aliados forem convocados e usados por mecanismos de repetio nos

    procedimentos de uma prtica laboratorial, mais significaes movimentaro aos conceitos

    qumicos e, consequentemente, a desempenhos que valorizem esse espao como

    privilegiado aos interesses do campo da cincia escolar. Caso contrrio, ser sempre um

  • 22

    simples objeto em desuso, esttico, sem vitalidade e merc da dicotomia sujeito/objeto, na

    guerra de um estrelismo e fragmentao da imponncia de se atribuir especificaes a quem

    devem ser conferidas glrias, caractersticas estas de um purismo cientfico.

    Na realidade, veremos na sequncia deste trabalho que os actantes

    apresentam-se nas contingncias desse campo, ou seja, alguns aparecem de forma inesperada

    e imprevisvel, sem uma contratao prvia da cincia. Sigo, portanto, os passos da professora

    Irene18

    e dos alunos do 3 ano B do diurno, do laboratrio e de outros que se apresentaro

    durantes as encenaes desse contexto escolar.

    De acordo com Latour (2001), o no humano a verso do tempo de paz

    do objeto, uma forma de superar a ambio de distinguir responsabilidades, papis e

    definies dessa dupla sem mobilidade quando vista como dissocivel, mas capaz de

    transcender essas concepes, afinal esses atores nunca estiveram em um campo de batalha,

    seria uma tica reducionista pensar dessa forma.

    Os no humanos, conforme menciona Silva (2001), no so marginais e

    subculturais; so considerados como hbridos, ou seja, so indissociveis, mobilizam em

    conjunto significaes, mas so volteis, imprevisveis, fluidos e possibilitam mltiplas

    conexes, o que torna o laboratrio um espao rico de associaes, que configuram e

    reconfiguram as encenaes experimentais. Nesse sentido, acompanhar os links

    intermedirios19

    que esses atores produzem de forma harmoniosa e, ao mesmo tempo,

    embaraada, gerando estratificaes por meio de sequncias organizacionais, resultados,

    treinos e habilidades traduzem uma performance.

    A noo de performance complexa e polmica pela multiplicidade de

    formas e olhares explorados na comunidade cientfica, o que leva a abrir vrias possibilidades

    interpretativas, portanto optei pelo olhar latouriano, buscando dialogar com outros pensadores

    que possam trazer reflexes com essa perspectiva.

    Assim, para Latour (2000), a performance est associada essncia do

    heri, pois os heris so definidos por seus desempenhos, seja nas histrias da cincia ou nos

    contos de fadas, pois a vitria que alcanam depois de batalhas travadas, resistncias e

    convencimentos que garante os resultados que lhes proporcionam o reconhecimento.

    Trazendo isso para o laboratrio escolar, uma atividade prtica ter xito se todos os passos

    18 Nome fictcio dado professora de Qumica do 3 ano B do diurno do Colgio Estadual Itacelina Bittencourt, que foi um

    dos actantes desta pesquisa etnogrfica. 19 Utilizo aqui o termo links intermedirios no sentido do olhar latouriano de visualizar a cincia qumica escolar durante

    seu desenvolvimento, ou seja, cada etapa dos procedimentos prticos nos proporciona elementos de significao, que

    mostram a atuao dos actantes e suas conexes com a performance.

  • 23

    dos actantes forem bem delineados pelos interesses a que se propem, calculados,

    organizados, planejados, monitorados, com mecanismos de repetio e, consequentemente,

    anunciando uma competncia, isso que propiciar lentamente desvendar a performance

    nesse espao pedaggico.

    A figura do heri pode gerar a impresso de que existe uma paisagem

    esttica organizada, mas se maximizarmos as cenas que acontecem, por exemplo, no contexto

    escolar, veremos que paira uma utopia se estacionarmos nessa tica, pois as significaes

    perpassam um possvel estado de repouso.

    Para Latour (2001, p. 346, grifo meu), O segredo definir o ator com base

    naquilo que ele faz seus desempenhos no quadro dos testes de laboratrio. Mais tarde, sua

    competncia deduzida e integrada a uma instituio.. Nesse sentido, a prpria figura do

    heri vem acompanhada de sua performance. Sua marca de visibilidade do herosmo surge de

    desempenho e competncia, mas, no olhar dos Estudos Culturais, buscamos acompanhar

    durante o processo as aes que anunciam vozes de um ato heroico, perpassando possveis

    ideias conectadas a esteretipo e tipificao.

    Se o laboratrio pode representar lugares de heris, de busca de aspiraes,

    de fenmenos visveis, de sucesso, queremos apenas buscar seguir os movimentos dos

    elementos humanos/no humanos e mostrar que no existem fronteiras entre eles, e que um

    heri no singular, pois seus intermedirios encarregam-se de registrar e demonstrar que

    isso seria um pensar antagnico.

    Segundo Silva (1974, p. 30), O conceito de heri est estreitamente ligado

    aos cdigos culturais, ticos e ideolgicos, dominantes numa determinada poca histrica e

    numa determinada sociedade, mas, para Latour, a anatomia do heri acompanhada de sua

    performance, que ritualiza uma linguagem, resultado da fuso de aes dos actantes

    humanos/no humanos. De acordo com Canela (2008, p. 12), o heri como uma [...] mola

    impulsionadora de uma nova procura de equilbrio, mas o instigante nos Estudos Culturais

    no pensar em compreender especificamente o que o heri, mas como se chegou a esse

    ponto, como cita Latour (2002), analisar essa cascata de imagens em transformao que

    possam trazer uma dose de cincia heroica, onde nossas observaes so sempre provisrias.

    Quando Latour (1989) remete-se figura do heri com relao, por

    exemplo, Histria da Cincia traada por Pouchet e Pasteur, argumenta que os vencedores

    no devem ter receio em ver a histria dos vencidos sendo narrada, para eles seria a

    concretizao do reconhecimento da comunidade cientfica e, para ns, a justia entre os

  • 24

    pratos de uma balana em visualizar os possveis caminhos e bifurcaes que poderiam ter

    acontecido.

    Associando com o contexto escolar, se o laboratrio credita um domnio ao

    heri que se estende pela sua performance, cabe a misso de maximizar no mesmo grau os

    possveis actantes que, durante o processo de ensino da Qumica, forem ofuscados ou

    reprimidos pelos interesses dessa cincia, ou seja, a tentativa de apagar as vozes que possam

    deslocar os objetivos durante o ensino de Qumica, o que seria uma das caractersticas da

    simetria.

    A performance desencadeia um gesto expressivo existente na linguagem,

    refletindo que o laboratrio um lcus de informao, de significao e produtividade, fatos

    estes que o coletivo dos atores humanos e no humanos potencializa e conecta para alm da

    porosidade desse espao prtico. Portanto, as manifestaes performativas presentes na rede

    laboratorial escolar tm um sentido lingustico, compreendidas por uma ao, um ato

    expandido, o desempenho que chega a uma virtude. Assim, quando os humanos/no humanos

    esto, de certa forma, representando no laboratrio, esto vinculando-se a figuras que

    transmitem sensao de vencedores, de sucesso e glria, como a do qumico que veremos nas

    contingncias prticas, evocada pelos actantes durante as cenas tericas/prticas nesse colgio

    (CONTE, 2013).

    Pode-se compreender a performance como uma dimenso esttica, uma

    forma de comunicao durante o processo de ensino da Qumica que auxilia na validao de

    conceitos qumicos e, ao mesmo tempo, gera autenticidade ao que serpenteia pelo laboratrio

    escolar, como se legitimasse as teorizaes qumicas. Associando ao pensamento latouriano,

    uma voz que ecoa perante os resultados obtidos das atividades tericas/prticas, mas no

    ligada especificamente ao discurso pedaggico, e sim fruto dos interesses da cincia qumica

    escolar.

    Assim, a ideia associar a performance, na perspectiva latouriana, como

    resultado de criaes prprias mediadas pelo coletivo de humanos/no humanos e sem

    conexo direta aos holofotes da reproduo do conhecimento qumico, pois pensar assim seria

    remeter-se a uma expresso de linguagem nica.

    Na perspectiva em que este trabalho se apoia, no existe um purismo na

    performance, ou seja, est descentralizada, no sentido de que o prato da balana sujeito ou

    objeto mais denso. nesse mbito que se encontra sua simetria, vermos em uma relao

    de igual para igual as aes movimentadas por eles, desfocando-se da objetividade e

    caminhando na subjetividade. A performance uma forma de dialogar a cincia, no

  • 25

    existindo um anseio em encontrar nela um horizonte, mas sim acompanhar, durante o

    processo de ensino da Qumica, os agentes responsveis por essas marcas performativas que

    se combinam com as teorizaes qumicas.

    Dessa maneira, a performance pode ser vista como o efeito da mobilizao

    dos actantes, uma expanso da comunicao, a aplicabilidade de uma ao exitosa. Pode ser

    considerada como um ato potencializado do sucesso combinado pela paridade de

    humanos/no humanos, ou seja, sinnimo de um excelente desempenho desses actantes. A

    performance possui uma mobilidade lingustica ampla e imensurvel quando visualizamos

    como elemento que culminou, por exemplo, de uma extensa e imbricada rede laboratorial

    escolar.

    E se, em um determinado estgio do processo de ensino de Qumica, a

    performance proporciona desequilbrio, nossa misso acompanhar o que levou a isso, sem

    nos atermos a esse estilo lingustico como um produto final, mas buscando reflexes dos

    processos intermedirios que conduziram a isso. A ao performtica, como menciona

    Conte (2013), pode refletir em um aliado de domnio da cincia, que apresenta como

    sinnimos preciso, organizao, treino, foco, determinao e intencionalidade, pois seria um

    ato de inocncia pensar que relativamente por trs isso no estivesse impresso como pano de

    fundo na cincia, quando no claramente explcito.

    Para Latour, seria ser reducionista pensar que a ltima palavra da

    performance vem do sujeito; pensar assim seria apagar, filtrar e fragmentar o acontecimento

    performativo, uma sensao ilusionista e enraizada de segurana cnica durante o ensino de

    Qumica.

    A performance no uma aplicao monolgica, como cita Freire (2006),

    quando argumenta da competncia cientfica, discursiva e at poltica, ao retratar os atos de

    uma docncia, afinal ela no tem origem em si mesma, na singularidade; seria um idealismo

    purificado ter como inteno qualificar um ato performtico durante o ensino terico/prtico

    da Qumica. Ao associar um dos elementos centrais deste trabalho, a performance,

    educao,

    Vale lembrar que o termo performance, que ressoa no campo da educao,

    proveniente de uma tradio positivista, compreendida como domnio de

    procedimentos e tcnicas, que busca sua legitimao no melhor desempenho

    funcional e sistmico dos professores (CONTE, 2013, p. 87).

  • 26

    Para a autora, a performance ultrapassa a viso de que apenas um

    instrumento de linguagem para fins didticos, possui uma veracidade expressiva, mas foca

    apenas em alguns actantes presentes nesse processo de desenvolvimento do saber,

    especificamente nos sujeitos. A que entra a relevncia em olharmos para o ensino da

    Qumica pela paridade de actantes, pois contraditrio acharmos que somos invadidos pelos

    objetos, na realidade eles agem em conjunto com os sujeitos, a partir da que o coletivo de

    humanos/no humanos aparece, portanto no existem especificaes territoriais ou limites a

    ser infringidos, com rotulagem quanto a domnios prprio. Assim, o olhar latouriano convida

    a nos deslocarmos para o que esse conjunto heterogneo faz e no para atores que pudessem

    ter luz prpria e essencialidade excntrica.

    a performance que, segundo Habermas (1987), est associada a

    elementos lingusticos, os quais, consequentemente, esto conectados cultura, arte, ao

    cotidiano, literatura, ao cinema etc., sinalizando uma linguagem no cenrio laboratorial,

    onde a eficincia, os resultados, a tcnica e os esforos de organizao reproduzem o sucesso

    esperado; so foras de expresso que confirmam que tudo deu certo, que os jogos de

    interesses foram alcanados e que a estabilizao do conceito qumico envolveu ali as

    movimentaes performadas por meio da execuo de papis estabelecidos ou imprevisveis.

    preciso ver a performance com um olhar desconectado da codificao do

    conhecimento, pois o saber e a ao movimentados pelos actantes perpassam a possvel

    eleio de um elemento determinista em uma cena de atuao, sem se apegar a revelaes e

    tentar achar originalidade entre os actantes, pois a performance est longe de apresentar uma

    trivialidade, e a alteridade est nesse coletivo em ao.

    Conte (2013, p. 97) cita sobre a performance educativa estar ligada [...]

    intensidade lingustica-expressiva de sentido coletivo, e trazemos essa noo para o olhar

    latouriano de que as performances possuem um sistema de linguagem e expressividade, mas

    conectadas ao que os humanos/no humanos fazem, questionando, portanto, a possvel solidez

    que possa existir apenas no sujeito, ou seja, a realizao humana, e se existe uma

    racionalidade tcnica de produtividade, a linguagem no singular, monolgica e exclusiva

    ao estrelismo de um agente.

    Para Deleuze (1997, p. 111), a performance como um smbolo que [...]

    no designa nem significa, mas mostra [...], ou seja, ela surge de uma movimentao instvel

    e flutuante, no vista como uma formulao com identidade prpria, uma forma determinada,

    mas resultado de uma fora componente, em que o visvel performtico e os conceitos

    qumicos esto entrelaados por associaes complexas, e se ela aparece, como menciona

  • 27

    Testa (2012), como um efeito da diferena, reflexo de combinaes, portanto cabe aqui

    acompanhar o coletivo heterogneo de actantes que a mobilizou.

    2.2 CONECTANDO-SE PERFORMANCE

    Durante as anlises das mobilizaes dos actantes e suas conexes com a

    performance que se anunciou nesse campo, outros elementos tericos da perspectiva

    latouriana conversaram com as vozes emitidas por esse coletivo, tornando-se relevante a

    necessidade de trazer discusses desses termos para o corpo deste trabalho.

    Buscando analisar a cincia desapegado de uma forma, Latour (1994)

    prope visualizarmos o processo cientfico sem separaes, o mundo das coisas de um lado e

    o mundo dos sujeitos de outro, mas sendo descritos da mesma maneira, tratados nos mesmos

    termos, pois o coletivo que movimenta essas aes, o princpio de ultrapassar essa dupla

    separao moderna entre os humanos/no humanos, pois no h uma diferena em espcie

    entre eles, e tudo que existe a interao entre ambos.

    Se olharmos uma aula terica ou prtica, as interaes que existem entre

    professor/alunos so mediadas por objetos, que, na relao, ultrapassam esse estado de frieza

    e repouso, geram ao e mobilizam significaes tanto quanto os humanos, levando-nos a

    refletir acerca da importncia de visualizar, no ensino da Qumica, que ambos devem ser

    considerados. Essa a maneira de entender os estudos cientficos, em nosso caso especial, a

    cincia qumica escolar, pois esto pautados em prtica e no em ideias. Como o prprio autor

    argumenta, gestos que possam ser considerados como insignificantes podem contribuir para a

    efetivao de uma performance, em que essas relaes entre o humano/no humano no so

    hierrquicas nem lineares, negando que exista uma separao entre o dentro e fora, por

    exemplo, de um laboratrio escolar. Pode at existir entre eles o termo relativamente, mas

    esto imbricados, ou seja, h uma constante retroalimentao, com a abolio do pensamento

    dualstico (LATOUR, 2000).

    O termo latouriano simetria aplicado nesse trabalho no sentido de

    exercer o sentido de pluralidade de significaes e de igualdade cnica dos actantes. Como o

    autor menciona,

    Trata-se, no mnimo de exercer uma justia elementar que convoque as duas partes

    da controvrsia para uma espcie de tribunal e que as deixe falar uma de cada vez.

    Chamarei de princpio de simetria aplicao desta justia elementar s

    controvrsias cientficas (LATOUR, 1989, p. 57, grifo meu).

  • 28

    Exercitando uma metfora com a perspectiva latouriana quanto atividade

    cientfica, podemos dizer que a cincia escolar tem uma dimenso coletiva, em que muitos

    aliados so convocados para contemplar os interesses das teorizaes/experimentaes

    qumicas, e se em alguns momentos do processo de ensino da Qumica alguns actantes so

    vencidos, cabe trazer esses episdios discusso sem privilegiar o polo do sujeito ou do

    objeto, isto , valorizar simetricamente o coletivo (LATOUR, 2000).

    A assimetria seria justamente uma ao contrria a esse olhar simtrico, de

    se apoiar na tentativa de classificar e nomear a quem cabe o peso de uma atuao, isso

    fragmentar uma cena qumica escolar, pois o poder de mobilizao recai sobre um nmero

    enorme de recursos e aliados no processo de ensino da Qumica, descrevendo o mundo

    escolar por meio de suas hibridizaes, ou seja, visualizando que o par humano/no humano

    indissocivel.

    O olhar assimtrico reproduz traos lineares, baseia-se no produto final de

    um fato cientfico ou cena terica/prtica escolar, faz pensar que existe uma diviso entre o

    lado de dentro e de fora de um laboratrio, de que os humanos/no humanos agem

    separadamente, de que, na interao entre ambos, existe um papel singular de

    responsabilidade por uma ao. Seguir essa linha de raciocnio cria uma ponte com o

    reducionismo, determinismo e emancipa a cincia, a saga de inclinar a balana para o lado

    que conceda o desnivelamento e, consequentemente, a certificao de heri, pautando-se em

    formas, como se existisse um grande divisor de guas em um coletivo, a flecha irreversvel

    que atribui prmios aos vencedores (LATOUR, 1994; 2000).

    Sobre os termos traduo e translao que, na perspectiva latouriana, andam

    juntos, o autor menciona:

    Alm de seu significado lingustico de traduo (transposio de uma lngua para

    outra), tambm tem um significado geomtrico (transposio de um lugar para

    outro). Transladar interesses significa, ao mesmo tempo, oferecer novas

    interpretaes desses interesses e canalizar as pessoas para direes diferentes

    (LATOUR, 2000, p. 194).

    O autor se refere ao trabalho pelo qual os actantes modificam, deslocam e

    transladam seus interesses, em determinados momentos, at contraditrios. a interpretao

    dada pelos construtores de fatos e daqueles que so alistados em prol das intencionalidades

    dos cientistas. Traduo essa que, s vezes, apresenta-se contraditria, pois ao mesmo tempo

    em que busca trazer novos aliados para que suas caixas-pretas se consolidem e ganhem o

  • 29

    status de facticidade, usam de estratgias para manipular no sentido do que adotam e

    disseminam para que permanea relativamente inalterado.

    Trazendo para o contexto escolar, muitas vezes, para atingir, de um lado, os

    interesses da cincia qumica escolar e, consequentemente, da porta-voz dessa cincia e, do

    outro lado, os interesses dos alunos, estes acabam realizando desvios de rotas de forma

    estratgica, de forma sutil e, algumas vezes, sem que percebam, para que seus objetivos sejam

    atendidos, como, por exemplo, um aluno comentando sobre um episdio que possa ter uma

    conexo com o contedo ministrado, mas com a inteno de diminuir o ritmo cognitivo; ou a

    professora dar ateno a um comentrio de um grupo de alunos que possa no ter relao com

    o que est sendo ministrado, para que posteriormente sua ateno seja convertida em foco e

    rendimento do conhecimento qumico exposto. Compreendo que os tradutores que aparecem

    neste trabalho so justamente o coletivo de humanos/no humanos que aparecem nesse

    contexto escolar, uma vez que as duas exemplificaes citadas surgem de um coletivo.

    Como uma das caractersticas de Latour utilizar metforas20

    para realizar

    anlises e reflexes sobre estudos cientficos, trago aqui dois exemplos de suas obras Cincia

    em Ao e Esperana de Pandora referentes a analogias quanto figura do heri e suas

    performances, no sentido de relacion-las com o ensino de Qumica.

    A primeira de um exemplo do stio emprico de Luis Pasteur e seu

    laboratrio, sobre sua fermentao lctea, considerado pelos historiadores da cincia como um

    dos artigos mais importantes deste qumico, em que esse fermento recebeu a nomenclatura de

    Cinderela da Teoria Qumica, um personagem glorioso e heroico, e Pasteur, o Prncipe

    Encantado com seu esprito triunfador (LATOUR, 2001). Aqui vemos uma associao

    interessante do heri com a figura do qumico, que est conectada s anlises etnogrficas

    vitalizadas nas atividades experimentais, entre o qumico Liebig vencido, que se pautava

    em explicar os processos de fermentao por termos puramente qumico, e Pasteur

    vencedor, que se atreveu a quebrar os protocolos da cincia do sculo XIX, afirmando que

    existia um micro-organismo responsvel pela fermentao do leite, ou seja, trazer para a

    discusso dessa cincia a atuao de algo vivo.

    Assim, o autor utiliza-se da metfora da encenao para visualizarmos a

    ao dos humanos/no humanos em um mesmo plano.

    20 Para Silva (2000, p. 78), esse termo refere-se a uma das figuras da retrica clssica, o processo pelo qual um signo

    substitudo por outro, ao qual transfere seu significado. Em geral, utiliza-se a metfora para expressar um signo pouco

    familiar por outro mais familiar ou um signo mais abstrato por outro mais concreto [...]. Neste trabalho, essas associaes

    utilizadas por Latour so transferidas em seus estudos etnogrficos com cientistas para a cincia escolar.

  • 30

    Essa metfora apresenta a grande vantagem de chamar a ateno para os dois planos

    de referncia ao mesmo tempo, ao invs de empurr-los em direes opostas.

    Embora o trabalho do encenador ou do titeriteiro vise claramente a seu prprio

    desaparecimento desviando a ateno do que acontece atrs do palco para o que

    acontece em cena, sem dvida ele indispensvel para o espetculo. Muito do

    prazer da plateia provm, com efeito, da presena vacilante desse outro plano, ao

    mesmo tempo constantemente sentido e agradavelmente olvidado. Entretanto, junto

    com o prazer, manifesta-se a debilidade principal dessa figura de retrica

    (LATOUR, 2000, p. 157-158).

    Essa metfora, que se encontra conectada ao mundo da arte, oportuniza

    refletirmos que uma encenao teatral no se deve apenas aos atores que esto representando

    naquele momento perante a plateia, ou seja, necessrio tirar os refletores da ideia de que os

    actantes so apenas aqueles que ali se apresentam, mas voltarmos nossos olhares para o fato

    de que, mesmo que as atenes estejam voltadas quele momento, os humanos no esto

    atuando sozinhos desvinculados dos no humanos. Portanto, se Pasteur traz a noo de uma

    figura heroica enquanto qumico, a performance no se deve exclusivamente a ele nem aos

    seus micrbios, mas foi o coletivo que rubricou essa cincia gloriosa na histria da cincia.

    Ao se utilizar da metfora de encenao para associar aos mritos de

    Pasteur/fermento, Latour sinaliza que essa glria nasce de um coletivo e da importncia de

    seguirmos todos os caminhos que estes traaram com um olhar simtrico. nesse mesmo

    ritmo que trazemos esse pensamento para o ensino de Qumica, de que a sinalizao de uma

    performance no contexto escolar precisa ser vista com as mesmas medidas que os

    humanos/no humanos desenvolvem em prol dessa cincia.

    A segunda metfora refere-se metfora militar que Latour usa para

    associar a questo de analisar, durante o processo de construo de uma facticidade cientfica,

    a quem realmente se deve o sucesso e o mrito pelo feito realizado. Para isso, sugere a

    aplicao de duas etapas metodolgicas: uma de utilizar o mecanismo primrio que

    possibilitar analisar o processo de recrutamento e alistamento e outra, um mecanismo

    secundrio relacionado com a atribuio de responsabilidade, mas com a conscincia de que o

    herosmo parte do processo coletivo.

    Quando um historiador diz que Napoleo conduziu o Grande Exrcito atravs da

    Rssia, todo leitor sabe que Napoleo, com seu prprio corpo, no era

    suficientemente forte para vencer, digamos, a batalha de Borodino. Durante a

    batalha, meio milho de pessoas est tomando iniciativas, misturando comandos,

    ignorando ordens, fugindo ou morrendo corajosamente. Esse gigantesco muito

    maior do que aquilo que Napoleo pode manipular ou mesmo enxergar do topo de

    uma colina. Contudo, depois da batalha, seus soldados, o tsar, Kutuzov, que

    comanda o exrcito russo, o povo de Paris, os historiadores, todos atribuem a ele e

    s a ele a responsabilidade pela vitria [...] (LATOUR, 2000, p. 196-197).

  • 31

    As relaes so complicadas e imprevisveis, no so frutos apenas de

    ordens de comando, assim como na cincia um reconhecimento cientfico no parte apenas de

    decises hierrquicas, trazendo para o ensino da Qumica, as teorizaes qumicas no

    contexto escolar, que permeiam como um dos elementos circulantes e das diversas

    associaes que produzem, so resultados de um coletivo de actantes que mobilizam e

    continuam gerando transformaes, portanto eleger a responsabilidade de uma performance

    visvel seria, no mnimo, uma atitude utpica, mas acompanhar, por exemplo, as etapas de um

    procedimento prtico no laboratrio escolar propiciaria uma gama de interpretaes e

    reflexes abertas e provisrias sobre o que realmente ali aconteceu, estendendo a malha de

    significaes.

    Assim, percebemos que as figuras de heri de Napoleo e a de qumico que

    veremos no decorrer deste trabalho no tm exclusividade de cena e de atitudes isoladas, so

    reflexos de um conjunto de actantes agindo e promovendo interaes a ponto de visualizar

    determinadas performances, sejam na sociedade ou em um laboratrio escolar especfico de

    uma instituio de ensino.

    A utilizao de metforas na perspectiva latouriana possibilita fazer

    analogias com a cincia e mostrar o sentido da coletividade e do exerccio da simetria ao olhar

    para as atividades cientficas e escolares, como, por exemplo, entre o laboratrio e seu

    entorno, pois pensa a cincia como uma rede de actantes. Na busca de pesquisar o espao

    laboratorial desse colgio e suas conexes, fui a campo, como menciona Larrosa (1994, p. 35)

    [...] explorar novos sentidos, ensaiar novas metforas, para essa cincia que navega pelos

    espaos escolares e traz significaes ao ensino de Qumica, serpenteando pelos eixos da

    sociedade.

    2.3 RELEVNCIAS DOS ESTUDOS DE LABORATRIO

    Sinalizo aqui alguns dos precursores dos estudos de laboratrio que, no

    mbito internacional, tm avanado muito com pesquisas nessa rea e que se tornaram

    referncias juntamente com Latour, trazendo reflexes pertinentes cincia, como Law

    (1989), que retrata sobre redes21

    e seus laboratrios, onde realizou uma pesquisa etnogrfica

    21 A teoria ator-rede, desenvolvida por Bruno Latour, John Law e outros precursores, busca exercitar olhares voltados para as

    prticas cotidianas da cincia, em que os humanos e no humanos entrelaam-se com microconexes e (des) conexes, com

    uma dinmica constante de associaes, em que o ambiente se configura e se reconfigura a todo momento pelos movimentos

    que esses actantes realizam. No h garantia de estabilidade regida por elementos centralizadores, em que os mediadores no

    so puros humanos nem no humanos. a que trazemos o conceito de performance, no sentido de acompanhar as aes

    desses actantes no laboratrio escolar do colgio Itacelina Bittencourt.

  • 32

    em um laboratrio cientfico, acompanhando a cientista Rose e seu grupo na rea de

    Bioqumica, que realizou experincias com ratos, com o objetivo de verificar a afinidade de

    diferentes polmeros para diferentes tipos de tecidos orgnicos, ou seja, relacionando-os com

    os efeitos biolgicos dos polmeros e a ligao destes com possveis medicamentos, em que

    usou uma descrio materialista da cincia, trazendo reflexes, como a defesa de que a

    cincia do laboratrio no centrada em atividades cerebrais, mas associa a questo de

    organizao e prtica desses cientistas a de empresrios, uma metfora que utiliza para a

    reflexo da natureza da atividade cientfica.

    Trazendo o exerccio de associar a ideia de Law a um cientista empresrio

    para o contexto escolar e as movimentaes dos actantes como uma possibilidade de leitura

    de que a professora de Qumica, enquanto uma das informantes da cincia escolar, tambm

    trouxe caractersticas dessa metfora realizada pelo autor, durante as interaes com os alunos

    e outros elementos no humanos. Assim, podemos citar que o imprevisvel traz sinais de que

    a professora de Qumica precisou administrar esse fator, para que os interesses da cincia a

    qual representava no fossem interrompidos.

    O imprevisvel pode ser visualizado como as atitudes geradas pelo coletivo

    de actantes que poderia oferecer uma coliso e desvio aos objetivos da prtica docente dessa

    informante durante uma aula terica/prtica. Assim, para capturar os alunos ao foco de uma

    determinada teorizao qumica, precisou, como veremos nas anlises desta pesquisa,

    estabelecer estratgias, rotas de fuga e de elementos de captura, como: trabalho, pesquisa,

    relatrios, avaliaes e outros que estariam atrelados a notas, como um poder de

    convencimento para trazer os actantes ao seu discurso pedaggico, alm da argumentao de

    serem terceiro ano, que precisavam estudar mais para obter um melhor desempenho nessa reta

    final do Ensino Mdio e como futuros aspirantes ao Ensino Superior.

    Como afirma Law (1989, p. 07), [...] preciso controlar os efeitos de

    interrupo [...], reorganizar o espao de atuao para que a regularidade volte a se

    estabelecer e, pelo menos por alguns instantes, a linearidade dessa cincia volte a fluir em seu

    curso normalmente. So estratgias para que os diferentes elementos de uma rede possam

    voltar ao seu estado original; nesse sentido que, muitas vezes, a porta-voz da cincia

    associa-se ao cientista empresrio, na tentativa de administrar o espao de atuao dos

    actantes e combinar uma srie de recursos heterogneos humano/no humanos como aliados,

    para que a performance dessa cincia escolar seja alcanada.

    Com o descobrimento do laboratrio como um objeto de investigao e

    lugar de observao, vrios socilogos apresentaram uma disputa de quem teria sido o

  • 33

    primeiro a aterrissar nesse espao como pesquisador. Assim, Knoor-Cetina enfatizou, em

    1995, que o seu estudo era um dos primeiros desse local de produo cientfica. A estudiosa

    realiza uma pesquisa etnogrfica no Instituto de Microbiologia e Protenas Vegetais em

    Berkeley, e argumenta que o laboratrio seria um lcus onde existem, ao mesmo tempo, as

    dimenses de ordem social e as dimenses de ordem cognitiva, sem possibilidade de

    distines entre elas, como mostra que os objetos cientficos no so fabricados

    tecnicamente nos laboratrios, mas esto intrinsecamente construdos de forma simblica e

    poltica (KNOOR-CETINA, 2005).

    Segundo Lenoir (1998), no corao dos laboratrios, existem caracteres de

    disperso, como um labirinto com arranjos prticos que transformam uma forma de matria

    em outra, produzindo traos escritos que geram inscries literrias, ou seja, criando-se

    modelos de representao, como uma cincia de linguagem pela preciso de suas mquinas e

    dos fenmenos que ali coexistem, gerando uma prtica escrita-jogo, trazendo a reflexo de

    que o conhecimento uma produo local, em que a cincia no autnoma e, muito menos,

    desinteressada.

    Para Callon (2008), os laboratrios so somente um elemento de

    dispositivos mais extensos, e, para compreender a dinmica da produo de conhecimentos e

    tcnicas, no basta se interessar somente pelas atividades de laboratrio e pelo que os

    cientistas fazem, importante abordar tambm o conjunto de coletivos heterogneos

    profissionais e sociais que participam, de uma maneira ou de outra, da concepo, elaborao

    e transporte de inovaes. Segundo o autor, no se pode compreender as aes humanas e a

    constituio de coletivos sem levar em conta a materialidade, as tecnologias e os no

    humanos.

    Essas so algumas sinalizaes de como os estudos de laboratrio,

    principalmente no que se convencionou chamar de Estudos Sociais das Cincias, em que a

    preocupao com os laboratrios enquanto uma unidade analtica da Sociologia da Cincia

    estava associada ao desenvolvimento dessa rea (MATTEDI, 2007), demonstram vrios

    olhares e discusses fora de nosso pas. Na esfera nacional, segundo uma pesquisa realizada22

    ,

    percebe-se que esses estudos ainda esto mal problematizados, pois no constam trabalhos

    22 Foi realizada uma pesquisa nos peridicos da CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior,

    com foco em Estudos de Laboratrio no Brasil, buscando encontrar trabalhos similares, segundo a perspectiva latouriana, a

    que proponho, e tambm na QNESC Revista Qumica Nova na Escola, que apresenta uma periodicidade trimestral, tendo

    como objetivos o trabalho, a formao e a atualizao do ensino de Qumica brasileiro, associado linha editorial da

    Sociedade Brasileira de Qumica, realizando uma garimpagem desde o incio de sua publicao, em 1995, at a ltima

    edio, em maio de 2013.

  • 34

    que buscam exercitar analiticamente como a cincia qumica nas bancadas dos laboratrios

    est imbricada com seus actantes e suas respectivas performances, olhar que parece no

    movimentar a comunidade cientfica que estuda a educao experimental no Brasil,

    caracterstica que representa mais um fator motivador a realizar este trabalho de pesquisa.

    Buscando nos deslocar de olhares assimtricos que possam exercitar a

    atribuio de papis s contingncias desse colgio, reavivaremos aqui um instigante

    pensamento do Programa Forte da Sociologia, desenvolvido por David Bloor, por volta de

    1976, fundado na Unidade de Estudos da Cincia, da Universidade de Edimburgo, que tinha

    como finalidade compreender causas que levavam distintos grupos sociais, entre esses, de

    cientistas, a filtrar determinados aspectos da realidade como foco de estudo e argumentaes

    cientficas. Bloor via o trabalho dos cientistas como uma construo social, associado tanto a

    aspectos internos da comunidade cientfica como a aspectos externos da sociedade, surgindo

    da a ideia bsica de levar em conta a simetria do contexto social quanto ao contedo

    cientfico, ou seja, de colocar em pratos de uma balana a Sociologia da Cincia e a

    Sociologia Social (BLOOR, 1991).

    Para Bruno Latour, questionvel esse posicionamento inicial, pois, de

    certa maneira, a cincia, vista at ento pela relao de natureza versus epistemologia, transita

    agora para um olhar de construo social; assim, a concentrao dessas reflexes e

    argumentaes apenas muda de terreno, estabelecendo uma dicotomia entre a Epistemologia e

    a Cincia Social. uma reflexo moderna, que, na perspectiva latouriana, estas no tm

    relevncia se fragmentadas, portanto busco, neste trabalho, exercitar o princpio simtrico

    analtico quanto aos atores humanos e no humanos durante as relaes das aulas

    tericas/prticas, que so indissociveis.

    Na sequncia, esta pesquisa traz algumas sinalizaes do levantamento

    bibliogrfico realizado a nvel de Brasil, referente a alguns trabalhos de pesquisa produzidos

    na rea dos Estudos Culturais da Cincia associados aos laboratrios de Qumica, trazendo

    indcios de que ainda existem poucas produes nessa rea e, consequentemente, a relevncia

    em pesquisar laboratrios escolares nessa perspectiva, trazendo como possibilidade maiores

    elementos de discusso para o ensino de Qumica.

    Em um dos trabalhos de pesquisa realizados, Oliveira (2009) apresenta um

    estudo etnogrfico no Colgio So Jos, em So Leopoldo Rio Grande do Sul, com o ttulo

    Os laboratrios de Qumica no Ensino Mdio: um olhar na perspectiva dos estudos culturais

    das cincias, que resultou em sua tese de Doutorado, na qual buscou realizar tradues da

    cincia dura para a cincia escolar, com o intuito de analisar o funcionamento enunciativo de

  • 35

    um laboratrio escolar do Ensino Mdio. Seu objetivo foi observar as pessoas, o local, os

    instrumentos que ali se apresentassem, e buscou manter-se fiel ao que os professores e alunos

    fizeram em suas prticas nos laboratrios, sinalizando algumas problematizaes referentes a

    como as atividades de laboratrio do Ensino Mdio se articulam com o corpo escolar e o

    social de uma maneira mais geral; referente a inscries produzidas pelos alunos, como

    relatrios, provas, como eles entram no ciclo de interesses da cincia escolar e como

    funcionam os jogos que do autoridade a certos discursos e apagam outros.

    Tambm apresenta artigos pertinentes a essa linha de pesquisa na

    perspectiva latouriana, como Estudos de Laboratrio no Ensino Mdio a partir de Bruno

    Latour, trazendo reflexes acerca da superao da crena das atividades escolares de

    laboratrio serem apenas simples correias de transmisso dos conhecimentos qumicos

    (OLIVEIRA, 2006). Publicou tambm o artigo O Terceiro tempo, estudos de laboratrio no

    Ensino Mdio a partir dos pressupostos de Bruno Latour, uma proposta de possibilidade,

    posta em discusso, realizando uma articulao com os Estudos da Cincia, a partir de

    proposies sobre o sistema ator/rede e enunciados cientficos, por meio das descries que

    realizou em um laboratrio de Ensino Mdio (OLIVEIRA, 2005). E para finalizar sobre esse

    autor, soma-se aqui seu artigo O laboratrio didtico de qumica: uma micronarrativa

    etnogrfica pela tica do conceito de articulao, resultado de um estudo etnogrfico no qual

    foram estudados os movimentos enunciativos da cincia em um laboratrio de Qumica do

    Ensino Mdio no Colgio So Jos, So Leopoldo, RS, apresentando uma microanlise dos

    eventos desse laboratrio, contribuindo para a compreenso de como produzida a ideia de

    natureza das coisas em jogos de convencimento, contatos e relaes, em especfico, o

    conceito de articulao (OLIVEIRA, 2008).

    A pesquisa de Silva (2002), intitulada A Construo do Conhecimento

    Cientfico: o processo, a atividade e a comunicao cientfica em um laboratrio de pesquisa,

    traz uma abordagem sobre as redes cientficas, seu papel na construo do conhecimento e

    como se estabelecem para viabilizar a construo dos fatos cientficos em um laboratrio de

    Qumica de Bioinorgnica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

    O artigo Um sobrevo no Caso Marie Curie: um experimento de

    antropologia, gnero e cincia, de Pugliese (2007), tem como intencionalidade explorar

    relaes constituintes da controvrsia enquanto desdobramentos do prmio Nobel de 1903,

    que laureou a descoberta da radioatividade e de elementos radioativos, analisando mediaes

    entre relaes de gnero e os no humanos que so mobilizados nos laboratrios. Tambm

    descreve a diferena de possibilidades masculino/feminina em fazer existir a natureza em

  • 36

    relao ao poder que a definio de gnero d a uns em detrimento de outros, e como ao

    fazer/existir a radioatividade, que constitui um devir, muda o efeito de sentido, mostrando que

    o envolvimento da cincia nas relaes de gnero e o envolvimento das relaes de gnero na

    produo cientfica so indissociveis.

    Em um dos trabalhos apresentado por Marras (2010), que leva o nome de

    Dialtica do Estvel e do Instvel: Recintos, Agentes de Interesse e do Meio em

    laboratrios de Qumica e Biologia, esse autor levanta consideraes sobre a noo da

    estabilizao ou estabilidade, rea que fundamentou o estudo etnogrfico que realizou em sua

    tese de Doutorado, como cita em: [...] em torno de uma antropologia da cincia e da

    modernidade, inspirando-se nos escritos de Bruno Latour (MARRAS, 2009, p. 6).

    Traz a reflexo de que, no fluxo das relaes, os mais diversos agentes

    humanos/no humanos possuem uma composio interminvel. Entre seus apontamentos, traz

    a problematizao sobre o escolher entre uma e outra imagem de mundo ou tentar consider-

    las simultaneamente, simetricamente, e de que o estvel e a discusso se o estvel e instvel

    so realidades simultaneamente criadas. Quanto aos recintos de laboratrio, suas

    produtividades e dificuldades, traz indagaes sobre os meios pelos quais os agentes fazem

    parte dos materiais de interesse, na relao so ordinariamente purificados e isolados, agentes

    do meio que acabam sendo eclipsados e tratados especificamente como dados tcnicos

    ordinrios.

    Na dissertao de Rezzadori (2010), realizado um estudo etnogrfico em

    um laboratrio de Qumica do Ensino Mdio do Centro Estadual de Educao Profissional

    Professora Maria do Rosrio Castaldi de Londrina PR, que recebeu o ttulo A Rede

    Sociotcnica de um Laboratrio de Qumica do Ensino Mdio, em que buscou descrever a

    rede desse laboratrio, apresentando como elemento-chave de seu trabalho o conceito de

    traduo/translao, que auxiliou a compreender que, para tornar o espao laboratorial uma

    organizao reconhecida e consolidada, este depende de um conjunto heterogneo de

    elementos mobilizados por seus atores; e que, para viabilizar a construo desse espao, sua

    produo dependente da rede que atua e das associaes, alinhamentos e estratgias

    realizadas pelos actantes.

    Este trabalho busca trazer discusses sobre essa temtica contagiante que

    so os Estudos Culturais da Cincia, sobre um estudo etnogrfico no laboratrio do Colgio

    Estadual Itacelina Bittencourt EFM, do municpio de Cianorte, utilizado em momentos

    pontuais em que a professora de Qumica, os alun