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MARIZA ARDEM SCIPIONI VIAL FERRONATTO DIFERENÇA COMO RELAÇÃO: LEITURAS CONTEMPORÂNEAS DE HERÁCLITO TOLEDO 2009

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  • MARIZA ARDEM SCIPIONI VIAL FERRONATTO

    DIFERENA COMO RELAO: LEITURAS CONTEMPORNEAS DE HERCLITO

    TOLEDO 2009

  • MARIZA ARDEM SCIPIONI VIAL FERRONATTO

    DIFERENA COMO RELAO: LEITURAS CONTEMPORNEAS DE HERCLITO

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia do CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo, como requisito final obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, sob a orientao do prof. Dr. Alberto Marcos Onate.

    TOLEDO 2009

  • Catalogao na Publicao elaborada pela Biblioteca Universitria UNIOESTE/Campus de Toledo. Bibliotecria: Marilene de Ftima Donadel - CRB 9/924

    Ferronatto, Mariza Ardem Scipioni Vial F396d Diferena como relao : leituras contemporneas de

    Herclito / Mariza Ardem Scipioni Vial Ferronatto. -- Toledo, PR : [s. n.], 2009.

    138 f.

    Orientador: Dr. Alberto Marcos Onate Dissertao (Mestrado em Filosofia) - Universidade

    Estadual do Oeste do Paran. Campus de Toledo. Centro de Cincias Humanas e Sociais.

    1. Filsofos gregos 2. Ontologia 3. Herclito, 540-480 a. C. 4. Heidegger, Martin, 1889-1976 5. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 6. Diferena 7. Relao 8. Contradio I. Onate, Alberto Marcos, Or. II. T.

    CDD 20. ed. 182.4

  • MARIZA ARDEM SCIPIONI VIAL FERRONATTO

    DIFERENA COMO RELAO: LEITURAS CONTEMPORNEAS DE HERCLITO

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia do CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo, como requisito final obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, sob a orientao do prof. Dr. Alberto Marcos Onate.

    COMISSO EXAMINADORA

    ____________________________________ Prof. Dr. Alberto Marcos Onate - Orientador Universidade Estadual do Oeste do Paran

    ____________________________________ Prof. Dr. Wilson Frezzatti Jnior - Membro

    Universidade Estadual do Oeste do Paran

    ____________________________________ Prof. Dr. Jos Fernandes Weber - Membro

    Universidade Estadual de Londrina

    Toledo, 19 de junho de 2009.

  • minha irm

    Dr Lilia Vial

    Maior exemplo de vida

  • AGRADECIMENTOS Ao chegar ao trmino de mais uma etapa deste projeto de vida, que, neste

    momento, representa o rematado coroamento dos esforos empreendidos, percebo que as palavras tornam-se insignificantes diante da necessidade de manifestar meus sinceros agradecimentos a todos que, de alguma forma, colaboraram para tornar essa dissertao um pouco nossa.

    Ainda que as palavras aqui utilizadas no expressem, veementes, o que

    desejo e imagino, pois, por vezes elas se pem opondo-se, deixo registrado o reconhecimento contribuio daqueles que seguem:

    Ao meu orientador, professor doutor Alberto Marcos Onate cuja sabedoria

    deu-me base para construir este legado por me indicar o caminho quando as opes disponveis eram abundantes, evitando que eu enveredasse por sendas sem sada e de difcil retorno.

    A todo o corpo docente da Unioeste, especialmente aos professores Dr. Jos

    Luiz Ames e Dr. Wilson Frezzatti Jnior, coordenadores do programa de mestrado, ao tempo de minha especializao. Cada um em particular e a universidade como um todo deram sua cota de contribuio para minha formao. No posso deixar de reconhecer tambm o Estado paranaense, que, atravs desta instituio de ensino, proporcionou-me o exerccio da cidadania.

    Aos avaliadores, professor Dr. Jos Fernandes Weber (UEL) e Wilson Antonio

    Frezzatti Jnior (UNIOESTE), cujos comentrios certamente contriburam para ampliar minha viso sobre o tema desta pesquisa.

    Natlia Lulu de Oliveira, secretria do programa de mestrado, pela amizade

    e pela presteza no fornecimento das informaes necessrias ao cumprimento das questes burocrticas.

    Aos meus filhos, Clicles, Pricles, Arno Jr. e Kairon rticles, que numa troca

    de experincias e incentivos, apoiaram-me na busca deste ideal, mostrando-me que o ensino no tem um caminho nico a ser trilhado no se faz necessariamente dos pais prole, mas tambm destes a aqueles oferecendo-me assim, um exemplo vivo de transvalorao dos valores.

    s minhas noras, Dayane, Juliana e Milena que as tenho como filhas pelo

    estmulo e pela pacincia em me ouvir. Especialmente Dayane, pela ajuda na reviso do resumo em lngua inglesa.

    Por fim, um agradecimento especial a uma pessoa que me aconselhou,

    amparou e ajudou. A este que soube entender que filosofar no , nem de longe, uma atividade solitria, mas sim algo que se constri no dilogo entre pensadores, principalmente quando mostram suas divergncias. A esta pessoa que soube separar o meu amor pela famlia, do amor sabedoria, aprendendo a amar o que eu amo, deixo o meu mais sincero obrigado meu esposo, Luciano.

  • [Os gregos] assinalaram a cultura viva de todos os outros povos e, se chegaram to longe, foi porque souberam continuar a arremessar a lana onde um outro povo a tinha deixado. So admirveis na arte de aprender dando frutos; e deveramos, como eles, aprender com os nossos vizinhos a utilizar os conhecimentos adquiridos como apoio para a vida e no para o conhecimento erudito, apoio a partir do qual se salta para o alto e mais alto ainda do que o vizinho (PHG/FT, I). O que seria do saber romano, do medieval, o que seria do saber moderno sem a Grcia e sem a possibilidade de um dilogo sempre renovado com ela? O que teria acontecido se a Grcia no houvesse existido? O que dizer do passado vigente e do seu enigma? O passado vigente difere do simplesmente ter passado (HEIDEGGER, 2002, p. 206). Pois o mundo precisa eternamente da verdade, precisa, portanto, eternamente de Herclito [...]. O que ele contemplou, a doutrina da lei no devir e do jogo na necessidade, deve contemplar-se eternamente a partir de agora: foi ele quem levantou a cortina deste espetculo sublime (PHG/FT, VIII). A portadora da luz portadora da morte. Vida e morte, luz e noite correspondem-se justamente ao se contradizerem. Artmis, a altaneira, permite que em seu aparecimento brilhe em todo ente essa contra-dio. Ela o aparecimento do contrrio, que nunca e em parte alguma pretende resolver o contrrio ou favorecer um dos lados a fim de superar o contrrio (HEIDEGGER, 2002, p. 40).

  • FERRONATTO, Mariza Ardem Scipioni Vial. Diferena como Relao: Leituras contemporneas de Herclito. 2009. 138. Dissertao de Mestrado em Filosofia Universidade Estadual do Oeste do Paran, Toledo.

    RESUMO A proposta deste trabalho tem como fio condutor a investigao da seguinte questo: como possvel que a noo de diferena, presente nos fragmentos de Herclito, possa, ao mesmo tempo, fundamentar um sentido ntico de mundo, como o concebido por Nietzsche, e o sentido ontolgico de mundo, concebido por Heidegger? A leitura da bibliografia selecionada indica a possibilidade de explorao da hiptese de que, como leitores de Herclito, Nietzsche e Heidegger concordam ao identificar a diferena como relao; porm, divergem quanto dimenso em que essa relao se efetiva. Com o objetivo de fundamentar a hiptese proposta, o trabalho se divide em trs etapas distintas, mas relacionadas. O primeiro captulo dedica-se a analisar a leitura heideggeriana dos fragmentos 16, 123, e 51 (DK) de Herclito. Tomando como ponto de partida estes trs fragmentos, pretende-se esclarecer o sentido da leitura e o propsito de Heidegger ao abord-los. O segundo captulo pretende apontar as teorias heraclitianas presentes no pensamento nietzschiano e elucidar essa relao atravs de uma anlise interpretativa dos textos de Nietzsche onde esta se faz presente. O terceiro captulo procura demonstrar que Heidegger e Nietzsche encontram em Herclito um conceito fundamental central: a questo da diferena vista como relao, que utilizada por ambos como nexo essencial para explicitao de suas teorias. guisa de concluso, reavalia-se a dimenso em que se efetiva o emprego da noo de diferena como relao. Palavras-chave: Diferena. Relao. ntico. Ontolgico. Contradio.

  • FERRONATTO, Mariza Ardem Scipioni Vial. Difference as Relation: Readings contemporaries of Heraclitus. 2009. 138. Masters tesis in Philosophy - State University of the West of the Paran, Toledo.

    ABSTRACT The proposal of this work has as conducting wire the inquiry of the following question: how it is possible that the notion of difference, present on the Heraclitu's fragments, can, at the same time, underlie an ontic sense of world, like the conceived by Nietzsche, and the ontologic sense of world, conceived by Heidegger? The reading of the selected bibliography indicates the possibility of exploration of the hypothesis that, as readers of Heraclitus, Nietzsche and Heidegger agree when identifying the difference as relation; however, they diverge when it refers to the dimension in wich this relation effectively happen. With the objective to underlie the hypothesis proposed, the work was divided in three distinct stages, but related. The first chapter dedicates to analyze the heideggerian reading of the fragments 16, 123, and 51 (DK) of Heraclitus. Taking as starting point these three fragments, it intendes to clarify the direction of the reading and the Heidegger's intention when approaching them. The second chapter intends to point the heraclitian theories present in the nietzschian thought and to elucidate this relation through an interpretative analysis of the Nietzsche's texts where this relation makes itself present. The third chapter aims to demonstrate that Heidegger and Nietzsche find in Heraclitus a central fundamental concept: the question of the difference seen as relation, that is used by both as essential nexus for explicitation of his theories. To conclude, it makes a reevaluation of the dimension where the use of the notion of difference as relation effectively happen. Key words: Difference. Relation. Ontic. Ontologic. Contradiction.

  • NOTAES BIBLIOGRFICAS

    No presente trabalho as citaes de obras de Nietzsche seguem a

    conveno dos Cadernos Nietzsche publicao do Grupo de Estudos Nietzsche.

    As siglas em alemo, propostas pela edio Colli/Montinari das Obras Completas

    do filsofo, sero acompanhadas das equivalentes em lngua portuguesa.

    I Testos editados por Nietzsche:

    GT/NT Die Geburt der Tragdie (O nascimento da tragdia)

    MAI/HHI Menschliches Allzumenschiches (vol. 1) (Humano, demasiado humano

    (vol. 1))

    M/A Morgenrte (Aurora)

    FW/GC Die Frhliche Wissenschaft (A gaia cincia)

    Za/ZA Also Sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra)

    JGB/BM Jenseits von Gut und Bse (Para alm de bem e mal)

    GM/GM Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)

    GD/CI Gtzen-Dmmerung (Crepsculo dos dolos)

    II Textos preparados por Nietzsche para edio:

    AC/AC Der Antichrist (O anticristo)

    EH/EH Ecce homo

    III Escritos inditos inacabados:

    PHG/FT Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na poca

    trgica dos gregos)

    WL/VM ber Wahrheit und Lge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e

    mentira no sentido extramoral)

  • Nos textos publicados por Nietzsche, o algarismo arbico indica o

    aforismo; em GM/GM, o algarismo romano anterior ao arbico remete a parte do

    livro; em Za/ZA, o algarismo romano remete parte do livro e a ele se segue o ttulo

    do discurso; em de GD/CI e de EH/EH, o algarismo arbico, que se segue ao ttulo

    do captulo, indica o aforismo. Nos escritos inditos inacabados, o algarismo arbico

    ou romano, conforme o caso, indica a parte do texto. Para os fragmentos publicados

    postumamente, o algarismo romano indica o volume das Obras Completas e os

    arbicos que a ele se seguem, o apontamento privado. Para situar o leitor quanto

    ao perodo em que os apontamentos foram escritos, segue a lista com a

    equivalncia dos volumes da Kritische Studienausgabe (KSA):

    VII apontamentos privados de 1869 a 1874

    VIII -- apontamentos privados de 1875 a 1879

    IX -- apontamentos privados de 1880 a 1882

    X -- apontamentos privados de 1882 a 1884

    XI apontamentos privados de 1884 a 1885

    XII apontamentos privados de 1885 a 1887

    XIII apontamentos privados de 1887 a 1889

  • SUMRIO

    INTRODUO ..........................................................................................................12

    CAPTULO I ..............................................................................................................17

    1. A INTERPRETAO DE HEIDEGGER DOS FRAGMENTOS 16, 123 E 51 DE HERCLITO .............................................................................................................17

    1.1 CONTESTAO METAFSICA TRADICIONAL ..............................................17

    1.2 A INCAPACIDADE DA LGICA PARA ADMITIR A POSSIBILIDADE DE

    VERDADE NA CONTRADIO................................................................................19

    1.3 FRAGMENTO 16 E A RELAO ESSENCIAL ENTRE NUNCA DECLINAR E A

    PHSIS .....................................................................................................................22

    1.4 FRAGMENTO 123 E A RELAO PROPICIADORA ENTRE SURGIMENTO E

    ENCOBRIMENTO .....................................................................................................30

    1.5 FRAGMENTO 51 E A RELAO CONSONANTE ENTRE TENSES

    CONTRRIAS...........................................................................................................37

    1.6 RETORNO AO FRAGMENTO 16 E A RELAO PRIMORDIAL ENTRE O E

    O NUNCA DECLINAR...............................................................................................44

    CAPTULO II .............................................................................................................48

    2 AFINIDADE ENTRE AS TEORIAS DE HERCLITO E O PENSAMENTO DE NIETZSCHE ..............................................................................................................48

    2.1 O DIZER SIM CONTRADIO E GUERRA CRTICA LGICA.............49

    2.2 O VNCULO ENTRE A VONTADE POTNCIA E O VIR-A-SER .....................63

    2.3 O FLUXO DO VIR-A-SER IMPLICADO NO ETERNO RETORNO .....................76

    CAPTULO III ............................................................................................................91

  • 3 A DIFERENA COMO RELAO: FUNDAMENTO PARA HEIDEGGER E NIETZSCHE ..............................................................................................................91

    3.1 A DIFERENA COMO RELAO EM HEIDEGGER .........................................91

    3.2 A DIFERENA COMO RELAO EM NIETZSCHE ........................................101

    3.3 O SENTIDO ONTOLGICO E O SENTIDO NTICO DESSA DIFERENA

    COMO RELAO ...................................................................................................111

    CONCLUSO .........................................................................................................127

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................130

    ANEXO: FRAGMENTOS DE HERCLITO CITADOS NO TEXTO........................134

  • 12

    INTRODUO

    Visando entender filosoficamente a noo de diferena como

    relao, optou-se pelas reflexes de Heidegger e Nietzsche, tomando o

    pensamento de Herclito como horizonte articulador. A questo que entrelaa a

    meditao dos dois filsofos alemes se pauta pela seguinte investigao:

    possvel que a noo de diferena, presente nos fragmentos de Herclito, possa

    fundamentar o sentido ontolgico de mundo, concebido por Heidegger, e o sentido

    ntico1 de mundo, concebido por Nietzsche? A leitura da bibliografia selecionada

    indica a possibilidade de explorao da hiptese de que ambos os filsofos

    concordam ao identificar a diferena como relao, porm, primeira vista,

    parecem divergir quanto dimenso em que essa relao se efetiva.

    Com o objetivo de fundamentar a hiptese proposta, o trabalho se

    divide em trs etapas distintas, mas relacionadas. O primeiro captulo dedica-se a

    analisar a leitura heideggeriana dos fragmentos2 163, 1234, e 515 de Herclito.

    Tomando como ponto de partida estes trs fragmentos, pretende-se esclarecer o

    sentido da leitura e o propsito de Heidegger ao abord-los. Apesar do destaque

    devido pertinncia destes fragmentos em relao ao tema da pesquisa, outros

    fragmentos do pensador grego sero utilizados como subsdio para os

    esclarecimentos propostos. acompanhando-se a interpretao heideggeriana dos

    termos gregos concernentes ao pensamento de Herclito que se chegar a uma

    nova compreenso dos fragmentos em questo. A abordagem hermenutica

    executada por Heidegger visa ir alm daquilo que est literalmente expresso nos

    textos do pensador grego. Como se ver, a inteno de Heidegger pensar o

    impensado que se articula por trs dos fragmentos deixados por Herclito.

    Inicialmente, dar-se- destaque contestao que Heidegger faz

    1 Sempre que citados nesta pesquisa, os termos ntico e ontolgico tm o sentido presente no pensamento de Heidegger. O sentido ntico se refere ao ente. O sentido ontolgico se refere ao ser. 2 A numerao dos fragmentos de Herclito a da compilao de Hermann DIELS e Walther KRANZ na obra Die Fragmente der Vorsokratiker. Zrich, Weidmann, 1989. 3 Como algum poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez j no declina? (HEIDEGGER, 2002, p. 61), 4 Surgimento favorece o encobrimento (HEIDEGGER, 2002, p. 122). 5 Ele no com-pe como deve vigorar o des-ordenar em que ele (no dis-por de si mesmo) se com-pe consigo mesmo; tensionando para trs (ampla, a saber, o que se dis-pe) que vigora a juno, como ela (essncia) se mostra na viso do arco e da lira (HEIDEGGER, 2002, p. 159).

  • 13

    metafsica tradicional. Segundo ele, a metafsica tradicional sedimentou-se a partir

    do paradigma instaurado pela escola platnica. a partir de Plato que ocorreu o

    rompimento daquela unidade originria que no incio do pensamento ocidental foi

    nomeada por Phsis. Para os primeiros pensadores gregos, a Phsis era entendida

    como uma unidade originria que congregava tanto o desocultamento

    (desvelamento do ente) como o ocultamento (velamento do ser).

    a partir da contestao metafsica tradicional e da conseqente

    contestao lgica, que Heidegger abre caminho para fundamentar e validar as

    contradies expressas por Herclito nos trs fragmentos destacados. A validao

    destas contradies o objetivo que permeia a abordagem de cada um deles. Com

    o fragmento 16, busca-se focalizar a relao essencial entre o nunca declinar e a

    Phsis, entendida enquanto relao congregadora entre velamento e desvelamento.

    O estudo do fragmento 123 tem por objetivo mostrar a relao propiciadora entre

    surgimento e encobrimento. Atravs da anlise do fragmento 51, pretende-se

    apontar a relao entre tenses contrrias que se mostram no movimento de

    divergncia e convergncia. Por fim, uma vez articulados e relacionados os trs

    fragmentos, intenciona-se salientar o que Heidegger pretende com eles

    fundamentar.

    O segundo captulo consiste em demonstrar a afinidade entre as

    teorias de Herclito e o pensamento de Nietzsche. O trabalho comea assim

    como em Heidegger pela contestao lgica, vista como modo habitual de

    nosso raciocinar. Desta, Nietzsche deriva sua crtica crena na validez da razo.

    Combate ainda a metafsica consagrada pela tradio filosfica, que funda a crena

    em um mundo esttico e permanente. Partindo dessas crticas, Nietzsche viabiliza a

    possibilidade de justificar a aceitao das contradies presentes nas teorias de

    Herclito, justificao essa que embasa o dizer sim contradio e guerra, tema

    da primeira seo deste captulo. Como se ver no desenvolvimento deste captulo,

    o interesse de Nietzsche em fundamentar as contradies presentes nos

    fragmentos de Herclito, no apenas o de dar crdito s teorias do pensador

    grego, mas , ao mesmo tempo, dar consistncia a sua prpria filosofia. Essa, em

    vrios momentos, est alicerada em oposies tpicas. Ao contrrio do que pensa

    a lgica, para Nietzsche as contradies no so excludentes, elas se manifestam

    em conjunto, pois um plo no poderia se revelar sem o outro.

    Na seqncia, visa-se apresentar o vnculo entre a teoria da

  • 14

    vontade potncia (Wille zur Macht6), articulada por Nietzsche, e o vir-a-ser

    prescrito nas teorias de Herclito. Para o encaminhamento desse vnculo,

    inicialmente se enfocar a noo de luta, presente tanto nas teorias heraclitianas

    como no pensamento nietzschiano. Para Herclito, a luta entre os opostos que

    garante a permanncia da mudana, gerando assim um constante vir-a-ser. Para

    Nietzsche, a luta que se instaura entre foras oponentes est atrelada vontade

    potncia. Sendo esta um insacivel querer-ser-mais, est a implicado um constante

    movimento que, por sua vez, gera o vir-a-ser. Melhor dizendo, a vontade potncia

    pode ser atribuda ao prprio vir-a-ser de Herclito, pois com seu carter insacivel

    nunca chega a ser, mas somente um vir-a-ser. Com efeito, tanto no vir-a-ser como

    na vontade potncia, a cada estado alcanado, simultaneamente um outro

    sucede. Este vnculo entre a vontade potncia e o vir-a-ser, apresenta

    desdobramentos que implicam nas noes de luta, diferena, foras, dominao e

    submisso, hierarquias, relao e mundo, que sero esclarecidas medida que o

    texto indicar sua pertinncia.

    O objetivo seguinte destacar a implicao do fluxo do vir-a-ser na

    hiptese do eterno retorno formulada por Nietzsche. A germinao desta hiptese, o

    filsofo alemo julga t-la encontrado no pensamento de Herclito. Assim como o

    pensador grego, Nietzsche tambm acredita que o mundo no foi criado por

    nenhum poder transcendente, ambos concebem-no como uma totalidade

    permanentemente geradora e destruidora de si mesma. atribuindo ao mundo

    carter de grandeza determinada, constituda por foras finitas em constante fluxo e

    refluxo que perfazem a infinitude de um tempo circular que Nietzsche concebe a

    idia do eterno retorno. Na seqncia, sero tambm abordadas quais seriam as

    implicaes da aceitao desta doutrina por parte do homem.

    A proposta do terceiro captulo trazer tona o que ficou implcito 6 No que tange ao termo Wille zur Macht, vertido aqui como vontade potncia, acompanhou-se a traduo proposta por Alberto Marcos Onate. As tradues convencionais (vontade de potncia e vontade de poder) so preteridas em funo dos seguintes argumentos bsicos: 1 De acordo com Michel Haar, o complemento de puissance, da traduo francesa, no contempla o movimento at contido no zur Macht, e pode dar a entender que a vontade que anseia pela potncia. Nesse sentido, o prprio Nietzsche adverte: no h vontade: h pontuaes de vontade que constantemente aumentam ou perdem sua potncia (XIII, 11 [73]). 2 As conotaes da lngua portuguesa para os termos potncia e poder no se coadunam com o alemo Macht devido aos seus sentidos usuais. Potncia est ligada ao vigor sexual, possibilidade, virtualidade ou capacidade no efetivada, enquanto poder se liga acepo de autoridade ou vigor material. Tendo em vista estas consideraes, deu-se preferncia ao termo potncia pela sua ligao com a maior radicalidade semntica do termo latino potentia em contraposio a potere, do qual deriva o termo poder (Cf. ONATE, 2003, p. 40 e 41).

  • 15

    no desenvolvimento das etapas anteriores. Com esse propsito, ter-se- como alvo

    evidenciar que Heidegger e Nietzsche encontram em Herclito um conceito

    fundamental: a questo da diferena vista como relao, que utilizada por ambos

    como nexo essencial para explicitao de suas teorias.

    Na tentativa de se chegar a essa elucidao, a primeira seo se

    deter em visualizar a diferena como relao em Heidegger. Esta visada poder

    ser esclarecida volvendo-se o olhar para a leitura que Heidegger faz dos fragmentos

    de Herclito. Ao ler esses fragmentos, Heidegger destaca a presena dos pares

    surgimento-encobrimento, divergncia-convergncia e velamento-desvelamento. O

    que Heidegger pretende fundamentar ontologicamente a harmonia dos contrrios,

    presentes nos trs fragmentos. A sua reflexo est voltada para a diferena

    ontolgica, aquela que se mostra no por meio da simples comparao entre duas

    coisas, mas que acontece no interior do ente mesmo, no modo como o ente e o ser

    se relacionam.

    No intento de fundamentar a segunda seo deste captulo,

    procurar-se- evidenciar que a questo da diferena como relao desempenha

    relevante papel na filosofia de Nietzsche. Tal papel central poder ser destacado a

    partir de argumentaes implcitas no captulo anterior. Por meio destas

    argumentaes, visa-se articular a diferena como relao permeando as seguintes

    noes: na harmonia dos contrrios; na concepo nietzschiana de luta; na vontade

    potncia; entre quantidade e qualidade de foras e no vir-a-ser.

    Uma vez explicitada como se articula a noo da diferena como

    relao tendo em vista a leitura que Heidegger e Nietzsche fazem do pensamento

    de Herclito busca-se ainda, guisa de concluso, assinalar o sentido ontolgico

    e o sentido ntico desta noo. Ao chegar-se terceira e ltima seo deste

    captulo, se impor a necessidade de reavaliar e discutir qual a viabilidade de

    sustentao da hiptese que a norteia. Nessa reavaliao, se levar em conta o

    conjunto da exposio empreendida neste trabalho. Discutir-se- at que ponto a

    investigao empreendida reuniu suficientes argumentos para afirmar que:

    Heidegger aborda a questo da diferena como relao voltada para uma dimenso

    ontolgica, enquanto Nietzsche a abordaria a partir de um cunho ntico. Nortear tal

    investigao uma compreenso prvia dos conceitos ntico e ontolgico. Aps esta

    explicitao, estes conceitos sero aplicados tanto filosofia heideggeriana como

    filosofia nietzschiana. Esta aplicao conduzir a questionamentos nos seguintes

  • 16

    termos: o que significa para Heidegger a busca pela verdade do ser? O que ele

    entende por metafsica tradicional? Qual o embasamento da crtica heideggeriana

    filosofia de Nietzsche? At que ponto esta crtica se sustenta? Respondidas estas

    questes, se ensaiar uma discusso de Nietzsche com Heidegger e seus

    conceitos. Este ensaio viabilizar um novo posicionamento a respeito da dimenso

    em que se desenvolve o pensamento de Nietzsche. Por fim, se apresentar a

    possibilidade de aproximao entre os dois filsofos.

  • 17

    CAPTULO I

    1. A INTERPRETAO DE HEIDEGGER DOS FRAGMENTOS 16, 123 E 51 DE HERCLITO

    Sempre que se pensa em edificar uma nova construo, preciso

    antes demolir a antiga, retirar os entulhos, limpar o terreno e investigar a

    profundidade necessria para que os novos alicerces resistam o maior tempo

    possvel. A exemplo desse construtor, acompanhar-se- os passos de Heidegger,

    que, pacienciosamente, se dispe a retirar os obstculos que se impuseram nesse

    intervalo de tempo que o separa de Herclito. Com isso, quer-se dizer que, antes

    mesmo de adentrar-se na investigao heideggeriana dos fragmentos de Herclito,

    dar-se- destaque contestao que Heidegger faz metafsica tradicional e

    demonstrao de que a lgica um obstculo compreenso do pensamento

    grego representado por Herclito.

    1.1 CONTESTAO METAFSICA TRADICIONAL

    Em concordncia com o que foi dito acima, observa-se que grande

    parte das interpretaes correntes sobre os fragmentos de Herclito dizem respeito

    quelas que a tradio metafsica consagrou. Nesse sentido, Heidegger nos lembra

    que a configurao em que nos foi transmitida a palavra de Herclito e a

    interpretao que temos de seus fragmentos so aquelas encontradas nas obras de

    pensadores posteriores, como Plato e Aristteles; Teofrasto e outros eruditos da

    filosofia; Sexto Emprico e Digenes de Larcio; o escritor Plutarco; e tambm os

    padres da Igreja Hiplito, Orgenes e Clemente de Alexandria. Estes citaram em

    suas obras passagens dos escritos de Herclito, porm, estas passagens citadas se

    determinam pelo pensamento dos autores referidos. Tal modo de pensar, que teve

  • 18

    incio com Plato, se transformou em um paradigma, uma forma-padro que rege o

    pensamento e se fixou at nossos dias.

    Para Plato, o ser sinnimo do real e autntico, o lugar do

    supra-sensvel, onde se encontra o verdadeiro ser das coisas; enquanto que, a

    aparncia (ou o inautntico) encontra-se no sensvel e tomada sempre como

    imitao e cpia do primeiro. Plato interpreta ser e aparncia separadamente. No

    entanto, Heidegger apreende esse par bipolar como modos constitutivos do ser.

    Para ele, ser significa aparecer e este aparecer no um atributo casual do ser,

    mas o modo constitutivo de sua presena, de tal forma que o aparecer pertence ao

    ser. Constata-se que, enquanto Plato concebe o ser no supra-sensvel e

    separadamente do ente, dado que coloca esse ltimo no sensvel (como cpia),

    Heidegger concebe-os conjuntamente, numa copertinncia.

    Heidegger observa que o estabelecimento desse modelo de

    pensamento teve como conseqncia a busca constante de apreenso do ente e o

    abandono da possibilidade de voltar-se para o ser como sentido fundante daquilo

    que faz com que a coisa seja o que . Esta entrega ao ente que se apresenta

    consiste na exacerbao de apenas um dos aspectos do pensamento grego inicial,

    e uma das principais caractersticas do pensar metafsico. A raiz desta derivao

    se mostra com clareza nos dilogos de Plato, cuja teoria se desenvolve em

    oposio prpria origem. A matriz que possibilita a complexidade do pensamento

    platnico no , no entender de Heidegger, um modelo metafsico. A distncia que

    separa o pensamento pr-socrtico de sua derivao clssica atestada pela

    rigorosa comparao semntica a que Heidegger submete as palavras comuns s

    sentenas e fragmentos pertencentes aos dois perodos do pensamento grego.

    esta distncia que marca o incio de uma nova tradio e o abandono da

    proximidade do ser.

    Tendo-se em vista que o assunto tratado voltar tona no decorrer

    da anlise heideggeriana dos fragmentos de Herclito, no se alongar, aqui, a

    discusso sobre o mesmo. Isto se repete com a contestao lgica, que ser

    abordada introdutoriamente na prxima sesso deste captulo, mas retomada

    tambm como apoio para a argumentao de Heidegger na tentativa de se

    aproximar do pensamento original de Herclito.

  • 19

    1.2 A INCAPACIDADE DA LGICA PARA ADMITIR A POSSIBILIDADE DE

    VERDADE NA CONTRADIO

    A necessidade de fazer-se uma contestao lgica se d pelo fato

    de que, nas entrelinhas do assunto a ser tratado, trabalhar-se- com proposies de

    carter divergente. Esta observao digna de nota, porque nos fragmentos de

    Herclito encontramos frases que se exprimem em contradies. Apenas para

    tomar um exemplo, lembre-se o fragmento 123 desse pensador: Surgimento

    favorece o encobrimento (HEIDEGGER, 2002, p.122). Fala-se nesse fragmento

    dum surgimento e dum declnio. Na metafsica tradicional, e, conseqentemente, na

    lgica, o pensamento dialtico despreza e se escandaliza com tais contradies.

    Uma anlise da histria pode demonstrar que a tripartio da filosofia em disciplinas

    (na escola platnica) levou a lgica a uma abordagem tendenciosa, que no permite

    o desvelamento integral do seu objeto de estudo, posto que as suas prprias regras

    determinam o que pode vir tona ou no; isto , a determinao se efetiva da

    disciplina para o objeto, e no do objeto para a disciplina. Com isso, percebe-se que

    desde o incio da metafsica a essncia do pensamento passa a ser determinada

    como lgica.

    Heidegger demonstra que o ttulo lgica ambguo. Por um lado,

    a lgica do pensamento e, por outro, a lgica das coisas. Explica, com isso, que

    no se aprende a pensar corretamente partindo apenas da construo e das regras

    do pensamento como pressupostos, no se deixando conduzir pela lgica interna

    das coisas. Segundo ele, os pensamentos verdadeiros e raros no surgem do

    pensamento auto-produzido, mas sim do pensar a partir das coisas: pensa-se

    logicamente quando se persegue a lgica inerente coisa e se pensa a partir dela.

    a percepo de que o pensamento moderno est condicionado pelos

    pressupostos da metafsica tradicional que leva Heidegger a elaborar uma crtica

    lgica, e nesse sentido que ele diz:

    O apelo do lgico, como instncia da constringncia e obrigatoriedade, em toda parte sinal do pensamento que no pensa. , sobretudo, o homem inculto que mostra um amor especial pelo emprego da expresso lgico. O homem inculto aquele que no consegue compor nenhuma imagem diante da coisa em questo, aquele que desconhece como se d uma relao com a coisa e como a relao deve sempre ser novamente conquistada,

  • 20

    que desconhece, ainda, que a relao s se deixa conquistar na pronncia da coisa a partir da coisa ela mesma. A expresso to usada, isso lgico, constitui na maior parte das vezes um sinal de que se desconhece a coisa em questo. Pensar logicamente, obedecer o lgico ainda no garante o verdadeiro. O ilgico pode muito bem abrigar em si o verdadeiro (HEIDEGGER, 2002, p.126).

    Mas, em que implica essa advertncia de Heidegger em relao

    interpretao dos fragmentos de Herclito? Esses, quando interpretados sob a luz

    das regras representativas da lgica, so considerados invlidos por no se

    ajustarem ao princpio de no-contradio e, por isso, abandonados como se a

    invalidade lgica fosse equivalente falsidade da proposio. Segundo Heidegger,

    o entendimento comum fica imobilizado ao se deparar com a incompatibilidade

    entre a crena na correo do raciocnio lgico e o peso das afirmaes proferidas

    por um pensador do nvel de Herclito, reconhecido como tal pela prpria tradio

    filosfica. Para Heidegger, essa imobilidade fundamental para que se possa

    transpor o abismo existente entre o pensamento comum, ou lgico, e o pensamento

    essencial, pois a imobilizao deve significar apenas o primeiro preparativo para se

    pensar o fragmento no sentido do pensador (HEIDEGGER, 2002, p.129). Para

    tanto, deve-se deixar de lado as interpretaes metafsicas tradicionais e, ao

    mesmo tempo, abandonar a lgica e seus princpios. Trata-se, portanto, de

    suspender as nossas representaes habituais e de inverter o sentido do nosso

    esforo; inverso que significa no tentar mais apagar a contradio presente nos

    fragmentos de Herclito, mas, ao contrrio, ver nela o mais alto enigma da Phsis.

    Desse modo, os esforos devem ser conduzidos no sentido de direcionar o

    pensamento a um outro domnio e, assim, aproximar-se de uma regio mais

    originria, da regio pr-metafsica, e ali explorar, por meio de uma escuta

    meditativa da lngua grega inicial, o que tem a nos dizer os fragmentos de Herclito.

    Entretanto, como chegar proximidade da origem seno meditando o impensado

    do comeo?

    Mas, o que esse impensado? Numa primeira anlise da questo,

    poder-se-ia considerar este impensado como o fundamento e o marco inicial da

    histria do pensamento ocidental; a questo fundamental, da qual a investigao

    metafsica se manteve afastada. Uma segunda tentativa de responder questo do

    impensado levaria a entend-lo como o que se manteve nesta condio no tanto

    por negligncia do pensamento, mas sim devido ao fato de que o seu modo de

  • 21

    manifestar-se o prprio retiro. O que, nesse momento, cabe observar, que a

    origem assinalada como o impensado veio at ns j ocultada pelo seu outro e

    esquecida em detrimento deste. Conseqentemente, a origem no pode ser

    apresentada dissociada daquilo que a encobre. Segundo Heidegger, o que se

    procura na posio de origem (o impensado) s pode manifestar-se em modo de

    retiro e consiste na sua prpria ocultao, pois o ser s se desvela como velado.

    para chegar a essa demonstrao que Heidegger aponta um modo de pensar mais

    originrio. Para ele, o pensamento originrio no repousa na tica em que o ser

    causa e o ente efeito, mas pensa numa diferena que se estabelece entre ser e

    ente, fazendo com que ambos sejam pensados um em relao ao outro, num

    recproco pertencer.

    Essa diferena, que se entrelaa em uma copertinncia, o que

    Heidegger chama de diferena ontolgica. Para esclarecer o que essa diferena,

    Heidegger remete-se ao pensamento metafsico tradicional. Segundo ele, a marca

    mais forte no incio da tradio metafsica o esquecimento da diferena entre ente

    e ser. primeira vista, esta afirmao pode parecer descabida, porque a metafsica

    tradicional indica o ser como um aspecto, noo ou idia da qual o ente

    representao. Ora, se o ente representao do ser, est implicada a uma

    diferena. Contudo, Heidegger diz que essa diferena captada pela metafsica no

    passa de uma abstrao dos traos essenciais do ente. Com isso, ela toma uma

    mera perspectiva do ente como se fosse o ser. Heidegger descarta essa

    pseudodiferena ente-ser, captada pela metafsica tradicional, e vai em busca de

    uma diferena relatada na origem do pensamento grego, nos fragmentos dos

    filsofos pr-socrticos. Essa diferena ente-ser sempre fugidia e de difcil

    apreenso, mas invariavelmente acompanha a presena do que aparece. No

    pensamento de Herclito, notvel como o ser se reveste de contornos imprecisos,

    impossibilitando sua apreenso como alguma coisa, ou como um ente, maneira

    da metafsica tradicional. Pelo contrrio, o ser se identifica justamente com essa

    diferena fugidia que o ente revela e esconde ao mesmo tempo. Este jogo est

    presente em todos os fragmentos de Herclito, mas, para perceb-lo preciso

    despir-se do pensar metafsico, contaminado por referncias e categorias que no

    estavam presentes no pensamento grego original. De acordo com isso, fica explcito

    o passo a seguir: tendo em vista que a partir dos fragmentos de Herclito que

    Heidegger pretende fundamentar essa unidade ontolgica a relao ente-ser

  • 22

    numa mtua pertinncia , passa-se a seguir para a anlise heideggeriana desses

    fragmentos.

    1.3 FRAGMENTO 16 E A RELAO ESSENCIAL ENTRE NUNCA DECLINAR E A

    PHSIS

    Para que se possa acompanhar o percurso de Heidegger ir do

    pensado ao impensado ter-se-, a princpio, que trazer tona a traduo

    usualmente proposta aos fragmentos em questo, para, s ento, poder-se

    confront-los com uma nova maneira de leitura dos mesmos. Dando-se o primeiro

    passo no percurso descrito, tomar-se- o fragmento 16 de Herclito no mbito do

    pensamento comum. Do que jamais mergulha como algum escaparia?

    (HERCLITO, in Pr-Socrticos, 2000, p. 89). Com significante diferena, esse

    fragmento utilizado por Heidegger com a seguinte traduo: Como algum

    poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez j no declina?

    (HEIDEGGER, 2002, p.61).

    Segundo Heidegger, com este fragmento o pensamento pretende

    tocar no ncleo determinante do que, em Herclito, constitui o a-se-pensar

    originrio. na expresso o que nunca declina que, verdadeiramente, se esconde

    todo o enigma do fragmento. Mas, Heidegger prefere analisar, a princpio, apenas a

    primeira parte deste questionamento de Herclito e se pergunta a que Herclito est

    se dirigindo em relao ao que nunca declina? Explicita observando que se fala de

    um , e com isso nomeia-se um algum e no um , uma coisa; nomeia-se aquilo

    que significa um pronome interrogativo quem?. Portanto, esse quem se refere a

    ns mesmos, aos entes humanos. Desse modo, percebe-se com nitidez a unidade

    expressa nesta sentena como uma relao entre o homem e o que nunca declina.

    Conseqentemente, o fragmento questiona: Como algum (dos homens) poderia

    manter-se encoberto ao que, a cada vez, j no declina? (HEIDEGGER, 2002,

    p.64). Imediatamente, outra pergunta se interpe: o que declinar, manter-se

    encoberto? Heidegger adverte que se tm o costume de entender a palavra declnio

    ou declinar simplesmente como um desaparecimento, um decair, ou ainda um

  • 23

    aniquilar-se, um no ser mais. Porm, declinar no , de modo nenhum, no ser

    mais, pois, em seu sentido originrio, declinar pode ser o prprio ser: [...] pensando

    de modo grego, declinar o desaparecer da presena e, na verdade, no modo de

    sair e penetrar no que se oculta, ou seja, se encobre. Pensado no modo grego, tem

    como essncia adentrar o encobrimento (HEIDEGGER, 2002, p. 66). Para facilitar

    a compreenso, Heidegger cita como exemplo (por analogia) o declnio do sol e

    explica que este declnio no significa o seu aniquilamento e menos ainda o seu

    no-ser.

    Na seqncia, Heidegger passa a analisar as palavras e

    (declina e encoberto). Observa que entre elas existe uma relao essencial e

    que, na verdade, pensam o mesmo. Mas, a cautela exigida por Heidegger no se

    permite ir adiante sem antes lembrar que se est diante de uma sentena de

    pensador, pois o pensamento de Herclito possui um carter diferente do

    pensamento comum: [...] vemo-nos imediatamente diante do caso em que

    devemos fazer a experincia da diferena (HEIDEGGER, 2002, p. 68). Com isso,

    surge a necessidade de se mostrar qual , na concepo de Heidegger, a diferena

    entre esses dois modos de pensamento.

    O pensamento comum e o pensamento essencial podem tambm

    ser determinados como pensamento calculador e pensamento meditante.

    Exclusivamente voltado s atividades cotidianas, o pensamento comum direciona-

    se para a representao que se encontra em atividade na cincia. O pensamento,

    na sua concepo habitual, tem por molde o modo de pensamento cientfico. Este

    pensamento cientfico funciona como norma de todo pensamento, determina a

    maneira como a cincia moderna aborda os seus objetos de estudo e possibilita o

    surgimento de uma forma peculiar de pensamento, que Heidegger nomeia de

    pensamento calculador. Este solo, comum cincia moderna e ao pensamento

    calculador, designado por Heidegger pelo termo tcnica. No diretamente a

    tcnica em geral, mas sim a tcnica circunscrita a uma poca singular: a tcnica

    moderna. A interpretao tcnica do pensamento gira em torno do clculo, como

    esclarece Zarader:

    O clculo no tem necessariamente de operar com nmeros: na acepo heideggeriana deste termo, todo o pensamento que conta um clculo. Ora, o pensamento tradicional, na medida em que est dominado pela representao, est condenado a contar (1990, p. 151).

  • 24

    Contudo, a representao moderna permanece margem da

    realidade, dado que esta investigada no campo da apreenso representativa.

    Conseqentemente, o pensamento calculador o que se afastou do elemento

    original, aquele que no mais corresponde ao apelo do ser. Mas, de qualquer modo,

    a tcnica moderna no deixa de ser um desvelamento. Porm, esse desvelamento

    possui uma modalidade particular, caracterstica dessa tcnica. Nesta, o

    pensamento calculador est exclusivamente voltado para o ente. Esta modalidade

    de pensamento habitual (ou calculador) tem sua fonte na considerao da

    objetividade do ente, visando apenas calcular o que est desvelado. O ente

    justamente o que no se oculta. Porm, a fixao no ente inviabiliza a abertura ao

    que essencial.

    preciso, portanto, reenviar o pensamento ao seu lugar original e

    ainda no explorado. Nesse sentido, diz Heidegger: Chamemos de pensamento

    fundamental aquele cujos pensamentos no apenas calculam, mas so

    determinados pelo outro do ente. Em vez de calcular com o ente sobre o ente, este

    pensamento se dissipa no ser pela verdade do ser (HEIDEGGER, 1969, p. 54).

    Este, tem sua fonte na verdade do ser e esfora-se por manter a memria do

    prprio desvelamento, abrindo-se ao mistrio da presena. Com efeito, o

    pensamento essencial um pensamento que resultado do prprio ser. O

    pensamento deve ser fiel ao ser porque, situando-se no ser, deve guardar a

    memria de si mesmo e, assim, permanecer ordenado pela dignidade de sua

    prpria essncia. Heidegger observa que pensar o ser no significa dizer que o

    pensamento essencial, mas quando essencial de acordo com sua essncia

    que o pensamento no pode pensar outra coisa que no seja o ser.

    Conseqentemente, se o pensamento um acontecimento do ser, e pertence ao

    ser, significa dizer que o ser no produto do pensamento, mas o pensamento

    que, na sua origem, resultado do prprio ser e, desse modo, no pode ser

    determinado seno a partir dele. Portanto, o pensamento atinge a sua essncia,

    torna-se essencial quando reenviado a uma outra procedncia. Nesse sentido,

    Heidegger argumenta: [...] o pensamento suscitado pelo ente enquanto tal, que por

    isso representa e esclarece o ente, ser substitudo por um pensamento instaurado

    pelo prprio ser e por isso dcil voz do ser (HEIDEGGER, 1969, p. 68).

    De acordo com o exposto, percebe-se que a diferena entre

    pensamento essencial, ou meditante, e pensamento comum, ou calculador,

  • 25

    encontra a sua origem na diferena entre ser e ente, pois o pensamento essencial

    pensa o ser, enquanto o pensamento comum representa o ente. Essa idia de

    Heidegger reformulada com clareza por Zarader:

    [...] um tem a sua fonte na provao da verdade do ser, o outro na considerao da objetividade do ente; um visa apenas calcular o que est desvelado, o outro esfora-se por conservar ou reencontrar a memria do prprio desvelamento [...] (1990, p. 157).

    Demorou-se um pouco na periferia do essencial. Mas esse desvio

    foi necessrio. Esta demora faz parte da preparao que conduzir ao pensamento

    essencial.

    A pressa do cuidado, porm, no conhece velocidades. Quem rege a pressa do pensamento essencial o vagar. A pressa vagarosa determina o acesso origem. A palavra originria exige de ns o cuidado para que cada passo deixe surgir de si o seguinte (HEIDEGGER, 2002, p. 77).

    nesse sentido que Heidegger sugere que se deve ter sempre,

    antecipadamente, um pensamento preparatrio. Veja-se como Zarader articula esta

    noo:

    [...] o pensamento preparatrio aquele que toma a dianteira, mas maneira do passo atrs. O pensamento do ser aparece assim, a mil lguas de qualquer inveno, como no podendo ser outra coisa seno pensamento do impensado, meditao do comeo e demanda da origem (ZARADER, 1990, p. 157).

    Na questo que nos levou por esse desvio, Heidegger visa analisar

    as palavras e (declina e encoberto) no contexto da parte final do

    fragmento 16 de Herclito: o que nunca declina. Com essa

    questo, no se objetiva tanto fazer a experincia do declinar, mas saber o que

    aquilo que nunca declina. A palavra (declina) caracteriza-se por uma dupla

    participao. Tanto pode pertencer classe nominal (ou substantiva) como classe

    verbal. Se pensarmos o que declina substantivamente, fala-se da substncia que

    cai em declnio. Mas, se pensarmos verbalmente, significa o declinar como tal.

    Heidegger considera que Herclito pensa no sentido verbal, e observa que assim o

    faz porque, como pensador, no pensa de modo comum, mas de forma essencial.

    Observa tambm que os pensadores gregos, na origem do pensamento ocidental,

  • 26

    no precisavam pensar sobre a tarefa do pensamento essencial e nem fornecer

    uma informao acadmica sobre o tema (HEIDEGGER, 2002, p. 70). Ele cita

    como exemplo o pensamento de Aristteles, que, apesar de estar distante do

    pensamento originrio, alcana a completude. Em um de seus tratados, Aristteles

    busca fundamentar a questo: o que o ente? primeira vista, essa questo

    parece referir-se a um significado substantivado. Porm, esse pensador no pensa

    de maneira comum, nem est preso a representaes. A questo o que o ente

    no visa apenas o ente medida que ente, mas procura pela entidade do ente,

    pelo que faz com que o ente seja ente. Por isso mesmo, a pergunta em causa para

    os pensadores o que o ente? significa somente a pergunta: o que o ser dos

    entes? O que isso, dentro e atravs do que algo ente? O que caracteriza como

    tal o ente que est sendo (HEIDEGGER, 2002, p. 71)? A pergunta pelo ente no

    busca nenhuma informao sobre um ente em particular, mas sim a sua entidade,

    aquilo que o constitui. O sufixo dade, presente nas palavras, como por exemplo,

    liberdade e velocidade, se refere quilo que pertence a tudo o que livre e veloz.

    Tambm a animalidade pertence e convm a todos os animais enquanto animais e,

    por isso, designa o universal, o geral. Isso implica dizer que a animalidade no

    visa os animais em sua singularidade, porque o universal se expressa na diferena

    com o particular. Esse universal s universal porque constitui a animalidade do

    animal, aquilo atravs do que cada animal vem a ser um animal. Disso decorre

    dizer-se que a entidade a provenincia de onde cada ente vem a ser e aparece.

    (o ente) no deve ser pensado substantivamente, mas verbalmente, na

    perspectiva do ser dos entes. Diz Heidegger:

    Os pensadores trazem o ente para o olhar essencial da perspectiva do ser. De modo correspondente, Aristteles esclarece a pergunta mencionada, , circunscrevendo-a na pergunta _ qual e o que a entidade dos entes?. Olhando-se a partir dos entes, o que constitui o seu carter universal, de maneira que esse universal possa sustentar cada ente singular? (2002, p. 90).

    A preocupao de Heidegger nos fazer entender que a questo o

    que o ente? deve ser direcionada na perspectiva de se pensar o ser dos entes o

    sendo em seu ser. O que importa reconhecer que os pensadores compreendem a

    palavra fundamental em seu sentido verbal e, desse modo, o ser a perspectiva

    segundo a qual se pode interrogar o ente representado nominalmente. A partir

  • 27

    dessas consideraes, pode-se pensar o que nunca declina como uma vigncia

    permanente: a conceito universal de ser dos entes.

    Seguindo o exemplo acima, Heidegger sugere que se deve pensar

    o que nunca declina de forma correspondente ao ente, no sentido de ser. O

    particpio , o ente, o ser, o particpio de todos os particpios, porque a palavra

    ser a palavra de todas as palavras (HEIDEGGER, 2002, p. 74). Com essa

    observao de Heidegger, preciso fazer-se uma reflexo sobre as palavras ser e

    . Heidegger se vale do fragmento 72 de Herclito para essa anlise. Na traduo

    de Carneiro Leo, o fragmento diz: Do lgos com que sempre lidam, se afastam e

    por isso as coisas que encontram (cotidianamente) lhes parecem estranhas

    (HERCLITO, 1980, p. 99). Inicialmente, faz-se a ressalva de que o , nesse

    contexto, deve ser entendido na interpretao heideggeriana: o mostrar-se

    do ser atravs do ente. O homem, no seu dia-a-dia, relaciona-se com as coisas e os

    homens, com aquilo que se denomina ente. Levado pelo hbito desse

    relacionamento, essa familiaridade com as coisas e com os entes parece comum ao

    homem. Porm, o ente que est sendo, o ente que , passa despercebido ao

    homem no que diz respeito ao seu , no que diz respeito ao ser. Voltado para o

    ente, para no dizer decado e perdido no ente, o homem se esquece do ser que

    sempre o convoca no modo da ausncia, sem que ele lhe d ateno

    (HEIDEGGER, 2002, p. 331). por esse motivo que Herclito diz, no seu

    fragmento, que aquilo que os homens encontram cotidianamente lhes parece

    estranho.

    A importncia da palavrinha (ser), destaca Heidegger, no se

    refere apenas ao contato com as coisas, mas abrange tambm o silncio e a

    expresso do discurso. Ao dizer-se: esta rvore , a rvore surpreende o homem,

    mas o no. Quando se diz: esta nuvem , a nuvem diz respeito ao homem,

    mas o no. Ao pronunciar esta casa , a casa vem ao encontro do homem,

    mas o no. Assim como a rvore, a nuvem e a casa, muitas outras coisas dizem

    respeito a ns, mas o nos passa indiferente. Entretanto, este nomeia o ser.

    Quem no entende quando uma pessoa diz, no seu discurso, ? entendemos

    ser, sem, no entanto, nos deter mais amplamente nisso que est sendo entendido

    (HEIDEGGER, 2002, p. 348). Heidegger se esfora por mostrar que a palavra

    uma derivao do ser. No seu entender, sempre que se depara com esta palavra,

    , deve-se buscar o seu sentido fundante, pois, desse modo, se estaria buscando

  • 28

    a fundamentao das coisas que so.

    No fragmento em anlise, Herclito fala da relao dos homens

    com o ser. Porm, esta relao discrepante, pois, segundo ele, do do qual

    participam, deste se afastam.

    medida que os homens se afastam do , ficam distantes dele, de modo que aquilo com que se deparam, numa presena, aparece como ausente. Eles se voltam contra aquilo para que esto voltados. Nesse voltar-se contra, o presente se ausenta, mas s pode ausentar-se enquanto presente (HEIDEGGER, 2002, p. 328).

    Heidegger observa que esse afastar-se no uma separao no

    sentido de um isolamento, uma vez que o (o ser) sempre se coloca para o

    homem no sentido de surgir permanecendo. Mas, o homem que dele se afasta e,

    por isso, no o percebe. De certa forma, poder-se-ia dizer que a presena s existe

    como decorrncia da ausncia. No entanto, no fragmento em questo, segundo

    Heidegger, Herclito est falando de uma presena-ausente, conjuntamente, ao

    mesmo tempo. nesta aparente contradio que reside toda dificuldade de

    compreenso. Por analogia, poder-se-ia usar como exemplo de presena-ausente a

    observao das mars. Ao contemplar o oceano, vemos o avano e o recuo das

    guas, mas no podemos apreender a fora gravitacional exercida pela lua. Nossa

    ateno capta o efeito, deixando escapar o seu sentido fundante. Da mesma forma,

    vemos e nos relacionamos com os entes e deixamos escapar o ser expresso neles.

    Agora, pode-se associar o exemplo citado s palavras de

    Heidegger, as quais esclarecem a primeira parte do fragmento 72, quando diz: [...]

    na maior parte das vezes, na origem e destinao de seus comportamentos, o

    homem est voltado para o ser, mas numa forma tal que habitualmente se volta

    contra ele (HEIDEGGER, 2002, p. 347). Os homens interagem com o em

    seu dia-a-dia e a todo momento, porm, a presena do no seu cotidiano lhes

    escapa percepo. Preso ao domnio dos sentidos (ligado percepo ntica), o

    homem d as costas quilo que se apresenta. Ele colhe e recolhe apenas a

    superfcie aparente e funcional, que serve ao seu propsito imediato. Assim, sem

    corresponder ao recolhimento do , o homem no capaz de compreend-lo

    em sua prpria coleta. Envolvido na especializao dos seus sentidos, que

    procuram conhecimentos especficos, o homem se mantm ligado ao sem,

    contudo, perceber este elo de ligao nem se dar conta da existncia de algo mais

  • 29

    alm daquilo que percebido: o ser como sentido ontolgico de seu fundamento.

    nesse sentido que Heidegger afirma que o homem moderno no pensa mais o ser,

    mas se dispe a correr apenas atrs dos entes.

    A nuvem do esquecimento do ser que paira sobre todo desempenho do homem histrico conseqncia desse esquecimento que nos faz parecerem to vazias e estranhas as discusses sobre o significado substantivo e verbal da palavra (ente) (HEIDEGGER, 2002, p. 76).

    A discusso em torno das palavras e ser uma tentativa de

    melhor compreender-se as palavras e (o que declina e o ente). Pois

    o que vale para o , como o mais universal, vale tambm para o . Aqui,

    preciso observar que a nfase dada ao significado verbal tem por objetivo fazer-se

    entender o que os pensadores pensam quando nomeiam o ente. Eles pensam e

    nomeiam o ente na perspectiva do ser. Afirmou-se acima que o declinar deve ser

    pensado de forma correspondente palavra ente, e esse, portanto, na perspectiva

    do ser. A palavra (declinar) deve ser compreendida verbalmente, pois pensa

    e nomeia o ser. Desse modo, qualquer que seja a relao entre declinar, nunca

    declinar e o ser, tanto o declinar como o nunca declinar j so modos de ser

    (HEIDEGGER, 2002, p. 74). Mas a sentena de Herclito nos fala do nunca declinar

    e disso decorre a necessidade de se esclarecer a relao entre ser e nunca

    declinar.

    Inicialmente, Heidegger esclarece que a essncia encoberta do que

    se designa pela palavra ser, abriga-se, principalmente, num nunca declinar. At o

    momento analisou-se a primeira parte do fragmento de Herclito (

    o que j no declina) apenas em seu aspecto verbal. Por isso, quando se fala do

    que declina, imediatamente pensa-se no prprio declinar e esquece-se de pensar

    naquilo que se abriga no declnio ou que permanece retrado. Portanto, para pensar

    de modo grego, deve-se pensar o declinar no sentido de adentrar um encobrimento.

    Porm, a sentena de Herclito no est falando de declinar, mas daquilo que a

    cada vez j no declina. Ora, aquilo que a cada vez j no declina s pode ser o

    que nunca desaparece. Sendo assim, segundo Heidegger, pode-se eliminar da

    sentena de Herclito a sua negao e, ao invs de dizer-se o que a cada vez j

    no declina, ou o que nunca declina, dizer-se o surgimento constante, pois aquilo

    que nunca declina s pode ser um surgimento incessante. Esse surgimento

  • 30

    incessante o que no modo grego de pensar se entende por Phsis. Para que se

    possa explicitar melhor o que seja a Phsis e a sua relao essencial com o

    fragmento em questo, preciso adentrar-se no fragmento 123 de Herclito.

    1.4 FRAGMENTO 123 E A RELAO PROPICIADORA ENTRE SURGIMENTO E

    ENCOBRIMENTO

    O fragmento 123 de Herclito,

    (HEIDEGGER, 2002, p. 143), em seu uso comum, diz: A natureza (Phsis) ama

    esconder-se (HERCLITO, in Pr-Socrticos, 2000, p. 101). Heidegger alerta para

    as implicaes da escolha da palavra ama (termo esse que, no decorrer da

    anlise heideggeriana, ser substitudo pela palavra favorece, no sentido de

    propiciar) para traduzir o termo grego . Ele aponta nesta frmula uma tentativa

    de se imprimir Phsis um atributo humano, o que equivale a supor uma

    subjetividade inerente ao objeto. Heidegger denuncia nesta traduo a inteno de

    dar ao pensamento de Herclito o carter ingnuo da antropomorfizao do mundo.

    Esta posio, que nada tem de ingnua segundo Heidegger, visa sustentar a

    pretenso da primazia humana em relao aos demais entes. Heidegger chega a

    usar de ironia para demonstrar o absurdo implicado nesta traduo:

    A traduo que acabamos de mencionar no fala da . O que ela faz atribuir a pretensa inapreensibilidade da a um humor ou bel-prazer da ao invs de atribu-la ao homem e a sua disperso, e ainda quer acreditar que um pensador como Herclito teria afirmado algo assim (2002, p. 151).

    Zarader (1990, p. 44 a 52) faz uma minuciosa elucidao da leitura

    heideggeriana acerca deste fragmento de Herclito, fornecendo o fio condutor para

    que se compreenda quais so as incoerncias detectadas por Heidegger na

    traduo do termo Phsis pelo termo natureza e suas implicaes na interpretao

    do fragmento. Ela destaca que, para o filsofo alemo, a interpretao corrente

    consiste em entender que a palavra Phsis signifique natureza e, mais

    erroneamente, natureza das coisas. Quanto ao termo esconder-se, interpretado

  • 31

    no sentido de uma dissimulao, tornando assim a afirmao de Herclito familiar,

    compreendendo que a essncia das coisas se esconda ou se encubra e, com isso,

    dificulte a acessibilidade aos homens. Esta interpretao, segundo Heidegger, um

    contra-senso, isso porque, em primeiro lugar, Herclito no diz em parte alguma

    que a Phsis se encobre aos olhos dos homens, que seja de difcil acesso para a

    percepo ou para a inteligncia humanas. Em segundo lugar, no pensamento

    grego inicial no se encontra trao algum da idia de uma natureza das coisas,

    compreendida como a sua essncia (essentia, ousia), pois esta idia s apareceu a

    partir de Plato e Aristteles. Segundo Heidegger, quando os gregos pr-socrticos

    pensam a palavra Phsis, eles pensam o surgimento a partir de si mesmo, sendo

    este surgimento sempre um retorno para si mesmo. Ela designa o nascer e o

    desabrochar que se entreabrem para erguer e mostrar-se num descobrimento

    (HEIDEGGER, 2002, p. 31), fazendo assim a sua apario e conservando-se nesse

    aparecer. Isso significa dizer que a Phsis, em seu sentido original, nomeia a

    captao da manifestao inicial pela qual todo ente vem a aparecer, o trao

    fundamental pelo qual todos os entes vm a ser enquanto entes. Assim concebida,

    a Phsis constitui o ser do ente. Nesse contexto, diz Zarader:

    Porque a Phsis nomeia o reino do desabrochar, a ao de se manifestar e se erguer abrindo-se, ela essencialmente um aparecer; mas no pura apario, no sentido de uma aparncia distinta do ser. Porque o que assim se ergue abrindo-se no se separa de si mesmo [...], , muito pelo contrrio, pelo fato de se mostrarem no aberto, de emergirem na presena, que os entes so. Melhor ainda: s so por e nessa emergncia, que constitui o seu ser, no sentido verbal do termo (1990, p. 48).

    Heidegger, ao falar que a Phsis significa literalmente um surgir no

    sentido de provir do que se acha escondido, velado e encapsulado, exemplifica

    dizendo que, esse surgir torna-se imediatamente visvel quando pensamos no

    surgimento da semente escondida dentro da terra, no rebento, no surgir dos brotos.

    A viso do nascer do sol, tambm pertence essncia do surgimento. [...] Em toda

    parte [...] d-se um vigor recproco de todas as essncias, e em tudo isso o

    aparecimento, no sentido de mostrar-se a partir de e dentro de si mesmo

    (HEIDEGGER, 2002, p. 101). Porm, Heidegger adverte que um erro pensar que

    aquilo que os primeiros pensadores nomearam como Phsis adveio em primeiro

    lugar da perspectiva do surgimento do gro, do surgimento das folhas, do nascer do

  • 32

    sol, e que s aps se atribuiu a todos os processos naturais, at chegar a sua

    transferncia para os homens e os deuses e, a partir disso, tambm os homens e

    os deuses puderam ser representados pela natureza. Para Heidegger, a Phsis, o

    puro surgir, no se atribui apenas quilo que se denomina natureza e nem a uma

    transferncia posterior aos homens e aos deuses. De modo contrrio, a Phsis no

    diz apenas respeito aos entes ditos naturais, no se encontra restringida ao fsico,

    mas o que permite a todo e qualquer ente vir presena e nela permanecer.

    Portanto, se a Phsis o acontecimento que faz advir todo ente enquanto ente, ela

    constitui assim o ser do ente.

    Ao designar a Phsis como puro surgimento, Heidegger encontra

    nessa expresso uma proximidade essencial com a palavra (vida). Assim,

    indica que, ao invs de substituir-se o nunca declinar pelo sempre surgir, pode-se

    dizer o sempre viver. Isso porque, j nos primeiros pensadores, as palavras vida e

    ser eram pensadas em uma copertinncia. Quando os gregos pensam na palavra

    (vida), como tambm na palavra (Phsis), eles pensam o surgimento a

    partir de si mesmo. Mas, aqui Heidegger adverte que, para os antigos gregos, assim

    como a palavra Phsis nada tem a ver com o que posteriormente se chamou de

    Fsico, a palavra vida nada tem a ver com a biologia. A dificuldade de compreenso

    se d pelo fato de se estar sempre preso s representaes modernas do que seja

    a vida. Entretanto, mesmo sem saber-se o que a essncia da vida, costuma-se

    pensar que se pode reconhecer o que est vivo. Para tal apreenso, costuma-se

    fazer a distino entre os vivos e os mortos. Porm, o morto no significa a mesma

    coisa que o sem vida. Heidegger toma a pedra como exemplo, e explica que esta,

    no possuindo vida, tambm no pode morrer ou estar morta. O que no se pode

    esquecer que mesmo aquilo que no possui vida no sentido biolgico, como o

    exemplo da pedra, possui ser. Na tentativa de relacionar aqui os conceitos j

    conquistados, pode-se ento dizer que a expresso teve como

    resultado a expresso nunca declinar, a qual se identifica com o sempre surgir (a

    Phsis), e esta por sua vez pode ser tomada como o sempre viver, pois o sempre

    viver significa um surgimento incessante.

    Uma vez descartada a interpretao do senso comum sobre o

    fragmento 123 de Herclito, Heidegger passa a interpret-lo partindo da seguinte

    traduo: Surgimento favorece o encobrimento (HEIDEGGER, 2002, p. 122). s

    a partir da exposio do nexo essencial entre surgimento e declnio, contido no

  • 33

    fragmento 123, que se poder esclarecer o que nunca declina e sua relao

    essencial com o encobrimento que aparece no fragmento 16 de Herclito.

    A discusso feita at o momento indicou que a frase

    diz a mesma coisa que as palavras originrias Phsis, e (o sempre surgir).

    Porm, no fragmento 123, ao falar da Phsis, Herclito diz: surgimento favorece o

    encobrimento. Conseqentemente, onde se expressa a Phsis no dizer dessa

    palavra? primeira vista, para o pensamento comum, parece que o pensador se

    contradiz ao falar da Phsis, pois, mesmo para o ouvinte iniciante, fica evidente que

    no fragmento em questo a Phsis, o surgimento, encontra-se numa relao

    essencial com o encobrimento. Para esse ouvinte, dizer que surgimento

    encobrimento significa o mesmo que dizer que o branco preto e vice-versa ou,

    ainda, que o claro escuro.

    Explicitou-se, anteriormente, que na metafsica tradicional e,

    conseqentemente, na lgica, o pensamento dialtico despreza e se escandaliza

    com tais contradies. De fato, os fragmentos de Herclito, quando interpretados

    segundo as regras representativas da lgica, so considerados invlidos por no se

    ajustarem ao princpio de no-contradio. essa constatao do ilgico que

    constitui o entendimento comum (HEIDEGGER, 2002, p. 130). Por isso mesmo,

    segundo Heidegger, deve-se manter afastado do entendimento comum, deixando-

    se de lado os pressupostos especficos do pensamento moderno para que se possa

    pensar o fragmento de Herclito em seu sentido originrio. s a partir dessa

    inverso que se poder pensar o surgimento como o que se encontra numa

    relao essencial com o declnio e, desse modo, em sua essncia, surgir de

    alguma maneira declinar (HEIDEGGER, 2002, p. 137). Toda dificuldade de

    compreenso se evidencia no intento de pensar o surgir e o declinar no como

    coisas distintas, mas sim como o mesmo. bem verdade que surgir no significa

    declinar. Mas, em uma tentativa apressada, pode-se pensar que o surgimento tende

    ao declnio, efetuando-se assim uma transio como a passagem de uma flor em

    semente, dado que as flores de certas plantas se desfazem para se transformarem

    em sementes. Isso significaria dizer que o surgimento da semente provoca o

    declnio da flor. Porm, o surgimento e o declnio (encobrimento), presentes no

    fragmento de Herclito, no devem ser pensados como algo que surge e depois

    desaparece, mas sim que esse surgimento j em si mesmo um declnio, um

    encobrimento. O surgimento no substitui o encobrimento, mas o favorece. Esse

  • 34

    favorecimento deve ser entendido em seu sentido originrio, no de sua derivao

    como beneficiar e proteger, mas no sentido de propiciar e preservar.

    Tendo em vista o que se disse, Heidegger observa que:

    A cabea dura do pensamento comum acha que, enquanto surgimento, o surgir no admite o declinar. Ambos so incompatveis. Em oposio evidente incompatibilidade, a sentena de Herclito diz que o surgimento to compatvel com o declnio que chega mesmo a favorec-lo (HEIDEGGER, 2002, p. 127).

    Heidegger indica que esse impedimento de compreenso se d pelo fato de que

    nosso entendimento sempre est preso a representaes. Por isso, sempre que

    busca entender alguma coisa, necessita-se do representado como isso ou aquilo,

    pois a representao do entendimento sempre busca a conciliao de dois termos.

    Normalmente, tambm ao ler-se ou ouvir-se uma palavra isolada, automaticamente

    busca-se uma relao dela com o objeto por ela representado. Ao dizer-se caneta,

    nosso entendimento busca relacionar o que nos referimos por meio dessa

    designao. Do mesmo modo, ao dizer-se Phsis, acredita-se ser possvel

    representar o que lhe corresponde. Porm, com esse modo de pensar pensar o

    desdobramento da Phsis na dependncia de uma representao permanece-se

    no mbito do pensamento comum, onde tudo pensado apenas objetivamente,

    pois busca-se apenas o que est desvelado (o ente). Contudo, o pensamento

    representacional parcial e limitado, uma vez que na Phsis o surgimento

    (desvelamento) est numa relao essencial com o encobrimento (velamento).

    nesse sentido, de uma relao essencial, que deve ser entendido o fragmento de

    Herclito quando este se remete Phsis: surgimento favorece encobrimento. Para

    que se possa pensar a Phsis a partir dessa unidade originria, Heidegger explica

    que o surgir no poderia ser um surgir se no tivesse algo que o provesse e o

    abrigasse nesse surgimento. Heidegger tenta simplificar o que diz trazendo a

    imagem de uma fonte como exemplo: O que aconteceria se a fonte que surge luz

    da terra ficasse sem as guas que ocorrem subterraneamente? No seria fonte. Ela

    precisa pertencer s guas escondidas (2002, p. 148). Essa relao com as guas

    escondidas (encobrimento) o que faz com que a fonte surja e aparea como fonte

    (desvelamento). Da entender-se porque o encobrimento assegura, propicia e

    preserva o surgimento. Pode-se, agora, relembrar o que se falou a respeito das

    quase invisveis palavrinhas e ser e coloc-las em correspondncia com o que

  • 35

    aqui se disse das guas que correm invisivelmente sob a fonte. esse que nos

    passa despercebidamente, assim como as guas que correm inaparentemente sob

    a fonte, que sustenta o prprio ser" de tudo aquilo que nos aparece como ente.

    Partindo do que ficou explcito no pargrafo anterior, talvez se

    possa entender a interpretao do senso comum que dada ao fragmento 123 de

    Herclito. Essa interpretao atribui um esconder-se Phsis. Porm, preciso

    esclarecer que esse esconder-se (encobrir-se) tem o sentido de abrigo e

    preservao. nesse sentido que Heidegger adverte:

    A Phsis no se esconde para o homem. O surgimento que se abriga como surgimento no encobrimento, enquanto propiciador de sua essncia. Dizer que surgimento encobrimento no significa, absolutamente, dizer que a Phsis se esconde, mas que a sua essncia a revela precisamente no surgimento enquanto encobrimento (2002, p. 151).

    Heidegger explica ainda que um favorece o outro e que, desse

    modo, o surgir e o encobrir se sustentam mutuamente. Por isso, ambos podem ser

    ditos em uma nica palavra: Phsis. Portanto, se na Phsis o desvelamento no

    exclui o velamento, mas necessita dele para se manifestar, pode-se dizer ento que

    o fragmento 16 de Herclito fala da Phsis mesmo sem nome-la, pois o nunca

    declinar deve ser necessariamente entendido como sada da ocultao. O advrbio

    de negao, presente neste fragmento, no deve ser tomado como pura

    denegao, mas sim como atribuio de uma permanncia concebida de modo

    positivo. A ocultao deve ser vista como suporte indispensvel para o nunca

    declinar.

    Em sua essncia, a Phsis, assim como se explicitou no fragmento

    123, a conjuno em que o surgir se conjuga com o encobrir-se, e esse com o

    surgir. A palavra grega para dizer juno (harmonia) (HEIDEGGER,

    2002, p. 153). Com esta ltima palavra mencionada, uma nova expresso grega

    inserida na anlise do fragmento, exigindo uma fundamentao esclarecedora.

    Entretanto, antes mesmo de se haver pensado inteiramente no fragmento 123, ter-

    se- de introduzir uma nova sentena de Herclito. Heidegger aponta o fragmento

    54 como uma preparao para essa anlise. Em seu uso tradicional, o fragmento

    revela que: Harmonia invisvel visvel superior (HERCLITO, in Pr-Socrticos,

    2000, p. 93). Para Heidegger, neste fragmento Herclito fala a respeito da harmonia

  • 36

    (que o prprio favor da Phsis) da seguinte maneira: juno inaparente supera

    em nobreza a juno que clama pela aparncia (2002, p. 154). Heidegger traz esse

    fragmento tona para ressaltar a importncia da harmonia invisvel presente na

    Phsis. Numa interpretao apressada, costuma-se entender a harmonia como

    consonncia em uma sonoridade. Porm, segundo Heidegger, o essencial da

    harmonia encontra-se na juno em que duas coisas interagem. nesse sentido

    que se deve entender o dar-se da Phsis, pois nela vigora uma juno, uma

    harmonia, na qual o surgir e o encobrir-se encontram-se conjugados

    reciprocamente, a ponto de um favorecer o outro.

    O fragmento em questo no fala apenas da juno (harmonia),

    mas fala tambm que essa juno inaparente superior quela que aparece. De

    forma correspondente, fala-se aqui que a harmonia da juno

    encobrimento/desencobrimento, a Phsis, superior quela presente nos entes,

    que so aquilo que aparece na clareira propiciada pela Phsis. No mbito restrito do

    visvel, nossa ateno sempre se volta para aquilo que est envolto na claridade,

    iluminado. Com que facilidade hoje se aciona um interruptor de luz e tm-se um

    ambiente iluminado. Porm, nunca se d conta daquilo que faz com que essa luz

    seja e aparea. A luz perdeu a sua essncia de ser o que no aparece em todo

    aparecer (HEIDEGGER, 2002, p. 154). Com essas palavras, Heidegger explicita

    que a Phsis, como surgimento, garante e propicia o aparecer, sem, no entanto,

    cair no mbito do que aparece (2002, p. 156). Conseqentemente, para Heidegger,

    a Phsis no o invisvel, ainda que, de imediato, ela nunca se deixe visualizar.

    devido a essa dificuldade que Herclito afirma num de seus fragmentos que a

    opinio comum nunca capaz de pensar a partir da Phsis. Trata-se do fragmento

    51, que tradicionalmente traz a seguinte traduo: No compreendem como o

    divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tenses contrrias, como de

    arco e lira (HERCLITO, in Pr-Socrticos, 2000, p. 93).

  • 37

    1.5 FRAGMENTO 51 E A RELAO CONSONANTE ENTRE TENSES

    CONTRRIAS

    Na traduo usada por Heidegger, esse fragmento diz:

    Ele no com-pe como deve vigorar o des-ordenar em que ele (no dis-por de si mesmo) se com-pe consigo mesmo; tensionando para trs (ampla, a saber, o que se dis-pe) que vigora a juno, como ela (essncia) se mostra na viso do arco e da lira (HEIDEGGER, 2002, p. 159).

    Para Heidegger, esse fragmento pensa a relao do pensamento essencial com o

    pensamento comum. Observa tambm que a segunda parte desse fragmento

    guarda para ns o maior peso; pois nesta parte se diz algo essencial a respeito da

    harmonia, ou seja, sobre a essncia da Phsis.

    Na concepo de Heidegger, a dificuldade j apontada por

    Herclito para se pensar a Phsis, est relacionada ao nosso modo de pensar:

    aquele articulado pelo pensamento comum. Isto acontece porque esse modo de

    pensar procura evidenciar a verdade do que se pensa na possibilidade de

    objetivao. Enquanto se pensa em coisas particulares e num mbito particular de

    coisas, se permanece na superfcie. Essa a caracterstica do pensamento

    moderno, aquele que necessita sempre encontrar uma coisa para anunciar como

    seu objeto, a fim de encontrar solo e sustentao. Enquanto o pensamento se

    mantiver ligado objetivao, no conseguir acompanhar o passo do pensamento

    da Phsis, porque nela o a-se-pensar se encontra na essncia de um encobrimento.

    Essas observaes buscam indicar a relao do pensamento comum com o

    pensamento essencial, presentes no fragmento 51. Heidegger assinala a diferena

    entre esses dois modos de pensar e indica para onde deve direcionar-se o

    pensamento essencial para se deparar com o enigma da Phsis:

    [...] se a opinio comum representa o ente, e somente ele, enquanto que o pensamento essencial pensa o ser, e se, ademais, a diferena entre ser e ente uma diferena essencial ou at a diferena originria em si mesma, ento a bifurcao entre o pensamento comum e o pensamento essencial deve ter seu comeo na diferena entre ser e ente (HEIDEGGER, 2002, p. 162).

  • 38

    O esclarecimento de Heidegger em relao a esses dois modos de pensar busca

    elucidar a primeira parte do fragmento. Nesta, segundo Heidegger, Herclito nos

    fala que os homens no so capazes de entender que aquilo que diverge de si

    mesmo (o desdobramento ser-ente) consigo mesmo concorda. Preso a

    representaes, o pensamento comum s percebe o que est desvelado, sem se

    voltar para aquilo que o mantm na vigncia. Mas segunda parte do fragmento

    em questionamento que se deve dar maior ateno. Esta expe que: [...]

    tensionando para trs (ampla, a saber, o que se dis-pe) que vigora a juno,

    como ela (essncia) se mostra na viso do arco e da lira (HEIDEGGER, 2002, p.

    159). Na interpretao tradicional encontramos a seguinte traduo: [..] o

    divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tenses contrrias, como de

    arco e lira (HERCLITO, in Pr-Socrticos, 2000, p. 93).

    Observou-se, anteriormente, que esta segunda parte do fragmento

    fala sobre a harmonia essencial presente na Phsis. Para falar desta harmonia

    essencial harmonia entre tenses opostas , Herclito faz uso da metfora do

    arco e da lira. por meio destes instrumentos que aponta para a divergncia e a

    convergncia reunidas num mesmo acontecimento. Heidegger observa que, ao

    nomear a lira, o pensador j antev onde o arco e a tendncia para o contrrio

    aparecem em unidade com a juno, a harmonia em uma consonncia. A metfora

    utilizada por Herclito e interpretada por Heidegger transpe para o arco o sentido

    prprio da relao ente-ser. O arco s apresenta suas qualidades a partir da

    composio dos dois elementos que o formam. Analisados em separado, corda e

    madeira se apresentam como opostos. A primeira se caracteriza pela flexibilidade,

    enquanto a segunda pela rigidez. Na composio do arco, um elemento transfere

    sua caracterstica ao outro atravs da tenso proporcionada pela juno. A rigidez

    da madeira flexibilizada pelo elemento de convergncia constitudo pela corda,

    enquanto essa se enrijece por fora do elemento divergente representado pela

    madeira. O conjunto resulta num todo harmnico, sustentado por uma tenso

    insistente que exclui qualquer possibilidade de harmonia pacfica e indiferente. No

    h tranqilidade ou acomodao na harmonia do arco, mas sim um movimento

    contnuo e simultneo de afastamento e aproximao, que cinde ao mesmo tempo

    que mantm unidos os elementos em questo7. Por isso, explica Heidegger:

    7 Cf. MICHELAZZO, 1999, p. 97.

  • 39

    Faz parte da essncia do arco que as extremidades se tensionem uma contra outra, e que nessa tendncia contrria se voltem para trs da tenso, voltando-se uma em direo outra. O surgimento no abandona o declnio e no expulsa a sua tenso. No surgir, o prprio surgimento se inclina para o encobrimento, enquanto o que propriamente possibilita a sua essncia e se entrega sua tenso. A Phsis esse caminho, essa disposio de abrir-se e fechar-se, e o voltar atrs de um para o outro (HEIDEGGER, 2002, p.164).

    Ao explicitar a Phsis atravs do fragmento 51, Heidegger faz a

    relao deste com o fragmento 16, no qual a Phsis interpretada como o nunca

    declinar. Mas, se a Phsis no fragmento 16 interpretada como o nunca declinar e

    no fragmento 51 explicitada como um surgimento que no abandona o declnio (o

    surgimento j se inclina para o encobrimento), como pode haver uma relao entre

    esses dois fragmentos? O nunca declinar que aparece no fragmento 16, explica

    Heidegger, no significa, de modo algum, que na Phsis se apague a relao com

    o declnio. Significa, ao contrrio, que este deve vigorar de modo insistente e

    originrio (HEIDEGGER, 2002, p. 165). Esta relao se esclarece quando se

    atenta para o fato de que tanto o surgir como o vigorar necessitam da propiciao e

    do favorecimento causado pelo encobrimento, pois a Phsis o que nunca declina

    justamente por estar resguardada pelo fechamento de onde surge;

    conseqentemente, o surgimento s pode surgir do encoberto.

    A Phsis, assim determinada, significa o surgimento que um

    retorno para si mesmo. Porm, Heidegger adverte que no se deve pensar essas

    duas determinaes como duas coisas simultneas e simplesmente justapostas,

    mas sim, que integram um e o mesmo trao fundamental da Phsis. Portanto, ela

    deve ser sempre pensada a partir desse carter dimensional, onde o surgimento e o

    encobrimento fazem parte de um mesmo acontecimento. Esta relao essencial

    entre surgimento e declnio de difcil acesso ao olhar humano quando tenta

    apreend-la atravs de um olhar voltado para o pensamento lgico

    representacional. Melhor dizendo, o homem no percebe essa inclinao recproca

    porque se deixa cegar pela lgica do pensamento metafsico, que defende um

    privilgio do positivo em relao ao negativo.

    A pertinncia dessa observao est atrelada ao fato de que o

    pensamento lgico representacional instaurado e sustentado pela metafsica

    tradicional tem sua competncia restrita ao mbito ntico. Devido a essa restrio,

  • 40

    ao interpretar a Phsis, pressupe um privilgio inerente ao surgimento frente ao

    declnio. Desse modo, considera o surgimento como o positivo e o declnio como

    negativo. Heidegger reproduz a argumentao desta maneira de pensar na seguinte

    passagem:

    Em toda parte o positivo precede o negativo, no somente na ordem da afirmao e da negao, mas em toda e qualquer posio. Pois como seria possvel negar, sem que antes algo se ponha, sem que antes haja um positum e, portanto, um positivo, para que a negao possa dispensar e depor? No possvel comear nada com uma simples de-posio (HEIDEGGER, 2002, p. 166).

    Criticando a abordagem da Phsis por esta tica do pensamento comum, Heidegger

    chama a ateno para o fato de que as categorias utilizadas no argumento so

    prprias do mbito ntico, onde a precedncia do positivo (dispor) sobre o negativo

    (depor) at se justifica. Contudo, ele se pergunta se essa maneira de pensar se

    aplica tambm aos termos surgir e declinar.

    Segundo Heidegger, dispor e depor (positivo e negativo) so

    apenas formas de representaes utilizadas pelo homem para aproximar ou afastar

    de si os demais entes. Porm, as regras vlidas para as relaes entre os homens

    e os demais entes no tm influncia sobre a relao indicada pelo (phyein,

    favorecer) entre (Phsis, surgimento) e (Kryptesthai,

    encobrimento), j que estas expresses nomeiam o ser. Diante desta constatao,

    Heidegger alerta que um pensamento reflexivo aquele que se pergunta se aquilo

    que vlido para os atos de pensamento tambm pode ser vlido para se elucidar

    a essncia do ser. Nesse sentido, Heidegger diz o seguinte:

    Como instncia de deciso sobre a essncia de ser, a lgica , em si mesma, no apenas questionvel e incompetente para fundamentar como essa instncia, ou seja, a relao do positivo e negativo, nunca se deixa encontrar no pensamento originrio. Obrigamos Phsis e a uma relao que lhes inteiramente estranha quando interpretamos a juno em que ambas so unas em sua essncia como carril do relacionamento lgico entre positivo e negativo (2002, p. 168).

    Esse esclarecimento de Heidegger expe o modo de pensar

    disseminado pela metafsica, atravs do qual ela busca questionar o ser a partir e

    na direo dos entes. s aps ter afastado esse modo metafsico de pensar que

    se pode perceber que, na aparente contradio entre surgimento e encobrimento

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    d-se, portanto, a essncia da Phsis. Sendo assim, no se deve mais pensar o

    desdobramento da essncia da Phsis segundo as categorias habituais da

    justaposio. nesse sentido que Heidegger alerta que no se pensa

    originariamente a Phsis seno quando a pensamos como , a juno que

    reajunta o surgimento no encobrimento e no abrigo, permitindo, assim, que o

    surgimento vigore como o que se aclara a partir do abrigo do encobrimento

    (HEIDEGGER, 2002, p. 171).

    O que que se aclara e se mostra neste surgimento a partir do

    abrigo do encoberto? O que no pode se manter encoberto diante da Phsis o

    ente. No se encobrir manter-se no descobrimento e no desencobrimento. Mas, j

    no se tem um termo grego que nomeia estas expresses com maior propriedade?

    Sim, responde-se. Esse termo denomina-se (Altheia). Esta palavra grega

    faz parte da essncia da Phsis e corresponde ao trao fundamental do surgimento,

    da abertura, do no-encobrimento, do no-fechamento. Porm, Heidegger observa

    que, ao se perguntar o que diz a palavra grega (Altheia), responde-se,

    desde sempre, verdade. Ele adverte que essa resposta est vinculada a uma

    caracterstica da atitude cognitiva, tal como pretendeu at hoje a metafsica; uma

    vez que o pensamento da metafsica s conhece a verdade como um carter do

    conhecimento (HEIDEGGER, 2002, p. 185). Neste, a verdade consiste na

    concordncia de um enunciado com uma coisa. Veja-se, em linhas gerais, porque

    Heidegger descarta essa tradicional concepo da Altheia como verdade, uma vez

    atribuda a uma caracterstica do juzo humano.

    Heidegger afirma que a interpretao da palavra Altheia como

    verdade percorre toda a histria da Filosofia, desde Plato. Mas, o que essa

    verdade tradicionalmente concebida? Segundo essa concepo, a palavra

    verdadeiro pode ser aplicada tanto coisa como ao enunciado. Em ambas, a

    natureza dessa verdade definida como acordo, concordncia ou conformidade.

    Assim, a natureza da verdade pode ser concebida em dois sentidos: como

    adequao do conhecimento coisa ou como adequao da coisa ao