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LIBRETO MARIO VARGAS LLOSA

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LIBRETO

MARIOVARGASLLOSA

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A GRANDE VIRADA

TEMPORADA 2016

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Expediente

Fronteiras do Pensamento©

Temporada 2016

CuradoriaFernando Schüler

Concepção e Coordenação EditorialLuciana ThoméMichele Mastalir

PesquisaFrancisco AzeredoJuliana Szabluk

Editoração e DesignLampejo Studio

Revisão OrtográficaRenato Deitos

www.fronteiras.com

MARIOVARGAS LLOSA (Peru, 1936)

Prêmio Nobel de Literatura. Escritor peruano, reconheci-do por obras como Travessuras da menina má, Conversa no Catedral e A cidade e os cachorros.

“Escrever é um refúgio extraordinário para encontrar a paz, a calma, em momentos de grande desassossego, de incertezas. Sim, escrever me prende no mundo que estou inventando, me arranca da problemática pessoal e me faz viver a fantasia.”

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VIDA E OBRA

Nascido em Arequipa, segunda maior cidade do Peru, Mario Vargas Llosa é jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário, reconhecido como um dos mais impor-tantes escritores da atualidade, com livros traduzidos para mais de 30 idiomas. Passou a infância na Bolívia e, ao retornar ao Peru, estudou Direito e Letras pela Univer-sidade Nacional Maior de São Marcos, em Lima. Também lecionou em diversas universidades norte-americanas e europeias.

A presença do autoritarismo em sua vida (tanto na pri-vada na figura do pai quanto na pública pelo regime do ditador Manuel Odría) fez de Llosa um ativista contra sistemas que inibem a liberdade e a iniciativa individu-ais. Politicamente engajado, em 1990 candidatou-se à Presidência do Peru, chegando ao segundo turno, mas perdendo a eleição para Alberto Fujimori.

Fez sua estreia na literatura, em 1963, com A cida-de e os cachorros. Seu terceiro romance, Conversa no Catedral, publicado em 1969, narra as fases da so-ciedade peruana sob a ditadura Odría na década de 1950. Lançado em 2006, Travessuras da menina má

é seu livro mais conhecido. Com tons autobiográfi-cos, conta a história de uma paixão arrebatadora e traça um panorama das transformações sociais e políticas ocorridas na Europa e na América Latina ao longo de 40 anos.

Desde 1990, é colunista do jornal El País, textos estes tra-duzidos e publicados em diversos veículos de comunica-ção pelo mundo. Na década de 1980, começou a escrever teatro e, em 2005, passou a interpretar alguns de seus personagens no palco. Em 2016, publicou Cinco esquinas, livro que se passa no final da ditadura de Fujimori e mos-tra como a imprensa do escândalo tem efeitos nefastos. Crítico dos regimes ditatoriais e do populismo demagógi-co, é defensor da democracia e da liberdade, e um exímio observador da história latino-americana recente.

O escritor já recebeu o Prêmio Nacional de Cultura do Peru, pela novela A casa verde, em 1967, o Prêmio Prín-cipe de Astúrias, em 1986, e o Prêmio Miguel de Cer-vantes, em 1994, entre outras importantes condecora-ções. Para ele, a cultura pode ser um experimento de reflexão, pensamento, sonho, paixão e poesia.

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“O que o Brasil está vivendo é algo muito interessante. Vimos aí nos últimos anos um populismo que foi muito to-lerante com a corrupção. Mas também vimos muitos pro-testos e indignação saírem à luz, de forma inédita e espon-tânea. Isso é muito positivo. A autocrítica que o Brasil está fazendo é terrível, mas muito necessária, e eu espero que seja imitada por outros países. Sou otimista com o futuro, vejo um Brasil mais aperfeiçoado, com uma democracia melhor depois que isso passar.”

“A palavra cultura se associou com coisas que tradicio-nalmente não formavam parte da cultura e sim do entre-tenimento, da grande diversão pública, popular. Como, por exemplo, os quadrinhos, as telenovelas, os reality shows, revistas de fofoca, a música não tradicional ou clássica – isso é, a música popular, que chega ao grande público. Os tradicionais valores da cultura estão cada vez mais minori-tários e quase, quase clandestinos.”

“Creio que o verdadeiro liberalismo não crê no mercado como uma panaceia que resolve absolutamente tudo. Há coisas que têm um valor, ainda que tenham preços muitos diferentes diante das puras leis do mercado. Esses valores são justamente os que a cultura identifica e estabelece, e seu preço não pode ser medido no mercado. Creio que isso toca o ponto essencial de uma ideia equivocada e pura-mente economicista e mercantil da cultura que, em minha opinião, não corresponde ao verdadeiro pensamento libe-ral. Creio que esse é o tema capital: fazer a distinção entre valor e preço, uma distinção que só é feita por uma cultura

IDEIAS

Mario Vargas Llosa foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 2010, por “sua cartografia de estruturas de poder e suas imagens vigorosas sobre resistência, revolta e derrota individual”. Na semana seguinte ao anúncio da premiação, subia ao palco do Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, para proferir a conferência Em torno à cultura, texto que serviu de base para a construção do seu ensaio A civilização do espetáculo, obra publicada em 2012 e que aborda a banalização das artes e da literatura.

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ESTANTE

A CIVILIZAÇÃO DO

ESPETÁCULO1ª edição – 2012 /Edição no Brasil – Objetiva, 2013

Livro de Vargas Llosa que aborda a banali-zação das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade da política como características da socie-dade contemporânea. Segundo o autor, esta é a ideia temerária de converter em bem supremo a natural propensão huma-na para o divertimento.

que se reconhece como acima dos vaivéns do mercado, das transações mercantis. Não se podem julgar obras de arte, literárias, em função dos valores do mercado, porque os best-sellers, por exemplo, não são necessariamente gran-des obras de arte.”

“A crítica servia para nos orientarmos nessa espécie de selva que é a oferta cultural enorme e massiva de nosso tempo. E permitia estabelecer o que era importante, o que era menos importante e o que não importava de maneira alguma. Hoje em dia, a crítica praticamente desapareceu, está relegada a um mínimo invisível nos meios de comuni-cação. E há uma crítica universitária que é hermética, para um grupo pequeno. A isso se deve a enorme confusão que existe e o fato de que, comparada a essa literatura de con-sumo rápido e generalizado, a outra literatura, a criativa, de ideias de questionamento da realidade e da sociedade, não seja sempre devidamente apreciada.”

“A internet democratizou a informação, mas não a cultu-ra. Foi uma grande revolução, muito positiva, do nosso tem-po. Mas essa informação, se não há uma cultura que discri-mine, pode também naturalizar completamente a informa-ção, porque o excesso de informação pode ser um excesso de confusão. Por isso a cultura é muito importante, pois permite distinguir o que é relevante do que não é relevante.”

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ESTANTE

O HERÓI DISCRETO1ª edição – 2013 /Edição no Brasil – Alfaguara, 2013

TRAVESSURAS

DA MENINA MÁ1ª edição – 2006 /Edição no Brasil – Alfaguara, 2006

Romance de Vargas Llosa que entrelaça his-tórias de crimes e intrigas, amores e reviravol-tas. Felícito Yanaqué é o dono de uma empre-sa de transportes em Piura, no norte peruano. Um dia, antes de ir ao trabalho, se surpreen-de ao encontrar uma carta anônima, presa à porta de sua casa. Sua família e sua empresa serão protegidas, diz o texto, mediante um pagamento mensal.

O peruano Ricardo vê realizado, ainda jovem, o sonho que sempre alimentou – o de viver em Pa-ris. O reencontro com um amor da adolescência o trará de volta à realidade. Lily – inconformista, aventureira e pragmática – o arrastará para fora do pequeno mundo de suas ambições. Ao longo de 40 anos, Ricardo e Lily continuam a se encon-trar, em diferentes cidades do mundo que foram cenários de momentos emblemáticos da história.

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ESTANTE NA WEB

A GUERRA

DO FIM DO MUNDO1ª edição – 1981 /Edição no Brasil – Alfaguara, 2008

Livro que reconta a Guerra de Canudos. Vargas Llosa constrói uma saga que engloba honra e vingança, poder e paixão, fé e loucura. O autor dá uma nova dimensão à história de Antônio Con-selheiro, em que personagens de carne e osso, alguns reais, outros imaginados, empreendem uma saga sem paralelos na história do país.

SITEhttp://www.mvargasllosa.com/ (em espanhol)

PERFIL NO SITE DO PRÊMIO NOBELhttp://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/2010/ (em inglês)

WIKIPEDIAhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Mario_Vargas_Llosa

ENTREVISTAS

“Autocrítica do Brasil é necessária”, diz Nobel peruano Mario Vargas LlosaEntrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo, publicada em abril de 2016http://is.gd/Llosa1http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/04/1761363-autocritica-do-brasil-e-necessaria-diz-nobel-peruano-mario-vargas-llosa.shtml

“Há uma confusão de valores nas artes”Entrevista para o jornal Zero Hora, publicada em abril de 2016http://is.gd/Llosa2http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2016/04/mario-vargas-llosa-ha-uma-confusao-de-valores-nas-artes-5779262.html

“Chego aos 80 em um estado maravilhoso”Entrevista para o jornal El País, publicada em outubro de 2015http://is.gd/Llosa3http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/22/cultura/1445520280_937768.html

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Vargas LlosaEntrevista publicada na revista Cult, em março de 2013http://is.gd/Llosa4http://revistacult.uol.com.br/home/2013/03/vargas-llosa-ataca-outra-vez/

VÍDEOS E LINKS

Livros no BrasilPágina do site da editora Objetiva com a relação dos livros de Vargas Llosa editados no Brasilhttp://is.gd/Llosa5http://www.objetiva.com.br/autor_ficha.php?id=288

Vargas Llosa comemora 80 anos com festança e novos livrosMatéria publicada pela revista Época em março de 2016http://is.gd/Llosa6http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/03/vargas-llosa-comemora-80-anos-com-festanca-e-novos-livros.html

Mario Vargas Llosa, 80 anos: talento de sobra para escrever e criar polêmicasMatéria publicada no jornal O Globo em março de 2016http://is.gd/Llosa7http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/mario-vargas-llosa-80-anos-talento-de-sobra-para-escrever-criar-polemicas-18958373

Roda VivaEntrevista para o programa Roda Viva, da TV Cultura, exibido em maio de 2013 (legendado)http://is.gd/Llosa8https://www.youtube.com/watch?v=YUJKgDXSo-o

Fronteiras do PensamentoTrecho da conferência de Vargas Llosa no Fronteiras do Pensamento em 2010 (legendado)http://is.gd/Llosa9https://www.youtube.com/watch?v=yWDgjPjp1S8

É necessário que a arte existaVídeo gravado para o Fronteiras do Pensamento em 2010 (legendado)http://is.gd/Llosa10https://www.youtube.com/watch?v=tUagLka4YYU

Ricardo Setti entrevista Mario Vargas LlosaEntrevista gravada na sede da Editora Abril em 2010 (em espanhol)http://is.gd/Llosa11https://www.youtube.com/watch?v=YMDXxsNNLJY

Prêmio NobelDiscurso proferido por Vargas Llosa na cerimônia do Prêmio Nobel de Literatura em 2010 (em espanhol)http://is.gd/Llosa12http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/2010/vargas_llosa-lecture_sp.pdf

Os 80 anos de Mario Vargas LlosaPost do blog da Companhia das Letras que fala sobre o aniversário do autor e seus principais livroshttp://is.gd/Llosa13http://www.blogdacompanhia.com.br/2016/03/os-80-anos-de-mario-vargas-llosa/

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ARTIGO

O ESPLENDOR DA FICÇÃO E DAS IDEIASPOR SERGIUS GONZAGA

Professor de Literatura Brasileira da UFRGS, ex-secretário de Cultura de Porto Alegre (2005-2012), especialista no boom da narrativa latino-americana. Atualmente, ministra cursos no Complexo Cultural da Santa Casa sobre os grandes romancistas do período. Em outubro de 2016, publica o livro O esplendor da ficção, a respeito da revolução operada por esses autores no panorama da literatura mundial nas décadas de 1960 e 1970.

O ESCRITOR

Durante um século marcado por obras literárias carregadas de experimentalismo, audácia imaginativa e ruptura com os cânones do passado, poucos romances alcançaram tama-nha ressonância em período tão curto e alçaram-se de modo tão soberano por sobre as contingências aniquiladoras do tempo quanto os de Mario Vargas Llosa. A partir de A cida-de e os cachorros (1963), passando por A casa verde (1966) até Conversa no Catedral (1969), suas narrativas tornaram--se – juntamente com A morte de Artemio Cruz, de Carlos Fuentes, O jogo da amarelinha (1963), de Julio Cortázar, e Cem anos de solidão (1967), de Gabriel García Márquez – a expressão mais notável do chamado boom da ficção lati-no-americana, que, nos anos 1960 e 1970, despertou paixão

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universal pela inventiva de seus desígnios estruturadores e pela revelação de mundos ao mesmo tempo dramáticos, desorbitados e fulgurantes.

Estes textos ajudaram a salvar um gênero literário que, na época, parecia condenado ao desaparecimento. Por todos os lados falava-se do crepúsculo da arte romanesca. Os últimos grandes prosadores do modernismo – Thomas Mann, Albert Camus, Ernest Hemingway e William Faulkner – haviam perecido entre 1955 e 1962, deixando atrás de si um vazio avassalador. Nas livrarias o que se encontrava eram os re-latos quase sempre gélidos do chamado nouveau roman ou as obras tematicamente interessantes, mas formalmente convencionais, de autores como Somerset Maugham, Fran-çois Mauriac e Graham Greene.

A emergência dos novos narradores latino-americanos veio mostrar que, na periferia, a História seguia seu rumo verti-ginoso, oferecendo uma rica variedade de acontecimentos àqueles que quisessem transfigurá-la pela ficção. Contudo, para os jovens escritores intoxicados pela ideia de Revolu-ção, e que tinham em Cuba sua bússola política e intelec-tual, o ofício da escritura sustentava-se igualmente no uso de procedimentos estéticos inovadores, pois estavam cons-cientes de que a realidade multifacetada, caótica e move-diça da vida contemporânea só poderia ser apreendida por meio de arrojadas arquiteturas formais.

Vargas Llosa foi o mais jovem entre todos os ficcionistas do boom e, de alguma maneira, o que exerceria a maior influência sobre a geração futura. Verdade que García

Márquez e Cortázar – a exemplo dos geniais antecesso-res, Juan Rulfo e Jorge Luis Borges – haviam criado obras esplêndidas, mas seus textos referiam-se a mundos peculiares e inimitáveis. O realismo mágico de García Márquez e Rulfo desvelava uma realidade dominada por certo tipo de consciência mítico-sacral, própria de povos ainda não tocados pela expansão racionalista da moder-nidade. Igualmente a presença do fantástico e da meta-física – tão intensa nas obras de Borges e Cortázar – cor-respondia não apenas à sofisticação cultural do país mais europeizado da América Latina, mas a uma forte sensa-ção de irrealidade que percorre eternamente o cotidiano argentino – a sagaz observação é do próprio Vargas Llosa.

POR UM NOVO REALISMO

Desde La ciudad y los perros (A cidade e os cachorros) – texto centrado em irrefreável clima de violência e can-dente relativismo moral, admiravelmente tensionado entre a cidade de Lima, com suas oferendas de vida, e o repressivo colégio militar Leoncio Prado – o escritor pe-ruano definiu o seu projeto estético, fundado em uma espécie de síntese que inclui a função do romance, a vi-são de mundo, a linguagem, a posição do narrador e os demais elementos técnicos de que se valeria durante sua carreira. Há neste projeto uma justaposição dos princí-pios realistas do século XIX e procedimentos vanguardis-tas da escrita. Da grande tradição do romance ocidental, sobremodo de Gustave Flaubert, incorporou a ideia de

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que o sentido maior do gênero é a insurreição sem tré-guas contra a realidade tal como ela se apresenta. Isso não significa produzir arte engajada, a serviço de ideolo-gias, e sim apresentar uma visão crítica-problematizante da existência concreta dos seres e da sociedade. Outro conceito absorvido por Vargas Llosa na leitura dos clássi-cos do velho realismo europeu foi o de romance total, ou seja, o de uma criação fictícia de larga variedade, fundada em representações da vida tão abrangentes, vibráteis e persuasivas, que estas deem a impressão perfeita de au-tonomia e verdade.

Também da tradição oitocentista procede o esforço de integrar os destinos individuais ao destino histórico, fa-zendo com que a investigação da alma dos personagens seja paralelamente um questionamento das circunstân-cias que a condicionam. Assim, no magnífico Conversa no Catedral, a derrocada íntima, a falta de perspectivas e a consciência infeliz do jornalista Santiago Zavala estão associadas de modo indissolúvel ao abismo de medio-cridade e corrupção em que o Peru mergulhara durante a ditadura do general Odría (1948-1956).

Em nenhum momento de sua obra o escritor abandona-ria o registro do mundo referencial, esforçando-se para recriar as formas de vida imperantes em um determinado período histórico, mas com a convicção de que o romance é construção artística, objeto autônomo, e não cópia di-reta da realidade. Para isso, trataria de superar o realismo fotográfico por meio de procedimentos técnicos de exa-cerbada índole experimental.

Inúmeras são as ousadias formais manifestas em seus relatos: o entrecruzamento de distintos planos tempo-rais para captar o fluxo descontínuo entre passado, pre-sente e futuro; a destruição da continuidade espacial; a atomização do olhar único do narrador, fragmentando-o em uma atordoante pluralização de vozes narrativas e, com isso, estabelecendo uma acumulação caleidoscópica de visões e pontos de vista; o ocultamento intencional de dados relevantes para o andamento da intriga romanes-ca, gerando permanente atmosfera de dúvida e incerteza; o uso do monólogo interior; a intersecção de diálogos cor-respondentes a situações diversas no tempo e no espaço; em suma, todos os recursos inovadores desenvolvidos pelos narradores de vanguarda do século XX foram reto-mados e, de alguma maneira, reinventados por Llosa. O efeito de amplitude resultante dessas múltiplas revolu-ções técnicas é extraordinário. Daí o fascínio exercido por sua obra sobre jovens escritores do mundo inteiro, que nela descobriram os fundamentos de uma nova tradição que lhes propiciava incontáveis variantes de complexida-de e singularidade sem, no entanto, reduzi-la a um mero jogo de acrobacias estruturais.

O requintado arcabouço experimental sempre o ajudou a aprofundar os efeitos dramáticos ou cômicos de suas ficções, tornando-as mais persuasivas e cativantes. Mas esta maestria apenas se alçou à grandeza pela infinita di-versidade temática da sua obra e, em especial, pelo ardor (muitas vezes desgovernado) com que os personagens se lançam em busca da reforma do mundo. Insatisfeitos, in-

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felizes, sonhadores, solitários, tresloucados, em perma-nente amotinamento contra a realidade, tentam opor--se a tudo aquilo que na vida representa conformismo, mediocridade, distorção moral ou simples adequação ao universo gris. Com muita frequência são vencidos pelas circunstâncias, restando-lhes somente o silêncio e o in-tolerável mergulho na existência mais amorfa e ordinária. Algumas vezes, porém, há um triunfo da lucidez sobre o embotamento, a exemplo do ocorrido com o jornalista míope de A guerra do fim do mundo, que, após ter seus óculos quebrados, experimenta a revelação da natureza real do conflito em que está metido. Há também as pe-quenas vitórias pessoais de protagonistas como Felícito Yanaqué, de O herói discreto (2013), que com humilde co-ragem dispõe-se a construir o próprio destino por sobre as injunções do entorno social.

O INTELECTUAL

Um dos aspectos marcantes dos anos 1960 foi a passa-gem que os escritores realizaram do campo estético ao intelectual. Poetas e romancistas, sobremodo os latino--americanos, consideraram que era sua responsabilidade intervir diretamente na vida pública mediante opiniões e ideias com força suficiente para influenciar os indivíduos em suas opções políticas. Isto é, já não bastava a utili-zação de um discurso crítico na obra, era indispensável o compromisso do artista com a propagação do ideário pro-gressista por meios extraliterários. Sob o influxo da Revo-

lução Cubana e de um contexto de graves desigualdades, os valores de esquerda adquiriram uma hegemonia qua-se que absoluta entre estes novos intelectuais.

A aprendizagem de Vargas Llosa deu-se no universo de recrutamento e aglutinação promovido por Havana, quando o elã revolucionário estava no auge. Seus primei-ros artigos defendiam o socialismo caribenho e os movi-mentos guerrilheiros que principiavam a irromper no con-tinente. Logo se tornou um dos escritores prediletos do establishment cubano, mas o idílio durou pouco. No final da década de 1960 fez críticas à posição de Fidel Castro, que apoiara a invasão da Tchecoslováquia por tropas so-viéticas. Em 1971, opôs-se de modo veemente à confissão de culpa do poeta dissidente Heberto Padilla, obtida por constrangimento e tortura moral. Llosa redigiu em Paris uma áspera carta de protesto, assinada por dezenas de intelectuais e dirigida ao primeiro-ministro cubano, de-sencadeando uma cisão irreparável não só em sua rela-ção com as autoridades revolucionárias, mas dentro do próprio grupo do boom, agora dividido entre os que man-tinham o apoio a Castro e os que percebiam o espesso véu ditatorial abatendo-se sobre a Ilha.

O autor peruano não registrou com detalhes o abandono da fé no socialismo e a conversão aos princípios da so-ciedade democrática e liberal. Com certeza, foi-lhe difícil. Ainda em 1973, comentando um livro de Jorge Edwards, admitiu que o mais injusto regime socialista era melhor do que um capitalista. A orfandade pesava. Como pode

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um militante aceitar que os anos de intensa dedicação a uma causa “humanista” tenham sido apenas anos de ilusão e autoengano? Porém, em artigos datados da se-gunda metade dos 1970, vê-se que ele já havia rompido com toda e qualquer forma de pensamento sectário, fos-se à direita ou à esquerda, e inclusive com as teorias sar-trianas, tão importantes em sua juventude.

Nas décadas seguintes, transformou-se em um dos mais reconhecidos defensores dos princípios democráticos, da racionalidade e do imperativo ético na esfera política, fustigando, em textos candentes, ditaduras e regimes populistas de todos os quadrantes. Significativas lideran-ças mundiais, a exemplo de Felipe González, estabelece-ram vínculos de amizade com o escritor, enquanto outros chefes de Estado – em especial os identificados com o “socialismo bolivariano” – passaram a insultá-lo como “inimigo do povo” (ver vídeos no YouTube). Candidato derrotado à Presidência do Peru, deixou o registro memo-rialístico desta experiência em O peixe na água (1993). Por seu turno, Carlos Granés, no livro Sabres e utopias (2010), organizou excelente compilação de artigos que resumem a trajetória intelectual do autor peruano.

Desde jovem, Vargas Llosa também se dedicou ao ensa-ísmo literário, na tradição dos grandes críticos europeus e norte-americanos, convertendo cada ensaio ou artigo em deslumbrante peça de esclarecimento e de finesse estilís-tica. Ler um desses ensaios é tão prazeroso quanto fruir um bom poema ou um romance cheio de peripécias. Re-

comenda-se ao iniciante que comece por A verdade das mentiras (1990). Já para aqueles que pretendem seguir a carreira de ficcionista, é obrigatória a leitura de Cartas a um jovem romancista (1997). Mais recentemente, Llo-sa surpreendeu os leitores com um polêmico ensaio – A civilização do espetáculo (2012) – a respeito do novo sis-tema cultural e de pensamento imperante no Ocidente pós-moderno. Nele, argui a frivolidade do nosso tempo, o culto do entretenimento vazio, a irrelevância do hedonis-mo, a superficialidade dos relacionamentos, a celebração das drogas, a primazia das imagens sobre as ideias, além da devastadora banalização da arte e da cultura.

GUIA MÍNIMO DE LEITURA

Um guia introdutório para quem ainda pouco conhece a obra do autor passa por algumas narrativas essen-ciais, a começar pelas já citadas A cidade e os cachor-ros, Conversa no Catedral e O herói discreto. Porém, há muitas outras que precisam ser lidas (ou relidas), como Os filhotes (1967), um dos relatos curtos mais primorosos já escritos, em função de sua admirável criatividade formal que ajuda a dilatar a densa carga emotiva do texto, decorrente da emasculação de um menino por um mastim, em colégio lassalista de Lima. Só aos poucos, em um processo que atravessa a ado-lescência e a juventude, o mutilado vai se dando conta da extensão de sua tragédia pessoal.

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Rompendo com a convicção de que o humor não era pro-pício ao romance, Llosa publica em 1973 o corrosivo Pan-taleão e as visitadoras, a respeito de um serviço de prosti-tutas oferecido pelo exército peruano a soldados aquarte-lados na Amazônia. Sob o comando do capitão Pantaleão Pantoja – burocrata honesto, inflexível e de alta eficiência –, o serviço torna-se motivo de conflitos hilariantes entre os princípios militares e a realidade surrealista do projeto. Tia Júlia e o escrevinhador (1977) é outra de suas obras-pri-mas. Intercalando folhetins baratos produzidos por Pedro Camacho, profícuo autor de radionovelas que, pouco a pou-co, vai enlouquecendo e misturando os enredos, e a histó-ria verdadeira, ainda que também folhetinesca, da paixão do jovem Vargas Llosa por uma tia emprestada, com quem se casaria no romance e na vida real, o texto – além de sua natureza humorística – constitui uma luminosa reflexão sobre o sentido da ficção na existência humana.

Em 1981, após leitura de Os sertões e sólida pesquisa so-bre a Guerra de Canudos, Llosa publica A guerra do fim do mundo, um dos mais formidáveis romances históricos do século XX, escrito dentro de padrões formais clássi-cos. Esta releitura ficcional do texto de Euclides da Cunha centra-se na ideia de que o sangrento conflito resultou da cegueira ideológica de ambas as partes. A par da vasta totalização histórica, a obra apresenta ampla e inesque-cível galeria de personagens. Para alguns críticos, trata--se da suprema narrativa do autor.

O tema político constitui o eixo de História de Mayta (1984) – ficção de alto impacto sobre a formação da consciência ideo-lógica de um militante trotskista, que transforma sua gene-rosidade social em fé sectária. Igualmente forte – espécie de thriller sobre a aterrorizante tirania do general Trujillo e sua morte tramada por opositores – é A festa do Bode (2000). Os preparativos do assassinato do ditador dominicano e as relações familiares e políticas dos principais participantes do sangrento episódio marcam o romance que, talvez, seja, na carreira de Llosa, o que registra com menor mediação ficcio-nal “o esgoto do imediato”.

Também o erotismo, um dos motivos prediletos do ficcio-nista, seria explorado de maneira libertária – a celebração dos prazeres corpóreos por sobre injunções da moralida-de – nos sedutores relatos O elogio da madrasta (1988) e Os cadernos de Dom Rigoberto (1997). Contudo, sua obra definitiva a respeito da zona obscura do desejo e da pai-xão é Travessuras da menina má (2006), cuja ação trans-corre em várias cidades e países, assentada em um amor delirante que atravessa décadas de rupturas, traições e surpreendentes retornos, tendo como pano de fundo as grandes mudanças culturais e nos costumes das décadas de 1960 e 1970. Realista em sua arquitetura, o romance tem um soberbo desfecho que o eleva à condição de pa-rábola sobre a criação literária.

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