mario puzo - a familia

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A FAMLIA Uma saga de ambio e sede de poder Mrio Puzo Ttulo original: The family

"Sou maldito, vil e depravado, mas beijo a fmbria da tnica em que se envolve o meu Deus. Sigo o caminho diablico, continuando a ser vosso filho, Senhor, e amo-Vos, sinto a alegria sem a qual o mundo no poderia subsistir." Fiodor Dostoievski - Os irmos Karamazov

Para Bert Fields Que arrebatou a vitria aos colmilhos da derrota e que podia ser o maior Consiglie re de todos Com admirao, Mrio Puzo

Quando a peste negra assolou a Europa, dizimando metade da populao, muitos cidados desesperados volveram os olhos dos Cus para a Terra. Nesta, a fim de dominarem o mundo fsico, os mais propensos filosofia procuraram desvendar os segredos da ex istncia e deslindar os grandes mistrios da Vida, enquanto os pobres almejavam unicamente vencer o sofrimento. E assim aconteceu que Deus desceu Terra feito Homem e a rgida doutrina religiosa da Idade Mdia perdeu o seu poder, sendo substituda pelo estudo das grandes civilizaes antigas de Roma, da Grcia e do Egipto. Do mesmo passo que a sede das Cru zadas principiava a estiolar, ressuscitaram-se os heris do Olimpo e travaram-se de novo batalhas olmpicas. O Homem contraps a mente ao corao de Deus e a Razo reinou. Foi a poca dos grandes avanos na filosofia, nas artes, na medicina e na msica. A cu ltura floresceu com grande pompa e cerimnia. Mas no sem custos. Violaram-se leis antigas antes de se criarem leis novas. A passagem da estrita obedincia Pala vra de Deus e da crena na salvao eterna venerao do "Homem" e da recompensa no mundo material a que se chamou Humanismo foi, na verdade, uma transio difcil. Nessa altura Roma no era uma Cidade Santa, mas sim um lugar sem lei. Nas ruas, os cidados eram roubados, as casas eram saqueadas, grassava a prostituio e todas as semanas eram assassinadas centenas de pessoas. Acresce que o pas que hoje conhecemos como "Itlia" ainda no existia. Ao invs, adentr o das fronteiras da "bota" havia cidades-estados independentes governadas por velhas famlias chefiadas por reis locais, senhores feudais, duques ou bispos. No interior do pas, os vizinhos lutavam entre si pelo territrio. E quem conquista va nunca deixava de estar em guarda... porque a conquista seguinte estava prxima. De fora do pas vinha a ameaa de invaso por potncias estrangeiras desejosas de expand ir os respectivos imprios. Os governantes de Frana e Espanha lutavam pelo territrio e os "brbaros" turcos, que no eram cristos, avanavam sobre os Estados Papai

s. A Igreja e o Estado defrontavam-se pela soberania. A seguir caricatura do Grande Cisma - durante o qual houve dois papas em duas cidades, com um poder dividido e rendimentos reduzidos - a instituio de uma nova sede do Trono em Roma, com um s P apa, deu nova esperana aos Prncipes da Igreja. Surgindo ainda mais poderosos que outrora, os chefes espirituais da Igreja apenas tinham de combater o poder t emporal dos reis, rainhas e duques das pequenas cidades e feudos. Mesmo assim, a Igreja Catlica Romana estava em tumulto, pois o comportamento desr egrado no se limitava apenas aos cidados. Os cardeais enviavam os seus criados armados de pedras e arcos para as ruas a fim de combaterem com os jovens romanos ; homens de elevada posio na igreja - aos quais o casamento estava vedado - freque ntavam cortess e tinham grande profuso de amantes, oferecia recebiam-se subornos e o cler o oficial, aos nveis mais elevados, aprestava-se a aceitar dinheiro para conceder dispensas das leis e redigir sagradas Bulas Papais para perdoar os mais terrveis crimes. Muitos cidados desiludidos diziam que em Roma tudo estava venda. Uma quantia bast ante podia comprar igrejas, sacerdotes, indulgncias e at o perdo de Deus. Com muito poucas excepes, os homens que abraavam o sacerdcio dedicavam-se igreja por que eram filhos segundos, educados desde a nascena para profisses eclesisticas. No tinham vocao religiosa propriamente dita, mas, como a igreja ainda detinha o pod er de proclamar reis e outorgar grandes bnos na terra, todas as famlias aristocrticas italianas ofereciam presentes e subornos a fim de conseguirem que o s filhos fossem designados para o colgio cardinalcio. Assim era o Renascimento - a poca do cardeal Rodrigo Brgia e da sua famlia.Os raios dourados do sol estival aqueciam as ruas empedradas de Roma hora a que o cardeal Rodrigo Brgia vencia a passo rpido a distncia entre o Vaticano e a casa de estuque de trs pisos da Piazza de Merlo onde tinha vindo reclamar trs das suas crianas: os filhos Csar e Joo e a filha Lucrcia, carne da sua carne, sangue do seu sangue. Nesse dia fortuito, o segundo homem mais poderoso da Santa Igreja Catlica Romana sentia-se particularmente bem-aventurado. Em casa da me das crianas, Vanozza de Cattanei, surpreendeu-se a assobiar jovialme nte. Como filho da igreja, o casamento estava-lhe vedado, mas, como homem de Deus, sentia-se seguro de conhecer os planos do Senhor. Acaso o Pai Celeste no cr iara Eva para completar Ado, mesmo no Paraso? No se conclua ento desse facto que nesta terra traioeira, repleta de infelicidade, o homem carecia ainda mais do conforto de uma mulher. Tinha trs filhos anteriores, de quando era um jovem bisp o, mas estes ltimos filhos que gerara, os de Vanozza, ocupavam um lugar especial no seu corao. Dir-se-ia que acendiam nele as mesmas ardentes paixes que ela possua. E mesmo agora, ainda to jovens, visualizava-os postados sobre os seus ombros, a f ormar um grande gigante, ajudando-o a unir os Estados Papais e a dilatar a Santa Igreja Catlica Romana pelo mundo fora. Ao longo dos anos, sempre que viera de visita, as crianas tinham-lhe chamado inva riavelmente "Pap", sem descortinarem nada de comprometedor na conciliao da sua devoo por eles com a lealdade Santa S. No viam nada de estranho no facto de ele ser cardeal e ao mesmo tempo seu pai. Pois no era frequente o filho e a filha do Papa Inocncio desfilarem com grande formalismo pelas ruas de Roma por ocasio de solenidades? O cardeal Rodrigo Brgia estava com a amante, Vanozza, havia mais de dez anos e so rria ao pensar em quo poucas mulheres lhe haviam suscitado tamanho entusiasmo e mantido tanto tempo o interesse. No que Vanozza tivesse sido a nica mulher da su a vida, pois ele era um homem de grandes apetites em todos os prazeres mundanos, mas fora de longe a mais importante. Era inteligente, na sua opinio, bonita... e uma pessoa com quem se podia falar de assuntos terrenos e divinos. Dera-lhe muit as vezes conselhos sbios e, em contrapartida, ele tinha sido um amante prdigo e um pa

i carinhoso para os filhos. Vanozza postou-se no umbral da porta de casa e sorriu corajosamente ao dizer ade us aos seus trs filhos. Um dos seus maiores pontos fortes, agora que atingira os quarenta anos, era comp reender aquele homem que envergava as vestes de cardeal. Sabia que ele tinha uma ambio ardente, um fogo que lhe inflamava as entranhas e que nada podia extinguir, e uma estratgia militar para a Santa Igreja Catlica que dilataria o seu mbito, alianas polticas que a fortaleceriam e tratados que cimentariam tanto a sua posio co mo o seu poderio. Tinha falado com ela acerca de tudo isso. As ideias desfilavam -lhe na mente de modo to inexorvel como as suas tropas marchariam sobre novos territrios . Estava destinado a ser um dos maiores condutores de homens e com a sua ascenso viria a dos filhos. Vanozza tentava consolar-se com a ideia de que, um dia, como herdeiros legtimos do cardeal, gozariam de fortuna, poder e oportunidades. E, po r conseguinte, podia deix-los ir. Naquele instante apertava ao peito o beb, Godofredo, o nico filho que lhe restava, demasiado jovem para lhe ser tirado, uma vez que ainda mamava. No entanto, tambm ele no tardaria a ir-se. Os seus olhos escuros brilhavam, marejados de lgrimas, ao ver os outros filhos afastarem-se. A filha, Lucrcia, olhou para trs uma nica vez, mas os rapazes nem chegaram a voltar-se. Vanozza viu a figura grcil e imponente do cardeal buscar a pequenina mo do filho m ais novo, Joo, e a mo minscula da filha de trs anos, Lucrcia. O filho mais velho, Csar, excludo, parecia j descontente. Aquilo prenunciava complicaes, pensou el a, mas, com o tempo, Rodrigo acabaria por conhec-los to bem como ela. De modo hesitante, fechou a pesada porta de madeira da entrada. Tinham dado alguns passos apenas quando Csar, agora zangado, empurrou o irmo com t al fora que Joo, obrigado a largar a mo do pai, tropeou e pouco faltou para que casse por terra. O cardeal evitou a queda do filho, aps o que se voltou e diss e: - Csar, meu filho, no sers capaz de pedir o que queres, em vez de empurrares o teu irmo? Joo, um ano mais novo mas de compleio muito mais franzina do que Csar, de sete anos, soltou uma risadinha ufana perante a defesa do pai mas, antes que pudesse regalar-se de satisfao, Csar acercou-se mais dele e pisou-lhe violentamente o p. Joo soltou um grito de dor. O cardeal agarrou Csar pelas costas da camisa com uma das manpulas - suspendendo-o sobre a rua empedrada - e abanou-o com tanta fora que os caracis castanho-claros do mido tombaram pelo rosto abaixo. A seguir voltou a pr a criana no cho. Ao ajoelha r-se diante do rapazito, os seus olhos castanhos assumiram uma expresso mais doce. - Que foi, Csar? - perguntou. - O que foi que te contrariou tanto? Os olhos do rapaz, mais escuros e mais penetrantes, cintilavam como brasas ao fi tar o pai. - Detesto-o, Pap - disse, numa voz apaixonada. - Tu escolhe-lo sempre... - Ora, ora, Csar - volveu o cardeal, divertido. - A fora de uma famlia, tal como a fora de um exrcito, est na lealdade mtua. Alm disso, pecado mortal odiar um irmo e no h razo para pores a tua alma imortal em perigo por virtude de tais emoes. - Nessa altura ps-se de p, agigantando-se sobre eles. Depois sorriu, dando palmadinhas na barriga imponente. - H com certeza bastante de mim que chegu e para todos vs... no h? Rodrigo Brgia era um homem enorme, suficientemente alto para suportar o prprio pes o, de uma elegncia bastante mais rstica do que aristocrtica. Os seus olhos escuros cintilavam frequentemente de bom humor; o nariz, embora grande, no era of ensivo, e os seus lbios grossos e sensuais, normalmente sorridentes, conferiam-lh e uma aparncia generosa. Era, porm, o seu magnetismo pessoal, a intangvel energia que irradiava, que fazia todos serem unnimes em consider-lo um dos homens mais

atraentes do seu tempo. - Chez, podes ficar com o meu lugar - disse a certa altura a filha a Csar, numa v oz to cristalina que o cardeal se voltou, fascinado, para ela. Lucrcia, de p com os braos cruzados diante do corpo, os longos caracis louros a carem sobre os om bros, ostentava uma expresso de firme determinao no rosto angelical. - No queres dar a mo ao Pap? - perguntou o cardeal, simulando fazer beicinho. - No te dar a mo no me d vontade de chorar - disse ela. - E no me faz zangar. - Crezia - disse Csar com genuno afecto -, no sejas burra. O Joo est a ser beb; ele go verna-se muito bem sozinho. Olhou, contrariado, para o irmo, que enxugava rapidamente as lgrimas com a macia s eda da manga da camisa. O cardeal despenteou o cabelo escuro de Joo e tranquilizou-o. - Pra de chorar. Podes dar-me a mo. - Virou-se para Csar e disse: - E tu, meu peque no guerreiro, podes pegar-me na outra. - A seguir olhou para Lucrcia e endereou-lh e um sorriso rasgado. - E tu, minha doura? Que h-de o Pap fazer contigo? Como a criana mantivesse uma expresso inaltervel e no revelasse qualquer emoo, o carde al ficou encantado. Sorriu com apreo. - s verdadeiramente a menina do Pap e, como recompensa pela tua generosidade e cor agem, podes sentar-te no nico lugar de honra. Rodrigo Brgia baixou-se e ergueu rapidamente a rapariga no ar, depositando-a sobr e os ombros, e riu-se com genuna alegria. Ao caminhar assim, fazendo as elegantes vestes ondular graciosamente, dir-se-ia que a filha era mais uma nova e bela cor oa na cabea do cardeal. Nesse mesmo dia, Rodrigo Brgia transferiu os filhos para o Palcio Orsini, que fica va defronte do seu, no Vaticano. A sua prima viva, Adriana Orsini, ficou a tomar conta deles e a servir de governanta, encarregando-se da sua educao. Quando o filh o mais novo de Adriana, Orso, ficara noivo, aos treze anos de idade, Jlia Farnese , de quinze, mudara-se para o Palcio a fim de ajudar Adriana a tomar conta das cria nas. Embora o cardeal tivesse a responsabilidade quotidiana pelos filhos, eles ainda iam visitar a me, que estava presentemente casada com o terceiro marido, Cario Ca nale. Tal como escolhera os dois anteriores maridos de Vanozza, Rodrigo Brgia escolhera agora Canale, pois sabia que as vivas deviam ter um marido para lhes conferir proteco e a reputao de uma casa respeitvel. O cardeal tinha sido bom para ela, que do s dois anteriores maridos herdara aquilo que no recebera dele. Ao contrrio das belas mas ocas cortess de alguma aristocracia, Vanozza era uma mulher com sen tido prtico, coisa que Rodrigo admirava. Era dona de diversas estalagens bem cuid adas e de uma propriedade rural que lhe proporcionava um rendimento significativo; e, como era uma mulher piedosa, erigira uma capela dedicada Virgem onde rezava as oraes dirias. Mesmo assim, passados dez anos, a paixo entre eles parecera arrefecer e haviam-se tornado bons amigos. Passadas semanas, Vanozza viu-se obrigada a entregar igualmente Godo-fredo, pois tambm este ficara inconsolvel sem os irmos. E foi assim que todos os filhos de Rodrigo Brgia se juntaram sob os cuidados da prima. Como competia aos filhos de um cardeal, nos anos que se seguiram foram educados pelos mais talentosos tutores de Roma. Aprenderam Humanidades, Astronomia e Astr ologia, Histria Antiga e diversas lnguas, incluindo espanhol, francs, ingls e, claro est, o i dioma da igreja, o latim. Csar sobressaa devido sua inteligncia e esprito competitivo, mas de todos a mais promissora era Lucrcia, pois, acima de tu do, possua carcter e verdadeira virtude. Embora muitas jovens fossem enviadas para conventos a fim de serem educadas e dedicadas aos santos, Lucrcia - com o be neplcito do cardeal, a conselho de Adriana - fora dedicada as Musas e ensinada pelos mesmos talentosos tutores que os irmos. Como amava as artes, aprendeu a toc

ar alade, a danar e a desenhar. Era exmia nos bordados, em tecidos de prata e ouro. Como era sua obrigao, Lucrcia desenvolveu todos os encantos e talentos que lhe enca receriam o valor nas alianas matrimoniais que teriam utilidade futura para a famlia Brgia. Um dos seus passatempos preferidos era escrever poesia; passava lo ngas horas a fazer versos, quer de amor e enlevo divinos quer de amor romntico. Era particularmente inspirada pelos santos e por vezes o seu corao ficava to replet o que as palavras no chegavam. Jlia Farnese estragava Lucrcia com mimos como se fosse uma irm mais nova e tanto Ad riana como o cardeal cumulavam Lucrcia de atenes, de forma que a rapariga teve uma infncia feliz, adquirindo um feitio agradvel. Curiosa e muito dada, no lhe agradava a desarmonia e fazia todos os esforos por ajudar a manter a paz familiar. Num belo domingo, aps ter dito missa solene na Baslica de S. Pedro, o cardeal Brgia convidou os filhos a reunirem-se-lhe no Vaticano. Tratava-se de um acto raro e corajoso, visto que, at ao Papa Inocncio, todos os filhos do clero eram proclama dos sobrinhos e sobrinhas. Reconhecer abertamente a paternidade podia compromete r uma nomeao importante para um cargo na alta hierarquia da Igreja. Claro est que tod a a gente sabia que os cardeais e mesmo os Papas tinham filhos - toda a gente sabia que eles pecavam - mas, contanto que isso se mantivesse oculto sob a capa de "famlia" e a verdade do parentesco constasse apenas em pergaminhos secretos, a honra do cargo no era maculada. Toda a gente era livre de acreditar no que quis esse, mas o cardeal tinha pouca pacincia para hipocrisias. Havia alturas, certo, em que era obrigado a torcer ou aformosear a verdade. Mas isso era compreensvel p orque, no fim de contas, ele era um diplomata. Adriana vestiu as melhores roupas s crianas para esta ocasio especial: Csar de cetim preto, Joo de seda branca e Godofredo, de dois anos de idade, com uma blusa de veludo azul debruada com um opulento bordado. Jlia ps a Lucrcia um vestido compr ido de renda cor de pssego e colocou na loira cabeleira encaracolada da rapariga uma pequena touca cravejada de jias. O cardeal acabava de ler um documento oficial que o seu principal conselheiro, D uarte Brando, lhe trouxera de Florena. O documento dizia respeito a um certo frade dominicano conhecido como Savonarola. Corriam rumores de que era um profeta, ins pirado pelo Esprito Santo mas muito mais perigoso para os propsitos do cardeal; todos os cidados comuns de Florena acorriam a ouvir os sermes de Savonarola e reagi am a eles com grande fervor. Era um reputado visionrio e um pregador eloquente, cujos inflamados discursos se centravam frequentemente nos excessos carnais e fi nanceiros do papado de Roma. - Temos de manter esse frade simples debaixo de olho - disse Rodrigo Brgia. - E q ue houve grandes dinastias que foram derrubadas por homens simples que julgam se r detentores de uma verdade sagrada. Brando era alto e magro, tinha uma longa cabeleira negra e feies elegantes. Aparent ava ser afvel e cordial, mas constava em Roma que ningum conseguia igualar-lhe a clera quando confrontado com deslealdades ou insolncias. Todos eram unnimes em co nsiderar que era preciso ser louco para desejar t-lo como inimigo. Na ocasio, Duarte cofiou o bigode com o dedo indicador ao ponderar as implicaes do que Rodrig o Brgia acabava de lhe dizer. - Corre por a que o frade ataca igualmente os Mediei do plpito, e os cidados de Flo rena aplaudem - disse ao cardeal. Quando as crianas entraram nos aposentos particulares de Rodrigo Brgia, a conversa cessou. Duarte Brando saudou-os com um sorriso, aps o que se afastou. Lucrcia correu entusiasmada para os braos do cardeal, mas os rapazes deixaram-se f icar, de mos atrs das costas. - Venham, meus filhos - disse Rodrigo, continuando a manter Lucrcia nos braos. - V enham dar um beijo ao pap. - Fez-lhes sinal para que se aproximassem, com um sorriso terno e acolhedor. Csar foi o primeiro a alcanar o pai. Rodrigo Brgia poisou Lucrcia no banquinho doura

do que tinha aos ps e abraou o filho. Era um rapaz forte, alto e musculoso. O pai gostava do contacto daquele filho, que o tranquilizava quanto ao seu futur o. Rodrigo afrouxou o abrao ao rapaz e a seguir segurou-o com os braos estendidos, a fim de poder olhar para ele. - Csar - disse, afectuosamente -, todos os dias dirijo uma orao de agradecimento no ssa Virgem Santa, porque me alegras o corao sempre que te contemplo. Csar sorriu de felicidade, satisfeito com a aprovao do pai. Seguidamente Csar desviou-se para deixar Joo passar. Fosse a rapidez com que o cor ao do rapaz batia no peito, fosse a premncia da sua respirao que lhe traa o nervosismo, algo em Rodrigo reagiu fragilidade de Joo. E quando o cardeal abraou o filho, apertou-o contra si com maior suavidade mas reteve-o um pouco mais. Habitualmente, quando o cardeal tomava as refeies a ss nos seus aposentos, comia fr ugalmente apenas po, fruta e queijo, mas desta vez tinha dado indicaes aos criados para disporem uma mesa farta de massas e criao, carne de vaca com doarias e speciais e montinhos redondos de castanhas cristalizadas. Quando os filhos, Adriana e o seu filho Orso e a bela e cativante Jlia Far-nese s e sentaram roda da mesa rindo e tagarelando, Rodrigo Brgia sentiu-se um homem de sorte. Rodeado de famlia e amigos, a vida na terra era boa. Rezou em silncio um a prece de gratido. Quando o criado lhe verteu o vinho cor de sangue na taa de prata, encontrava-se neste estado de esprito. Por isso, num gesto de afecto, o fereceu o primeiro gole ao filho, Joo, que estava sentado ao seu lado. Joo, porm, provou o vinho e fez uma careta. - E azedo de mais, pap... - disse. - No gosto. Rodrigo Brgia, sempre em guarda, ficou repentinamente gelado de medo. Tratava-se de um vinho macio; no deveria haver acidez nenhuma... Quase de imediato, a criana queixou-se de que estava a sentir-se mal e comeou a re torcer-se com dores de estmago. Tanto o pai como Adriana tentaram tranquiliz-lo, mas, poucos instantes decorridos, Joo principiou a vomitar violentamente. O carde al ergueu a criana do assento e depositou-a no sof de brocado. Mandaram chamar imediatamente o clnico do Vaticano, mas, antes de conseguir chega r aos respectivos aposentos, Joo perdeu os sentidos. - Veneno - declarou o clnico, mal examinou a criana. Joo mostrava uma palidez mortal e estava j febril, com um fiozinho de blis negra a escorrer-lhe dos lbios. Parecia muito pequeno e desamparado. Nessa altura, Rodrigo Brgia perdeu a compostura e enfureceu-se. - Um veneno que me era destinado... - disse. Duarte Brando, que se tinha mantido de p, desembainhou ento a espada, em guarda e a tento emergncia de qualquer ulterior tentativa de fazer mal ao cardeal ou sua famlia. O cardeal voltou-se para ele. - H um inimigo no palcio. Rene toda a gente na Sala Grande. Serve a todos uma taa de vinho e insiste para que o bebam. Depois traz-me aquele que recusar. Adriana, preocupada, sussurrou: - Meu caro primo, Excelncia, compreendo a vossa dor, mas desse modo perdereis os vossos mais fiis servidores, pois muitos adoecero e alguns ho-de morrer... Rodrigo voltou-se para ela. - No lhes vou servir o vinho que foi servido ao meu pobre e inocente filho. O vin ho que lhes for servido h-de ser puro. Mas apenas o pecador se negar a beber, pois o medo sufoc-lo- antes de levar a taa aos lbios. Duarte saiu imediatamente a fim de cumprir as ordens do cardeal. Joo jazia imvel como uma pedra, plido de morte. Adriana, Jlia e Lucrcia estavam senta das junto dele, passando-lhe pela testa panos molhados e unguentos medicinais. O cardeal Rodrigo Brgia ergueu a mozinha do filho e beijou-a, aps o que se dirigiu capela particular e ajoelhou diante da esttua da Virgem em orao. Argumentou com ela, pois sabia que ela compreendia a perda de um filho e a dor que isso cau sava. E fez uma jura: : - Farei tudo o que estiver ao meu alcance, tudo o que for humanamente possvel, para trazer as almas imortais de milhares de pessoas nica igreja verdadeira. A tua igreja, Me Santa. Velarei por que adorem o teu filho, contanto que poupes a

vida ao meu. O jovem Csar estava postado no umbral da porta da capela e, quando o cardeal se v irou e o viu ali, surpreendeu-lhe os olhos marejados de lgrimas. - Vem c, Csar. Vem c, meu filho. Reza pelo teu irmo - disse o cardeal. E Csar foi ajo elhar ao lado do pai. De regresso aos aposentos docardeal, toda a gente se manteve em silncio at Duarte chegar e anunciar: i - Foi descoberto o culpado. No passa de um ajudante de cozinha, que anteriormente esteve ao servio da Casa de Rimini. Rimini era uma pequena provncia feudal na costa leste de Itlia e o seu governante, um duque local, Gaspare Malatesta, era um inimigo figadal de Roma e do papado. Tratava-se de um homem corpulento, com um fsico capaz de albergar a alma de dois, e a sua cara enorme tinha bexigas e traos muito marcados, mas era em virtude da cabeleira rebelde, ruiva e ondulada, que lhe chamavam "o Leo". O cardeal Brgia afastou-se de junto do filho enfermo e segredou a Duarte: - Pergunta ao ajudante de cozinha por que razo tem tanto desdm por Sua Santidade. Depois assegura-te de que ele bebe a garrafa de vinho da nossa mesa. Assegura-te de que a bebe toda. Duarte acenou afirmativamente. - E que quereis que lhe faamos depois de o vinho fazer efeito? - perguntou. O cardeal, de olhos coruscantes e rosto afogueado, respondeu: - Colocai-o em cima dum burro, amarrai-o bem e enviai-o com uma mensagem ao Leo d e Rimini. Dizei-lhe que comece a pedir misericrdia e a fazer as pazes com Deus. Joo esteve vrias semanas prostrado como num sono profundo e o cardeal insistiu par a que ele ficasse no seu palcio do Vaticano a fim de ser tratado pelo seu clnico particular. Enquanto Adriana velava ao seu lado e diversas criadas cuidavam dele , Rodrigo Brgia passava horas na capela a rezar Virgem. - Trarei para a nica igreja verdadeira as almas de milhares de pessoas - prometia fervorosamente -, contanto que intercedas junto de Cristo para que poupe a vida

do meu filho. Quando as suas preces foram atendidas e Joo se recomps, o cardeal tornou-se ainda mais dedicado Santa Igreja Catlica e famlia. Mas Rodrigo Brgia sabia que o Cu s por si j no podia garantir a segurana da sua famlia E por isso compreendia que havia mais uma aco a tomar. O cardeal sabia agora que tinha de mandar vir de Espanha Miguel Corello, tambm co nhecido por Don Michelotto... Este sobrinho bastardo do cardeal Rodrigo Brgia tinha sentido desde a mais tenra idade os abanes do destino. Em Valncia, quando ainda criana, no era mau nem sdico. Apesar disso, via-se muitas vezes a defender as almas cuja bondade as torn ava vulnerveis natureza tirnica dos outros, pois muitas vezes a bondade confundida com fraqueza. Miguel aceitou desde a infncia o seu fado: proteger os que traziam ao mundo o fac ho de Deus e da Santa Igreja Romana. Mas Miguel era um rapaz forte e to feroz na lealdade como nas aces. Constava que, q uando robusto adolescente, tinha sido atacado pelo meliante mais brbaro da sua aldeia ao levantar-se em defesa da casa da me, irm do cardeal. Miguel tinha apenas dezasseis anos quando o chefe dos meliantes e vrios jovens vnd alos entraram pela casa dentro e tentaram afastar o rapaz do ba de madeira onde se escondiam as preciosas relquias sagradas da me e os atoalhados da famlia. Quando Miguel, que raramente falava, amaldioou o bandido e se recusou a afastar-se, o chefe dos meliantes lacerou-lhe o rosto com um estilete, causando-lhe um golpe profundo da boca at face. Quando o sangue comeou a jorrar s golfadas pela cara do rapaz sobre o ba, a irm desatou a chorar em altos soluos, mas mesmo assim Miguel no arredou p. Por fim, quando os vizinhos se juntaram nas ruas e comearam a gritar, o meliante e o seu bando, receando serem capturados, fugiram da aldeia para os montes. Vrios dias mais tarde, quando o mesmo bando de meliantes tentou voltar a entrar n

a aldeia, deparou com resistncia e, ao passo que a maior parte se ps em fuga, o chefe do bando foi capturado por Miguel. Na manh seguinte o infeliz meliante fo i encontrado com uma grossa corda ao pescoo, enforcado numa grande rvore da praa da aldeia. A partir desse dia, a reputao de ferocidade de Miguel Corello correu todo o princi pado de Valncia e ningum mais ousou fazer-lhe mal a ele ou a qualquer um dos seus amigos, temendo retaliaes. O rosto sarou, embora ficasse com uma tal cicatriz que lhe deixou a boca num esgar constante; afora isso, no sofrera nenhum dano. Ainda que em qualquer outro homem aquele sorriso escarninho houvesse de ser uma viso assustadora, a sua reputao de justia e a expresso de misericrdia que irradiava dos olhos castanho-claros de Miguel fazia todos quantos o viam reconhecer a sua alma bondosa. Foi nessa altura que os aldees comearam a chamar-lhe carinhosamente "Don Michelotto" e ele se tornou bem conhecido como homem digno de respeito. O cardeal Rodrigo Brgia pensava que em todas as famlias havia algum que tinha de sa ir luz e pregar a palavra de Deus. Contudo, atrs deles tinha de haver outros a proporcionar a segurana e a garantir-lhes xito nas suas piedosas empresas. Os qu e se sentavam no trono da Igreja no se podiam defender da maldade dos outros sem a ajuda de uma mo humana, pois esta era a natureza do mundo em que viviam. O facto de o jovem Don Michelotto ter sido chamado para desempenhar o papel do m alfeitor no surpreendeu nenhum deles, pois era um homem superior. O seu amor e a sua lealdade, tanto ao Pai Celeste como Santa S, nunca estiveram em questo, por ma iores que fossem os labus sobre o seu carcter sussurrados pelos seus inimigos. De facto, Rodrigo Brgia no tinha dvidas de que Don Michelotto vergaria sempre a sua vontade do Pai Celeste e agiria de bom grado segundo as ordens da Santa Madre Igreja. E, tal como o cardeal acreditava que os seus actos eram guiados pela inspirao divi na, Don Michelotto acreditava que as suas mos eram guiadas pela mesma fora celeste, pelo que no se punha a questo do pecado. Acaso no estava ele, sempre que p unha termo vida de um inimigo do cardeal ou da Igreja, simplesmente a devolver essas almas ao julgamento do Pai Celeste? E foi assim que, pouco depois do restabelecimento de Joo, Rodrigo Brgia, que tinha crescido em Valncia e conhecia o sangue que corria no corao daquele espanhol, chamou o sobrinho a Roma. Ciente dos perigos naquela terra estranha, confiou ento a Don Michelotto, de vinte e um anos de idade, o bem-estar da famlia. E, medida que os filhos do cardeal cresciam, raramente se viravam que no vissem a sombra de Don Michelotto atrs de si. Agora, sempre que o cardeal estava em Roma e as suas obrigaes como vice-chanceler no o obrigavam a ausentar-se, visitava diariamente os filhos para conversar e brincar com eles, com Don Michelotto frequentemente ao lado. E, na primeira op ortunidade, fugia do ftido e abafante calor estival de Roma, com as suas estreita s ruas apinhadas de gente, para os levar at ao seu magnfico retiro, no campo verde e luxuriante. Oculta nas faldas dos Apeninos, a um dia de marcha de Roma, ficava uma grande ex tenso de terreno com uma magnfica floresta de cedros e pinheiros a rodear um peque no lago muito lmpido. Rodrigo Brgia tinha-o recebido de presente do tio, o papa Calis to III, e ao longo dos ltimos anos fizera dele um opulento retiro campestre para si e para a famlia. Tratava-se do Lago de Prata, um lugar mgico. Povoado dos sons da natureza e das c ores da criao, era para ele um paraso terreal. Ao alvorecer e de novo ao cair da noite, quando o azul abandonava o cu, a superfcie do lago adquiria uma tonalida de cinzento-prata. O cardeal ficara maravilhado desde o primeiro instante em que nele poisara os olhos. E a sua esperana era que ele e os filhos ali passassem os seus mais ditosos momentos. Durante os clidos dias estivais, da cor do limo, as crianas nadavam no lago para se refrescarem, aps o que corriam solta pelos luxuriantes campos verdes enquanto o cardeal passeava pelos fragrantes pomares de citrinos, desfiando as contas de ouro do rosrio. Durante essas serenas ocasies, admirava a beleza da vida e em espe cial

a beleza da sua vida. certo que tinha trabalhado afincadamente, que era meticulo so na sua ateno aos pormenores desde os tempos de jovem bispo, mas at que ponto determinava isso a sorte de uma pessoa? Pois no era verdade que muitas pobres alm as se fartavam de trabalhar e no eram recompensadas na terra pelos cus? Com o corao repleto de gratido, o cardeal ergueu o olhar para o lmpido azul do cu a fim de rezar uma orao e implorar uma bno. De facto, sob a superfcie da sua f, decorridos todos aqueles anos de graas, permanecia o terror oculto de que, por uma vida como a sua, um homem houvesse um dia de pagar um preo elevado. Estava fora de questo que a abundncia de Deus era gratuitamente concedida, mas, para um h omem ser digno de conduzir almas para a Santa Igreja, havia que pr prova a sinceridade da sua alma. Quando no, como poderia o Pai Celeste considerar o homem digno? O cardeal esperava mostrar-se altura do desafio. Uma noite, depois de ele e os filhos terem feito uma refeio oppara, sentados beira do lago, proporcionou a estes uma extravagante exibio de fogos-de-artifcio. Rodrigo pegou ao colo no beb, Godofredo, e Joo agarrou-se com fora s vestes do carde al. O cu iluminava-se de estrelas de prata em enormes arcos luminescentes e flgidas ca scatas de cores vivas. Csar deu a mo irm e sentiu-a estremecer e chorar com o som da plvora, medida que as grandes exploses de luz alumiavam o cu sobre ele s. Quando, porm, o cardeal viu o medo da filha, passou o beb a Csar e baixou-se a fim de tomar Lucrcia nos braos. - O Pap pega-te ao colo - disse. - O Pap no deixa que te acontea nada. Csar manteve-se prximo do pai, pegando agora no beb Godofredo ao colo, e ouviu o ca rdeal explicar com gestos soberbos e grande eloquncia a constelao de estrelas. Encontrava um to grande consolo no som da voz do pai, que naquele preciso momento percebeu que aquela ocasio junto do Lago de Prata era uma ocasio que sempre conservaria na memria. Porque nessa noite era a criana mais feliz do mundo e, de r epente, sentia que todas as coisas eram possveis. o O cardeal Rodrigo Brgia gostava de tudo quanto fazia. Era um daqueles raros homen s com to boa disposio que arrastava toda a gente sua volta para o vrtice do seu entusiasmo. Conforme os filhos iam crescendo e os seus conhecimentos se r efinavam, falava detidamente de religio, poltica e filosofia com eles, passando longas horas a conversar, tanto com Csar como com Joo, sobre a arte da diplomacia e o valor da estratgia religiosa e poltica. Embora Csar gostasse destas actividades intelectuais, Joo aborrecia-se amide. Por causa do susto antigo, o cardeal fazia-l he tanto as vontades que isso se tornou uma desvantagem, pois o rapaz ganhou mau gnio e tornou-se mimado. Era, contudo, o seu filho Csar aquele em que deposita va as maiores esperanas, e as expectativas relativamente a este filho eram efecti vamente muito elevadas. Rodrigo gostava das visitas ao Palcio Orsini porque tanto a sua prima Adriana com o a jovem Jlia o admiravam e lhe davam muita ateno. Esta fazia-se uma mulher muito bonita, com uma cabeleira mais dourada que a de Lucrcia, que lhe chegava qu ase at ao cho. Com os seus grandes olhos azuis e lbios carnudos, fazia jus ao nome "La Bella" com que toda a Roma a distinguia. O cardeal comeou a sentir um ce rto afecto por ela. Jlia Farnese era oriunda da baixa nobreza e trouxera com ela um dote de 300 flori ns - uma quantia considervel - para os seus esponsais com Orsini, que era alguns anos mais novo do que ela. Embora os filhos de Rodrigo ficassem sempre muito fel izes ao v-lo, Jlia comeou tambm a ansiar pelas suas visitas. As suas aparies traziam-lhe um rubor s faces, como sucedia maioria das mulheres que ele conhecera na vida. E muitas vezes, depois de ajudar Lucrcia a lavar o cabelo e envergar a sua melhor indumentria para receber o pai, a prpria Jlia fazia um esforo especial para se tornar o mais atraente possvel. Apesar da diferena de idades, Rodrigo Brgia ficava enfeitiado com a jovem. Ao chegar a altura da cerimnia oficial do casamento civil do afilhado Orso, com Jl ia Farnese, o respeito pela prima Adriana e a afeio pela jovem noiva levaram-no a oferecer-se para presidir cerimnia no Salo das Estrelas do seu palcio.

Nesse dia, a jovem Jlia, envergando o seu vestido de noiva de cetim branco com o vu de prolas prateadas a envolver-lhe o rosto encantador, pareceu-lhe transformada , de simples criana, na mulher mais bela que jamais vira, to viosa, to cheia de vida, que o cardeal teve de reprimir a paixo. No tardou muito que o jovem Orso fosse enviado para o retiro campestre do cardeal em Bassanello, com os seus conselheiros, e sujeito a adestramento para se torna r um lder militar. Quanto a Jlia Farnese, de bom grado deu consigo nos braos do carde al, primeiro, e a seguir no seu leito. Quando Csar e Joo atingiram a adolescncia, foram ambos enviados para longe a fim de cumprirem os respectivos destinos. Joo reagia penosamente s aulas e o Papa concluiu que o futuro do filho no era a vida de sacerdote ou de estudioso. Seria, ao invs, soldado. Em contrapartida, a espantosa inteligncia de Csar levou-o aos estudos em Perugia. Dois anos depois de ali dominar as suas disciplinas, par a as quais tinha talento, Csar foi mandado para a Universidade de Pisa a fim de prosseguir a sua formao em Teologia e Direito Cannico. O cardeal esperava que Csar l he seguisse as pisadas e ascendesse a grandes honrarias na Igreja. Embora tivesse cumprido o seu dever para com os seus anteriores trs filhos de cor tess, Rodrigo Brgia concentrou as suas aspiraes futuras nos filhos que teve de Vanozza, Csar, Joo e Lucrcia. Era-lhe muito mais difcil estabelecer uma ligao forte com o filho mais novo, Godofredo. Procurava valer-se do raciocnio para desculpar a sua falta de afecto paternal. Era ento que, nos mais profundos escani nhos da sua mente, se interrogava sobre se este filho mais novo de Vanozza seria mesmo seu, pois quem pode conhecer verdadeiramente os segredos que se ocultam no corao de uma mulher? e contudo no oio nenhum uivo... - A seguir soltou uma risada, a fim de eles perceberem que e stava a brincar. Um dos jovens estendeu um frasco e ofereceu-lho. Csar, porm, abanou a cabea. - Tenho uma coisa melhor - disse. E voltou a entrar na tenda, regressando com um a garrafa de bom vinho tinto e trs taas de prata. Os olhos dos soldados cintilaram ao luar quando ele estendeu uma taa a cada um e encheu outra para si. Os homens brindaram uns aos outros na escurido, entrada da tenda, observando junt os as estrelas. Passado pouco tempo, porm, os dois jovens principiaram a bocejar. Csar deu-lhes as boas-noites e entrou na tenda, onde devolveu o saquinho castanho que Noni lhe dera ao respectivo esconderijo e se sentou espera. Da a vinte minutos Csar espreitou o exterior da tenda, verificando que ambos os gu ardas dormiam profundamente. A seguir, completamente vestido, esgueirou-se silenciosamente atravs da comprida fiada de tendas at ao stio onde estavam amarrados os cavalos. Havia l outro soldado de costas para Csar, a vigiar os militares que dormiam. Csar aproximou-se silenciosamente por detrs, tapando a boca do guarda com a mo a fim de garantir que no se escapasse nenhum som. Depois aplicou-lhe rapidamente uma chave de cabea e com o antebrao exerceu uma forte presso na garganta e no pescoo do soldado. Da a instantes o jovem perdia os sentidos. Csar encontrou o seu cavalo, um veloz e vigoroso garanho preto, e cavalgou-o em plo , como tantas vezes fizera no Lago de Prata. Uma vez atingida a estrada, Csar principiou a correr desfilada pela noite adentro na direco de Roma.

No dia seguinte, depois de um banho e de uma troca de roupa, Csar foi conduzido a o escritrio do pai. Alexandre levantou-se para o saudar com lgrimas nos olhos. E quando o Papa o abraou, f-lo com tamanha fora que Csar se sentiu surpreso. Na voz de Alexandre ressumava genuna afeio. cesar, meu filho, no podes imaginar a minha tortura nestes ltimos dias. livraste-me da mais terrvel escolha da minha vida. Assim que eu reunisse os plano s da Santa Liga, sabia que Carlos havia de consider-lo uma violao do nosso acordo e por conseguinte temia pela tua segurana. Por uma das poucas vezes na vida, fui atormentado pela indeciso. Deveria abandonar os meus planos relativamente Liga e sacrificar os nossos territrios e o papado? Ou deveria avanar, com o risco da vi da do meu querido filho? Csar raramente vira o pai to angustiado, e sentiu-se divertido. - E que decidiste tu? - perguntou, em tom jocoso. - Agora j no tem grande importncia, meu filho - respondeu Alexandre, sorrindo meiga mente. - Porque ests so e salvo e assim resolveste o meu dilema. A reaco do rei Carlos fuga de Csar foi mais moderada do que o Papa esperara. E, mal soube o resultado da campanha napolitana do rei, compreendeu porqu. As tropas francesas tinham conseguido ocupar Npoles; o rei Masino, sem dar luta, tinha abdicado e fugido. O rei Carlos ganhara. Tinha vencido o primeiro obstculo sua conquista de Jerusalm e ao derrube do Infiel. E estava pouco interessado em a rrefecer a sua disposio preocupando-se com a fuga de Csar. Tudo o que agora queria era gozar a beleza de Npoles, a comida, as mulheres e o vinho. Porm, com Csar em liberdade, Alexandre passou rapidamente aco a fim de pr em marcha o s seus planos para a Santa Liga. Agora que o rei Fer-rante tinha morrido, e j no havia qualquer ameaa de Npoles invadir Milo, II Moro estava disposto a alinhar novamente com Roma. Comearam a reunir-se no norte tropas de Milo e Veneza; projectavam juntar-se aos espanhis, cujos navios aterrariam abaixo de Npoles e ava nariam pela pennsula italiana acima. Sentado no trono, Alexandre chamou Csar e Duarte Brando aos seus aposentos a fim d e passar em revista a sua estratgia militar e os planos para a Santa Liga. - No te preocupa, Pai - perguntou Csar -, que o rei Carlos considere uma ofensa te rrvel o facto de teres faltado tua palavra relativamente a NpolesAlexandre pareceu intrigado por um momento, aps o que franziu o cenho. - Faltado minha palavra? - ripostou. - De que ests tu a falar, Csar? Eu prometi no interferir na sua conquista de Npoles. Nem uma nica vez disse que lhe permitiria conserv-la. Duarte sorriu. - Duvido de que o jovem rei seja capaz de apreender essa subtileza. Csar prossegu iu. - Por conseguinte o teu plano que as foras da Santa Liga devem bloquear o caminho da fuga, de forma que o exrcito francs seja esmagado entre os espanhis a sul e as tropas de Veneza e Milo a norte? Isso ser apanhado entre o martelo e a b igorna, pai. Duarte perguntou: - E se o exrcito francs conseguir avanar at Roma passando as tropas espanholas e nap olitanas? Alexandre ficou pensativo. - Se eles escapassem s nossas tropas do sul e conseguissem atingir a nossa cidade , mesmo que fosse s por alguns dias, podiam causar danos considerveis. Certamente saqueariam a cidade... - E, Santo Padre, desta vez tenho srias dvidas de que o rei Carlos os detivesse... - observou Duarte, i. Csar pensou um pouco, aps o que fez uma sugesto. - Carlos tem de perceber que, se quer reclamar Npoles, tem de vos convencer a rom per a aliana com a Santa Liga. Tem tambm de ser coroado por ti e receber as tuas bnos, porque o suserano s tu. Alexandre ficou impressionado com a anlise do filho, mas sentia que havia qualque r coisa que Csar no estava a dizer. o - E, meu filho, a tua estratgia seria...? Csar sorriu maliciosamente. - Se o rei francs encontrar Vossa Santidade aqui ao retirar, pode aproveitar a op

ortunidade para a forar a fazer concesses. Mas se estiverdes noutro lugar... Quando a guarda avanada francesa entrou na cidade, trouxe a Carlos a informao de qu e o Papa tinha ido para norte, com destino a Orvieto. O rei Carlos, determinado a convencer o Papa a fazer o seu lano, ordenou ao seu exrcito que atravessasse Rom a e prosseguisse at Orvieto. Porm, quando os batedores de Alexandre avistaram a guarda avanada francesa a aproximar-se de Orvieto, Alexandre estava preparado. No tardou que ele e a sua comitiva se pusessem a caminho, dirigindo-se a toda a velocidade para Perugia, onde ele se encontraria com Lucrcia. De Orvieto, Alexandre tinha j mandado Don Michelotto acompanhar a filha no regres so atravs das montanhas, pois havia vrios meses que no a via e precisava de se certificar do seu bem-estar e falar com ela acerca do marido. O Papa achava q ue seria agradvel ter a companhia de Lucrcia: ajudaria a passar o tempo enquanto aguardava o desfecho da invaso francesa. O rei Carlos entrou em Orvieto ansioso por convencer Alexandre a firmar outro tr atado. Todavia, frustrado pela notcia de que o Papa tinha seguido para Perugia, Carlos mandou iradamente o seu exrcito abandonar Orvieto e dirigir-se para Perugi a. Subitamente, reconheceu adiante, na estrada, um dos seus guardas avanados. O sold ado, esbaforido, gaguejava ao dar a notcia de que as tropas da Santa Liga, em grosso nmero, estavam a concentrar-se no norte. Carlos teve de modificar os plano s. Depois recebeu outra m nova. O seu novo aliado, Vir-gnio Orsini, tinha sido capturado pelas tropas espanholas. Estavam agora a avanar para sul, mesmo atrs de Carlos. Carlos no podia desperdiar mais tempo na perseguio daquele Papa fugaz. A armadilha q ue receara estava prestes a saltar e o seu exrcito era a presa. Sem um momento a perder, obrigou impiedosamente as suas tropas a prosseguir em direco aos Alpes, numa srie de marchas foradas. Chegaram mesmo a tempo. Mesmo assim, as suas tropas tiveram de combater contra os infantes da Santa Liga com chuos a fim de at ravessarem a fronteira at segurana. O rei Carlos, muito abalado e derrotado, regressava a Frana. Agora que Roma estava temporariamente tranquila, o Papa deslocou-se at ao Lago de Prata para uma necessria pausa. E mandou imediatamente chamar os filhos para se lhe juntarem numa comemorao familiar. Lucrcia veio de Pesaro; Joo veio de Espanha sem a sua Maria; Godofredo e Saneia de ixaram Npoles para se associarem s festividades. A famlia Brgia estava novamente reunida. Jlia Farnese e Adriana chegariam at ao fim da semana, pois Alexandre fazi a teno de passar os primeiros dias com os filhos e no queria distraces. Rodrigo Brgia tinha erigido no Lago de Prata uma majestosa casa de pedra, uma cab ana de caa com estbulos para os seus valiosos cavalos e vrias pequenas choupanas para alojar as mulheres e crianas que frequentemente o acompanhavam quando fugia do sufocante calor estival da cidade. O Papa Alexandre adorava rodear-se de mulh eres bonitas requintadamente vestidas e ouvir o som daquelas delicadas criaturas a ri r alegremente. Assim, com os maridos ausentes em locais distantes, muitas destas jovens beldades da corte acompanhavam-no, algumas com os respectivos filhos. Os rostos radiosos das crianas, to jovens e sem mcula, enchiam-no de uma sensao de esperana. A sua roda de nobres e respectivas esposas, aios e aias, criados e cozinheiros d o palcio para confeccionarem as sumptuosas refeies a servir, juntamente com os membros da sua corte, perfazia mais de cem pessoas. Havia msicos e actores, malab aristas e bobos, todos eles para prestarem o seu contributo nas comdias e represe ntaes que o Papa tanto apreciava. 124 O Papa Alexandre passou muitos dias sentado beira do lago com os filhos. Durante aquele perodo sereno, presenteava-os muitas vezes com narraes dos grandes milagres

que tinham ocorrido quando os pecadores de Roma vinham banhar-se nas guas do lago a fim de se lavarem dos seus desejos pecaminosos. Anos atrs, da primeira vez que contara aquelas histrias, Csar perguntara: - Tambm te banhaste nas guas, pai? O cardeal sorrira. - Nunca - disse. - Pois que pecados cometi eu? Csar rira-se. - Ento, tal como o meu pai, no fao tenes de me banhar. Lucrcia olhara para ambos e dis sera maliciosamente: - Imagino que nenhum de vocs precisa de um milagre, no? Rodrigo Brgia lanara a cabea para trs e rira com genuna alegria. - Bem pelo contrrio, minha filha - disse. E a seguir, com a mo na boca, sussurrara : - Mas de momento tenho maior necessidade dos meus desejos terrenos, e vivo no terror de eles me serem levados cedo de mais. H-de vir o tempo. Mas no enquanto a fome da plenitude da vida que sinto na barriga for maior do que a fome de salvao da minha alma... Nessa altura benzera-os, como se receasse um sacrilgio. Agora, todos os dias principiavam com uma caada de manh cedo. Embora pelo direito cannico estivesse vedado ao Papa caar, ele invocava as recomendaes dos seus mdicos segundo as quais devia fazer exerccio. No ntimo, pensava mudamente, fazia ou tras coisas que eram proibidas, muitas das quais lhe agradavam menos que caar. Quando chamado ateno pelo criado de quarto por calar umas botas que impossibilitava m os seus sbditos de mostrar o seu respeito beijando-lhe os ps, ele gracejava dizendo que pelo menos isso impedia os ces de caa de lhe levarem os dedos dos ps. volta da cabana de caa, tinham sido fechados quarenta hectares com vedaes compostas por estacas de madeira e grosso pano de vela, formando um enclave onde a caa naturalmente se congregava. Antes de cada caada, empilhavam-se quilos e quilos de carne crua junto do largo porto do cercado para serem utilizados a fim de atrair os animais ao seu destino. Quando o dia principiava a despontar, reuniam-se os caadores. Depois de beberem u m forte vinho de Frascati para engrossarem o sangue e fortalecerem-se, Alexandre abatia o estandarte papal. Ao som do clangor das trombetas e do rufar dos tambor es, abriam-se os portes do cercado da caa. Uma dzia de ajudantes corria l para dentro a fim de espalhar um trilho de carne crua e os animais precipitavam-se pe los portes fora para aquilo que julgavam ser a liberdade. Veados, lobos, javalis, lebres, porcos-espnhos, todos eles eram encontrados pelos caadores. Brandindo lanas e espadas - at achas de armas para os mais sanguinrios -, os caadores perseguiam a sua presa. Lucrcia e Saneia, com as respectivas aias, estavam em segurana em cima de um estra do de forma a poderem assistir sem perigo mortandade. A presena de mulheres nas caadas tinha o objectivo de inspirar e encorajar os caadores, mas Lucrcia, repu gnada, tapava os olhos e virava a cabea. Havia qualquer coisa dentro de si que se retraa perante a similitude entre o destino daqueles pobres animais encurr alados e o seu. Saneia, em contrapartida, no via qualquer significado mais profun do naquela exibio; exultava com o espectculo, consoante dela se esperava, e ia ao pont o de dar o seu leno de seda ao cunhado, Joo, para este o embeber do sangue de um javali abatido. Porque, embora no fosse to hbil como Csar no manejo das armas, Joo tinha propenso para a crueldade e uma necessidade de impressionar que o tornavam o caador mais dedicado da famlia. Exibia a sua coragem no arredando p quando um grande javali atacava, para a seguir o abater com uma lana e desferir-lhe golpes com a acha de armas. Csar cavalgava pelo terreno de caa com dois dos seus galgos favoritos, Urze e Cnham o. Embora fingisse caar, do que na realidade gostava era de correr com os galgos, e naquele dia estava ocupado com os seus pensamentos. Invejava Joo. O irmo podia viver uma vida plena, uma vida normal, e aspirar a uma carreira militar, enquanto Csar estava comprometido com a igreja, uma carreira que no tinha escolhid o e da qual no gostava. medida que a atrablis lhe subia na garganta, sentiu um dio crescente pelo irmo. Mas, to depressa como lhe ocorrera, censurou-se pelo qu e sentia. Um homem bom, especialmente um homem do clero, nunca podia odiar

o irmo. No s era ar>tinatural, no s entristeceria o pai, como era perigoso. Joo, como capito 126 - general do exrcito do Papa, tinha mais poder do que qualquer cardeal da Igreja Catlica. E restava outra verdade: mesmo aps todos aqueles anos e de todos os seus esforos por agradar e notabilizar-se, continuava a ser Joo, e no ele, o favori to do pai. Embrenhado em pensamentos, Csar foi rapidamente devolvido ateno integral pelo ganid o estridente de um dos seus galgos. Ao cavalgar em direco ao lastimoso som, viu o magnfico animal pregado ao cho por uma lana. Quando desmontou para ajuda r o galgo ferido, viu o rosto bem parecido do seu irmo Joo desfigurado por uma carranca feroz. E percebeu repentinamente o que tinha acontecido. Joo tinha f alhado o veado em fuga e atingira o galgo. Por um momento Csar pensou que podia ter sido intencional, mas depois o irmo fez a montada aproximar-se dele e disse, a desculpar-se: - Eu compro-te outra parelha para o substituir, irmo. Segurando ainda na mo a lana retirada, Csar baixou os olhos para o galgo morto e po r um instante sentiu uma raiva assassina. A seguir viu o pai avanar at ao local onde um javali estava preso num emaranhado d e cordas, aguardando o golpe fatal da sua lana. O Papa passou por eles, gritando: - O trabalho do caador j foi feito neste animal; tenho de encontrar outro... Espor eou com fora o flanco do cavalo e logo arrancou para seguir outro grande javali. Outros caadores, preocupados com a imprudncia e a velocidade do Papa, vieram ao se u encontro para o protegerem; mas nessa altura o Papa, que era ainda um homem possante, j tinha enfiado a sua lana bem fundo no flanco do javali, infligindo um ferimento mortal. O Papa enterrou a lana duas vezes mais, trespassando o corao do animal moribundo. Cessaram os derradeiros estremecimentos frenticos do javali e os restantes caadores caram sobre a carcaa e retalharam-na em pedaos. Ao observar a corajosa exibio do pai e admirar-se com o vigor do homem, Csar sentiu orgulho nele. Se o prprio Csar no fazia o que queria na vida, fazia pelo menos o que o pai queria, e sabia que isso era motivo de alegria para Alexandre. Ao olhar para o animal tombado, pensou que era uma sorte ser o homem que o pai queria que fosse. Ao crepsculo, Csar e Lucrcia caminhavam de mos dadas beira das reluzentes guas do lag o. Faziam um belo par, aqueles dois irmos: a elegncia alta e morena do bem parecido rapaz contrastava flagrantemente com a cabeleira loira e os olho s cor de avel da irm, que frequentemente se iluminavam de inteligncia e divertiment o. Naquela noite, porm, ela estava perturbada. Lucrcia disse: - Foi um erro, Csar, o pap obrigar-me a casar com o Giovanni. Ele no um bom homem. Quase no me fala e, quando o faz, rude e malcriado. No sei do que estava espera. Sabia que o nosso casamento era um casamento de convenincia poltica, mas no fazia ideia de que seria to infeliz. Csar procurou ser meigo. - Bem sabes, Crezia, que o Ludovico continua a ser o homem mais poderoso de Milo. O Giovanni ajudou a cimentar a nossa relao com a famlia num momento crucial. Lucrcia acenou afirmativamente. - Eu compreendo. Mesmo assim, julguei que sentiria outra coisa. Mas, mal ajoelhe i naqueles ridculos escabelos de ouro, naquele casamento obscena-mente sumptuoso, e olhei para o homem que viria ser meu marido, percebi que havia qualquer coisa que no estava nada bem. No sabia se havia de rir ou chorar quando vi todos aqueles cardeais de paramentos de cor prpura e os aios de vestes turcas de brocado de pra ta. Era para ser uma solenidade, mas eu sentia-me absolutamente infeliz. - No houve nada que te agradasse? - perguntou ele, a sorrir. - Houve - respondeu ela. - Tu, vestido de preto. E as gndolas venezianas feitas c

om as vinte mil rosas. i Csar deteve-se e virou-se para a irm. - Eu no conseguia suport-lo, Crezia - disse. - No podia suportar a ideia da tua pes soa nos braos de outro homem, fosse qual fosse a razo. Se pudesse manter-me ausente e no fazer parte daquele fiasco, f-lo-ia. Mas o pap insistiu que eu l estive sse. Nesse dia o meu corao estava to negro como o meu traje... Lucrcia beijou suavemente o irmo nos lbios. 128 129 - O Giovanni um fanfarro arrogante - disse. - E um amante horroroso. Escapei por pouco s suas garras chorando que nem uma Madalena. Nem sequer tolero o seu cheiro. Csar tentou esconder o sorriso. - Ter relaes com ele no a alegria que comigo? - perguntou. Lucrcia soltou uma risadi nha contra vontade. - - Meu querido amor, para mim a diferena entre o cu e o inferno. Quando recomearam a andar, atravessaram uma pequena ponte e entraram na floresta. - O teu marido faz-me lembrar o nosso irmo Joo - disse Csar. Lucrcia abanou a cabea. - O Joo jovem. Talvez com o crescer lhe passe. Para ele, ter-te como irmo no a bno para mim. Csar manteve-se calado durante algum tempo, mas, quando falou, foi num tom muito srio. - Na verdade, acho que o nosso irmo Godofredo mais uma maldio para a famlia do que o Joo. Aceitei a sua estupidez, mas a casa que ele e a Saneia montaram um escndalo. Mais de cem criados s para os dois? Pratos de ouro e taas cravejadas d e jias para duzentos convidados sempre que lhes apetece? uma loucura e reflecte-se negativamente na nossa famlia. Pior ainda, perigoso para o filho de u m Papa viver de uma maneira to extravagante. Lucrcia concordou. Bem sei, Chez. O pap tambm est aborrecido com isso, embora raramente o reconhea. Mas ele gosta menos do Godofredo do que do resto de ns e, conhecendo a sua fraqueza e falta de entendimento, mais indulgente. Csar deteve-se uma vez mais para contemplar Lucrcia luz do luar. A sua plida tez de porcelana parecia mais luminosa do que o costume. Csar ergueu-lhe delicadamente o rosto para poder fit-la nos olhos. Viu, porm, tamanha tristeza, que foi obrigado a desviar a vista. - Crezia - disse ento -, queres que eu fale com o pap sobre a possibilidade de te divorciares do Giovanni? O pai adora-te. Pode ser que esteja pelos ajustes. O Giovanni consentiria? Lucrcia sorriu para o irmo. - No tenho duvidas de que o meu marido poderia facilmente viver sem mim. do que e le sentiria a falta seria do meu dote. Foi sempre o ouro na sua mo, e no o ouro do meu cabelo, que lhe conquistou a afeio. Csar sorriu da sua sinceridade. - Vou aguardar o momento oportuno e nessa altura colocarei o ao pap. Enquanto o anoitecer descia lentamente sobre o Lago de Prata, Joo disps-se a mostr ar mulher de Godofredo, Saneia, a velha cabana de caa do pai. Agora que o novo barraco, mais elegante, tinha sido concludo, aquela raramente era usada. Saneia tinha a mesma idade que Joo, embora parecesse muito menos madura. Com os s eus olhos verde-escuros, as compridas pestanas negras e a luzidia cabeleira negr a de azeviche, era bonita, ao jeito clssico aragons. Toda a sua atitude era frvola e irrequieta, o que dava a toda a gente uma impresso de um gnio folgazo. Na realidade era uma pretenso superficial, um estafado expediente para fascinar os i nocentes. Joo deu a mo a Saneia ao conduzi-la pelo carreiro invadido pela vegetao at uma clarei ra da floresta. Ali chegada, ela viu a casa, de pinho mal desbastado e com uma chamin de pedra.

- No o lugar adequado para uma princesa - observou Joo, sorrindo-lhe. Isto porque, no fim de contas, ela era filha do rei Masino de Npoles e por conseguinte uma verdadeira princesa. - Eu acho-o encantador - respondeu Saneia, prendendo ainda a mo de Joo. Uma vez no interior, Joo acendeu uma fogueira, enquanto Saneia deambulava em torn o da sala, examinando os muitos trofeus de cabeas de animais fixados na parede. Parou e passou a mo pelo guarda-loua de madeira de rvore de fruto, pelo espaldar da cama de penas e pelas outras peas de bom mobilirio cuja patina dourada reflectia anos de cuidadosa utilizao e enceramento. - Por que que o teu pai mantm esta casa mobilada, se j no usada? "" perguntou. Joo, que estava ajoelhado diante da lareira, ergueu a vista e sorriu. - O pai ainda a usa de vez em quando, quando tem alguma visita com a qual quer e star a ss... como ns agora. Joo ps-se de p e atravessou a sala, aproximando-se dela. Atraiu-a rapidamente a si, rodeando-a com os braos. A seguir beijou-a. Por momentos ela manteve-se silencio sa, mas depois esquivou-se-lhe, murmurando: - No, no, no posso. O Godofredo h-de... O desejo de Joo forou-o a puxar Saneia ainda mais contra si, ao mesmo tempo que di zia num sussurro rouco: - O Godofredo no h-de fazer nada. No capaz de nada! Joo podia antipatizar com o seu irmo Csar, mas respeitava a sua inteligncia e dotes fsicos. Pelo frvolo Godofredo, em contrapartida, sentia apenas desdm. Joo voltou ento a atrair a si a mulher do irmo. Enfiando a mo por baixo da sua larga saia branca, acariciou-lhe o interior da coxa, avanando lentamente os dedos por ela acima at senti-la reagir. A seguir empurrou-a na direco da cama prxima. Da a segundos estavam deitados. Iluminado apenas pelo fulgor bruxu-leante da fogu eira, o comprido cabelo negro de Saneia espalhado na almofada dava-lhe um ar req uintado, ao mesmo tempo que a saia muito levantada inflamava o desejo de Joo. Rapidamente, ps-se em cima dela. Quando a penetrava, para depois lentamente se retirar, ouviu -a gemer. No resistia, porm; ao invs, beijava-lhe uma e outra vez com fora os lbios aber tos, bebendo da boca dele como se tivesse uma sede insacivel. Joo comeou a acomet-la com mais fora, numa sucesso de longas e poderosas arremetidas, penetran do cada vez mais fundo nela, arredando da mente de Saneia todos os pensamentos de "no" e de Godofredo e precipitando-a num vrtice de descuidado esquecimento. Nessa noite o Papa e a famlia jantaram tarde ao ar livre nas margens do Lago de P rata. Havia lanternas coloridas suspensas das rvores e ao longo das margens treme luziam archotes a arder sobre altos postes de madeira. A caa que tinham abatido proporci onou um grande festim, suficiente para alimentar os mais de cem membros do squito do Papa, deixando bastantes restos para os pobres das cidades vizinhas. E, depoi s de os malabaristas e msicos terem actuado para eles durante o banquete, Joo e Saneia levantaram-se e cantaram um dueto. Csar, sentado ao lado de Lucrcia, perguntou a si mesmo onde teriam eles arranjado tempo para ensaiarem juntos, pois cantavam muito bem. O marido de Saneia, porm, pareceu satisfeito e aplaudiu. Csar interrogou-se: seria mesmo Godofredo to obtuso como parecia? O Papa Alexandre gostava tanto de uma boa conversa como de caadas, comida e mulhe res bonitas. Aps o banquete nocturno, quando comeou a comdia dos actores e a dana, Alexandre dissertou para os seus filhos. Um dos actores, num acesso de ousa dia comum a essa excntrica gente, tinha representado um dilogo em que um desgraado nobre sofredor perguntava como pode um Deus misericordioso infligir desgraas natu rais aos homens fiis. Como podia Ele permitir cheias, incndios, pragas? Como podia Ele deixar crianas inocentes sofrerem crueldades terrveis? Como podia Ele pe rmitir que o homem, criado Sua imagem, fizesse abater semelhante devastao sobre o seu semelhante? Alexandre aceitou o desafio. Dado que estava entre amigos, optou por no recorrer s

palavras da Escritura para expor a sua argumentao. Respondeu, ao invs, como um filsofo grego ou um mercador florentino responderiam. - E se Deus prometesse um Paraso obtido to facilmente, e sem dor, aqui na terra? contraps. - O Paraso no pareceria um prmio assim to grande. Que razo poria prova a sinceridade e a f do homem? Sem purgatrio, no ha Paraso. Nessa altura, que m al inexaurvel engendraria o homem? Os homens conceberiam tantas maneiras de se extinguirem uns aos outros, que nem sequer existiria uma terra. Aquilo que obtido sem sofrimento nada vale.ohomem seria um trapaceiro, jogando o jogo da vida com dados viciados e cartas marcadas. No seria melhor que os animais que cri amos. Sem todos estes obstculos a que chamamos infortnio, que prazer seria o Paraso? No, estes inrortunios so a prova de Deus, do seu amor pela humanidade. Pelo que resta ao que os homens fazem uns aos outros, no podemos culpar disso o 132 133 nosso Deus. Temos que culpar-nos a ns prprios e cumprir a nossa pena no purgatrio. - Pai - perguntou-lhe Lucrcia, pois era a sua filha mais preocupada com as questes de f e bondade -, mas ento o que o mal? - O mal o poder, minha filha - respondeu ele. - E o nosso dever eliminar o desej o de poder dos coraes e das mentes dos homens. Isso, pode a Santa Igreja fazer. Mas nunca podemos eliminar o poder da sociedade, na sociedade. Por conseguinte n unca podemos eliminar o mal da sociedade civilizada. Ser sempre injusto, ser sempr e cruel para o homem comum.possvel que daqui a quinhentos anos os homens no se intruj em e matem uns aos outros, quem dera esse dia feliz! Depois olhou directamente para os seus filhos Joo e Csar e continuou. - Mas da prpria natureza da sociedade que, para manter um povo unido para o seu D eus e o seu pas, um rei deva enforcar e queimar os seus sbditos a fim de lhes vergar a vontade. Porque a humanidade to rebelde como a natureza, e h demnios que no temem a gua benta. Alexandre ergueu ento o copo para brindar: - Santa Madre Igreja a nossa famlia. Para que prospera" ao espalhar o nome de Deu s no mundo inteiro. Nessa altura todos ergueram os copos e gritaram: > - Ao Papa Alexandre! Que Deus o abenoe com sade, felicidade e a sabedoria de Salomo e dos grandes filsofos. No tardou que toda a companhia se retirasse para os respectivos aposentos, instal ando-se nas casas beira do lago, ostentando todas elas o estandarte do touro vermelho a investir dos Brgia. Acenderam-se fogos para dar luz, e muitos archotes a arder, amarrados a arcos de madeira, brilharam nas margens do Lago de Prata. Nos seus aposentos, Godofredo caminhava de um lado para o outro, mal-humorado. S aneia no regressara nessa noite para junto dele. Quando a abordara antes, durante as festividades, no sentido de ela regressar com ele cabana" ela recusara com um riso abafado e fizera um gesto de rejeio. Ao perscrutar os ros tos da multido volta deles, ele sentira o rubor pungente do embarao colorir-lhe as faces e fazer-lhe arder os olhos. Aquele dia no Lago de Prata tinha sido para ele uma humilhao, embora todos os dema is parecessem estar a beber, a rir e a divertir-se tanto que duvidou de que tive ssem reparado. Tinha batido palmas, claro est, e sorrido -como lhe era exigido pelo pr otocolo real -, mas a viso da sua mulher e do seu arrogante irmo, Joo, a cantarem um dueto fizera-o ranger os dentes e estragara todo o gozo que pudesse sentir co m o mavioso som da sua cano. Godofredo tinha regressado sozinho sua cabana. Aps tentar adormecer e verificar q ue no conseguia, saiu para o exterior a fim de acalmar a sua inquietude. O zumbid o

das criaturas da noite adormecidas nos bosques f-lo sentir-se menos s. Sentou-se n o cho, sentindo a sua frescura, que o acalmou. E pensou no pai, o Papa, e nos irmos... Sempre soubera que no era to esperto como o seu irmo Csar e que no chegava aos calcan hares de Joo em fora fsica. Porm, nos recnditos da sua mente, tinha uma noo que eles no tinham: que os pecados que cometia - de gula e excessos - no era m to negros como a crueldade de Joo ou a ambio de Csar. Quanto ao esprito acutilante, que importncia podia ele ter na determinao do rumo da sua vida? A irm, Lucrcia, era muito superior a ele em capacidades mentais, e no entanto no tivera maior escolha na vida do que ele. Reflectindo sobre a cond io da sua famlia, Godofredo concluiu que a inteligncia era muito menos importante do que o conselho de um corao puro e de uma alma bondosa. Joo fora sempre o mais cruel dos seus irmos, chamando-lhe nomes desde que era pequ eno e consentindo apenas em jogar jogos que sabia poder facilmente vencer. Csar era por vezes impelido pelas suas obrigaes como prncipe da Santa Igreja Catlica Roma na a reprimir Godofredo pelos seus excessos; razia-o, contudo, com uma benevolnci a firme, em lugar da crueldade e do apetite de humilhar que Joo to frequentemente de monstrava. A irm, Lucrcia, era a sua preferida, pois tratava-o com uma doce e meiga afeio e fazia-o sempre sentir que ficava satisfeita ao v-lo. O pai, o Papa, mal parecia reparar nele. 134 Nessa altura, sentindo-se novamente desassossegado, Godofredo resolveu ir procur a de Saneia. Persuadi-la-ia a regressar com ele cabana que lhes estava destinada . Ps-se de p e comeou a caminhar pelo estreito carreiro entre as rvores, o que serviu momentaneamente para o acalmar. Mesmo sada do local de acampamento, porm, sob o escuro cu da noite, viu duas sombras escuras. Sentiu-se tentado a cham-las, a saud-las, mas houve qualquer coisa que o fez parar. Ouviu-a rir antes de v-la distintamente. Depois o luar claro fez sobressair o seu irmo Joo e a sua mulher Saneia, que caminhavam de brao dado. Silenciosamente, fez meia volta e seguiu-os de regresso cabana. Ali, viu Joo e Saneia deterem-se p ara se abraarem. Godofredo sentiu o lbio crispar-se de desdm. Manteve-se quieto e hirto enquanto via o irmo inclinar-se para beijar apaixonadamente Saneia ao des pedir-se. Naquele momento, Godofredo achou Joo desprezvel. Mais do que isso, porm, viu em Joo qualquer coisa de profano. Assim, com absoluta determinao, condenou-o no seu ntimo e jurou denunci-lo como irmo. De sbito via com uma clareza cristalina: j no havia qualquer dvida. Tal como a semente de Cristo fora lanada no ventre da Virgem Me pelo Esprito Santo, tambm o germe do mal podia ser plantado - sem que ningum soubesse ou o reconhecesse - at ocasio da descoberta, quando o fruto do ventre exposto. Nessa altura o irmo comeou a afastar-se e, num raro momento de boa disposio, Joo tiro u a adaga da bainha e f-la rodopiar num movimento rpido. A seguir riu-se, ao mesmo tempo que se vangloriava ruidosamente a Saneia: - No tarda serei capito-general do exrcito do Papa, e nessa altura vers o que farei! Godofredo abanou a cabea e tentou conter a sua fria. Passado algum tempo conseguiu serenar. Depois, com uma frieza antinatural, tentou raciocinar: combates insens atos por lucros polticos no lhe interessavam: no eram agradveis e, de facto, aborreciam-n o. Empregar uma arma para tirar a vida a outrem, arriscando a condenao eterna por qualquer objectivo militar, no fazia sentido. Para arriscar isso, pens ou, o prmio tinha de ser muito mais precioso e pessoal. 136 Csar estava tambm inquieto. A sua conversa com Lucrcia pesava-lhe no corao e descobri u que no conseguia adormecer. Ao inquirir, verificou que o Papa se tinha

j retirado para os seus aposentos. Apesar disso, sentia que tinha de falar com o pai. No seu apartamento, o Papa estava sentado secretria, a ler e assinar documentos o ficiais que lhe eram apresentados por um par de secretrios, os quais foram sumari amente dispensados entrada de Csar nos aposentos do pai. Espantado com a energia deste, Csar avanou em direco a ele para receber um abrao. Uma fogueira de cinco achas ardia na enorme lareira. O Papa envergava j a indumentria de dormir: uma comprida camisa de noite de l cober ta por um roupo de seda profusamente bordado debruado de peles, que ele alegava que lhe conservava o calor do corpo e o protegia dos ventos malricos de Roma. Tin ha na cabea uma pequena mitra cor de rubi, muito simples. Alexandre dizia muitas vezes que embora um Papa, por razes de Estado, devesse sempre mostrar as riquezas da igreja em pblico, podia ao menos dormir com a simplicidade de um campons. - E que confiou a minha filha ao seu irmo preferido. perguntou o Papa. - Queixa-s e do marido? Csar captou a ironia de entendido na voz do pai; no obstante, ficou surpreendido p elo facto de o pai estar ao corrente dos sentimentos de Lucrcia. - E infeliz com ele - respondeu. Alexandre pareceu pensativo por um momento. - Tenho de reconhecer que eu prprio j no estou satisfeito com o casamento da minha filha. No tem a serventia poltica que eu esperava. Aparentava satisfao pela oportunidade de falar do assunto. Afinal, de que nos serve esse moo Sforza? Nunca gostei verdadeiramente dele e como soldado foi inutil. E agora Moro j no to valioso para ns, porque as suas fidelidades so frgeis e nem sempre se pode confia r nele. um homem a considerar, sem dvida, porque precisamos dele na Santa Liga. Mas pode ser imprevisvel. sendo assim, temos de ter tambm em ateno os se ntimentos da tua irm. No concordas? 137 Csar pensou em como Lucrcia ficaria feliz e isso agradou-lhe. Ach-lo-ia um heri. - Como agiremos? Alexandre prosseguiu. - O rei Fernando pediu-me para estabelecer amizade com a casa real de Npoles. Est claro que, embora o casamento de Godofredo com a Saneia j o tenha colocado no campo napolitano, isso no tem necessariamente utilidade para ns. Alis, pode ter-nos causado prejuzo. A menos que... - O Papa sorriu antes de continuar. - Pode ser que consigamos reparar essa brecha com alguma nova aliana. Csar franziu o sobrolho. - Como, pai? No compreendo l muito bem. Os olhos de Alexandre cintilaram; parecia divertido com a sua mais recente inspi rao. - O irmo da Saneia, Afonso. Esse que sim, pode ser um bom partido para a Lucrcia. sempre delicado ofender os Sforza, mas capaz de valer a pena pensar nisso. Diz tua irm que vou pensar em alterar a sua situao. Alexandre afastou a cadeira da secretria e ps-se de p, atravessando a sala a fim de atiar o lume com um dos ganchos de ferro fundido que estavam poisados no cho de pedra sua frente. Quando voltou para junto do filho, disse: - Hs-de compreender, Csar, que temos de controlar os Estados Papais. Os vigrios pap ais so como chefes militares vidos, sempre a digladiarem-se uns com os outros, a combater a infalibilidade do Papa, a sugar e a oprimir o povo. Temos de fazer qualquer coisa para os meter na ordem. - E tens algum plano? - inquiriu Csar. - Os reis de Frana e Espanha esto a unir os respectivos territrios sob uma autorida de central. Temos de fazer o mesmo. imperativo para o povo e para o papado. Mas temos tambm de faz-lo pela nossa famlia. Porque, se no criarmos um governo unifi cado, controlado pelos Brgia, que obrigue os habitantes a reconhecer a autoridade de Roma e do Papa, tu e o resto da famlia estareis em grave perigo.

Remeteu-se ao silncio. - Temos de ter fortalezas bem guarnecidas - disse Csar com determinao. - Tanto para sufocar os levantamentos locais como para determos os invasores estrangeiros que esperam fazer seus os territrios centrais. Alexandre nada disse; parecia mergulhado em pensamentos. Csar inclinou a cabea. - Estou ao teu servio, pai. Sou um cardeal da igreja. Ao tornar a sentar-se na sua cadeira de pele favorita, o Papa Alexandre falou co m uma intensidade grave. - Escusado ser dizer-te quo perigoso ser para todos vs se eu morrer e for eleito um Papa hostil, como o delia Rovere. Nem imagino o que acontecer tua irm. O inferno de Dante no se comparar com o inferno que ela enfrentar... - Por que que me ests a dizer tudo isso, pai? - tornou Csar. - No precisamos de tem er por enquanto, porque ainda no comeaste a fazer as boas obras que tens de fazer pela Santa Igreja, e por conseguinte estou certo de que vivers muitos ma is anos. Alexandre baixou a voz. - Qualquer que seja o perigo, s h dois homens nesta corte nos quais podes confiar inteiramente. Um Don Michelotto... - Isso no nenhuma surpresa, pai, porque a tua afeio por ele no escapou a ningum. E no me difcil confiar nele, pois desde criana que o fao. - Nessa altura fez uma pausa. - No entanto, a sua vida para mim um certo mistrio. Nunca te pedi isto, pai: como que um valenciano se embrenhou tanto nos trabalhos de Roma? E assim Alexandre contou ao filho a histria de Miguel Corello, hoje conhecido com o Don Michelotto. - Mas tambm conhecido como o estrangulador - disse Csar. Sim, meu filho, chamam-lhe o estrangulador, mas ele muito mais do que isso.um con sumado condutor de tropas, um guerreiro feroz e, acima de tudo, seria capaz de morrer para proteger a nossa famlia. A sua lealdade to imtensa como a sua fria. Por isso, no te iludas: no s um assassino. digno de toda a confiana. - E o outro? - perguntou Csar. - O segundo homem Duarte Brando. Sobre o seu passado pouco te posso dizer, pois f oi capturado trouxeram-mo como prisioneiro muitos anos atrs, quando precisei de um tradutor de ingls e o meu estava indisponvel. Mas tinha sido muito maltratad o pelas nossas tropas e no se recordava de nada do seu passado. - E mesmo assim conservaste-o? - inquiriu Csar. Alexandre manteve-se imvel, record ando. - Da primeira vez que o vi, estava imundo e desgrenhado, como qualquer prisionei ro que tivesse estado encerrado nas masmorras estaria, mas, depois de um banho e de ter recebido roupas decentes, foi-me novamente trazido. Nesse dia, houve qual quer coisa na sua atitude que me suscitou a recordao de um tal Edward Brampton, um judeu converso, que prestou grandes servios a Eduardo IV de Inglaterra. Tinhao visto s uma vez, havia muito tempo, mas reparara nele, pois fora o primeiro judeu a ser armado cavaleiro. Diz-se que serviu o irmo do rei, Ricardo III, que c omo sabes foi assassinado pelos homens de Henrique Tudor. Brampton combateu em grandes batalhas terrestres e martimas por Eduardo IV e salvou literalmente toda a esquadra inglesa a Ricardo III. Foi ento que Brampton desapareceu de Inglaterra e por volta dessa altura que Duarte Brando foi capturado em Roma. Os Tudor t-lo-ia m matado se o apanhassem, e ainda hoje corre perigo por parte dos agentes dos Tudor. - E isso explica a sua mudana de nome, pai? - perguntou Csar. - Mas o Brando judeu, no ? - Se o , um convertido Santa Igreja Catlica - respondeu Alexandre, - pois j o vi to mar a comunho. E durante estes ltimos sete anos serviu-me a mim e Santa Madre Igreja mais religiosamente do que qualquer outro homem que eu conhea. o hom em mais corajoso e inteligente com que alguma vez deparei, um belo soldado e, coisa estranha, um hbil marinheiro tambm. - No coloco objeces ao facto de ele ser judeu, pai - disse Csar, com uma expresso div ertida. - Apenas pergunto a mim mesmo o que pensar qualquer outra pessoa

quando descobrir que tu, o chefe da Santa Igreja Catlica Romana, s aconselhado por um homem que nem sequer cristo. Alexandre sorriu. - Ainda bem que no colocas objeces, meu filho - disse, sarcasticamente. Depois a su a voz assumiu um tom mais srio. - Conheces bem as minhas opinies sobre a situao judaica, Csar. Quando Fernando e Isabel de Espanha me pediram para prender, torturar e matar judeus que ousavam praticar a sua religio em segredo, recusei. Disse-lhes que achava que a Inquisio espanhola era uma abominao, tal como o tratamen to dos judeus no seu prprio pas. No fim de contas, foi esse povo que nos deu a lei; foram eles que nos deram Jesus. Devo chacin-los porque no acreditam que ele o Filho de Deus? No o farei! Nem sempre posso impedir os nossos cidados ou mesmo os nossos funcionrios de os atacarem ou maltratarem, mas no com certeza a minha poltica. Csar sabia que, quando os Papas eram eleitos, fazia parte da cerimnia o chefe da c omunidade judaica de Roma oferecer o livro das leis hebraicas ao novo Papa. Todo s os Papas tinham pegado no livro para o atirarem ao cho, num gesto de repulsa. S o seu pai no o fizera. Alexandre VI tinha-o igualmente rejeitado... mas devolvera-o , com respeito. Nessa altura Csar perguntou: - Qual a tua poltica, pai? - No lhes farei mal - respondeu o Papa. - Tribut-los-ei, porm, fortemente. 100 o Papa Alexandre fora trado no momento de maior necessidade por Vir-gnio Orsin i, um dos seus bares papais, um homem no qual confiava, e no suportara de nimo leve essa traio. O diabo tinha reclamado outra alma, pensou, e o diabo tinha de se r destrudo. O facto de o prprio Virgnio ter sido capturado, torturado e morto numa das mais famosas masmorras de Npoles no libertou Alexandre da sua necessidade de vingana. Para o Papa, aquilo tornou-se um combate entre o Vigrio de Cristo e o prprio Satans . Como lder dos Estados Papais, sabia que tinha de tomar uma atitude contra os bares locais, aqueles vidos chefes militares que andavam sempre a combater-se u ns aos outros e, o que era ainda mais desastroso, a combater os ditames da Santa Igreja Catlica. Porque, a no ser respeitada e obedecida a palavra do Santo Padre, a permitir-se que o mal florescesse e os homens de virtude nada fizessem, a prpri a autoridade da igreja seria enfraquecida. Ento quem salvaria as almas do bem para Deus? Alexandre percebia que o poder espiritual tinha de se apoiar no poderio temporal . Embora o exrcito francs tivesse retirado, e as poucas tropas que restavam tivess em sido derrotadas pelos exrcitos da Santa Liga, Alexandre sabia que tinha de imagin ar um castigo adequado para garantir que uma traio semelhante no se repetiria. depois de muito cogitar, chegou concluso de que tinha de fazer de Si um exemplo, a fim de desencorajar para sempre a rebelio dos outros bares debaix o da sua tutela. Para o fazer, tinha de utilizar a arma mais letal do seu arsena l espiritual: a excomunho. Desgraadamente, no tinha outra opo. Tinha de banir publicame nte toda a famlia Orsini da Santa Igreja Catlica Romana. A excomunho era a mais extrema das proclamaes e o mais poderoso instrumento do pode r do Papa, porque se tratava de um castigo aplicado no apenas a esta vida, mas extensivo outra. Uma vez expulsa da igreja, a pessoa deixava de poder recebe r a graa dos santos sacramentos. A sua alma no podia ser livrada do pecado pela confisso; as manchas negras ficavam forosamente sem perdo, negada a oportunidade da absolvio. O casamento deixava de poder ser santificado; uma criana no podia ser baptizada, abenoada e protegida do demnio pela asperso de gua benta. Oh, t riste dia! No se podiam ministrar os ltimos sacramentos para conferir a paz no final da vida, pois passava a ser vedado o enterro em terreno sagrado. Er

a a mais aterradora de todas as aces; no seu mago, era um juzo que precipitava a alma no purgatrio ou mesmo no inferno. Depois de expulsar os Orsini dos cus, Alexandre concentrou-se ento em destruir o s eu poder terreno. Chamou de Espanha o filho, Joo, para ser capi-to-general do exrcito do Papa - apesar da oposio de Maria Enrquez, que estava novamente grvida. O seu filho e herdeiro, Joo II, tinha apenas um ano de idade, argumentava ela, e precisava do pai. O Papa Alexandre insistiu, porm, que Joo tinha de abandonar imediatamente Espanha para comandar as tropas do Papa, pois a seguir traio de Virgnio j no confiava em nenhum dos condottieri pagos. O filho tinha de voltar de imediato para tomar todos os castelos dos Orsini. Entretanto, o Papa mandou tambm uma mensagem ao gen ro, Giovanni Sforza, em Pesaro, com ordens para trazer todos os soldados que tivesse , e prestou-se a pagar-lhe um ano inteiro de salrio se ele o fizesse sem delongas . Desde que seu irmo Joo fora mandado para Espanha, o cardeal Csar Brgia tinha alberga do a esperana de que o pai ponderasse uma mudana de papel para a sua pessoa. No fim de contas, Csar tinha sido aquele que estivera ao lado do pai, a trabalhar em assuntos de Estado. Compreendia a Itlia. Joo pertencia a Espanha. E, por mais que o pai insistisse na sua posio na Santa Madre Igreja, esperava constanteme nte que ele reconsiderasse. Nessa altura, sentado nos aposentos do Papa, Alexandre ps Csar a par dos seus plan os para Joo: caber-lhe-ia conquistar e conservar os castelos dos Orsini. Csar ficou furioso. - O Joo? O Joo? - exclamou, incrdulo. - Mas, pai, ele no percebe nada do comando de tropas. No percebe nada de estratgia. A nica coisa com que se preocupa com ele prprio. Os seus pontos fortes residem na seduo das mulheres, no esbanjament o da fortuna da nossa famlia e na sua prpria vaidade. Como irmo dele devo-lhe fidelidade, mas, pai, eu era capaz de comandar tropas de olhos vendados e terias a garantia de maior xito. O papa Alexandre semicerrou os olhos e fitou o filho. - Estou de acordo, Csar. Tu tens mais inteligncia e jeito para a estratgia. Mas s um cardeal, um prncipe da igreja, e no um guerreiro do campo de batalha. E quem me resta a mim? O teu irmo Godofredo? Infelizmente, ele poria o cavalo a a ndar s arrecuas. Nem sequer imagino uma arma na mo dele. Por conseguinte, qual era a minha opo? Tem de aparecer um Brgia para comandar esta fora, caso contrrio perd eremos as repercusses deste castigo pela traio do Orsini nos outros bares papais. Csar ficou mudo e pensativo por um momento antes de reagir. - Esperas verdadeiramente que o Joo nos assegure uma vitria? Depois do seu comport amento ridculo em Espanha, apesar das nossas advertncias no sentido de no jogar, de no ter relaes com prostitutas e de tributar o devido respeito mulher e fa mlia Enrquez, primos direitos do rei Fernando? Mesmo assim escolhe-lo a ele? A profunda voz de bartono de Alexandre era suave e tranquilizadora. - O verdadeiro comandante ser o Guido Feltra. um condottiere experiente famoso pe la sua percia e mestria militar. Csar j tinha ouvido contar histrias de Feltra. Que era bom homem, um homem leal, no havia dvida; era um famoso patrono da literatura e das artes, duque bem amado de Urbino. Porm, na verdade, a sua fama era a do filho um verdadeiro condot tiere, um soldado profissional, que conquistara o 144 ducado como recompensa pelos seus servios militares. O jovem Guido em pessoa tinh a combatido em muito poucas batalhas e ganhara-as com demasiada facilidade, para desafiar a experincia dos impiedosos soldados dos Orsini. Especialmente na sua pr incipal fortaleza de Bracciano. Estava fora de dvida que, caso as tropas do Papa tentassem tomar stia, a terra do cardeal delia Rovere, quer o pai quer Roma corri am perigo. Mas Csar no disse nada disto ao Papa, pois sabia que, quando se tratava

de Joo, o pai recusava toda e qualquer razo. Para o final da noite, ainda irado, enviou uma mensagem irm. Depois extraiu a Don Michelotto a promessa de que a acompanharia desde Pesaro, pois tinha pedido a Lucrcia que viesse ter com ele ao Lago de Prata na semana seguinte. Quando Lucrcia chegou cabana, Csar estava sua espera. Ela trazia um vestido de cet im azul que fazia realar as suas tranas doiradas e acentuava o azul dos olhos. Tinha sido uma longa cavalgada, que levara dia e meio, pelo que trazia as faces ruborizadas do calor e da excitao. Correu para o interior da cabana e lanou os braos ao pescoo do irmo. - Tive tantas saudades tuas... - disse. Porm, ao recuar a fim de olhar para ele, viu a angstia nos seus olhos. - Que se passa, Chez? O que que te perturba? Csar sentou-se num dos grandes assentos de pele e bateu repetidamente com a mo no escabelo sua frente. - uma rematada loucura, Crezia. O pai mandou o Joo regressar para chefiar as trop as como capito-general, e eu estou to cheio de inveja que era capaz de o matar... Lucrcia levantou-se, ps-se atrs dele e principiou a esfregar-lhe a testa a fim de o acalmar. - Tens de aceitar o teu destino, Chez - disse. - No s o Joo que te provoca essa tri steza toda. Tu tambm tens culpa. como se ainda fossem crianas a brigar pelos bolos da Me Vanozza. Eu compreendo bem o que sentes, mas isso s te pode faze r mal, porque o pai h-de fazer o que sempre fez. apenas aquilo que quer. - Mas eu sou melhor soldado que o Joo, muito mais indicado para comandar tropas, e garantiria uma vitria Santa Igreja e a Roma. Por que que o pai prefere um comandante que um fanfarro arrogante, um tonto que s aparenta comandar o seu exrcit o? Nessa altura Lucrcia ajoelhou diante de Csar e ergueu os olhos para os dele. - Chez, por que que o pap h-de ter tambm uma filha que aparenta ser feliz casada co m o ignorante duque de Pesaro? Csar sorriu. - Vem - disse, atraindo-a a si. - Agora preciso de ti. Porque tu s aquilo que ver dadeiro na minha vida. Eu aparento ser um homem de Deus, mas, tirando o barrete cardinalcio e o amor ao meu pai, juro-te, Crezia, receio bem ter vendido a alma a o diabo. No sou quem aparento ser, e acho isso insuportvel. Quando a beijou, procurou ser meigo, mas tinha esperado tanto tempo que no o cons eguiu. A medida que ele a beijava uma e outra vez, ela comeou a tremer e depois a chorar. Csar deteve-se e levantou a cabea para a fitar. Havia lgrimas nos olhos dela. - Desculpa - disse ele. - Foi uma brutalidade da minha parte. - No a dor dos teus beijos que vs - explicou ela. - So as lgrimas das minhas saudade s de ti. Este tempo em Pesaro faz-me sonhar com a glria de Roma e tu fazes parte desses sonhos. Depois de fazerem amor, ficaram muito tempo deitados. Csar parecia descontrado e L ucrcia era capaz de sorrir de novo. Poisou a cabea no ombro dele e perguntou: - Acreditas, como o pap, que vontade de Deus que os seus filhos vivam sem amar de verdade? - isso que o pap pensa? - volveu Csar, brincando com o cabelo da irm. A julgar pelo comportamento dele, no se imaginaria tal coisa. eu estou casada com um homem que indubitavelmente no amo. - disse ela. - E o noss o irmo Joo no casou por amor. O Godofredo ama com 146 147 facilidade, e por isso pode ser o felizardo, por estranho que parea; Porque s o ba rrete cardinalcio te salvou de uma sorte como a minha. - Mas comeste os chocos com tinta - retorquiu o Papa. > ). Nessa mesma noite o cardeal Orsini foi levado do Vaticano por guardas papais a f im de ser sepultado. Durante uma missa na capela, no dia seguinte, o prprio Papa proferiu oraes pela alma do cardeal e mandou-o para o cu com a sua bno. Alexandre mandou ento os guardas papais confiscarem os bens do cardeal Orsini, in cluindo o palcio, pois a dispendiosa campanha de Csar precisava de fundos acrescid os. Quando os guardas l chegaram, porm, deram com a me de Orsini, uma velha encarquilha da de cabelos brancos, a viver l e, assim, despejaram-na nas ruas de Roma. - Tenho de ter os meus criados - exclamava ela, assustada, enquanto avanava trope gamente, arrimando-se bengala. Por conseguinte, mandaram os criados com ela. Nessa noite nevava em Roma e o vento era cortante e brutalmente frio. Mas ningum dava abrigo velha, pois temiam que o Papa ficasse desagradado. Dois dias depois, na capela do Vaticano, o Papa mandou dizer outra missa, desta feita pela me do cardeal Orsini, que sofrera um infortnio e fora encontrada morta, enrolada porta de uma casa, com a bengala enregelada presa na mo mirrada. Em Dezembro, no caminho para Senigallia, Csar passou por Cesena para saber do seu

governador, Ramiro da Lorca. Este havia sido empossado naquele cargo, mas agora tinham chegado aos ouvidos de Csar notcias de um certo descontentamento entre os s eus cidados. Os ltimos rumores acerca de brutalidade de da Lorca obrigaram Csar a convocar uma audincia na praa de vila, perante os habitantes, para que da Lorca se pudesse defender. - Ouvi dizer que usastes de extrema crueldade para castigar a gente da vila. ver dade? - perguntou Csar. Com uma cabeleira ruiva que parecia uma aurola peluda volta da cabea, e os lbios gr ossos apertados, da Lorca falou com uma voz to aguda que era quase um guincho. - No me parece que tenha sido indevidamente cruel, Excelncia - disse -, porque nin gum me d ouvidos e poucos se portam como eu ordeno. Csar inquiriu: - Dizem-me que um jovem pajem foi atirado a uma fogueira na praa por vossa ordem e que lhe pusestes um p em cima enquanto ele era queimado vivo. Da Lorca hesitou. - Mas claro que foi com razo... Csar permaneceu hirto, com a mo na espada. - Nesse caso tenho de a ouvir... - O rapaz foi insolente... e desajeitado - disse da Lorca. - Governador, acho a vossa defesa insuficiente - replicou asperamente Csar. Csar soubera tambm que Ramiro tinha tramado com os conspiradores para o apanhar na armadilha. Mas a boa vontade do povo de Cesena era para ele de maior importncia. Qualquer crueldade indevida minaria o controlo dos Brgia nas reas da Romanha onde Csar imperava e, por conseguinte, da Lorca tinha de ser castigado. Por ordem de Csar, da Lorca foi imediatamente lanado nas masmorras da fortaleza. D epois, Csar mandou chamar o seu leal amigo Zappitto, nomeou-o governador de Cesena e deu-lhe uma bolsa cheia