mário de sá-carneiro - partida

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Partida Ao ver escoar-se a vida humanamente Em suas águas certas, eu hesito, E detenho-me às vezes na torrente Das coisas geniais em que medito. Afronta-me um desejo de fugir Ao mistério que é meu e me seduz. Mas logo me triunfo. A sua luz Não há muitos que a saibam reflectir. A minh'alma nostálgica de além, Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto, Aos meus olhos ungidos sobe um pranto Que tenho a fôrça de sumir também. Porque eu reajo. A vida, a natureza, Que são para o artista? Coisa alguma. O que devemos é saltar na bruma, Correr no azul á busca da beleza. É subir, é subir àlem dos céus Que as nossas almas só acumularam, E prostrados resar, em sonho, ao Deus Que as nossas mãos de auréola lá douraram. É partir sem temor contra a montanha Cingidos de quimera e d'irreal; Brandir a espada fulva e medieval, A cada hora acastelando em Espanha. É suscitar côres endoidecidas, Ser garra imperial enclavinhada, E numa extrema-unção d'alma ampliada, Viajar outros sentidos, outras vidas. Ser coluna de fumo, astro perdido,

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Poema "Partida", o primeiro do livro "Dispersão" de Mário de Sá-carneiro; o português era amigo e correspondente de Fernando Pessoa, com quem fundou a revista Orfeu.

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PartidaAo ver escoar-se a vida humanamente Em suas guas certas, eu hesito, E detenho-me s vezes na torrente Das coisas geniais em que medito. Afronta-me um desejo de fugir Ao mistrio que meu e me seduz. Mas logo me triunfo. A sua luz !o h muitos que a sai"am reflectir. A minh#alma nostlgica de alm, $heia de orgulho, ensom"ra-se entretanto, Aos meus olhos ungidos so"e um %ranto &ue tenho a f'r(a de sumir tam"m. )orque eu reajo. A vida, a natureza, &ue s!o %ara o artista* $oisa alguma. + que devemos saltar na "ruma, $orrer no azul "usca da "eleza. , su"ir, su"ir lem dos cus &ue as nossas almas s- acumularam, E %rostrados resar, em sonho, ao Deus &ue as nossas m!os de aurola l douraram. , %artir sem temor contra a montanha $ingidos de quimera e d#irreal. /randir a es%ada fulva e medieval, A cada hora acastelando em Es%anha. , suscitar c'res endoidecidas, 0er garra im%erial enclavinhada, E numa e1trema-un(!o d#alma am%liada, 2iajar outros sentidos, outras vidas. 0er coluna de fumo, astro %erdido, 3or(ar os tur"ilh4es aladamente, 0er ramo de %almeira, gua nascente E arco de ouro e chama distendido... Asa longinqua a sacudir loucura, uvem %recoce de su"til va%or, 5nsia revolta de mistrio e olor, 0om"ra, vertigem, ascens!o - Altura6 E eu dou-me todo neste fim de tarde 7 es%ira area que me eleva aos cumes. Doido de esfinges o horizonte arde, Mas fico ileso entre clar4es e gumes6... Miragem r'1a de nim"ado encanto - 0into os meus olhos a volver-se em es%a(o6 Alastro, ven(o, chego e ultra%asso. 0ou la"irinto, sou licorne e acanto. 0ei a dist8ncia, com%reendo o Ar. 0ou chuva de ouro e sou es%asmo de luz. 0ou ta(a de cristal lan(ada ao mar, Diadema e tim"re, elmo real e cruz... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + "ando das quimeras longe assoma... &ue a%oteose imensa %elos cus6 A c'r j n!o c'r - som e aroma6 2em-me saudades de ter sido Deus... 9 9 9 Ao triunfo maior, avante %ois6 + meu destino outro - alto e raro. :nicamente custa muito caro; A tristeza de nunca sermos dois... Mrio de S-Carneiro, in 'Disperso'