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Mário de Andrade

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Mário de Andrade

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O texto que você lerá a seguir foi escrito por Mário deAndrade e publicado como abertura da obramodernista Paulicéia desvairada, em 1922.

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Prefácio Interessantíssimo

Leitor:

Está fundado o Desvairismo. ”

Este prefácio, apesar de interessante, inútil. ”

(...)

Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. (...)

”(...)

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E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.

”Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. (...)

”Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, crea frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. (...)

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”(...)

O passado é lição para se meditar, não para reproduzir. (...)

ANDRADE, Mário de. “Prefácio interessantíssimo”. Paulicéiadesvairada. Caixa Modernista. Edusp/Editora UFMG/ImprensaOficial, São Paulo, 2003. Arquivo Mário de Andrade, IEB-USP, p. 7-39

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Mário de Andrade: um artista múltiplo

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O movimento modernista surgiu no Brasil pelas mãosde muitos artistas, mas a crítica credita a Mário de Andradeum papel fundamental na consolidação das novaspropostas artísticas presentes no início do século XX no Brasil.

Mário de Andrade foi um homem plural. Diplomou-sepelo Conservatório Dramático e Musical, escreveu críticaliterária, poemas, romances, contos, artigos jornalísticos eoutros textos teóricos essenciais para a compreensão doModernismo brasileiro. Além disso, mergulhou nos estudosetnográficos e folclóricos brasileiros, exerceu cargos públicosligados à arte e à educação, por meio dos quais pôdecolocar em prática projetos inovadores, e foi professor deEstética na Universidade do Distrito Federal. Mário nasceu emorreu em São Paulo, cidade que serviu de inspiração paraele em muitos dos textos que criou.

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Mário em versoNo ano da festa modernista, 1922, o artista

paulistano publicou Pauliceia desvairada, coletâneaaberta pelo “Prefácio interessantíssimo”, texto queapresenta ao leitor, como você já viu, o “Desvairismo”poético de Mário de Andrade, que consiste navalorização da escrita automática surrealista, na propostafuturista das palavras em liberdade (parole in libertà) e nadefesa da “deformação” artística da natureza e doafastamento do “belo natural”. Influenciado pela suadensa formação musical, na Pauliceia desvairada, Márioapresenta dois elementos característicos de suaprodução poética: os poemas de versos melódicos e osde versos harmônicos.

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Veja dois exemplos:

Inspiração “Onde até na força do verão havia tempestades de ventos e frios de crudelíssimo inverno.”Fr. Luís de Sousa

São Paulo! Comoção de minha vida...Os meus amores são flores feitas de original...Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...Luz e bruma... Forno e inverno morno...Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...Perfumes de Paris... Arys!Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...

São Paulo! Comoção de minha vida...Galicismo a berrar nos desertos da América!

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Rua de São Bento

Triângulo.

Há navios de vela para os meus naufrágios! E os cantares da uiara rua de São Bento…

Entre estas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas, as minhas delícias das asfixias da alma! Há leilão. Há feira de carnes brancas. Pobres arrozais! Pobres brisas sem pelúcias lisas a alisar! A cainçalha… A Bolsa… As jogatinas… (...)

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Mário em prosa

A pluralidade de Mário permitiu ao artistaproduzir, além de coletâneas de poemas, as obras emprosa Primeiro andar (1926), Belazarte (1934) e Contosnovos (1946), dedicadas a inovadoras narrativas curtas;o livro de crônicas Os filhos de Candinha (1943); oromance Amar, verbo intransitivo (1927), em que criticaa falsa moral burguesa, e aquela que é considerada aobra-prima do autor, uma espécie de síntese de sualiteratura, a rapsódia Macunaíma (1928).

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Macunaíma – o herói sem nenhum caráter

Entre os dias 16 e 23 de dezembro de 1926, deitadonuma rede na chácara de Pio Lourenço, próxima à cidade deAraraquara, em São Paulo, Mário de Andrade escreveu aprimeira versão do livro que se tornaria referência obrigatóriapara a compreensão da identidade nacional: Macunaíma.

http://fmlima.blogspot.com/2010/06/mario-de-andrade-e-alguns.html

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Assim como procedeu em grande parte de suaprodução literária, para escrever Macunaíma, Mário utilizou uma“técnica”: primeiramente, estudou lendas, ditos, frases feitas,provérbios, canções populares em obras de referência; depois,em “estado de poesia”, pôs-se a escrever, de maneiradesordenada, caótica, textos em vários cadernos; finalmente,numa terceira fase do trabalho, cortou excessos, “lapidou” ostextos e finalizou o livro em 13 de janeiro de 1927, publicando-osomente em 1928.

Classificou Macunaíma simplesmente como “história”.Depois, passou a denominá-la “rapsódia”, termo que tomouemprestado da música e que designa um tipo de composiçãoque reúne uma grande variedade de melodias populares e/oufolclóricas. A palavra rapsódia está também ligada aosrapsodos, artistas populares (ou cantores) que, na Gréciaantiga, recitavam poemas, principalmente epopeias, de cidadeem cidade.

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A rapsódia de Mário aproxima-se das epopéiasmedievais porque apresenta um herói popular aventureiro,excepcional, sobre-humano, mas contraditório, que atua numespaço e tempo indefinidos, falando uma língua que mescla oportuguês do Rio Grande do Sul aos regionalismos do Nordeste,do Centro-oeste e da Amazônia. Macunaíma é uma espécie deherói-síntese do Brasil.

O protagonista criado por Mário não é um herói comum:é covarde, individualista, vaidoso, busca o lucro fácil edesrespeita as esposas dos irmãos Maanape e Jiguê, por issoalguns críticos o classificam como anti-herói.

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Na rapsódia, o índio tapanhuma Macunaímanasce na selva amazônica, “preto retinto”, torna-se oImperador do Mato Virgem, e impõe-se uma missão, umideal: resgatar sua muiraquitã – talismã sagrado querecebeu de presente de seu único e grande amor, aguerreira amazona da tribo das Icamiabas Ci-mãe domato, transformada na estrela Beta da ConstelaçãoCentauro após a morte –, roubada dele pelo mascateperuano Venceslau Pietro Pietra (na verdade um gigantecomedor de gente chamado Piaimã). Nessa aventura, elevai para São Paulo, onde vive Pietro Pietra, apela para amacumba para vencer o gigante estrangeiro, empreendeuma viagem pelo Brasil para fugir de um minhocão Oibê etransforma-se numa estrela da Constelação Ursa Maior aoretornar à sua terra de origem.

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Na rapsódia, o índio tapanhuma Macunaímanasce na selva amazônica, “preto retinto”, torna-se oImperador do Mato Virgem, e impõe-se uma missão, umideal: resgatar sua muiraquitã – talismã sagrado querecebeu de presente de seu único e grande amor, aguerreira amazona da tribo das Icamiabas Ci-mãe domato, transformada na estrela Beta da ConstelaçãoCentauro após a morte –, roubada dele pelo mascateperuano Venceslau Pietro Pietra (na verdade um gigantecomedor de gente chamado Piaimã). Nessa aventura, elevai para São Paulo, onde vive Pietro Pietra, apela para amacumba para vencer o gigante estrangeiro, empreendeuma viagem pelo Brasil para fugir de um minhocão Oibê etransforma-se numa estrela da Constelação Ursa Maior aoretornar à sua terra de origem.

Muiraquitã (tupi mbyrakitã) Folc. (Amazônia) Artefato trabalhado em jade, nefrita, jadeíta; dão-lhe várias formas, às vezes de batráquios, peixes, quelônios etc., com sulcos para ajustar o cordel de prendê-lo ao pescoço. Atribuem-lhe qualidades de amuleto. Sin: pedra-verde, pedra-das-amazonas.

http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=muiraquitã

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Na rapsódia, o índio tapanhuma Macunaímanasce na selva amazônica, “preto retinto”, torna-se oImperador do Mato Virgem, e impõe-se uma missão, umideal: resgatar sua muiraquitã – talismã sagrado querecebeu de presente de seu único e grande amor, aguerreira amazona da tribo das Icamiabas Ci-mãe domato, transformada na estrela Beta da ConstelaçãoCentauro após a morte –, roubada dele pelo mascateperuano Venceslau Pietro Pietra (na verdade um gigantecomedor de gente chamado Piaimã). Nessa aventura, elevai para São Paulo, onde vive Pietro Pietra, apela para amacumba para vencer o gigante estrangeiro, empreendeuma viagem pelo Brasil para fugir de um minhocão Oibê etransforma-se numa estrela da Constelação Ursa Maior aoretornar à sua terra de origem.

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Como se fosse uma coletânea de “causos”inventados pelo povo, Macunaíma apresenta, em cadacapítulo, um “conto” sobre as andanças de umpersonagem que condensa muitas das característicasdo povo brasileiro.

Macunaíma

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma,herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medoda noite. Houve um momento em que silêncio foi tãogrande escutando o murmurejo do Uraricoera, que aíndia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança éque chamaram de Macunaíma.

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Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiropassou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falarexclamava:

– Ai que preguiça!...e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca,

trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros eprincipalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho eJiguê na força do homem. O divertimento dele era deceparcabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos emdinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E tambémespertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos enus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheressoltavam gritos gozados por causa dos guaiamuns diz-quehabitando a água-doce por lá. No mucambo si alguns cunhatã seaproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nasgraças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara.Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação amurua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essasdanças religiosas da tribo”.

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A palavra rapsódia vem do grego rhapsodía esignificava, originariamente, “canção costurada”. Em música,rapsódia designa um gênero cujos temas são motivos popularesou cantos tradicionais de um povo. Identifique, no trechoapresentado, uma expressão ligada ao universo dos contadorespopulares de histórias.

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Entre textosIracema

“Além, muito além daquela serra, que ainda azulano horizonte, nasceu Iracema.Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelosmais negros que a asa da graúna, e mais longos que seutalhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nema baunilha recendia no bosque como seu hálitoperfumado.

Mais rápida que a corça selvagem, a morenavirgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeavasua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácile nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia quevestia a terra com as primeiras águas.

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Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claroda floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica,mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos daacácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos.Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.

Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.

A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.

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Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.

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De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.

O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.

A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.”