mário de andrade - os filhos da candinha

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Selecionados pelo próprio autor, os 43 textos de humor e ironia

de Os filhos da Candinha eram para Mário um “momento delibertação”, em contraste com a “intencionalidade” de sualiteratura e coincidem com suas preocupações intelectuais: arenovação da poesia, a luta contra os totalitarismos, a reformaortográfica e os dilemas da modernização do Brasil.

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 HISTÓRIA DE UM LIVRO,

NO DIZER DE SEU AUTOR

João Francisco Franklin Gonçalves 

Nas cartas, a crônica da criação  | Em carta a Manuel Bandeira, datadade São Paulo, 24 de maio de 1934 , Mário de Andrade pensa reunir “umcerto número de crônicas de assunto vário”, aquelas que julgava asmelhores, em livro para o qual descobrira “um nome adorável”, Os ilhos da

Candinha, “que quer dizer, na voz do povo, o que andam falando, os diz-ques”.1 O projeto entra, porém, em compasso de espera até 1942 , quando,pela carta de 20 de abril, novamente ao poeta de Carnaval , sabe-se que acoletânea estava prestes a se tornar realidade:

 Desta vez venho lhe pedir um grande favor. Você fará de jeito que ele lhe seja o menos

penoso possível.O Álvaro Lins me pediu um livro pra Americ-Edit, e do que lhe propus, de já preparado

pra editar, preferiu crítica literária. Mas o livro que eu compusera com o título  Aspectos daliteratura brasileira, não serve exatamente pro caso por muito grande. Se compunha de duaspartes: uma primeira com os ensaios mais longos e uma segunda com artigos críticos feitospra jornal. Mas reconheço que o livro assim composto icava grande por demais e não mecustou nada biparti-lo, pra oferecer ao Álvaro Lins apenas a primeira metade, os ensaioslongos.

Mas, embora não tenha recebido agora estes meus... alfabetos em desordem, me sucedeumais outra vez o que sucede quase sempre no dia em que um livro meu vai se imprimir: iconaquela dúvida-mãe. Sobre isso desejo um conselhinho seu, ou talvez melhor, ter umaconversa com o Álvaro Lins ao lhe entregar estes li-vros. Vão três! um de crônicas literárias, ode ensaios críticos e o de artigos de críticas literárias. Vocês mesmos prefiram.

Desconio que os três são publicáveis e provavelmente os publicarei aos poucos. Mas eis

minhas presunções. Dos três o que me parece mais perfeito, mais... perfazido, como unidadeconceptiva de livro, como realização lingüística, como regularidade de temperatura intelectualsão Os ilhos da Candinha. E também me parece, pelo número das crônicas escolhidas dá umbom tamanho de livro tipograicamente bem editado, com largueza de papel, boa tipograia,etc.

Na minha opinião é o livro mais ‘ bem escrito’ que já iz. Falo como estilo normal, estilo quepermite seguimento, seqüência – pois o estilo poético-heróico do Macunaíma tinha que ser oque é mas pra esse livro, e o de Belazarte é estilo falado e não, escrito.

Não exijo que, na urgência de agora, você leia o livro. Só hesito realmente é a respeito daprimeira crônica Biblioteconomia. Abre bem o livro, mas me parece discrepar bastante doclima espiritual das outras crônicas. Tem nela uma espécie de graninismo de pensamento,

muito de francês, muito Alain2 demais, que me irrita e sobretudo me dispersa. Pediria a vocêler uma outra crônica ao acaso, ler em seguida Biblioteconomia e bem depois mais outracrônica ao acaso. E resolver por si mesmo se a coisa deve icar. Ou tirá-la do livro e neste caso

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cortá-la do índice.3

 Para a presente edição anotada de Os ilhos da Candinha, a airmação é

preciosa. Mais do que oferecer um pouco da história, permite abordar arelação entre o estilo e o contexto em que o livro surgiu, considerando um

pouco da trajetória da produção mariodeandradiana.Ao classiicar Os ilhos da Candinha como “o livro mais ‘ bem escrito’ que

já iz”, restringindo esse superlativo analítico, a seguir, ao âmbito do “estilonormal” para estabelecer a comparação entre este, “o estilo poético-heróico do Macunaíma” e o de Belazarte, “estilo falado e não, escrito”, ocarteador exerce a crítica quando aponta estas três vertentes em suaprópria obra: a crônica, a rapsódia e o conto. Embora o crítico e o cronistaestejam intimamente entrelaçados, interessa aqui apenas o último.

Na abordagem de sua obra literária, Mário traz à baila o critério daadequação do estilo, explicitado na crônica Momento pernambucano,recolhida em Os filhos da Candinha:

 [...] O verso em que Vergílio cantou Dido era perfeito. Pra Dido. E da mesma forma são

perfeitos o decassílabo do I-Juca Pirama e o verso-livre de Manuel Bandeira. Por que não seráperfeita a explosão crua destes estilos novos em assuntos novos?... [...]

Arte, que desejas mais?

 O “estilo normal”, “que permite seguimento, seqüência”, pode, elástico,

desenvolver a paródia do estilo heróico e, ao mesmo tempo, abrigar o estilofalado. Neste último, aliás, Mário de Andrade vazara os contos de Belazarte,escritos desde 1924 e publicados em 1934 (São Paulo: Piratininga), nosquais a primeira frase é sempre: “Belazarte me contou.”

A expansão na literatura brasileira, e na obra de Mário, daquilo que elechama “estilo normal”, vincula-se à crônica no jornalismo que a ela garanteampliação do alcance. Alimenta-se também da mesma crônica que,decorridos anos da publicação na imprensa, ganha novas dimensões nolivro, selecionada e fora de uma ordenação cronológica.

A carta de abril de 1942 , ao aludir à Americ-Edit, situa temporalmente otrabalho de reescritura/edição da obra, e data, com base na materialidadedos documentos, os manuscritos de Os ilhos da Candinha  no arquivo doescritor, que, há pouco mais de um ano, regressara à sua Paulicéia, apósuma espécie de exílio voluntário, no Rio de Janeiro, entre julho de 1938 e

janeiro de 1941. Em 1938, o prefeito Prestes Maia, na incapacidade decompreender, tentara desmantelar o projeto pioneiro de democratizaçãodo saber, construído por Mário de Andrade diretor do Departamento de

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Cultura do Município de São Paulo, na gestão Fábio Prado. Diante daspressões, ele se sentira obrigado a pedir demissão e resolvera se mudarpara a então Capital Federal, onde possuía amigos de longa data e o apreçodos moços estudantes de Direito que faziam a Revista Acadêmica. E,principalmente, porque seria professor de Filosoia e História da Arte ediretor no Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal.

Mário relata a Manuel Bandeira que Murilo Miranda e Lúcio Rangel ohaviam procurado em 1934, pedindo-lhe um livro para a editora quenascia, acompanhando a revista.4 A editora da Revista Acadêmica mereceraO Aleijadinho e Álvares de Azevedo , lançado em 1935, composto dos ensaiosO Aleijadinho e sua posição nacional e Amor e medo. Morando no Rio, aamizade se estreitara com essa dupla da Faculdade de Direito, acrescidade Carlos Lacerda e Moacir Werneck de Castro.

É Murilo Miranda, que trabalhava também na Americ-Edit, quem suscitao projeto carioca de publicação da obra do escritor, mas quando este járetornara a São Paulo. Na empresa de Max Fischer, editor francês e judeurefugiado do nazismo, o crítico Álvaro Lins cuidava do planejamento. NoArquivo Mário de Andrade, a correspondência recebida de Max Fischer eda Americ-Edit entre 1942 e novembro de 1943 testemunha odesenvolvimento desse projeto editorial, que chegou a ser ambicioso, mas

que, concretamente, se resumiu a dois títulos. O editado rejeitou a intençãode exclusividade de Fischer e restringiu-se a  Aspectos da literaturabrasileira e a Belazarte.5

A história da montagem da coletânea de crônicas parte de 1942 eprende-se à carta ao amigo Bandeira, a qual se entrelaça com um dosmomentos mais importantes da trajetória do escritor, a conferência Omovimento modernista, depois incluída em Aspectos da literatura brasileira  ,na edição da Livraria Martins, livro que guarda com Os ilhos da Candinha

uma relação mais extreita entre a produção do cronista e a do crítico. Osdois livros confundem-se: o primeiro teve o plano original alterado, sendodividido em duas partes. A segunda parte formou um segundo volume,inédito, de Os ilhos da Candinha, contendo crônicas críticas de estilo maisobjetivo, como atestam o dossiê dos manuscritos desta obra no Arquivo doautor e a carta a Bandeira que nos dá acesso à hesitação de Mário aoplanejar os dois livros, os quais, de fato, se transformaram em três. Valecontinuar na carta ao poeta de Carnaval , para melhor esclarecer o assunto:

 No volume dos ensaios críticos, tem um que me desagrada francamente, o Manuel

Bandeira inicial. Por mais que o tenha modiicado, como se vê das correções, não pude evitar

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o estilo e mesmo o espírito de combate  com que o escrevi em 1924. Eu sei que tem nelealgumas observações e veriicações que sustento até hoje, mas basta ler as duas páginasiniciais do ensaio seguinte, A poesia em 1930 pra ver que estamos no mundo novo de calma ehonestidade de espírito. Nenhuma vontade mais de escandalizar, nenhuma preocupação deoriginalidade e inesperado, e conseqüentemente o estilo que agora nasce do pensamento emvez do quase pensamento que nasce do estilo – que é o caso do Manuel Bandeira inicial.

Também aí pediria a você decidir por si, apesar desse pedido ser quase uma indelicadeza,por se tratar diretamente de você. Mas creio que entre nós dois é possível superar estaindelicadeza. Minha indecisão me faz saber plenamente que conservado ou retirado o ensaio,você tem razão boa para decidir.

Quanto ao livro de crônica de crítica literária vai mais pro Álvaro Lins escolher entre ele eo de ensaios. Tem a vantagem de uma contemporaneidade bem maior que a dos ensaios.

E o título? Isso o Álvaro Lins que escolhe pelas conveniências editoriais. Só sustento Os filhos da Candinha, está claro. Para o caso de escolha da crítica ele que escolha entre:

 Aspectos da literatura brasileira,Ensaios literários, Arte literária,

Literatura, vício velho,Temas literários,Dez ensaios, ou Dez ensaios literários,ou qualquer outro que ele mesmo inventar.[...]Agora vou me botar na escritura deinitiva da conferência do dia 30, de que talvez você

não goste nada. Ando muito desequilibrado, numa espécie de sofrimento esquisito que nãoconsigo discernir bem. Será que o inconsciente sofre? Deve sofrer sim. Eu sinto vir à tona demim os relexos desse sofrimento irremediável. Está muito pau essa vida. Desculpe achateação e abrace o sempre

M.

 Peça ao Álvaro Lins tomar cuidado com estes originais que não tenho cópia de nada.

Pegarei tudo quando chegar aí no dia 30 próximo.

 A preocupação com os manuscritos, documento único, continua na carta

em que, de São Paulo, o cronista se reporta diretamente ao colaborador deMax Fischer, em 15 de maio desse ano de 1942:

 

Álvaro LinsNão pude me avistar com você, quando estive aí no Rio apenas por dois dias exatos. Jamaispude aparecer em público sem aquela inquietação angustiosíssima, e o resultado é passar odia anterior e o seguinte me aturdindo ao Céu dos amigos e dos bares. Foi o que eu iz,deixando o resto pra depois.

Mandei a você, pelo Manuel Bandeira, o que eu já tinha já pronto e com vontade depublicar. Foram três livros pra você escolher. Ou pra não escolher nada. Este ponto é que meinquieta mais e que eu pretendia acentuar de viva voz. Eu quero, mas quero sinceramenteque você esteja à vontade. Sei, não esqueço, que não se trata apenas de uma decisão sua, masde outra mais complexa em que entram os interesses de uma casa editora.

Você ainda não me conhece bem, mas acredite que sou muito objetivo e compreensivo

nessas coisas. Não imagine nunca que você irá me magoar se não for possível a edição dequalquer um dos três livros. Não diminuirei por isso nada da estima e da admiração quetenho por você. Com o abraço mais leal do Mário de Andrade.

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dos ensaios por ele escolhidos: 

Os estudos sobre Manuel Bandeira, Castro Alves e O Ateneu foram publicados na Revista doBrasil , na atual fase carioca da revista. Os ensaios sobre A poesia em 1930, Luís Aranha eTristão de Ataíde foram publicados pela Revista Nova, e A elegia de abril na recente revistaClima, ambas de São Paulo. O estudo sobre as Memórias de um sargento de milícias se publicou

como introdução à edição de luxo desse livro, feita pela Livraria Martins, de São Paulo. Quantoàs notas sobre Machado de Assis e A volta do condor, foram crônicas publicadas no Diário deNotícias  do Rio de Janeiro, mas de pretensão mais vaidosa no tamanho, a que, na última, seajuntou, como abertura, um artigo publicado na Revista Acadêmica do Rio.

 Nove desses dez ensaios, somados aos três referidos pelo editor,

perfazem os doze do volume. Embora mencionado na Advertência, oestudo Manuel Bandeira não integra  Aspectos da literatura brasileira   , porlapso ou deliberação do editor. Todavia, as já citadas cartas e osdocumentos referidos a seguir representam mais um vestígio dasmudanças de concepção que marcaram o processo de criação dessas duasobras convertidas em três.

 O livro mais ‘ bem escrito’ que já iz  | Na Advertência do autor, datadade 24 de novembro de 1942, impressa no volume em 1943, está o projetode Os filhos da Candinha:

  As crônicas ajuntadas neste livro foram escolhidas de preferência entre as mais levianasque publiquei — literatura. Faço assim porque me parece mais representativo do que foi acrônica para a minha aventura intelectual. Nunca iz dela uma arma de vida, e quando o iz,freqüentemente agi mal ou errado. No meio da minha literatura, sempre tão intencional, acrônica era um sueto, a válvula verdadeira por onde eu me desfatigava de mim. Também écerto que jamais lhe dei maior interesse que o momento breve em que, com ela, brincava deescrever. É o que em geral este livro deve representar.8

 São 43 os textos que completam o livro, cujo título capta a conversa da

simplicidade e do compromisso da crônica com o dia-a-dia, conversa deCandinha que não exclui a vida alheia. Implicam a participação de Mário deAndrade, entre 1928 e 1939, em três jornais da grande imprensapaulistana, bem como em três revistas de outros estados. O primeiro eaquele que acolheu o que se pode chamar de período áureo da produçãodo cronista é o Diário Nacional , onde Mário ingressa no segundo semestrede 1927. Desde 1915 o jovem talentoso vinha se airmandogradativamente em jornais e revistas de São Paulo com artigos, poemas,

contos e esquetes de sua lavra, tendo mostrado sua habilidade de cronistanas séries “De São Paulo” e nas “Crônicas de Malazarte”, publicadasrespectivamente pelos primorosos magazines cariocas Ilustração

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Brasileira, em 1920-1921, e América Brasileira , em 1923-1924. Quandochegou ao Diário Nacional   em 1927, destacava-se como modernistacombativo nos fervilhantes e efêmeros periódicos renovadores da cultura.

O Diário Nacional , órgão do Partido Democrático, durou de 14 de julhode 1927 a 28 de setembro de 1932; engajou-se na Revolução de 1930, eterminou fechado pelo governo, após o malogro do movimento cons-titucionalista. Ao longo da vida deste jornal, o poeta e professor doConservatório proissionaliza-se como jornalista, respondendo pela críticade artes plásticas, música, teatro e literatura. Ali comparece como cronistaocasional em 1927 e no começo de 1928, depois assíduo de 14 dedezembro de 1928 a 25 de setembro de 1932 . Esse cronista, em 11, 13 e22 de novembro, 1o  e 30 de dezembro de 1927 apresenta sua série decinco textos Arte em São Paulo. Em 8 de dezembro desse 1927 e 22 dejaneiro do ano seguinte, dá ao público A ciranda e O turista aprendiz,crônicas que são parcelas do seu diário de viagem à Amazônia, realizadaentre maio e agosto do mesmo 1927.

Em Arte em São Paulo o cronista, ao aproveitar o espaço do crítico,convoca o iccionista cujo romance/idílio Amar, verbo intransitivo , queacabara de sair, prima pela visão ácida da burguesia paulistana. Os cincotextos – O burguês e a ópera, O escultor Melani, O grande arquiteto, D.

Eulália e O pai do gênio – ironizam vivamente o gosto burguês em matériade música, arquitetura e escultura, e não se detém na discussão teórica dosvalores estéticos passadistas esposados pela burguesia acomodada e porartistas estagnados, cultores do kitsch. Assinados M. de A., abrem espaçopara a atuação direta de personagens-tipo, de alta comicidade. Marco nacrônica mariodeandradiana, trabalham a linguagem coloquial, no “estilonormal”, desataviado; modernizam a linguagem literária, criando um tom eum estilo brasileiros e cotidianos para expressar preocupações e

pensamentos brasileiros e cotidianos. A série, como a totalidade dos textosde Mário modernista, adota a ortograia renovada, neologismos e formasda língua portuguesa falada no Brasil, diferenciando-se no jornal.

Além disso, o caminho ficcional experimentado em Arte em São Paulo, iráse expandir na crônica-conto em Os ilhos da Candinha, a qual, em A sra.Stevens, Ensaio de bibliothèque rose, Tempo de dantes e Foi sonho,desenvolve uma trama e desenha a psicologia de personagens.

Entre o inal de novembro de 1928 e o início de março de 1929, quando

Mário de Andrade visita o Nordeste para pesquisar o folclore da região,viaja como cronista correspondente do Diário Nacional , encarregando-sede enviar, quase diariamente, suas impressões. Constitui-se, então, a longa

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série “O Turista Aprendiz” publicada entre 14 de dezembro de 1928 e 29de março de 1929. Na esteira da Arte em São Paulo, transita também pelaicção. Mário muito valorizou esse momento de sua crônica, tanto que orepresenta sob a forma de recortes do Diário Nacional , nos manuscritos daobra O Turista Aprendiz , que deixou inédita, e que separa desse dossiêcinco textos, destinando-os a Os ilhos da Candinha. Substitui-lhes os títulos,reescreve-os por meio de rasuras ao texto impresso para que igurem nolivro, em uma nova seqüência, como O grande cearense, Ferreira Itajubá,Bom jardim, Guaxinim do banhado, e Tempos de dantes.9

É no cronista regular daquele diário paulistano que mais se apóia acoletânea de 1943; no cronista que se incumbe da coluna “Táxi” de 9 deabril de 1929 até 21 de janeiro de 1930, a qual, no título, alude à negaçãode caminhos pré-determinados, à liberdade de trajetos própria da crônica.E que continua na coluna sem título, sucessora de “Táxi”, quando,graicamente reestruturado após 23 de maio de 1930, o jornal concede, napágina 3, espaço nobre aos três cronistas que possui naquela época –Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Câmara Cascudo. Desta suaprodução de mais de 80 títulos em ambas as colunas, o autor deMacunaíma retira 23 crônicas que testemunham, em Os ilhos da Candinha,sua brilhante fase de 1929 a 1932, no Diário Nacional : Educai vossos pais,

Macobêba, O diabo, O culto das estátuas, Sobrinho de Salomé, A pesca dodourado, Abril, Anjos do Senhor, Romances de aventura, Na sombra doerro, O terno itinerário ou trecho de antologia, Cai, cai, balão!, Revoluçãopascácia, Largo da Concórdia, Xará, xarapim, xera, Memória eassombração, Meu engraxate, A Sra. Stevens, Mesquinhez, Fábulas, Meusecreta, Idílio novo e Ritmo de marcha.10

O segundo jornal paulistano, em que Mário de Andrade busca textosseus para o livro que publica pela Livraria Martins, é o Diário de S. Paulo,

cuja revisão lhe corrige a ortograia renovadora, e onde, entre 1934 e1939 escreve bem menos que no Diário Nacional . De lá vêm Momentopernambucano de 1o de julho de 1934 e Tacacá com tucupi, de 28 de maiode 1939, com mudanças na redação.

No terceiro jornal, O Estado de S. Paulo , repleto de colaborações suas, ocronista elege Brasil-Argentina, Sociologia do botão, O dom da voz,Problemas de trânsito, Calor e Esquina, de 1939.11

Entre as revistas, os manuscritos apontam, no Rio, Movimento Brasileiro ,

com Morto e deposto (no 4 , abril de 1929) e a Revista Acadêmica, de ondesaíram em 1935, Foi sonho.12 Incluem Letras, de Salvador, no número de 7de julho de 1938, que contribuiu com Conversa à beira do cais.

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Biblioteconomia, Rei Momo e Ensaio de bibliothèque rose, crônicas deproveniência não reconhecida nos manuscritos, uma vez que não semostram em recortes rasurados, mas em datiloscritos, esperam pelapesquisa que lhes consiga recuperar local e data, na imensa produção deMário de Andrade na imprensa. Em Biblioteconomia, no textodatilografado, uma substituição em autógrafo não recobre o título original,Definição do analfabeto.

Apesar de admitir publicamente, na Advertência, em 24 de novembro de1942 , ter reelaborado os textos por meio de supressões, acréscimos,correções e “reposições de linguagem”, o escritor não adicionou às datasda publicação em periódicos, por ele justapostas a cada um dos títulos, oano em que fecha a nova escritura, quando as crônicas já se comportamcomo parcelas de um livro. A carta a Manuel Bandeira, em 20 de abril de1942 , ao reletir sobre a posição de Biblioteconomia na seqüência dostextos, chancela a plena vivência do processo criativo, nesse ano. Assimsendo, a presente publicação, que reconduz Os ilhos da Candinha  àslivrarias, resolveu lembrar 1942 e 1943, colocando, conforme o caso, asegunda data entre colchetes ao lado daquela originalmente acusada.Neste procedimento, seguiu a lição do próprio Mário que, nos manuscritosd e Contos novos , registra as datas concernentes ao trajeto da criação de

todos os textos.Deste modo, o estabelecimento do texto atual adotou a versão no“exemplar de trabalho”, a qual combina a versão na edição  princeps  de1942 com a versão impressa em 1943, portadora de correções a tintapreta feitas possivelmente no mesmo ano, as quais lhe dão o valor demanuscrito. Essas rasuras em segmentos das crônicas O sobrinho deSalomé, Problemas de trânsito e Calor respondem à chamada “Erros: 41 ,113, 149”, no ante-rosto. A primeira e a última sanam simplesmente

gralhas na impressão, mas a recondução à forma “meidia”, à p. 133 emProblemas de trânsito, alcança o projeto do modernista. “Meidia”, formaligada ao uso literário da língua portuguesa falada no país, não poderiapermanecer como “meio dia”, incompreendida pela edição Martins queaceitara “intalianos”, em Abril, e a concordância “Embora muita dessagente naquele instante demandassem o lugar do comício”, em Ritmo demarcha. Que concordara que o ritmo da frase prevalecesse, anulado ohífen em substantivos compostos como “norteamericano”, “beijalores”,

“arranhacéu”, “lufalufa”, e inventado em “boca-da-noite”, “hei-de”, “de-certo”, entre outros casos.

A atualização ortográica pela norma vigente e as notas que aclaram

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circunstâncias e personagens da época ou do passado, referidas nascrônicas, comungam um dos propósitos do gênero – aproximar o texto dopúblico leitor.

 

1. MORAES, Marcos Antônio de, org. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo:Edusp/IEB, 2000, p. 579.2. Trata-se de um trocadilho com o nome do ilósofo francês Emile Auguste Chartier Alain (1868-1951), muito conceituado pela qualidade literária de seus artigos na imprensa francesa. Reuniu emPropos [Considerações] aqueles publicados entre 1909-1916.3. MORAES, Marcos Antônio de, org. Op. cit., pp. 660-662.4. IDEM, ibidem, p. 593.5. Trata-se de edição revista por Mário de Andrade do livro Belazarte, que publicara em 1934 pelaEditora Piratininga S.A, em São Paulo. Nas Obras completas  da Livraria Martins Editora, torna-seContos de Belazarte, em 1947.

6. LINS, Álvaro, org. Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1983, pp.60-61.

7. Cito aqui a 5a  ed., 1974 de Aspectos da literatura brasileira. A Nota do editor vem antes do inícioda numeração das páginas; a Advertência do autor, às pp. 3-4 .8. ANDRADE, Mário de. Os filhos da Candinha. São Paulo: Martins, 1943, p. 7.9. Na coluna “O Turista Aprendiz”, os textos saíram respectivamente em 25 dez. 1928, 19 fev., 9fev., 28 mar. e 10 jan. 1929. A edição póstuma da obra, preparada por Telê Ancona Lopez saiu em1977 (São Paulo: Duas Cidades/ Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976).10. Os textos iguraram no Diário Nacional  em 29 jun., 3 maio 1929, 26 abr. 1931, 24 set. 1929, 27set. 1931, 6 jul. 1930, 3 abr. 1932 , 20 jul. 1930, 13 abr., 29 ago. 1929, 15 fev., 3 ago. 1932 , 9 nov.1930, 14 fev. 1932 , 28 dez. 1930, 10 maio 1929, 13 dez. 1931, 31 ago. 1930, 1 nov. 1929, 5 jul., 8

mar. 1931, 24 abr. e 28 fev. 1932 . A edição de Táxi e crônicas no Diário Nacional , trabalho de TelêAncona Lopez, recupera e apresenta essa parcela da produção jornalística de Mário de Andrade(São Paulo: Duas Cidades/ Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976).11. As crônicas datam de 22 jan., 30 jul., 29 out., 22 maio, 19 mar. e 17 dez. 1939.

12. Saíram no no 15 do ano 3, nov.; e no no 9, ano 2 , mar. 1935.

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 ADVERTÊNCIA

 

s crônicas ajuntadas neste livro  foram escolhidas de preferência entre asmais levianas que publiquei – literatura. Faço assim porque me parecemais representativo do que foi a crônica para a minha aventura intelectual.Nunca iz dela uma arma de vida, e quando o iz, freqüentemente agi malou errado. No meio da minha literatura, sempre tão intencional, a crônicaera um sueto, a válvula verdadeira por onde eu me desfatigava de mim.Também é certo que jamais lhe dei maior interesse que o momento breveem que, com ela, brincava de escrever. É o que em geral este livro deve

representar.Os ilhos da Candinha já estarão dizendo que eu podia escolher outras,

ao menos pelo assunto, mais justiicáveis dentro das preocupaçõesintelectuais de agora. Mas por isso mesmo que todas, essas como as quevão aqui, foram escritas no momento de libertação, as mais “sérias” medesgostam muito, por deicientes e mal pensadas. Não representam o quesempre eu quis fazer.

No ato de passar a limpo, estas crônicas foram bastante encurtadas ecorrigidas. Não pude icar impassível diante de encompridamentos deexigência jornalística, bem como desta aspiração amarga ao melhor. Etambém iz várias reposições de linguagem. Às vezes os jornais e oseditores ainda se arrepelam com a minha gramática desbocada, mecorrigem, e disso derivam numerosos lusismos escorregados nos meusescritos. Bem contra meu gosto aliás, pois não tenho a menor pretensão derivalizar com o português de Portugal. Pretensão sensível mesmo em

muitos escritores “vivos” do Brasil, que os prova néscios e os torna bemridículos. 

MÁRIO DE ANDRADE

 São Paulo, 24 / novembro / 1942

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 EDUCAI VOSSOS PAIS131930 [1942]

 

Nós ainda somos apenas  educados pelos nossos pais... Se vê a criançadetestando quanto os pais detestam... Depois começam desequilíbrio ehipocrisia. É o tempo do “no meu tempo”... O rapaz, a morena é um blocomaciço de modas novas. Os pais detestam essas modas e querem torcer agente para o caminho que eles izeram, na bem-intencionada vaidade deque são exemplos dignos de seguir. A gente, não é que não queira, nem

pode! Se vive em briga, mentira, dá vontade de morrer.Creio que, para a felicidade voltar, tudo depende do moço. O melhor é agente se fazer passar por maluco. Faz umas extravagâncias bem daquelas,descarrila exageradamente umas três vezes, depois organiza umatemporada dramática aí de uns quinze espetáculos. Fazendo isso com artee amor até é gostoso. “Nosso ilho é um perdido”, se dizem os pais. Sofrema temporada toda, você com muito carinho abana o sofrimento massustenta a mão. E eles ainal sossegam, reeducados. E você conquistou a

liberdade de existir.Há por exemplo o caso da cadelinha Lúcia que me impressiona bem. Acadelinha Lúcia era uma espécie de Greta Garbo, mais maravilhosa quelinda. Você podia icar tempo contemplando bem de perto os olhosinconcebíveis dela, a cadelinha Lúcia não dava um avanço pra abocanharnosso nariz. Então chegava a primavera. Você cansava, não dando maisatenção e a cadelinha Lúcia virava um sabá de lores de retórica, latidos,estalidos, luzes, festa veneziana, a guerra de 14 e o cisne de Saint Saëns-

Paulova.14Me esqueci de contar que ela era branca. Um branco tamisado de

esperanças de cor, duma riqueza relexiva tão profunda que, não sei sepor causa dela se chamar Lúcia, a gente sentia naquele esborrifo andanteos valores da única maravilha desse mundo que tem direito a se chamarde Lúcia, a pérola.

Lúcia era brabinha como já contei e alimentava grandes ideais. Ninguémentrava no jardim sem sabá. Isso ela vinha que vinha possuída de toda a

retórica do furor e mais os dentes. Mordia. Estragava a roupa, era umadificuldade.

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Porém a gente percebia que a cadelinha Lúcia não era feliz. Não lhesatisfazia arremeter eicaz contra os humanos, e pouco a pouco, nacontemplação latida das grades do seu jardim lhe brotara um ódiopoderoso contra os vultos gigantes da rua. Um dia ainal, pilhando o portãoaberto, saiu como uma sorte grande, era agora! Olhou arrogante, e enimvinha lá longe, num heroísmo de polvadeira, o grandioso bonde. Lúciaesperou, acendrando ódio na impaciência, e quando o bonde já estava auns vinte metros, ei-la que sai em campo, enfunada, panda, côncava depérolas febris. Atira-se e compreende enim. O bonde só fez juque! 15 equebrou a mãozinha direita da cadelinha Lúcia.

Vocês imaginam o que foi aquela morte de ilho em casa. Correrias,choro, médico, telefonemas, noite em claro... A cadelinha Lúcia salvava-se,mas icava manquinha pra sempre. Quando veio do hospital, convalescentee com o enorme laço de ita no pescoço, milagre! o laço parava no lugar.Continuava o maravilhoso bichinho, mas a alma era outra.

Dantes preferira a glória ao amor. Agora queria apenas a beleza e oamor. Mansa, pusera de parte os dentes e os ideais, e todos a adoravam. Epouco depois dos tratamentos do hospital, teve os primeiros filhos. Pedidos,presentes, mas um ficou na casa.

Chincho foi educado nessa mansidão. Não era possível a gente imaginar

uma doçura mais suave que a do cachorrinho Chincho. Ora, bons temposdepois, eu indo naquela casa, a cadelinha Lúcia estava no gramadoentredormida. Eis que ergue a cabecinha, se esborrifa toda e geme umladrido desafiante, porém muito desamparado. O que eu vejo! Sai detrás dacasa o cachorrinho Chincho, e vem num sabá furioso sobre mim, quaserecuei, sai, passarinho! Que sair nada! Olhou pra mãe, lá na sua grama,hesitante:

– Ajuda, minha velha!

E ela veio reeducada, furiosa pra cima de mim. Me chatearam, quase memorderam. Depois, quando a criada me salvou, icaram brincando nagrama, parceiros, muito em família. Educai vossos pais! Não dou trêsmeses, e o cachorrinho Chincho fará a cadelinha Lúcia odiar os bondesoutra vez. Pode ser que ambos percam a vida nisso, mas não é a vida quetem importância. O importante é viver.

 

13. NOTAS DA EDIÇÃO | Esta segunda versão, no manuscrito/“exemplar de trabalho”, apresentavariantes em relação à primeira, publicada na coluna mantida por Mário de Andrade no DiárioNacional , em São Paulo, entre 5 de fevereiro de 1930 e 14 de setembro de 1932 , ali sucedendo acoluna “Táxi” que vai de 9 de abril de 1929 a 21 de janeiro de 1930. A versão publicada no jornal

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foi recuperada por Telê Ancona Lopez em Táxi e crônicas no Diário Nacional . São Paulo: DuasCidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, pp. 215-217.14. Anna Pavlova (1881-1931) tornou célebre  A morte do cisne, coreograia criada para ela em1905, com música de Charles Camille Saint-Saëns (1835-1921), compositor francês, por MichelFokine (1880-1942), bailarino e coreógrafo dos Ballets Russes, que representavam o balé imperialno exterior, revolucionando a dança sob a direção de Sergei Pavlovitch Diaghilev (1872-1929).15. A onomatopéia “ juque!”, marcando rapidez, aparece na voz do narrador de Macunaíma, arapsódia modernista publicada por MA em 1928.

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 MACOBÊBA161929 [1942]

 

No geral tenho um pouco de fadiga  diante das assombrações. Acreditonelas e reconheço que são uma fonte de sensações intensas, porém mefatiga a plástica precariedade que elas têm, não variam!

Inda agora está aparecendo, no Sul litorâneo de Pernambuco, umaassombração regularmente assombrada. É o chamado Macobêba, bicho-homem dum tamanho de arranhacéu, gostando muito de beber água de

oceano e queimar terra. Onde que passa ica tudo esturricado, repisando atrágica obsessão nordestina pelas secas. E por causa da mesma obsessão, oMacobêba sedentíssimo bebe até água de mar. As marés andamdesordenadas por lá e às vezes o Atlântico afunda a ponto de aparecerembaixios onde nunca olhar de jangadeiro pousou.

No corpo, o Macobêba é apenas um exagero. Não tem nada de original.Gigante feio, mas cabeça, tronco e membros que nem nós. Cabelo de pé,quatro olhos e rabo metade de leão, metade de cavalo. E faz o que no geral

fazem todas as assombrações desse gênero assusta, mata, prejudica. Sóteve até agora uma deliciosa prova de espírito: carrega sempre umavassoura de ios duros, maravilhosamente inútil. Não serve-se dela pranada. Ora, por que será que o Macobêba traz uma vassoura na mão...

Muito provavelmente esta vassoura é uma reminiscência daquelasbruxas que montavam cabos da tal quando partiam para as cavalhadas dosabá. Muito provavelmente. Porém a grandeza do Macobêba está em trazeruma vassoura inteira (o que prova certa elevação de nível de vida), e não

se servir dela pra nada. Capitalismo... Nisso reside pra mim a atualidade dogrande monstro.

...só uma vez na minha vida estive em contato objetivo com umaassombração. É verdade que eu era meninote ainda e podem argumentarque estava com medo, não estava não. Minha tia agonizava na casa pegada,e nós, meninos, meninas, excesso da criadagem, fôramos alojados novizinho, pra evitar bulha à chegada geralmente solene da morte. Aliásninguém tinha vontade de rir, mas estávamos principalmente

surpreendidos, num grande vazio interrogativo. De repente, da porta dacopa surgiu no ar um pano grande bem branco. As criadas depois

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explicaram que era um lençol, porque este é muito plausível na crônica dasassombrações, porém mesmo naquele tempo não aceitei sem relutânciainterior a explicação das criadas. Hoje, quanto mais friamente analiso aslembranças, mais me convenço de que não era lençol não, era pano. Oumelhor, nem era pano exatamente, era um ser, uma gente, disso estouconvencidíssimo, porém desprovido de forma humana e possuindo aconsistência e o aspeto17 físico dum pano.

Surgiu no ar, atravessou em passo lento a sala, desapareceu no corredorescuro que dava pra rua. Ninguém não exclamou “Vi uma assombração!”,nada. Todos estávamos estarrecidos, olhando. Só um bom minuto depois éque uma criada falou: “Foi lençol.” Então fomos chamados pra chorar.

 

16. NOTAS DA EDIÇÃO | Crônica publicada, com variantes, na coluna “Táxi”, de MA, no DiárioNacional . São Paulo, 3 maio 1929 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp.97-98). Conservamos o acento para melhor caracterizar a pronúncia.17. Respeitamos a graia aqui adotada por Mário de Andrade e registrada como variante porAurélio Buarque de Holanda Ferreira em seu dicionário, tendo em vista que o escritor propunha,assim, um abrasileiramento semelhante ao que de fato ocorreu em “objeto” e “projeto”, cujasformas com “c” a norma culta aboliu.

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 O DIABO181931 [1942]

 

– Mas que bobagem, Belazarte – fazer a gente entrar a estas horas numacasa desconhecida!

– Te garanto que era o Diabo! Com uma igura daquelas, aquele cheiro,não podia deixar de ser o Diabo.

– Tinha cavanhaque?– Tinha, é lógico! Se toda a gente descreve o Diabo da mesma maneira!

Está claro que não hei-de ser eu o primeiro a ver o Diabo, juro que era ele!

– Mas aqui não está mesmo, vam’ bora. Engraçado... parece que a casaestá vazia...

– Vamos ver lá em cima. Está aí uma prova que era o Diabo! se vê que acasa é habitada e no entanto não tem ninguém.

– Mas se era mesmo o Diabo decerto já desapareceu no ar.– Isso que eu não entendo! Quando vi ele e ele pôs reparo em mim, fez

uma cara de assustado, deitou correndo, entrou por esta casa sem abrir aporta.

– Pensei até que você estava maluco quando gritou por mim edesembestou pela rua fora...

– Bem, vamos ficar quietos que aqui em cima ele deve estar na certa.Remexemos tudo. Foi então que de raiva Belazarte inda deu um

empurrão desanimado na cesta de roupa suja do banheiro. A cesta nemmexeu, pesada. Belazarte levantou a tampa e

– Credo!

Gelei. Mas imaginava que ia ver o Diabo em pessoa, em vez, dentro dacesta, muito tímida, estava uma moça.– Não me traiam, que ela falou soluçando, com um gesto lindo de pavor

querendo se esconder nas mãos abertas. Era casada, se percebia pelaaliança. Belazarte falou autoritário:

– Saia daí! O que você está fazendo nessa cesta! A moça se ergueuabatida.

– Sou eu mesmo... Mas, por favor, não me traiam!

– Eu, quem!Ela baixou a cabeça com modéstia:– Sim, sou o Diabo...

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E nos olhou. Tinha certa nobreza irme no olhar. Moça meia comum, nembonita nem feia, delicadamente morena. Um ar burguês, chegando quandomuito à hupmobile.19

– A senhora me desculpe, mas eu imaginei que era o Diabo; se soubesseque era uma diaba não tinha pregado tamanho susto na senhora.

Ela sorriu com alguma tristeza:– Sou o Diabo mesmo... Como diabo não tenho direito a sexo... Mas Ele me

permite tomar a figura que quiser, além da minha própria.– Então aquela igura em que a senhora estava na frente da igreja de

Santa Teresinha.– Aquela é a minha caderneta de identidade.– Não falei!– Só quando é assim quase de madrugada e já ninguém mais está na

rua, é que vou me lastimar na frente das santas novas.– Mas por que que a senhora... isto é... o Diabo toma forma tão pura de

mulher!– Porque só me agradam as coisas puras. Já fui operário, faroleiro,

defunto... Mas prefiro ser moça séria.– Já entendo... É deveras diabólico...A moça nos olhou, vazia, sem compreender.

– Mas por quê?– Porque assim a senhora torna desgraçada e manda pro inferno umafamília inteira duma vez.

– Como o senhor se engana... Pois então não façam bulha.E por artes do Diabo principiamos enxergando através das paredes. Lá

estava a moça dormindo com honestidade junto dum moço muito moreno echato. No outro quarto três piazotes lindos, tudo machinho, musculosos,derramando saúde. Até as criadas lá embaixo, o  fox-terrier , tudo tão calmo,

tão parecido! Mas a felicidade foi desaparecendo e o Diabo-moça estava alioutra vez.– Foi pra evitar escândalo que quando os senhores entraram iz minha

família desaparecer sonhando. Meu marido esfaqueava os senhores...– Estavam tão calmos... pareciam felizes...– Pareciam, não! Minha família é imensamente feliz (uma dor amarga

vincou o rosto macio da moça). É o meu destino... Não posso fazer senãofelizes...

– Mas por que a senhora está chorando então?– Por isso mesmo, pois o senhor não entende! Meu marido, todos, todos

são tão felizes em mim... e eu adoro tanto eles!...

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Feito fumaça pesada ela se contorcia num acabrunhamento indizível. Derepente reagiu. A inquietação lhe deformou tanto a cara que icou dumafeiúra diabólica. Agarrou em Belazarte, implorando:

– Não! pelo que é mais sagrado nesse mundo pro senhor, não revele omeu segredo! Tenha dó dos meus filhinhos!

– É! mas ainal das contas eles são diabinhos! A senhora assim de moçaem moça quantos diabinhos anda botando no mundo!

– Que horror! meus ilhos não são diabos não! lhe juro! eu como Diabonão posso ter filho! Meus filhos são filhos de mulher de verdade, são gente!Não desgrace os coitadinhos!

Nem podia mais falar, engasgada nas lágrimas. Belazarte indeciso meconsultou com os olhos. Ainal era mesmo uma malvadeza trazerinfelicidade, assim sem mais sem menos, pra uma família inteira. A moçacreio que percebeu que a gente estava titubeando, fez uma arte do Diabo.Principiamos enxergando de novo a curuminzada, o  fox , tão calminhos... Sóo moço estava mexendo agitado na cama, sem o peso da esposa no peito. Seacordasse era capaz de nos matar... A visão nos convenceu. Seria umacachorrada desgraçar aquela família tão simpática. Depois o brutoescândalo que rebentava na cidade, nós dois metidos com a Polí- cia,entrevistados, bancando heróis contra uma coitada de moça. Resolvi por

nós dois:– A senhora sossegue, nós vamos embora calados.– Os senhores não me traem mesmo!– Não.– Juram... juram por Ele!– Juro.– Mas o outro moço não jurou...Belazarte mexeu impaciente.

– Que é isso, Belazarte, seja cavalheiro! Jure!– ...juro...A moça escondeu depressa os olhos numa das mãos, com a outra se

apoiando em mim pra não cair. Era suave. Pelos ofegos, a boca mordida, osmovimentos dos ombros, me pareceu que ela estava com uma vontadedanada de rir. Quando se venceu, falou:

– Acompanho os senhores.E sempre evitando mostrar a cara, foi na frente, abriu a porta, olhou a

rua. Não tinha ninguém na madrugada. Estendeu a mão e teve que olharpra nós. Isso, caiu numa gargalhada que não parava mais. Torcia de riso, enós dois ali feito bestas. Conseguiu se vencer e virou muito simpática outra

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vez.– Me desculpem, mas não pude mesmo! E vejam bem que os senhores

juraram, heim! Muito! muito obrigada!Fechou depressa a porta. Estávamos nulos diante do desaponto. E

também daquela placa: 

“DOUTOR Leovigildo Adrasto Acioly de Cavalcanti Florença, formado emMedicina pela Faculdade da Bahia, Diretor Geral do Serviço de Estradas deRodagem do Est. de São Paulo. Membro da Academia de Lettras do SiaráMirim e de vários Institutos Historicos, tanto nacionaes comoextrangeiros.”20 

18. NOTAS DA EDIÇÃO | Crônica publicada, com variantes, na coluna de MA no Diário Nacional , emSão Paulo, 26 de abril de 1931 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp.371-374). A personagem Belazarte, companhia do cronista que perambula pela cidade de SãoPaulo, nasce nas “Crônicas de Malazarte”, série de Mário de Andrade na revista  América Brasileira,do Rio de Janeiro, em 1923-1924 .19. Mulher bela, curvilínea, na gíria da época, no Brasil; metáfora ligada ao automóvel de luxofabricado pela empresa Hupmobile de Detroit, nos Estados Unidos. Fundada em 1908 pelos irmãosRobert e Louis Hupp, existiu até 1941.20. Respeitamos o anacronismo ortográico que sustenta a paródia e a sátira: “Diretor”, sem “c”,coexistindo com “Lettras” e “nacionaes”, por exemplo. Partidário da ortograia modernizante, o

autor escreveu “Bahia” apenas nesse caso. Em todas as outras ocorrências da palavra ao longo dolivro, adotou “Baía”, aqui reconduzida à graia oicial, consideradas as declarações dele nas crônicasOrtograia, em 7 e 8 de dezembro de 1929, 18 de janeiro e 5 de fevereiro de 1930, no DiárioNacional , recolhidas em Táxi e crônicas no Diário Nacional   (ed. cit., pp. 165-168, 185-188). Eis asdeclarações:“Quem escrever inglês dum jeito que não está nos dicionários, erra. Tem a responsabilidadenacional de se tornar digno de censura. [...] O importante é ter uma ortograia, o importante éadquirir o direito de errar. Nós atualmente não temos uma ortografia porque a chamada ‘usual ’ é anuvem mais inconsistente e inconstante que jamais não escureceu estes céus napolitanos. AAcademia, num dos seus gestos mais fecundos, nos proporciona o direito de errar. Nos dá umaortograia. E nisso ela andou muito mais próxima do Modernismo artístico brasileiro do que nem

sonhou.” (Ortografia II, p. 167.)“[...] Se só a Academia empregar a Reforma não aceitarei porque não vingará. Mas se a Reforma forsancionada por lei nacional, ensinada nas escolas, usada pelos jornais e papéis públicos,imediatamente principiarei escrevendo nela.” (Ortografia I, pp. 185-186.)“[...] raríssimos são os intelectuais que não tenham já hesitado num caso facílimo desses. O coitadohesita, é obrigado a um raciocínio etimológico, se socorrer do parco latinório escolar; dúvida queembora viva cinco segundos é suiciente pra desviar o escritor da corrente de idéias em que estava,enfraquece o impulso ideativo e desossa a inspiração. Isso constitui um suplício arranhante quedura toda a nossa vida. E tal suplício é que a Reforma vem diminuir enormemente.” (Ortograia II,p. 187.)

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 O CULTO DAS ESTÁTUAS211929 [1942]

 

Fenômeno bem curioso  de psicologia social é a deformação por quepassa freqüentemente nas cidades o culto dos mortos mais ou menosilustres. O culto verdadeiro, sendo subsidiário por demais, raro existe dehomens pra mortos. A gente cultua facilmente Deus, deuses eassombrações, porque pra com essas forças conspícuas do além, o culto émais propriamente uma barganha de favores, um dá-cá-e-toma-lá em que

sempre nos sobra esperança de mais ganhar do que dar. Outro cultopropício é o dos vivos poderosos ou célebres. Os poderosos poderão nosdar um naco da sua força. E viver ao pé dos célebres é o processo maisseguro de sair nas fotografias.

Já o culto dos mortos é pouco rendoso e os homens o foram substituindopelo culto das estátuas. No fundo não deixa de ter bom resultado esteculto: nós substituímos a memória do morto, diícil de sustentar, por umminuto vivo de beleza. Em verdade a função permanente da estátua não é

conservar a memória de ninguém não, é divertir o olhar da gente. O fato éque bem pouco as estátuas divertem... Não só porque são raríssimas asestátuas bonitas, como porque saber se divertir com o feio é já um graumuito elevado de sabedoria, pra ser de muitos.

Até aqui não foi doloroso falar, porém agora principia sendo... Além deser muitíssimo relativa a memória do morto na estátua, será mesmo quemuito cadáver ilustre merece a eternização da escultura? Toda estátuapública tem de representar um culto público, a rua é de todos. Sei bem que

uma unanimidade é coisa democraticamente impossível, porém certoshomens, mais pela idéia que representam que por si mesmos, podemmerecer um culto geral. E se a maioria dos praceanos talvez ignore essehomem, carece não esquecer que a estátua deve ter uma função educativa.

Neste ponto é que a porca torce o rabo. Só enxergo um jeito domonumento, ser educativo: é pela grandiosidade obstruente eincomodatícia. O monumento, pra chamar a atenção de verdade, não podefazer parte da rua. O monumento tem que atrapalhar. Uma dona em

toalete de baile é muito mais monumental na rua Quinze, mesmo sendocatatauzinha, que a estátua de Feijó e a própria escadaria de Carlos

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Gomes.22 A gente passa e indaga logo: Quem será! Isso os comerciantesperceberam muito bem, principalmente depois que chegaram os EstadosUnidos e a eletricidade. É incontestável que o anúncio erguido à “memória”de tal cigarro ou sabonete, no Anhangabaú, é monumento que jamaisColombo não teve.

Tudo isso são coisas que se provam por si pra que eu insista sobre. EmSão Paulo, com exceção do monumento do Ipiranga e o do CondeMatarazzo23 que são os únicos monumentais e educativos, todas as outrasestátuas não passam de mesquinharias. Por que existem?... Se não noscansamos de espetar estátuas nas ruas é porque o nosso egoísmosubstituiu o culto dos mortos pelo culto das estátuas.

A egolatria não consiste apenas na adoração do eu: tudo o que não sejahumanidade como amor social não passa de manifestações interessadas deegolatria. Existe egolatria de família, de classe. E a mais monstruosa detodas: a nacional. Mas se esta é monstruosa, a egolatria de facção é a maismesquinha. A que desmandos estatuários leva o grupo de amigos!...

Em torno dum homem de certo valor, os admiradores vão setransformando, pela freqüência, em “grupo dos amigos de”. Uma quarta-feira morre o homem. O grupo dos amigos ica despojado, num malestarmedonho. Sentimentalizados pela proximidade do vazio, carecem dar um

derivativo ao cincerro do sofrimento pessoal, e se torna imprescindívelsufocar o abatimento por meio duma vitória qualquer. Não é o morto quetem de vencer, esse já está onde vocês quiserem, quem tem de vencer é ogrupo dos amigos. E se note que muitas vezes esses amigos (do morto)nem se dão entre si! O “grupo” se justifica pela admiração sentimentalizadado morto, e esses indiferentes entre si, se percebem irmãos. Não deixa deser comovente. Só não acho comovente é o derivativo: – Vamos fazer umaestátua!

E a estátua se faz. Quais são os que apenas conhecem mais intimamenteCarlos Gomes em suas obras, dentre os que povoaram com porcelanasocasionalmente de bronze a esplanada do Municipal? O que signiicaráVerdi24 pra uma cidade em que a própria colônia italiana preferirá milvezes Os Palhaços25 ao Falstaff 26?... Sim, mas quando um do “grupo dosamigos de” escuta falar na estátua ou mais raramente no morto, jamais nãose esquecerá de sentir (e às vezes proclamar) que foi ele, Ele, quem ajudoua erguer... a memória do morto? Não, a estátua. O ególatra incha todo na

satisfa pessoal duma vitória. O culto continua inexistente. O morto mais quemorto.

Os transeuntes passarão pela estátua, a primeira vez olhando. “É uma

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estátua”, dirão. Os de maior atividade espiritual irão mais longe eprolongarão o pensamento até um “É feia” ou “É bonita”. Poucos irão ler onome, não do morto, mas da estátua. Raríssimos saberão quem é, mas aestes será desnecessário o culto da estátua para que cultivem o morto. Equando muito a estátua daí em diante servirá uma vez por outra comoponto de referência ou marcação de randevu. E para sempre só os turistasa olharão, não pra saber do morto, mas pra se distrair com a estátua. Etodos os turistas veriicarão indiferentemente, só pra meter o pau na terravisitada, “É feia”.

E de-fato será sempre “feia” porque apenas estátua. Um bronzinhomagro, uns granitos idiotas. A tal de vitória do “grupo dos amigos” nãopassou também duma auto-sugestão. A festa se resumiu a uma subscriçãode má vontade e no presentinho coletivo das alunas pelos anos daprofessora: um bibelô.

A rua é de todos, e nela Pereira Barreto, 27 Ramos de Azevedo,28 Feijó ea ininita maioria dos mortos se nuliica. Na rua que é quotidiana, detrabalho e vida viva, eles não adiantam nada. Não passarão jamais deestátuas. Feias.

 

21. NOTAS DA EDIÇÃO | Esta é a primeira das duas crônicas de título idêntico, publicadas na coluna“Táxi” em 24 e 29 de setembro de 1929 (ANDRADE, Mário de. Op. cit., 147); não faz parte,enquanto recorte com indicações autógrafas ou rasuras, do manuscrito de Os filhos da Candinha.22. Em São Paulo, a estátua de Feijó icava no largo da Liberdade; o monumento a Carlos Gomescontinua nas escadarias do Teatro Municipal. Aparece no capítulo XIII de Macunaíma, A piolhentado Jiguê, quando o herói vaga pelo parque do Anhangabaú: “Chegara bem debaixo do monumentoa Carlos Gomes que fora um músico muito célebre e agora era uma estrelinha do céu.”Diogo Antônio Feijó (1784-1843) foi padre, orador sacro, professor, deputado nas cortes de Lisboae no Brasil imperial, ministro da Justiça, regente uno do Império (1835-1837), presidente doSenado e um dos chefes da revolta liberal de 1842 . Antônio Carlos Gomes (1836-1896),compositor brasileiro, consagrado no país e no exterior. Autor de O Guarani  (1870), ópera baseada

no romance homônimo (1857) de José Martiniano de Alencar (1829-1877), a qual suscita aescultura citada. Autor também das óperas O escravo (1889), dedicada à princesa Isabel, e Noite nocastelo (1861), referidas na crônica de Mário Cai, cai, balão! (ANDRADE, Mário de. Taxi e crônicas noDiário Nacional . Ed. cit., pp. 559-561), bem como de Fosca (1873), que considerava a melhor entresuas muitas obras.23. Francisco Matarazzo (1854-1937) nasceu na Itália e imigrou em 1881 para o Brasil, onde sededicou ao comércio de secos e molhados. Ampliando os negócios, fundou uma pequena fábrica e,depois, um dos maiores grupos industriais brasileiros. A família Matarazzo tem papel relevante namodernização do Brasil e particularmente de São Paulo, não só na indústria, mas também nas artes:Francisco Matarazzo Sobrinho (“Ciccillo”, 1898-1977) criou, em 1948, o Museu de Arte Moderna deSão Paulo e, em 1951, a Bienal de Artes Plásticas de São Paulo.

24. Giuseppe Fortunino Francesco Verdi (1813-1901), compositor italiano, o mais famoso erepresentado de todos os autores de ópera.25. As óperas I pagliacci  (1892), de Ruggero Leoncavallo (1858-1919), e Cavalleria rusticana

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(1890), de Pietro Mascagni (1863-1945), conhecidas como os dois maiores expoentes do verismo,são, em geral, encenadas no mesmo programa. Em oposição à inverossimilhança dos enredos e àspersonagens aristocráticas então em voga, o verismo renovou o gênero ao aproximá-lo da vida realdos trabalhadores.26. Última ópera de Verdi (1893). Professor de música do Conservatório Dramático e Musical deSão Paulo, o escritor, ao considerar o apelo popular da obra que julga inferior, lamenta que acolônia italiana deixe em segundo plano o grande ícone não só da ópera, mas da próprianacionalidade.27. Luís Pereira Barreto (1840-1923), ilósofo positivista, utopista da reforma do Estado e dasociedade brasileira.28. Arquiteto do Teatro Municipal de São Paulo.

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 O GRANDE CEARENSE291928 [1942]

 

O dia está feio  e o mar balança mais que nós, cinzento. Um homem doPará sucede ter convivido muito com Delmiro Gouveia 30 e conversamossobre o grande cearense.

Delmiro Gouveia chegou em Pernambuco ainda curumim e se empregouna Great Western. Um ano depois já era faroleiro. Costumava falar quejamais a consciência da responsabilidade não se evidenciara tanto a ele

como nesse posto. Aliás é mais ou menos assim com todos, só que ninguémengorda com lição. Quando botam na mão da gente uma bandeja comcristais, só vendo o cuidado com que transportamos aquilo até a mesa. Masuma hora depois a gente airma uma verdade inexata, destrói a dignidadealheia, faz um ilho, nessa mesma decisão bastarda com que almoça. Edepois dorme a sua sestinha.

Delmiro Gouveia não: esse pelo menos conservou por toda a vida, noespelho dos atos, a imagem do faroleiro rapaz. E foi mesmo um dramático

movimentador de luzes, luzes verdes de esperança, luzes vermelhas dealarma dentro do noturno de caráter do Brasil. Por isso teve o im quemerecia: assassinaram-no. Nós não podíamos suportar esse farol que feriaos nossos olhos gostadores de ilusões, a cidade da Pedra nas Alagoas.

Falaram que Delmiro Gouveia era perverso, era não. Meu companheiroairma que nunca esse Antônio Conselheiro do trabalho não mandou matarninguém. O que ele era mas era duma energia masculina, predeterminadae não ocasional, como entre nós inda é costume herdado do calor solar.

Delmiro costumava falar que brasileiro sem sova não ia, e por sinal quesovou e mandou sovar gente sem conta, bem feito.

Era um gênio da disciplina. Pedra chegou a uma perfeição de mecanismourbano como nunca houve igual em nossa terra. Se um menino falhava aaula, Delmiro mandava chamar o pai pra saber o porquê. Chegou adespedir os pais que roubavam um dia de estudo aos ilhos, por causa dealgum servicinho. Às vezes, com os meninos mandriões, reunia cinco, seis, emandava um negrão chegar africanamente a palmatória na bunda dos tais.

Dentro de casa não permitia ninguém de chapéu na cabeça. Ia pra casa emandava multar o malcriado: chapéu mais pobre, duzentos réis; chapéu de

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couro, um cruzado.A arma dele era principalmente o chicote que manejava como artista de

circo. E tinha birra de mulher fumante. Uma feita, uma dessas cachimbavana porta da rua, muito cismando. Delmiro Gouveia nem se incomodou.Seguiu no trotinho descansado uns trinta metros mais, virou o animal desupetão, veio na galopada e com um golpe justo do chicote arrancou ocachimbo da boca da dona. Que nunca mais fumou.

Tinha a religião da higiene e o ateísmo das esmolas religiosas. Não possorepetir os nomes com que lixava as operárias da iação que iam para otrabalho sem lavar a cara, ou os padres que apareciam na Pedra tirandoesmolas pra coisas longínquas. Mas não recebia mal a ninguém. Só umavez, depois duma experiência inda viva e dolorosa, expulsou, nem bemchegado, um padre sírio que viera com intenção de tirar esmola pra TerraSanta. E Delmiro gritava:

– Terra Santa é esta, seu......!Mas é, heim!... 

29. NOTAS DA EDIÇÃO | Crônica publicada, com variantes, na série “O Turista Aprendiz”, no DiárioNacional , em São Paulo, em 25 de dezembro de 1928, durante a viagem de MA ao Nordeste, entre oúltimo mês desse ano e fevereiro do seguinte. (ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz .

Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades, 1977,1983.)30. De legendária memória no Nordeste, Delmiro Gouveia (1863-1917), ferroviário, comerciante,usineiro, foi pioneiro na exploração do potencial hidrelétrico do rio São Francisco, captando-o em1913 na cachoeira de Paulo Afonso. Ediicou em 1914 , na então remota e pequena vila da Pedra,uma fábrica de linhas de costura cujas inovadoras instalações ofereciam aos operários assistênciamédica, escola e cinema. Concorrendo com marcas inglesas, impôs-se fortemente no mercadonacional e em diversos países da América para os quais exportou. Introduziu o automóvel no sertãoao construir estradas para a circulação de mercadorias em torno de Pedra, rebatizada DelmiroGouveia em 1952 . Tendo acumulado inimigos políticos e econômicos, foi assassinado. Mário deAndrade já havia focali zado Delmiro Gouveia quando alinhou as opções de Macunaíma destroçado

pela Uiara: “Então Macunaíma não achou mais graça nesta terra. Capei bem nova relumeava lá nagupiara do céu. Mucunaíma cismou inda meio indeciso, sem saber si ia morar no céu ou na ilha deMarajó. Um momento pensou mesmo em morar na cidade da Pedra com o enérgico DelmiroGouveia, porém lhe faltou ânimo.” (cap. XII-Ursa Maior.)Note-se o encadeamento desta crônica com a anterior: a unidade reside não só no culto dos grandesvultos históricos que elas iguram, como no olhar reverente, mas irônico, lançado pelo autor ao idealde modernização conservadora que representam.

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 CONVERSA À BEIRA DO CAIS311938 [1942]

 

Outro dia, dia útil,  almocei com um amigo num dos restaurantes domercado no Rio. Talvez tenha me excedido na moqueca de peixe, excelente.Sei que me senti bastante completo, com desejo de icar só, como nosmomentos raros de perfeição. Por isso, meu amigo tendo seus afazeres eeu nada, me despedi gostosamente dele, e iquei banzando, pensamentoentrecerrado, pelo cais da Praça Quinze. Olhava o mar que se descortina

dali, curto, sem a menor oceanidade.Foi quando se aproximou um homem, isto é, não se aproximou não,quando ele falou comigo, pus reparo num homem debruçado no parapeitodo cais. Apontando uma barca rápida que entrava, comentou que decertoestava cheia de tainhas. Não sei por que sentimento de complacência fuiperguntando ao homem qualquer coisa sobre a pesca das tainhas, se nãoera feita de noite, se  a barca então saíra na véspera e vinha atrasada, ouse, marupiara,32 chegava primeiro, nem lembro. O homem secundava

manso, com forte acento português, mirando o mar. Era operário, de-fatoportuguês, com apenas dois anos de Brasil e nenhum co-nhecimento dastainhas.

De repente parou a frase, meio que se virou me olhando pela primeiravez e perguntou:

– Êtes-vous français?– V’oui, que eu falei, com uma espontaneidade tão absurda que nem

pude me divertir com a pergunta. E esta era perfeitamente maluca: nada

tenho de francês nem no corpo nem na fala. Donde vinha agora aqueleportuga me pensar francês! Porém nada me divertia, estava eraespaventado com a espontaneidade da minha mentira. E logo imaginei comprimaridade acomodatícia: a resposta fora um puro relexo de vaidade,pois não tinha dúvida que me timbrava como um elogio pelo ser inteiro,aquela invenção do operário.

A conversa continuou em francês e, está claro, desde então dirigidacuidadosamente por mim. Quis logo saber se o homem estivera na França

(sim), quanto tempo (dois anos), em que cidade (Lião, Marselha).Sobretudo os lugares em que o operário estivera me preocuparam muito

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no começo, pra não coincidir com eles nalguma resposta. Então me situeidesafogadamente ao Norte, em Paris onde nasci, no Havre e em mais duasou três invenções que meu juízo reputou bem pobres geograicamente.Depois fui consertando com paciência a invencionice: meu pai é que erabem francês, viera ao Brasil, servira como gerente numa casa de sedas emSão Paulo (hoje me envergonho da associação de imagens larvar: Lião –sedas), e se casara ainal nesta São Paulo com uma senhora paranaenseque, pra viver em São Paulo, iz ser ilha de militar. Foram em viagem denúpcias para a França e eu nasci em Paris, voilà. Minha mãe fez questão deme registrar no consulado, mas educado num liceu de Versalhes (gostei deVersalhes que aumentou a geograia), tendo passado a mocidade emFrança, me sinto muito mais francês que brasileiro. De resto, estava noBrasil apenas de passagem, colhendo uma herança curta (iz questão do“curta” pro homem não me pedir dinheiro) e voltava dentro de uns trêsmeses. Então metemos o pau no Brasil.

Mas iquei logo com vontade de me vingar do companheiro e meti o pauem Portugal, por causa do fachismo. Mas o português me ajudou. Entãometi o pau na França, meti o pau na Europa e, é incrível! não usopatriotices, mas não sei o que me deu: me deu uma vontade enorme deelogiar o Brasil, iz. Ele aceitou, com indiferença, meus comentários sobre a

doçura, apesar de tudo, desta nossa vida brasileira.De vez em quando eu argotizava33 com aplicação pra me naturalizarbem francês. Ele, por si, contou uma história labiríntica que me pareceumuito mal contada, em que entrava uma mulher bastante rica apaixonadapor ele, mais a ilha dela e com a mesma paixão. Tudo de uma imoralidadeexemplar, certos detalhes!... De repente, tive a noção absolutamente, possodizer, concreta de que o homem estava mentindo. Engoli a mentira todabem quietinho. E concebi concomitantemente o pensamento de que talvez

ele já me perguntasse se eu era francês por simples mentira, apenas prapoder contar sua estadia verdadeira em Marselha e Lião. Mas fui besta,botando importância em mim; e ele tivera que esperar aquelaconversalhada, pra achar ouvidos que escutassem o seu mundo imagináriode sexualidades escatológicas. Estava tão distraído nestas dúvidas, que aconversa entreparou, desiludida. O operário aproveitou a estiada e sedespediu tocando levemente no chapéu. Isto é, boné.

 

31. NOTAS DA EDIÇÃO | No manuscrito de Os filhos da Candinha está o recorte de título análogo, comfonte identiicada na letra do provável remetente, a tinta: “Letras-Baía-7 de Julho 1938”; assinado

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“MARIO DE ANDRADE”; documento com rasuras do escritor, a lápis, criando o novo texto para olivro.32. Palavra indígena para designar pessoa forte, vencedora; bastante usada em Macunaíma.33. Argotizar: falar na gíria.

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 FOI SONHO341933 [1942]

 

– Antão, Frorinda, que é isso! você tá lôca!... Será que você qué abandonáseu negro pru causo de ôtra muié?... Inda que eu fosse um desses misaraveque dêxum fartá inté pão im casa, mais eu, Frorinda! que nunca te dexeisem surtimento! E inté trago tudo de sobra pá gente pudê sê iliz... Quandoque na casa de sua mãi ocê usô argola nas orêia, feito deusa? sô eu, quequero ocê bunita sempe, bunita pr’eu querê bem, e não bunita pá gozá...Quando o Romero comprô aquela brusa de seda pra muié dele, num

comprei logo um vistido intêro p’ocê?... Dêxa disso, Frorinda, eu ixpricotudo! Num bamo agora se disgraçá pr’uma coisinha de nada!

...Eu onte caí na farra, tanta gente mascarado divirtino, você tava tãolonge pr’eu i buscá... Despois, minha mulé num é pra farra não! eu quismulé foi pá tá im casa me sirvindo cum duçura, intrei na premera venda ebibi. Antão me deu uma corage de sê o que num tenho sido, você bem sabeque num tenho sido, mais quis caí na farra uma vêiz. Inté tava bem tristepruque de repente me alembrei que de-certo o Romero tava im casa cum afamía, im veiz de andá sozinho cumo eu tava, feito sordado na vida... Porémjá tinha bibido ôtra veiz, iquei contente, puis num tenho que dá sastifaçãoninhuma p’u Romero, eu sô eu! Fui dexá as ferramenta na premera vendaque eu sô cunhicido lá, tava todo sujo do trabaio, mai’ justiiquei que pracaí na farra num caricia de me trocá. Farra é vergonha, pá sujo depensamento, sujo de corpo num faiz má.

Agora nem num sei si devo contá o resto, Frorinda, pruque eu quero é

num te mátratá, já tava bem tonto quano incontrei ela. Nunca tinha vistosimiante criatura, mais ela vinha vistida de apache, que agora as muié deupra visti carça no Carnavá... Vai, ela oiô pra mim e falô ansim: “Ôta mulatoproletaro, bam’ fazê cumunismo pá i no baile do Colombo junto.” Eu inténum achei graça, mais porém todos tavum rindo do meu jeito, num quisicá pur tráis, me ri tamém. Intão ela s’incostô todinha e suspirô ingido.Todos caírum numa gargaiada que nem num sei o que me deu: pensei logocumigo que seu negro, Frorinda, é hôme pra uma, duas, déiz muié, eu tava

mêrmo tonto, inté jurguei que ocê havia de icá sintida de seu hôme numdemostrá que era capáis de tudo, dei um tapa na padaria dela que ela vuôlonge. Antão ela chegô ôtra veiz, sem brincadêra, e segredô baixinho:

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“Bamo”? Praquê que hei-de falá... mais me deu ua vontade de i cu’ela.Todos tavum reparando e sinti sastifação. Garrei na cintura dela e fuiandano. Minha tenção era chegá nargum lugá sem gente e dá o fora,porém, você me discurpe, Frorinda, era só tenção, cheguemo no Colombo.

Foi a conta! Ansim qu’inxerguei aquela gentarada na maió imoralidade,me cunvinci diinitivo que tinha caído na farra, era tudo um sonho, nadanum fazia má, bibi, dancei, caçuei c’os ôtro, ela só se ajeitano pá meu lado...Despois, quano me cunvidô pá i cu’ela, eu disse: “eu vô”.

E agora você num qué mais eu só pur causo dessa mulé!... Ocê támaginano que tenho argum amô pur aquela pirdida!... Eu inté paguei ela!...Foi que ela me falô que o pai apareceu lá im casa da patroa e pidiu cincomirréis, dizeno que batia nela, eu tive dó, arrispundi: “Pur isso não, você táquereno i cumigo, intão bamo que despois de eu fazê o sirviço, te dô oscinco mirréis.” Tamém quantas veiz lá no trabaio, passa o bananêro, me dáýa vontade, “Óia aqui, me dá duzentão de banana”, você zanga? Pago, como,num trago niúma pr’ocê, você zanga? diga!... Hôme quano vê muié jeitosa,mermo que num seje sua mulé, vontade ele tem mêmo... Me deu vontadecumo das banana. Tamém cumi, paguei, num truxe nada pro ocê. E ocêzangô!...

Isso de “nossa cama”, “nossa cama”, bamo dexá de bobage, Frorinda! Eu

tava bêbo, bêbado não! tava só tonto, num sei que tontice me deu, numtinha lugá, mato eu num gosto, levei ela pra nossa casa. Eu tava bêbomêmo, púis você divia riagi... Im veiz de saí de casa toda chorano, mechamando de “sem vergonha”, sem-vergonha não! que eu sempe tivevergonha na vida, num róbo, num bebo, nunca iz má pra ninguém! Vô fazêmá é pra mim, pruque si ocê me dexá, sinto que vô sofrê demais de te vêdisgraçada.

...Nem sei si levei ela im casa na tenção de sê na nossa cama, eu quiria é

lugá siguro... você acordô c’u riso dela. Mais porém quano ocê me chamô desem-vergonha na frente dela, me bateu um ódio de tá manêra, eu disse:Há-de sê na tua cama, quente de teu corpo, sua!... E fiz. Você divia riagi!

Puis é... Hoje de-manhãzinha ela me apareceu lá im casa, fazeno um buédanado. Fui me acordando e pricurei logo ocê, era o custume. Ocê numtava... Antão veio tudo num crarão e logo pircibi que tinha feito ũa bestêra.“Ói, que eu falei pr’ela, é mió você num mete cumigo não, qu’eu já sô deôtra.” Ela garrô chorano arto pr’us vizinho, diz-que eu tinha tirado a honra

dela... Fiquei surprindido, mais despois sortei ũa gargaiada, “Ôh negrinha,ocê num vem cum parte não! que quantos num te cunhecêru, heim,negra”!... Mais ela num vê de pará, tava juntano gente, ela gritava que era

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virge, que inté o Sandrino c’o Romero vinherum pá meu lado, falando quesi caricia de tistimunha, eles tavum pá me ajudá. Eu antão iquei tão cegoque crisci pra cima dela, mĩa vontade era matá, me sigurarum. Daí ela saiucorreno, gritano que ia na Puliça. Foi quano o Romero priguntô de ocê, eufui, iquei bem carmo, arrispundi que ocê tinha ido na casa de sua mĩa.Filizmente que ninguém num tinha iscuitado a increnca da noite...

Antão arresorvi vim buscá ocê. Ói, Frorinda, ocê bem sabe que num sôhôme pra tá tirano a honra de muié... Só tirei a honra de uma, foi você,pruque nós dois se pirtincia. Mais porém te dei a minha, que ocê é queguarda a honra de seu negro, num é mêrmo?... diga! E agora, será que ocêtá quereno me disonrá!... Antão você vai dá de mostrá pr’us ôtro que tu éuma disgraçada, quano num é!...

Eu inté num gosto de jurá pruque sô hôme cumpridô de sua palavra,mais... ói! te juro que nunca mais hei-de oiá pra ôtra mulé, é ocê que euquero bem, te juro! Bamo ingi que tudo o que sucedeu num sucedeu, foisonho, e hei-de te prová que foi sonho mêmo, num dexô siná. Bamo cumigo,Frorinda...

 

34. NOTA DA EDIÇÃO | Texto publicado na Revista Acadêmica, ano 3, no  15; Rio de Janeiro,novembro de 1935.

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 MORTO E DEPOSTO351929 [1942]

 

 Jesus Cristo morreu mais uma vez.  Os processos humanos de adoração,repetindo a tragédia medonha, puseram de novo a imagem Dele numcaixão, as tochas conduziram vultos lerdos, o sepultamento se fez. Fizeramcom alarde que percebêssemos a morte de Jesus e muitas almas icaramcheias de cuidados.

De alguns anos para cá, principalmente depois que a guerra grande se

acabou, a morte de Jesus se torna cada vez mais insoismável. Ahumanidade contemporânea, como coletivo, se afasta cada vez mais daimagem de Jesus. A morte Dele é um enterro anônimo que atravanca asruas, tem um rito impossível. As prefeituras e as polícias deviam de proibirisso, como proíbem outros hábitos que não são da época mais.

É que Jesus não está morto apenas, está morto e deposto. Bem que Elefalara, no seu conhecimento extemporâneo, que o reino Dele não era destemundo... Mas possuía uma grandeza tão imensa que, além de salvação

individual dos homens, Jesus se tornou uma razão-de-ser social e deuorigem a uma civilização.Os homens também não tiveram a culpa disso, porque as civilizações

transcendem às vontades humanas, mas essa foi a causa dos cuidados deagora. Se fez a Civilização Cristã que, apesar de todas as grandezas dela, éum insulto à grandeza de Jesus.

Mas isso não é o pior. O pior é que ela, que nem todas as civilizações,tinha que se acabar e se acabou. A humanidade de hoje, apesar de todas as

ligações que ainda a prendem à Civilização Cristã, tem outra maneiraconcreta de ser, outra moral prática, outros sentimentos, ideais e paixõesimediatas. E a gente assiste a essa fragilidade humana ridícula que faz comque os destroços da Civilização Cristã despenquem sobre o corpo mortoDaquele que, por sua grandeza, teve a fatalidade de a criar. Assim Jesusnão está só morto não. Está deposto. Ele perdeu toda a magnitude social enem um prisioneiro no Vaticano é mais.

Ora graças a Deus!

Até que enim vai se acabar também toda a cegueira que desvirtuavaquase que completamente a vida terrestre de Deus. Jesus morreu pra nos

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salvar da terra, não pra nos salvar num pedaço de terra. Liberta a iguraDele de todas as condições sociais e apetites civilizadores que Amascaravam, Ela se livra da vaidade nossa. Agora Jesus está bem libertomesmo, e talvez o ato mais prodigioso da simbologia católica seja essa trocade Roma por dinheiro. A covardia de Mussolini inventou o gesto maisgenial desse agudíssimo “moderno”. Quanto ao gesto do papa, depondocontratualmente Jesus de píias realezas de homem, se choca asensiblerie36 de muitos católicos frouxos, é de deveras uma inspiraçãodivina. Jesus preso por despique! preso por um muro!... Não havia maiorrebaixamento da divindade. Não havia concepção mais anticonceitual dadivindade. E não havia símbolo mais inútil.

Morto e deposto, Jesus se libertou enim. Agora é um deus unicamentedivino. Não é mais culpa de nada e nem desculpa. Está isento daderradeira evidência. Os que acreditam Nele, seja por fé, seja porconhecimentos ilosóicos ou religião, estão com as orações libertas. Ficouaté inútil discutir se a oração tem de ser adoração primeiro e pedidodepois. Ato de medo, ato de coragem: a oração não possui mais nenhumavalidade terrestre. O reino de Jesus não é deste mundo. As curas se fazemcom ou sem Ele, os ganhos de di-nheiro, de futebol, de amor, com ou semEle. A gente não pode mais estatisticar as forças de Deus. Jesus está morto

e deposto. A união com Ele agora é como o brilho inútil das estrelas.37Porque a oração cada vez mais adianta menos. Ou melhor: não adiantanada. Todas as prerrogativas individuais não têm mais nenhuma validadepara a civilização que está nascendo. A própria felicidade humana é umaexacerbação espúria do individualismo. Cacoete pessoal que não interessaàs preocupações sociais, que não adianta nem atrasa o conceito nascentede civilização. Pro facho;38 pro hitlerismo; pros sovietes, a própriagrandeza moral do indivíduo é um fantasma desprovido dos seus sustos.

Inútil ao mecanismo social, onde tudo e todos estarão controlados. Quemquiser que a tenha, é indiferente. E por isso aqueles que agora se unem aJesus fulgem do brilho inútil das estrelas.

 

35. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha está o datiloscrito com rasuras alápis do escritor e indicação da publicação na revista carioca Movimento Brasileiro, nº 4 , em abril de1929.36. “Sensibilidade exagerada”, em francês. O gesto a que se refere o texto é a assinatura do Tratado

de Latrão, em 1929, entre Benito Mussolini (1883-1945) e o papa Pio XI (1922-1939). O acordocriou o Estado do Vaticano, restaurando o poder temporal do papado.37. Expressão usada no final de Macunaíma.38. Mantivemos a forma utilizada por MA para “fascismo” e “fascista”: “fachismo” e “fachista”,

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abrasileirando a graia segundo a pronúncia italiana comum na São Paulo da época. O  fascio(“feixe”) foi adotado como emblema pelo totalitarismo italiano, numa alusão ao feixe de varas que olictor, oicial da Roma antiga, carregava, com uma machadinha, ao escoltar os juízes para asexecuções.

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 SOBRINHO DE SALOMÉ391931 [1943]

 

 A respeito do sr. general   que protestou por Menotti del Picchia40 terabusado do nome dele num romance, lembrei de tirar dos meus guardadosesta carta que encontrei numa revista alemã e traduzi:

 Sr. Diretor:Muito me penalizou o estudo ‘Psicologia de Salomé’ publicado no número de agosto da

vossa conceituada revista. Eu que sou leitor assíduo dela e conceituado (sic) em nosso

comércio não posso francamente compreender que motivo levou o Sr. e o autor do artigo, quenão me conhecem, a me ferir tão profundamente em minha honorabilidade. O mais provávelé ser o referido artigo fruto da campanha anti-semita que agora principia se desenvolvendoentre nós. Mas o Sr. não achará, por acaso, que é a mais clamorosa injustiça culpar umapessoa do sangue que lhe corre nas veias? Tanto mais sendo essa pessoa tão bom cidadão doImpério que deixou  no abandono a joalheria herdada, para se sujeitar patrioticamente aoshorrores e desperdícios do serviço militar! Minha tia Salomé não deixou filhos, é verdade, maseu sou sobrinho dela, único sobrinho, pois minha santa Mãe também não queria ilhos. Mascomo sobrinho não deixarei sem reconsideração os exageros e mesmo mentiras tãolevianamente expostos no referido estudo.

Assim, são positivamente exageradas as airmações do articulista sobre a liberdade moral

de minha tia Salomé. Posso lhe garantir, Sr. Diretor, que ela não foi uma rameira vulgar, nemjamais se deu à conquista de potentados, imperadores e reis, sem que tivesse o mínimo penchant ,41 o mínimo béguin42 por eles. Não posso contestar que minha tia manteve umavida bastante liberdosa, tendo mesmo compartilhado o leito de vários senhores, sem quesantiicassem tais convívios as bênçãos de Deus. Mas nunca, oh nunca, Sr. Diretor, ela sedeixou levar pela ambição do dinheiro, mas por fatalidades afetivas que nem poderemoschamar levianas, porque era a própria intensidade prodigiosa desses afetos que provocava arápida caducidade deles. Eis aí, Sr. Diretor, uma sutileza psicológica que escapou ao psicólogoda vossa revista! A rapidez com que se desfazem e morrem as paixões intensas demais isso éque ele devia estudar, justiicando por suas observações a tresloucada vida de minha tiaSalomé. E será propriamente ela a culpada dos desvarios que praticou, ela, mulher fraca, enão os detestáveis costumes da vossa e minha gloriosa Alemanha? Não seria esse o momentopara o articulista proligar a imoralidade em que vive atualmente a nossa alta nobreza (acarta é anterior a 14 , bem se vê), imoralidade de que minha tia foi infeliz vítima, imoralidadeque certamente conduzirá o nosso país à guerra e à ruína? Não dou dez anos, não haverámais joalherias nem dinheiro na Alemanha! E por minha tia ser semita, havemos de prejulga rlevianamente que ela se conduziu apenas pela paixão do dinheiro? O vosso articulista, S r.Diretor, não passa dum psicólogo vulgar.

E que mentiras mais desbragadas, essas a que ele dá curso, airmando que minha tiadançava nua e tinha instintos sanguinários, pelo complexo do Anti-Édipo! Onde ele ouviu isso!Minha santa Mãe, que foi inseparável de minha tia Salomé e freqüentava as mesmas festas,

muitas vezes entre lágrimas, quando papai estava na joalheria, evocava comigo os tempos dedantes e me contava quem foi minha célebre tia. Pois jamais ela se referiu a essas coisas.Posso lhe garantir, posso mesmo lhe jurar pela memória de minha mãe, que minha tia Saloménão foi bailarina. E como poderia ela dançar, se todos sabiam que ela manquejava um

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pouquinho desde jovem, devido ao escandaloso incidente de Friedrichstrasse, em que a balado príncipe W. lhe espatifou o joelho direito? Minha tia Salomé jamais dançou, e muito menosdançou nua, embora aos seus familiares confessasse muitas vezes ser um dos seus maioresdesejos dançar num terraço, ao pálido clarão do luar, uma valsa de Waldteufel.43

Quanto ao incidente do príncipe W., instinto sanguinário teve ele que a quis matar. Eposso ainda lhe garantir que nunca ela pediu a cabeça do príncipe a ninguém, pois até minhatia confessava constantemente a coincidência estranha de jamais ter se encontrado, em festasíntimas, com o nosso grande Imperador! A quem pediria ela então a cabeça do príncipe? Deresto, minha tia não se chamava Salomé! Eis um detalhe psicológico que não escaparia aovosso articulista, se ele fosse profundo no assunto. Salomé foi nome adotado. O verdadeironome de minha tia era Judith.

Esperando, Sr. Diretor, que esta carta tenha o merecido acolhimento de vossa revista, eassim se faça justiça à minha tia já morta, continuo seu admirador estomagado (o termo eraintraduzível) e respeitoso,

 FRANZ

 

39. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão da crônica que, no manuscrito/“exemplar de trabalho”,apresenta variantes em relação à primeira, publicada em 27 de setembro de 1931, na coluna deMário de Andrade no Diário Nacional , em São Paulo (Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp.437-439).40. Depois do artigo Estrela solitária-II, em sua coluna “Vida literária”, no Diário de Notícias do Riode Janeiro, em 16 de junho de 1940, Mário coloca, entre os “Livros recebidos”, Salomé; na mesmacoluna, em 21 de julho, promete “estudar o importante romance que o sr. Menotti del Picchia acabade publicar”, mas nada escreve de fato ( Vida literária. Ed. cit. pp. 214 , 231). O general referido étalvez Bertoldo Klinger no prefácio da edição Tecnoprint de Kalum.

41. Galicismo corrente na época; inclinação.42. Paixão amorosa súbita e passageira. Galicismo em voga na época.43. Emile Waldteufel (1837-1915), compositor francês, autor da famosa Valsa dos patinadores(1882).

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 A PESCA DO DOURADO441930 [1942]

 

Quando chegamos  na barranca do Moji, andadas oito léguas decabriolante forde, era madrugada franca. O rio fumava no inverninhodelicioso. Vento, nada. E a névoa do rio meio que arroxeava, guardando nabrancura as cores do sol futuro.

Estivemos por ali, esquentando no foguinho caipira que é o cobertor danossa gente. Estivemos por ali, esfregando as mãos, tomando café,

preparando as varas. Eu, como não tinha esperança mesmo de pescarnenhum dourado, fui pescar iscas no ceveiro. Isso, era atirar o anzolzinhodesprezível n’água, vinha cada lambari enganado, cada tambiú e mesmouma piabinha comovente. Nove bastavam, me falaram.

E a rodada principiou. João Gabriel dizia que era preciso pescar já,porque depois, com o dia, a água esfriava, entenda-se! Do lado do oriente ohorizonte se cartão-postalizava clássico; e os vultos das “ingaieiras”, dosjatobazeiros e do timboril do rumo já se vestiam de um verde apreciável.

Eu me esforçava por pescar direito. Olhava a altura da vara do outropescador, copiava com aplicação os gestos dele. Às vezes me dava umaraiva individualista e, só por independência ou morte, batia com a iscaonde bem queria, longe dos lugares de água tumultuosa, preferidos pelosdourados. Foi numa dessas ocasiões que atrapalhei o io de aço do anzol navara, e o lambari da isca, juque! me bateu no nariz. A natureza inteiramurmurou “Bem feito!” e me deu uma vontade de morrer. João Gabriel,que ia de proa, olhou pra mim, não riu, não censurou, nada. Continuou

proando a canoa. Essa inexistência de manifestação exterior destes que merodeiam, a deferência desprezante, a nenhuma esperança pelo moço dacidade, palavra de honra, é detestável. Castiga a gente. Oh vós, homens queviveis no sertão, por que me tratais assim! Quero ser como vós, vos amo evos respeito!

Estava eu no urbano entretenimento deste pensamentear, quando acanoa tremeu com violência. Olhei pra trás e o companheiro pescadordançava num esforço lindo, às voltas com a vara curva. Por trás dele a

aurora, me lembro muito bem; e tive a sensação de ver um deus. Mas odourado, não sei o que fez, a vara descurvou. O peixe se livrara e o deus

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virou meu companheiro outra vez. Fiquei com uns vinte contos desatisfação.

Mas Nêmesis45 não me deixou feliz. Veio um desejo tão impetuoso deum dourado, pelo menos beliscar meu anzol, coisa dolorosa! torcia compaixão, pedia um dourado, me lembrei de fazer uma promessa a NossaSenhora do Carmo, minha madrinha, me lembrei das feitiçarias de catimbó,e principiei por dentro cantarolando a prece da Sereia do Mar. 46 Eis quepercebi a minha linha de aço navegando por si mesma rio abaixo.

– Puxe!Isso, dei um arranco de três forças, iquei gelado, meu coração ploque!

ploque!– Não bambeie a linha!A linha, não era eu que bambeava não! bambeou, ergui a vara, o

dourado pulou um metro acima d’água, que Virgílio nem Camões nada! umpeixe imenso!

– Não puxe a vara!Não puxe a vara, não bambeie a vara, sei lá! o dourado é que dava cada

puxão, cada bambeio que queria.– Canse ele!Mas como é que se cansa dourado! isso é que nenhum dos meus livros

me contara! A segunda vez que o bicho pulou fora, eu já não podia mais decomoção. Palavra-de-honra; estava com medo! Tinha vontade de chorar, oscompanheiros não falavam mais nada, tinham me abandonado! ôh que sermais desinfeliz!

Mas pesquei! Teve alguém inalmente que me ajudou a tirar o douradoda água, cuidou dele, guardou-o no viveiro da canoa. Eu, muito simples, praum lado, jogado fora, pela significação do bicho que era mesmo importante.

Não fazia mal não... eu mesmo estava me dando uns ares de coisa muito

fácil. Mas quem pescou o bicho fui eu! A respeito de dourado, estouganhando de um a zero contra Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida,Augusto Meyer, Alberto de Oliveira, Castro Alves e outros poetas maioresque eu.47

 

44. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão do texto, no manuscrito/“exemplar de trabalho”, comvariantes em relação à primeira, no Diário Nacional , São Paulo, 6 de julho de 1930 (Táxi e crônicasno Diário Nacional . Ed. cit., pp. 219-220). O escritor conservou em seu arquivo o retrato de julho de

1930, em Araraquara, no qual posa com o dourado à beira do rio Moji.45. Confundida por vezes com uma das Fúrias, cabia a Nêmesis, ilha da Noite e do tenebroso Éreboque ficava entre a Terra e o Inferno, castigar os faltosos.

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46. Em sua viagem de turista aprendiz ao Nordeste brasileiro, realizada entre dezembro de 1928 emarço de 1929, Mário teve seu corpo fechado em um catimbó de Natal e recolheu informações,assim como documentos musicais da cerimônia. Nas crônicas Natal, 22 de dezembro e Natal, 3 dejaneiro, publicadas na série “O Turista Aprendiz”, no Diário Nacional , em São Paulo, 18 de janeiro e1º de fevereiro de 1929, o viajante focaliza o catimbó potiguar (ANDRADE, Mário de. O Turista prendiz . Ed. cit.).

47. Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968), um dos principais poetas brasileiros doséculo XX e um dos primeiros a empregar o verso livre, razão pela qual Mário de Andrade oapelidou São João Batista do modernismo. Seu poema Os sapos foi lido no Teatro Municipal, naSemana de Arte Moderna em 1922. Está entre os mais destacados correspondentes de MA.Guilherme de Andrade e Almeida (1890-1969), poeta, tradutor, crítico literário e de cinema,participou da Semana de Arte Moderna em 1922 e fundou, no mesmo ano, com os demaismodernistas de São Paulo, a revista Klaxon,  importante veículo de divulgação das novas idéias. Fezparte da corrente verde-amarelista e da corrente da anta, no nacionalismo da década de 1920.Augusto Meyer Júnior (1902-1970), poeta do modernismo gaúcho, tradutor, pintor, crítico literário.Antônio Mariano Alberto de Oliveira (1857-1937), “príncipe dos poetas brasileiros”, eleito emconcurso promovido pela revista Fon-Fon  em 1924 , tem seus livros na biblioteca de MA, com

anotações deste. Foi alvo do quarto artigo da série de sete, “Os Mestres do passado”, por meio daqual Mário, no Jornal do Comércio  de São Paulo, entre 2 de agosto e 1 º de setembro de 1921,procurou demolir o parnasianismo (BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro-I ;Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974 ,pp.254-309).Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871), poeta e dramaturgo romântico, abolicionista,representa a poesia de altos vôos, dita condoreira.

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 BRASIL-ARGENTINA481939 [1942]

 

Na véspera, o meu amigo uruguaio confessou que viera torcer pelosargentinos. Arroubadamente, com excesso de boa-educação, fui airmandologo que isso não fazia mal, que diabo! etc. Ficou desagradável foi quandoele se imaginou no direito de explicar porque torcia pelos argentinos:

– Você compreende, amigo, nós, uruguaios, temos muito mais ainidadecom os argentinos, apesar de já termos feito parte do Brasil. Até por isso

mesmo!... Por mais que se explique historicamente o que levou um tempo oUruguai a participar do Brasil, nós não sentimos (repare que emprego overbo “sentir”), não sentimos a coisa como se tivéssemos participado doBrasil, e sim como tendo pertencido a ele. A modos de colônia... E isso, pormais esforços que a gente faça, irrita bem. Quanto a ainidades com osargentinos, há muitas... muitas...

Aqui meu amigo uruguaio parou de supetão. Percebi que não queria memachucar. Mas nesse terreno de boa-educação ninguém ganha de

brasileiro, não insisti. Não ousei dar uma liçãozinha de humanidade nomeu hóspede, falando na minha simpatia igual por argentinos, turcos eaustralianos, e outras invencionices maliciosas. Me preocupei apenas emdisfarçar a ansiedade que me enforcava por causa do jogo.

No campo me acalmei com segurança. Estávamos em pleno domínio do“nacioná”, com algumas bandeiras argentinas por delicadeza. Mas naverdade, por causa daquele jogo, estávamos todos odiando os argentinos ea Argentina ali. E dizem que futebol estreita relações, estreita nada! Mas

aqueles milhares de brasileiros, que piadas cariocas! brilhavam na certezada vitória. Desconio que, em casa ou ilhados nos bondes, também tinhamsentido a mesma inquietação que eu disfarçava, mas a unanimidade é umestupefaciente como qualquer outro. De forma que nem bem cadabrasileiro se arranjava em seu lugar, olhava em torno, tudo era nacional! ea certeza vinha: Vamos ganhar na maciota.

E foi nessa atmosfera de vitória que principiou o famoso jogo Brasil-Argentina, de que certamente não tiraremos nenhuma moral. Os nacionais

escolheram o lado pior do campo, com uma ventania dos diabos contra,varrendo tudo, calor, bola e argentino contra o nosso gol. Principiou o jogo.

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Os argentinos pegaram com os pés na bola e... Mas positivamente não estouaqui pra descrever jogo de futebol. Só quero é comentar.

Ora, o que é que se via desde aquele início? O que se viu, se mepermitirem a imagem, foi assim como uma raspadeira mecânica,perfeitamente azeitada, avançando para o lado de onze beijalores. Fiqueihorrorizado. Procurei disfarçar, vendo se me lembrava a que família daHistória Natural pertencem os beijalores, não consegui! Nem sequerconseguia me lembrar de alguma citação latina que me consolasseilosoicamente! Enquanto isso, a raspadeira elétrica ia assustando quantobeijalor topava no caminho e juque! fazia mais um gol. Era doloroso,rapazes.

Mas era também admirável. Quem já terá visto uma força surda, feiamas provinda duma vontade organizada, que não hesita mais, e diante deum trabalho começado não há transtorno político, inanceiro, o diabo! quefaça parar!... Eram assim os argentinos, naquela tarde ilosóica. Não queeles se alardeassem professores de ordem, de energia ou de coisíssimanenhuma. Se alguém desejar saber exatamente o que eu senti, eu senti aGrécia, a Grécia arcaica, no tempo em que se fazia a futura grande Grécia.Dezenas de tribos diferentes se organizando, se entrosando, recebendo mile uma inluências estranhas, mas aceitando dos outros apenas o que era

realmente assimilável e imediatamente conformando o elementoimportado em ibra nacional. Quem quiser me compreender, compreenda,mas no im do quarto gol eu tinha me naturalizado argentino, e estavafrancamente torcendo pra que... nós izéssemos pelo menos uns trinta gols.Mas logo bem brasileiramente desanimei, lembrando que seria inútil umalavada exemplar. Não serviria de exemplo nem de lição a ninguém. Aomenos meu amigo uruguaio foi generoso comigo, não teve o menor gestode piedade. Comentava navalhantemente:

– Era natural que vocês perdessem... Os brasileiros “almejaram” vencer,mas os argentinos “quiseram” vencer, e uma coisa é almejar, outra équerer. Vocês... é um eterno iludir-se sem fazer o menor gesto para aomenos se aproximar da ilusão. Sim, os argentinos escalaram o quadro eeste se preparou para o jogo; mas o que a gente percebe é que, naverdade, há trinta anos que os argentinos vêm se preparando para o jogode hoje. A força verdadeira de um povo é converter cada uma das suasiniciativas ou tendências em norma quotidiana de viver. Vocês?... nem isso...

Os argentinos, desculpe lhe dizer com franqueza, mas os argentinos sãotradicionais.

Eu é que já estava longe, me refugiado na arte. Que coisa lindíssima, que

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bailado miríico um jogo de futebol! Asiaticamente, cheguei até a desejarque os beijalores sempre continuassem assim como estavam naquelecampo, desorganizados mas brilhantíssimos, para que pudessemeternamente se repetir, pra gozo dos meus olhos, aqueles hugoanos 49contrastes. Era Minerva dando palmada num Dionísio adolescente e jácompletamente embriagado. Mas que razões admiráveis Dionísio inventavapra justiicar sua bebedice, ninguém pode imaginar! Que saltos, quecorridas elásticas! Havia umas rasteiras sutis, uns jeitos sambísticos deenganar, tantas esperanças davam aqueles volteios rapidíssimos, umacoisa radiosa, pânica, cheia das mais sublimes promessas! E até o im, nãoparou um segundo de prometer... Minerva porém ia chegando com jeito,com uma segurança infalível, baça, vulgar, sem oratória nem lirismo, ejuque! fazia gol.

 

48. NOTA DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha  está o recorte da crônica Brasil-Argentina, assinada “Mário de Andrade”, com notas dele a lápis: indicação de fonte “Estado 22-1-39”, rasuras corrigindo erros de impressão e modificando trechos para o livro de 1943.49. Referência ao estilo de Victor Marie Hugo (1802-1885), poeta, dramaturgo e romancistafrancês, um dos mais importantes autores do romantismo, escola que se caracteriza, entre outrostraços, pelo recurso constante às fortes emoções e à antítese.

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 ABRIL501932 [1942]

 

 Agora é de novo abril  e voltam os dias perfeitos da cidade paulistana. Naquarta-feira passada ainda era março, mas de repente, com irmeza, atarde amaciou o calorão do dia, veio tão maravilhosamente exata de bonitae boa, que eu percebi dentro de mim abril chegando, o grande mês danatureza da cidade.

Não me importam comparações, me esqueço de outras terras. Abril será

também maravilhoso em Caldas... Mas São Paulo é uma cidade ruim,compadre. Os viajantes que desde o primeiro século andaram porPiratininga, todos exaltam o clima paulistano, a sua salubridade. Me dão aidéia de que passaram aqui todos por abril. Porque São Paulo é umacidade ruim, bem traiçoeira. Aqui moram as laringites, os resfriados e apneumonia. Eis que o calor grosso se enlameia de chuva e, nascendo dosbueiros, bate de supetão uma friagem de morte, que mata mesmo muitasvezes, é a morte encontrada nos desvãos do trabalho do dia.

Porém São Paulo possui abril. Um mês, pouco mais, de tardes sublimes,de manhãs arrebitadamente frias, cheias de vontade de trabalharaudacioso. E noites de meia-estação, macias, cordatas que nem lanela. Épreciso que os paulistanos soltem do ser fechado os sugadores de prazer, oolhar, a boca, o passo, o amoralismo, a preguiça, pra receber com plenitudea ventura do nosso abril.

Eu não me esqueço não que a vida anda medonha sobre a terra, nemque aos paulistas o tempo é de solidão e abatimento. Mas por que as

desventuras humanas e mesmo as dores pessoais hão-de se contrapor àperfeição do ser? Por que se há-de reduzir a felicidade, que éespecialmente uma concordância do indivíduo consigo mesmo e o seudestino, a uma contingência externa? A própria dor é uma felicidade,quando aceita entre os bens que a vida fornece para o equilíbrio do ser e asua perfeição livre.

Este desejo agora de que os paulistanos saibam gozar abril não éprovocado em mim por nenhum diletantismo, nenhuma displicência

desumana que ignore a nossa humanidade. Temos que continuardevorando os telegramas da China, reagindo por todas as formas contra a

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colonização do Brasil, impondo maior justiça entre os homens de mávontade. Tudo isso não esqueço, faz parte do nosso destino, serãoelementos sempre da nossa perfeição humana.

Porém abril chegou de lá detrás da serra, veio verde, luminoso, tão bomcomo um caju do Norte. Nada impedirá que, depois de uma distribuição deveneno e algum gesto de não-colaboração ou sabotagem, o paulistanodesça na sua alameda e vá por aí.

Que celestial o céu está! É uma mistura de rosa, verde e azul, em que umsol estilhaçado deixou milhares de partículas de ouro. As coisas de baixo seescurentam, casas, árvores, com aquela gravidade agradável que os boistêm. As feiúras urbanas se amansam nessa escureza modesta e aspróprias bulhas são como aparições evocadas. A gente se dispersa numapansensualidade também virtuosa, em que o ser se percebe tão idêntico,tão refarto de pausas, complacência e gostos, que nada, compadre, ôh nadasupera nesse mundo a gostosura do nosso abril!

Vamos fugir de norteamericanos, intalianos e nortistas, que são gentescheias de vozes e de gesticulação. Vamos cultivar com paz e muitaconsciência nossas rosas, ruas, largos e as estradas vizinhas. Calmos,vagarentos, silenciosos, um bocado trombudos mesmo, nessa espécietradicional de alegria, que não brilha, nem é feita pra gozo dos outros.

Vamos exercer o nosso paulistismo famoso, em sua expressão maior, abril:as coisas estão desaparecidas, mansinhas, e o céu claro, claro, lá. 

50. NOTA DA EDIÇÃO | Segunda versão, no manuscrito/“exemplar de trabalho”, com variantes emrelação à primeira, publicada em 3 de abril de 1932, na coluna de Mário no Diário Nacional , em SãoPaulo (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp. 513-514).

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 ANJOS DO SENHOR511930 [1942]

 

Os jornais deram   um telegrama de Paris que me deixou meio aéreo...Diz-que um brasileiro, Muniz, realizou num dos aeródromos de láexperiências de um novo tipo de aeroplano estafeta. E que, apesar do mautempo, chuva, nuvens, uma ventania danada, as experiências tinham sido“coroadas do mais completo êxito”. Ora qual será o futuro desse inventonovo de brasileiro: virará Zepelin, 52 como o  aerostato de Bartolomeu

Lourenço,53 ou aeroplano como a libélula de Santos Dumont? Ou dará emnada como o infeliz sonho de Augusto Severo...54Está claro que, de mim, desejo o mais completo desenvolvimento ao já

completo êxito telegráico de Muniz, porém o que me deixou um bocadoaéreo não foi isso não: foi esta mais ou menos curiosa especialidade debrasileiro pela aviação. O que será que os brasileiros têm com os ares!... Éextraordinário. O nosso papel na América tem sido viver no ar. Desde anossa pré-história que os brasileiros, aliás então nem brasis chamados,

vivemos no ar. Porque, sem contar que, segundo a tradição ameríndia,qualquer desgosto que brasileiro tenha, pronto, vai pro céu e viraestrelinha: nós possuímos duas lendas que, segundo os processosuniversitários de exegese, são deveras precursoras da aviação. Uma delasé a da aranha que faz io no chão e espera que passe o vento. Vem umterral, ergue o  io no céu, e lá se vai, gostando bem, a aranha pelos ares. Aoutra, mais bonita, é a que Afonso Arinos55 batizou, não sei bem por que,com o nome de Tapera da Lua. A moça, percebendo-se descoberta pelo

mano que no negrume da noite marcara a amante misteriosa com as tintasdo mato, planta uma semente do cipó matamatá que tem mesmo forma deescada. O cipó cresce num átimo, e a traída sobe por ele, transformada emlua, e ica pra sempre banzando no céu, se mirando na água parada dasipueiras, pra ver se ainda não se acabaram as manchas da tinta.56

Qualquer pessoa medianamente nutrida na facilidade das explicaçõesestá vendo logo que estas lendas são precursoras do mais pesado que o ar.O que me enquizila em ambas é o ligamento que prende as aviadoras à

terra, num caso o io da teia, noutro o cipó. Parece que a interpretaçãomais aceitável é que em ambos os casos se trata de balão cativo. Isso prova

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pelo menos que os antigos habitantes deste mato sem saída eram maissensatos que nós. Andavam no ar, que dúvida! porém sempre esensatamente, em perfeita comunhão com a terra. É verdade que depoisSantos Dumont, também brasileiro sensato, subiu aos ares com a intençãode saber onde levava o nariz e resolver a dirigibilidade dos balões. E de-fato: mesmo quando mais pesado que o ar, levou o dito nariz onde muitobem quis. Mas nós outros... não sei não. Me parece que preferimos oanedótico destino de Gusmão,57 que subiu sem saber onde que iria parar.É exatamente o caso da valorização do café que beneiciou a AméricaCentral, e de todos nós, oh, todos, brasileiros natos, gente pesada que viveno ar e não sabe mesmo nada onde que vai parar.

É triste. Não queremos escutar os experientes cantadores nordestinosque, muito antes de mim, impressionados com a especialidade aerostáticado brasileiro, izeram um coco fabuloso. O solista entusiasmado exclamaassim:

 – Eu vi um aeroplanoAvuano!

 O coro conselheiro avisa logo: 

– Divagá co’a mesa!... Mas o solista romântico insiste no entusiasmo, mentindo como eu

quando pesco dourado: 

– E eu fui no Jaú,Aribu!

 Mas o coro sempre conselheiral: 

– Divagá co’a mesa!...

 Qual o quê: jamais que iremos devagar com a nossa mesa!... Não temos

interesse pelo nosso destino; o que nos entusiasma é a nossapredestinação. Dê a ciência aviatória no que der, caia o Brasil em quemares encapelados cair, o que nos dirige é a predestinação aviatória quefaz com que nos imaginemos uns águias. Quando somos apenas unsborboleteantes anjos do Senhor.

 

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 51. NOTAS DA EDIÇÃO | Esta segunda versão, presente no manuscrito/“exemplar de trabalho”,possui variantes em relação à primeira conhecida na coluna do cronista do Diário Nacional , em SãoPaulo, em 20 de julho de 1930 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp.225-226).52. O mais famoso modelo de balão dirigível, inventado em 1900 pelo conde Ferdinand von

Zeppelin (1838-1917), que lhe deu o nome, naquela época já cruzava os céus do mundo, causandoespécie.53. Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724), cognominado o “Padre Voador”, foi, além desacerdote, historiador e cientista. Inventou, em 1709, o primeiro balão utilizando ar quente, a“passarola”.54. Augusto Severo (1864-1902), engenheiro e político abolicionista, construiu o dirigível Pax, emcuja explosão morreu durante uma experiência em Paris.55. Afonso Arinos de Melo Franco (1868-1916), professor, jornalista, dramaturgo, autor de Lendas etradições do Brasil  (1917), leitura de MA em que está a lenda referida na crônica.56. Mário de Andrade, em sua viagem de turista aprendiz na Amazônia, em 1927, ao recolhersubsídios para Macunaíma, ainda em redação, anota as acepções da palavra: “Matamatá em japonês

signiica: o que vai ser”; a que se refere a duas espécies de tartaruga; e a “escada em que subiu ‘aque vai ser Lua’”. Na rapsódia publicada em 1928, no capítulo XV II, Ursa Maior, se lê:“Plantou uma semente do cipó matamatá, ilho-da-luna, e enquanto o cipó crescia agarrou numa itápontuda e escreveu na laje que já fora jabuti num tempo muito de dantes: NÃO VIM NO MUNDOPARA SER PEDRA.”57. Hidravião em que os brasileiros João Ribeiro de Barros (1900-1947) e Newton Bragaconcluíram uma travessia aérea do Oceano Atlântico, em 1927.

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 ROMANCES DE AVENTURA581929 [1942]

 

Depois do romance psicológico moderno , a gente não pode mais negarque todas as existências de homem são romances legítimos. Já não temsigniicação nenhuma isso da gente exclamar: “A minha vida é umromance!”... Todas o são. E se noventa e cinco por cento dos serespsicológicos deste mundo pensam que não têm muito que contar, não éporque não tenham não. É por simples fenômeno de timidez.

Agora: já é bem mais raro a vida humana se parecer com os romanceschamados “de aventura”. Acho incontestável que o homem no geral seconduz pela fadiga. Já exaltaram demais a curiosidade humana... Temmuitos animais que são curiosíssimos, e uma das coisas mais graciosasdeste mundo é a curiosidade da mosca. Não quero desenvolver esta minhaúltima airmativa pra não me tornar o que chamariam de “anticientíico”,porém, moscas, em vão sois cacetes às vezes, sois mais curiosas quecacetes!

Voltando ao assunto: a história do homem tem sempre sido mal escrita,vive inútil e sem eiciência normativa, porque a vaidade nos faz escrever ahistória das nossas grandezas e não a manifestação evolutiva da nossavulgaridade. São nossas idéias, nossas descobertas, nossos gênios, nossasguerras, nossa economia que a gente enumera, sai mosca! imaginando queisso é a história do homem. E por isso acreditamos por demais em nossacuriosidade, quando realmente ela é esporádica e só de alguns.

O homem no geral se orienta muito mais pela fadiga que pela

curiosidade. E se tão rara é a vida humana que se equipare aos romancesde aventuras, isso vem principalmente da falta de força em seguir paradiante. A fadiga cessa o homem pelo meio, ele ica tipógrafo, sapateiro,médico, fazendeiro, e numa quarta-feira morre assim. O homem não temcuriosidade nenhuma de viver, e as mais das vezes as aventuras chegamsem que ele as procure. Eu estava imaginando em Jimmy da Paraíba, e foimesmo por causa dele que andei curioseando estas considerações,desculpem.

Jimmy era um negrinho como outro qualquer da Paraíba, se chamandoBenedito, Pedro, um nome assim. Doze ou treze anos. Feio como o Cão,

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porém tipo da gente ver. Nariz não havia, ou era a cara toda, com as ventasmaravilhosamente horizontais, dum nordestinismo exemplar.

Quando o conheci, este ano, o menino já estava pedantizado, homemfeito, só respondendo ao nome de Jimmy. A aventura passara e opernóstico até não gostava de falar nela! Ficara do romance apenas avaidade de se chamar Jimmy, a mania de cantar a Madelon59 e desprezaras cantigas brasileiras, diante dos seus doutores.

Jimmy era rapazinho esperto. Um moço paraibano, rico, meio estourado,se engraçou pelo menino e o levou à Europa. Tinha um escritório dequalquer coisa em Paris, Jimmy chasseur ,60 recebendo gente, levandorecado, numa farpela encarnada que o coroava rei da simpatia, umsucessão. Aprendeu o francês, decorou a Madelon, viajou a Itália, vivo quenem galinho-de-campina.

Uma feita o patrão de Jimmy se viu nuns apuros de dinheiro. Um não seibem se rajá indiano estava tão entusiasmado com o negrinho que propôscomprá-lo. E Jimmy, sem saber comprado, salvava o patrão dos apuros, eembarcava, escravo, em Londres, rumo do império das Índias.

Que libertação... ser escravo em pleno século vinte!... Airmo que não temnenhuma imoralidade neste desejo meu. Tem mas é fadiga. Desprover-sede vontades, ser mandado, nirvanização...

Bom, mas Jimmy é que não quis saber deste descanso, escreveu. A mãedele andou chorando desesperada pelas ruas da Paraíba. Havia umbrasileiro escravo de estimação, em Bombaim. A cidade de Bombaim fui euque escolhi pra contar o caso. Mas os jornais principiaram falando. OMinistério do Exterior se mexeu. E Jimmy foi repatriado, livre, nessa ilusãode liberdade com que nós vivemos dizendo “hoje vou ao cinema”, “souinglês”, “me passe o pão”. Em vez: trinta anjos diabólicos peneiraminvisíveis sobre nós, mandando ir no cinema, pedir pão e ser inglês. Nós

obedecemos quase sempre... 

58. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão da crônica no manuscrito/“exemplar de trabalho”; oferecevariantes em relação à primeira versão conhecida na coluna de Mário, “Táxi”, no Diário Nacional,  emSão Paulo, em 13 de abril de 1929 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit.,pp. 85-86). Nos apontamentos diários durante sua viagem ao Nordeste, divulgados no inal daedição de O Turista Aprendiz   (Ed. cit., p. 371), em 7 de fevereiro de 1929, o escritor registra seuencontro com Jimmy.59. Trata-se de uma canção popular da época da Primeira Guerra Mundial.

60. Criado que, trajando libré, encarrega-se de entregas e de outros pequenos serviços domésticos.

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 NA SOMBRA DO ERRO611929 [1942]

 

Outro dia eu errei , e querendo falar em Caldas Barbosa,62 num artigosobre o Aleijadinho, falei em Sousa Caldas.63

Erro desses produz sempre na gente uma impressão tão desagradávelque torna-se inesquecível. Ainal foi bom! e por causa da impressãopéssima, acho que tomar Sousa Caldas por Caldas Barbosa não meacontece mais. Agora icam na espera duma impressão dessas pra

desaparecer, só mais duas confusões permanentes minhas, jamais saberentre Silva Alvarenga e Alvarenga Peixoto 64 qual é o Silva, e entre farinhade mandioca e farinha de milho, qual das duas é a de milho.

Quão inexploráveis são as restrições do espírito!... Desde minha maistenra infância que minha mãe me ensinava a distinguir estas farinhas, masaté hoje um recalque inachável as conserva sem batismo em mim. Sei quediferem. Distingo-as pelo olhar, gosto só duma... Porém se me sãooferecidas pra valorizar a carne-de-sol ou o feijão-de-coco, me acanho

apontando, murmurando “Essa!” pianíssimo, ansioso por saber e sempoder falar a língua das farinhas. Me consolo é recordando meu pai,homem de vontade, mas que morreu sem conseguir jamais saber qual é olado mais doce da laranja. E como não passava sem ela, almoço e janta,setecentas e trinta vezes por ano tínhamos que lhe ensinar esseimprescindível b-a-bá cítrico.

Aliás tenho mesmo ũa memória muito fraca, razão pela qual precisoduma biblioteca muito grande. Minha memória repousa nas folhas

impressas, porém não me lastimo. Imaginação desarreiada galopa maislivre, e, já viram café lorado? assim são minhas surpresas. Além disso aprecaução me obrigou a esta sabedoria de  jamais não discutir embatebocas que o vento leva. Quando falam uma enormidade ao pé de mim,digo “Sei” com bem-aventurança. Eu amo a minha paciência. É mais lentaque um buço, e o fato dela não aparecer nos meus escritos não a desmentenão. É que eu sou pelo menos “em dois”, que nem falam os intalianinhosdos manos que a noite lhes deu. Sou em dois: esse um de que quereis

saber, oh exigências do mundo, que sou eu apenas como um animal deraça que me dei de presente para os meus passeios no Flamengo, e o

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outro, o cheio da paciência, o que não tem nenhuma razão-de-ser terrestre,o que faz a minha felicidade incomparável e sou eu.

Agora esta matemática de dois está me lembrando um dos incidentesmais aborrecidos que me sucederam e a que nem posso chamar falta dememória... Foi uma troca de personalidades e nomes, coisa maluca dumavez. Estava com um amigo e conversa vai conversa vem, ele dizia:

– Beethoven, pouco depois de escrever a Nona Sinfonia... Meio que sorrie cortei a frase:

– Que bobagem, Luís! A Nona Sinfonia é de Mozart.Ele me olhou muito sarapantado e airmou que a Nona Sinfonia  era de

Beethoven. Nasceu uma rápida discussão penosa, eu levado logo aomáximo da exasperação pela coragem do leiguinho me contradizer a mim,profissional do assunto.

Caí em mim mas foi pra ter ódio de mim. Naquele tempo eu inda não erasábio, isto é, não tinha paciência. Deu-se esta confusão temível: o meuamigo pronunciava “Beethoven”, eu ouvia “Beethoven” bem certo, masmeu espírito traduzia “Mozart”. Então a verdade me obrigava a ensinarque quem izera a Nona Sinfonia  fora Beethoven, eu imaginava“Beethoven”, mas pronunciava “Mozart” e escutava “Mozart”!

Hoje ainda, quando penso nesse fato, as mais modernas explicações da

fadiga mental não me satisfazem. E lhes asseguro que o meu sofrimentopor vários dias foi medonho. Imaginei que estava icando louco e esperei.Mas se não me engano esta bem-aventurança não chegou.

 

61. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão no manuscrito/“exemplar de trabalho”, com variantes, dacrônica publicada na coluna do autor, “Táxi”, no Diário Nacional , em 29 agosto de 1929 (ANDRADE,Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp. 143-144).62. Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), o Lereno Selinuntino, poeta árcade, satirizava atémesmo Gregório de Matos Guerra (1633-1696), o Boca do Inferno; introduziu em Lisboa modinhasbrasileiras cantadas ao som de viola.63. Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), sacerdote, poeta sacro e profano.64. Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814) e Inácio José de Alvarenga Peixoto (1743-1793)são poetas árcades ligados à Inconfidência Mineira.

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 O TERNO ITINERÁRIO

OU TRECHO DE ANTOLOGIA651931 [1942]

 

Saí desta morada  que se chama O Coração Perdido66 e de repente nãoexisti mais, perdi meu ser. Não é a humildade que me faz falar assim, masque sou eu por entre os automóveis! Só na outra esquina tive um poucomais de gratidão por meus pesares e me vi. Estava com dois embrulhos namão.

Ambos se destinavam ao Correio e criaram em mim alguma decisão.Minha roupa cor-de-cinza riscava mal na tarde em nuvens e uma quasesensação de nudez me aparteou. Felizmente as auras vieram, batidas davárzea largada, me afagaram, me levaram a outros mundos animais emque é melhor viver.

O ônibus que tomei estava só e eu lia sem querer um artigo em francês.A França me aporrinha porque sempre o que me sobra dela são umasletras grandes, com uns dois metros de altura, em que está escrito: CONGO

BELGE.67 Nunca pude saber donde me vem tal obsessão. É muito velha emmim e por certo anterior ao dia glorioso em que, pela primeira vez, li numlivro de estudo le père e la mère.

O ônibus corria pela rua das Palmeiras, e assim que as letras francesasse recusaram a me ilustrar mais, ixando-se em “Congo Belge”, fechei osolhos pra não ler. Mas é tão desagradável andar de automóvel com osolhos vendados! Acorda a noção do perigo e não se ajusta mais o ser com arealidade. Abri de novo os olhos e fui vendo o que é viajar. Árvore,tabuleta, casa, rua, e Nós, os fabulosos.

Nesta linha de ônibus há uma encruzilhada fecunda em que uns rumampara a praça do Patriarca, outros seguem para o Correio. Esse é ummomento bem feliz pra mim. Quando vou chegando lá, meu ser inteiro seapaixona, há coisa mais volúvel que automóvel!... É inútil a tabuleta docarro confessar nitidamente pra onde vai, se praça do Correio ou doPatriarca, ah, se o ônibus quisesse!... Jamais que ele quer, eu sei, jamais

que ele desejará por vida minha, e disso nascem meus melhoressofrimentos. Não airmo deseje que ele se dirija à praça do Patriarca não.Me transtornava a ternura itinerária, que, como todas as ternuras, só pode

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provir da certeza. Mas se o ônibus quisesse... Todos os passageirosprotestariam com enormes raivas. Eu protestava também. O carro sabedisso, e, por aquela malvadez das coisas contra nós, jamais que nospermite protestar. A docilidade é a vingança das coisas inanimadas. Ficodesolado e sofro com volúpia ali.

Nisto pensava com lentidão majestosa quando o ônibus parou na praçado Correio. Saltei como a primavera. No geral, quando o auto estáchegando ao destino, tomo sempre as minhas precauções pra ser oprimeiro a saltar, mas desta vez estava tão entregue a mim que até meassustou a chegada. Daí a vívida impressão de primavera em que lori.Agilizei-me em volições e uma elasticidade gentil moveu-me o corpo. Fiqueitão agradável que, quando pus reparo em mim, estava tomando um café.

Como é amargamente dramática a reação do bom-senso! Uma comédiacurta me representava tomando aquele impensado café. Era eu, tomandocafé – a vítima. Era a muito mais lógica felicidade de primeiro me libertardos embrulhos, pra depois aprovar melhormente a bebida – o vilão. E, dooutro lado da cena, ainda e sempre a primavera, Ariel, 68 Nosso Senhor, ocantador Chico Antônio,69 enfim, todo o desequilíbrio contra a vida.

Quando alguém não puder se vencer, disfarce lendo as tabuletas. Mas eujuro que o que badala dentro de mim e explode em apoteoses são Chico

Antônio, Ariel, Macunaíma,70 esses entes sem nexo da primavera, que, sóeles, conseguem me ofertar uma paisagem de pureza. Tudo o mais é estavida: jardim inglês, jardim francês e a palmeirinha. Disfarcem, imbecis,leiam as tabuletas!

Eu saudava os que se riam pra mim, cedia passagem às damas, tinhapiedade dos pobres, recusava bondosamente os vespertinos que osjornaleiros me davam, tomei ar de impaciência bem-humorada contra aleve nuvenzinha de poeira, quando o guarda me fez parar. Passai, veículos

da grande cidade anchietana! Eu deixava passar os veículos, cedia espaçoa novas senhoras e octogenários, compreendia os desocupados e me sentiavaidoso desta nossa humanidade. E como é suave registrar embrulhos noCorreio... Esse ar apressadinho de trabalho, a irritação servil dosfuncionários, a fatalidade imponente da compra de selos da Nação...Criados varrem o ediício. Várias pessoas escrevem cartas pros antípodas,os repórteres buscam avidamente assuntos com que encher os jornais deazedume aprazível. E no meio daquela lufalufa prodigiosa, a blusa azul-

cocteau71 de um marinheiro! Felizmente havia doze embrulhos a registrarantes dos meus, e fumei, divertidamente fumei, enquanto a consciência meafagava devagar, sussurando-me no ouvido: – Homem de bem!

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Queria continuar deste jeito contando em pormenor o que iz, vivi, senti,mas porém a intenção de entrar nalguma antologia me prende asvastidões. Fiz o que tinha a fazer, saudei mais conhecidos e, duas horaspassadas da partida, eis-me de novo aqui, no Coração Perdido.

 

65. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão no manuscrito/“exemplar de trabalho”, com variantes, dacrônica que saiu na coluna do autor no Diário Nacional   em 15 de fevereiro de 1931 (ANDRADE,Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp. 337-339).66. Trata-se do apelido que Mário dá à sua casa, à rua Lopes Chaves, 546, na Barra Funda, em SãoPaulo.67. Independente em 1960, o antigo Congo Belga foi conhecido como Zaire entre 1971 e 1997,quando passou a denominar-se República Democrática do Congo.68. Referência à personagem de  A tempestade, no teatro shakespeariano. Deu nome à revista domodernismo paulistano vinculada à música, dirigida por Antônio de Sá Pereira, que, no editorial do

primeiro número, em outubro de 1923, informa: “Ariel, gênio do ar, representa no simbolismo daobra de Shakespeare, a parte nobre e alada do espírito. Ariel é o império da razão e do sentimento”,o oposto de “Caliban, símbolo da sensualidade e da torpeza”.69. MA, em sua viagem de Turista Aprendiz ao Nordeste (1928-1929), conheceu no engenho BomJardim, no Rio Grande do Norte, o cantador Chico Antônio, a quem considerou um artista genial.Recolheu cocos e aboios por ele compostos e o transformou no protagonista de  A vida do cantador ,colocando-o também entre as personagens do romance inacabado Café .70. Macunaíma é um deus de pouco caráter, na mitologia dos índios taulipang e arecuná recolhidano extremo Norte, onde o Brasil se mistura às Guianas e à Venezuela. Suas peripécias foramrecolhidas e divulgadas por Theodor Koch-Grünberg em Vom Roroima zum Orinoco , obra que setornou matriz da criação da rapsódia modernista de MA, Macunaíma o herói sem nenhum caráter ,publicada em 1928. A filiação foi estudada por M. Cavalcanti Proença em Roteiro de Macunaíma.71. Tonalidade de azul criada por Jean Cocteau (1891-1963), poeta, pintor, dramaturgo e cineastafrancês.

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 FERREIRA ITAJUBÁ721929 [1942]

 

Leio Ferreira Itajubá , um dos nomes da poesia potiguar.73 E da poesiaverdadeira do Brasil. Dizem que era muito ignorante e felizmente parecemesmo. As idéias dele não vão além da conversa, o que inda pode ser umapena, porém os versos não têm no geral esses requebros de poética quedeslustram muito a naturalidade do lirismo, nos contemporâneos dele.

 Desse tempo risonho do passadoCheio de tantos sonhos, de ilusões,Eu tenho o peito agora incendiadoNo fogo vivo das recordações...De ti me lembro. E quando, nestas plagas,A luz desaba cristalina em jorros,Eu vejo ao longe sem rumor as vagasE a solidão tristíssima dos morros.

 No geral a poesia de Ferreira Itajubá era assim, verdadeira. E traz por

isso um sabor nordestino bem forte. Às vezes (é certo que leraimpressionado o pouco impressionante Guerra Junqueiro 74) empregaumas palavras que não existem, “aldeia”, “batel”, mas porém este Brasil éum mundo! Outro dia eu censurava Ferreira Itajubá por ter citado anefanda “bonina” nas poesias dele, danou-se! toda a gente riu de mim. Umagentilíssima se levantou, foi ali mesmo no vergel desta casa onde paro e metrouxe de presente, juro pelo que tem de mais perfeito nesse mundo, umoloroso ramilhete de boninas. É de-fato uma lor singela, gente, e comum

por aqui, da mesma forma que “acolá ”, o Brasil é um mundo.Ferreira Itajubá, se não foi um mundo tamanho assim, é dos poetas maisperfeitamente líricos, mais puramente poetas da geração de Bilac.75 Overso dele é duma suavidade impregnante, canta mesmo em melodiagostosa. Traduzido acho que perderá inteiramente o sabor, porém  nãoando convencido que isto seja um mal em poesia. Certos Lieder 76 deGoethe não suportam tradução também, e em alemão são coisas das maispuras. Pura cantoria.

O Brasil precisa conhecer melhor Ferreira Itajubá... 

Como é doce viver o luar velando,

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O luar que alveja a terra florescendo;Moças, a noite clara vem descendo,Cordas, a noite branca vem rolando!Antes que o pescador faça-se ao mar,Antes que a luz ardente apague a neve,Moças, cantai, que a mocidade é breve,Cordas, vibrai que abril custa a voltar!

 As moças e a viola foram o refrão da vida dele... E o fraque.– Quando você casa, Itajubá!– Inda não tenho fraque.Acabaram mandando fazer um fraque pra ele. Então casou, mas

continuou na gandaia. Violão em punho, por praias e ruas suspeitas,cantando. De fraque. Fazia discursos nos circos de cavalinhos. De fraque.

Fraque, aliás, que foi a salvação de calças de vida longa.Cinco meses depois de casado, participava a todos o nascimento doprimeiro filho.

– Itajubá! que é isso! Seu filho não é de tempo!– É sim. O casamento é que não foi de tempo.Ponteava as cordas e soltava outra modinha. E assim viveu até o im, de

violão, de fraque e na gandaia. 

Quero às vezes cantar mas um doente não canta,Que a moléstia lhe trunca as notas na garganta.Morto me considero... As trovas melodiosasEsqueci no infortúnio... As tranças perfumosasQue amei, deixei de amar... Fecharam-se as janelas;Foram-se as ilusões; casaram-se as donzelas.

 

72. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha  está o recorte, com fonteidentiicada em nota de Mário a tinta: “Ferreira Itajubá ”, e a lápis: “19-2-29”, assinado “MÁRIO DE

ANDRADE”, com rasuras do escritor, a tinta, corrigindo erros de impressão e modiicando trechospara o livro de 1943.73. O livro Poesias completas: Terra natal e harmonias do norte   de Manuel Virgílio Ferreira Itajubá(1876-1912), primeira edição de 1927 (Natal: Imprensa Diocesana), encontrado certamente porMA na viagem do Turista Aprendiz ao Nordeste, entre dezembro de 1928 e março de 1929.74. Abílio Manuel de Guerra Junqueiro (1850-1923), poeta e escritor português, de leituracorrente na geração de Mário de Andrade. No primeiro livro deste, Há uma gota de sangue em cada poema  (1917), Telê Ancona Lopez aponta a inluência da poesia simbolista de Os simples  (1892),obra na biblioteca do cronista de Os filhos da Candinha e por ele anotada fartamente nas margens.75. Referência aos poetas parnasianos, entre os quais está Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac(1865-1918), nome insigne dessa estética.

76. Plural de Lied , gênero de composição poética de caráter sentimental e geralmente destinada aocanto, que teve grande voga no romantismo alemão.

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 CAI , CAI , BALÃO!771932 [1942]

 

Imagino que deviam fazer   uma aplicação da lei de Mendel78 praexplicar certas manifestações do nosso espírito misturado, há coisasincríveis... A gente vai indo, vai indo, bastardizando o espírito nas tradiçõesde todas as culturas do mundo, mesclando as tendências duma idade comas das outras épocas do homem, eis que de supetão risca um gesto puro noar, fui eu? O homem, nas alturas sábias dos quarenta anos, vai e pratica um

ato de menino de grupo. Guardo, pra me embelezar a vida, uma peça decerâmica feita por um caipira das vizinhanças de Taquaritinga. Adecoração pintada copia descaradamente as cores de Marajó, e a formareproduz com semelhança de pasmar uma igurinha grega arcaica. Bemsei que se fala nas idéias elementares que tanto podem nascer na cabeçadum botocudo como dum maori ou de um fachista, eu sei. Nem foi minhaintenção, que bobagem! airmar que o caipira de Taquaritinga provinhaesteticamente de Marajó e da Grécia. Mas por outro lado, a realização

espontânea duma faculdade infantil num homenzarrão meditabundo quejá enterrou a infância num cemitério repudiado mostra que o indivíduo,por maior técnica do ser que possua, guarda pra sua riqueza ainexperiência do aprendiz. Por mais organização que tenha, o indivíduosegue mandado por correntes marinhas incontroláveis. A rota pode sermuitíssimo bem norteada, se vai de Belém ao cabo Horn, que nem CarlosGomes vai da Noite no castelo   ao Escravo.79 Mas nada impede e nadaindica, porém, o que a gente vai topar e vai mandar a gente, nesses

incontroláveis oceanos. Pode ser tubarão. Pode ser a princesa de Trípoli.É por isso que agora eu já não tenho mais vergonha do que me sucedeu

outro dia e vou contar. Mas que cadeias misteriosas me puxaram dosdesígnios tão pretos do homem-feito e me colocaram de novo comoaprendiz desses desígnios, plena infância? Tanto mais que nunca na minhavida infantil fui pegador de balão!... O melhor é contar logo.

Era noite avançada, quase vinte-e-quatro horas. São João, a festa jáestava acaba-não-acaba nos barulhos raros do ar. Eu vinha... suponhamos

que tivesse errado o caminho, eu vinha de destinos do homem-feito, forte edesignado em mim. Vinha em procura da rua dos bondes que me levasse

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pra casa outra vez. Era longe, num bairro que dorme cedo. Foi exatamentequando virei a esquina: enxerguei no céu perto a chama viva do balão. Caíacom fúria, por ali mesmo onde eu estava, em três minutos se transformavano cisco do chão. Corri, não tinha ninguém, corri. Fui até na esquina emfrente que virei, o balão vinha cair mesmo na rua, oi lá! como ele vemcertinho, sem moça na janela pra me ver, pego o balão! Estou falando emmoça porque decerto lá nos fundos de mim, se tivesse algumapossibilidade de moça na janela, não vê que eu corria pra pegar balão! Lános fundos de mim talvez estas noções persistissem, mas o fato é que nãopensei em moça, pensei em nada, mas pego o balão.

E tanto não pensei em ninguém que agora vai suceder o espantoso. Nãofui eu só que virei esquina. Também na esquina lá da outra ponta doquarteirão, viraram uma molecada duns cinco ou seis, já dos maiores, pelosdoze, quinze anos, com paus nas mãos. Chegamos quase juntos no espaçoem que se percebia que o balão vinha cair. Nos olhamos. Houve umprimeiro receio na molecada, e em mim a sombra da infelicidade, ia perdero balão! Quis reagir com a autoridade de gente bem vestida, faleirespeitável:

– Deixem que eu pego.De-certo a primeira noção deles foi deixar, mas eram meia dúzia, com

paus nas mãos. Reagiram manso, umas frasinhas resmungadas, depoismais nítidas, e então já eram inimigos.– Já disse que quem pega sou eu!Eu odiava, me desculpem, mas odiava. Me arrebentava, brigando com a

molecada se fosse preciso, mas quem pegava o balão havia de ser eu.Minha vontade até icara meia distraída, eu queria já brigar, bater,machucar muito, se algum ficasse aleijado que bom!

– Não atirem pedra! iquei desesperado, iam estragar o meu balão!

Inventei quase gritando: Sou secreta! eu levo vocês pra... Me ajeitei melhor.O balão só roçou no io do telefone, veio direitinho para as minhas mãosapaixonadas que tremiam lá no alto do ar, feito lor que come mosca. Epeguei o balão. Ainda foi um caro custo apagar a mecha, não tinha prática,sempre olhando de banda, com rancor de morte, os moleques ali meodiando. Agora estava em mim de novo, o balão meu. Chegaram emdisparada as vergonhas, as censuras, e um passado em que nunca fuimoleque de rua, nunca jamais peguei balão. Mas os homens depreciam

tanto a humanidade que trocam qualquer honra por dinheiro. Foi o que iz,cruel. Sorri para os moleques, entreguei o balão a eles, também o quê queeu ia fazer com balão!

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– Não sou secreta não, estava enganando. Pra quê que vocês não vão pracasa dormir, é tão tarde! Olhem... repartam isso entre vocês... vão tomar umcafé...

A gente fala “café” por comodidade, mas está pensando cerveja, pinga, osdesejados prêmios da alegria. Tanto que dei cinco mil-réis à molecada. Oque fiquei pensando, já escrevi no princípio.

 

77. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão, no manuscrito/“exemplar de trabalho”, com variantes emrelação à primeira, publicada em 3 de agosto de 1932, na coluna de Mário no Diário Nacional , emSão Paulo (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp. 559-561).78. Gregor Johann Mendel (1822-1884), monge, professor e biólogo austríaco descobridor das trêsleis (dominância, segregação e independência dos caracteres) que regem a herança genética.79. A primeira e a última ópera do compositor, respectivamente.

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 REVOLUÇÃO PASCÁCIA801930 [1942]

 

O que trouxera um pouco mais de brilho   àquela vidinha quando muitode candonga fora a fundação do Partido Democrático.81 Não é possívelperceber as razões que levaram certos pracistas daquela terra mansa avirarem democráticos, tudo ia tão bem! Mas agora as conversas do largoda Matriz e do clubinho das moças dançarem no domingo chegavam aparecer discussões; e como não era possível a cidadinha ir melhor do que

ia, a questão de perrepista82 ou democrático atingira as raias doidealismo. Discutiam, não os atos locais do compadre prefeito, mas aeloqüência de Bergamini,83 os camarões da Light84 paulistana em quedona Arlinda, a mulher do chefe democrático, levara um tombo, coisasassim. Idealismo puro, como se vê. E o Comunismo. Ah, discutia-seardentemente o Comunismo, esse perigo imediato, que àqueles pracistasse demonstrava absolutamente horroroso, porque ninguém sabia bem oque era.

Repartidos os homens, os democráticos menos numerosos mas semprede cima pela mais cômoda posição de oposição, nem por isso as amizades,os compadrismos e parentagens se embaçaram. Continuou tudo na mesma.Só que agora os jornais da capital eram mais atentamente decorados, oshomens eram mais altivamente gentis, e havia certa emulação na toaletedas senhoras. A missa das oito valia a pena ver.

Quando arrebentou a revolução, os democráticos exultaram. Xingaram opresidente de uma porção de culpas. Os perrepistas apreensivos

secundavam que não era tanto assim. Entre boatos e comunicados oiciais,tudo mentira, não se sabia a quantas o Brasil andava e pela primeira vez,fora os casos de doença grave, a angústia sufocava o peito mansamenterespirador da cidadinha. Oito dias, doze dias, não se agüentava mais! Oschefes perrepistas se reuniram, confabularam bem pedros-segundos, 85depois saíram da Câmara e foram procurar os democráticos que sereuniam na porta do Comércio e Indústria.

– Boa tarde.

– Boa tarde.– Boa tarde.

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Alguém arriscou um “Como vai” mas foi logo censurado pelos olhoscorreligionários.

– Olhem, vamos fazer uma coisa: não vale a pena a gente derramarsangue, nem estar agora diz-que brigando por causa de revolução. Omelhor é fazer assim: se a revolução ganhar, nós entregamos tudo pravocês, tomem conta da Câmara, da coletoria, do jornal, tá tudo em dia, sófalta fechar o balanço do mês. Não se deve nada e tem vinte e dois contosda arrecadação em caixa. Mas se o governo ganhar, continua tudo namesma, está feito?

– Está feito.E comentaram mais sossegadamente os comunicados e sucessos do dia.

Os sucessos do dia estavam sintetizados num sucesso guaçu.86 Osperrepistas tinham sido obrigados a organizar um batalhão que fossedefender o governo. Entre desocupados dos sítios e das vendas, por causadas promessas de dinheiro e principalmente por causa da janta excelenteque veio da casa da prefeita ajudada pelas amigas de partido, o certo é queuns setenta rapazes se exercitavam ao mando de um sargentinho, lá nolargo da Cadeia, mais longe pra não fazer muito barulho. Mas cortava ocoração de todos, o Juca! o Amadeuzinho! até o Treque-treque golquipa 87que nunca deixara a cidadinha perder... Cortava o coração. Ora a partida

do batalhão fora determinada pra esse dia. O certo é que foi chegandoperrepista, foi chegando perrepista na estação, até o prefeito, que nãofalava nem por nada, preparara um discurso. Mas soldado mesmo! Dossetenta apareceram vinte. Vinte tristes, assustados. O sargento xingoutodos de negros, de covardes, e aquilo até icara doendo no coração doschefes perrepistas. Desaforo! xingar nossa gente de negros! são da roça,não entendem!...

Era hora dos jornais, o trem já apitara na curva, mas as verdades

correm mais depressa que os jornais. Nem o trem ainda pousara naestação, seu Marcondes parou o forde na porta do Comércio e Indústria econtou brilhando. Os vinte mártires tinham desertado na estação seguinte,e o sargento fora obrigado a voltar sozinhíssimo com armas e bagagens.Isso foi uma gargalhada geral de satisfação. Peste! negro era ele! bem-feito! E foram todos pra casa jantar, ler jornais. Depois seria o cavaco, feitode largos silêncios, na sublime tardinha da nossa terra.

O resto já se imagina. Viveram mais uns dias de não saber nada, o

Palácio da Liberdade não parava de ser bombardeado em Belo Horizonte,Cruzeiro não acabava mais de cair, etc. Ainal chegou a notícia nocaute,essa verdadeiríssima: ele fora pro forte de Copacabana. Os democráticos já

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estavam com vontade de tomar conta de tudo, mas os perrepistasaconselharam mais calma, vamos esperar conirmação. Veio a conirmação.Então os perrepistas entregaram a Câmara, a cadeia, o jornal, tudo. Eforam conversar na porta do Comércio e Indústria, à espera dos jornais. Sóque agora estavam de cima, já bem menos numerosos, porém, mais vivazese argumentadores, por gozarem das regalias da posição de oposição.

 

80. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão do texto, no manuscrito/“exemplar de trabalho”, comvariantes em relação à primeira, publicada em 9 de novembro de 1930, na coluna de MA no DiárioNacional , em São Paulo (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp. 271-273).81. O sentido da ironia presente nessa caricatura do provincianismo da política de conciliação quecaracterizou vários episódios da Revolução de 1930 (bem como o da sátira à semelhança entre os

supostamente antagônicos adeptos do PD e os do Partido Republicano Paulista) torna-se mais claroà luz da crônica Democráticos, publicada no Diário Nacional   em 17 de novembro de 1929. Nessetexto, Mário ressalta a importância do Partido Democrático, fundado em São Paulo, em 1926, noqual estavam muitos modernistas:“Ora se não me engano foi Graça Aranha quem primeiro falou entre nós que esse movimento derenovação brasileira, aberto faz mais ou menos dez anos, tinha que abraçar todos os campos daatividade humana pra ser razoável e não se restringir às roças da especulação estética. Isso é muitojusto e implica veriicar que entre nós era e é grande a incapacidade do artista em tomar atitudeante os fenômenos da vida pública, especialmente política.” (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas noDiário Nacional . Ed. cit., p. 159.)82. Correligionários do Partido Republicano, então no poder.

83. Adolfo Bergamini (1886-1945), eleito intendente municipal do Rio de Janeiro (1921 e 1923) edeputado federal pelo então Distrito Federal (1924, 1927 e 1930), foi um dos fundadores doPartido Democrático.84. Antiga companhia elétrica e de bondes, de capital inglês, sediada em São Paulo. Os “camarões”,ou bondes fechados e vermelhos, diicultavam a prática de descer sem pagar passagem, aocontrário dos abertos. A palavra “pracistas” reforça a fina ironia aí presente.85. Alusão à prudência nas negociações, traço do imperador brasileiro Pedro II.86. Palavra indígena: grande.87. Mantivemos o aportuguesamento da palavra inglesa goal-keeper , dicionarizada como“golquíper”, hoje menos usada que o sinônimo “goleiro”. Por outro lado, em Brasil-Argentina,conservamos a forma “gols”, hoje consagrada pelo uso, no Brasil.

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 LARGO DA CONCÓRDIA881932 [1942]

 

Sábado de Carnaval . Muita gente no largo da Concórdia noturno ecircunspecto. É verdade que a frontaria do teatro está cheia de luzes, deanúncios prometendo bailes de arromba. O portal de pano pintado ofereceduas mulheres “bem nuas”. Mas tudo está ritual, circunspecto e desolado.

Os passeantes, principalmente italianos e portugueses, a que húngaros,letões, rajam apenas com ar de limpeza inteiramente enganadora, os

passeantes rondam sem nenhum quefazer, numa disponibilidade tãoagressiva que tira qualquer convicção de Carnaval ao noturno.Essa é a gente que forma as rodas em torno dos máscaras e

musiquinhas que dão espetáculo de se divertir. São círculos duros,inquebráveis de gente aproveitando a escureza para dezenas de coisasproibidas. Há uma luta reles pra icar atrás das mulheres, por acaso. Mas amaioria busca fatigadamente que o tempo passe, se agarram uns nosoutros, pra que o tempo passe numa sensação de Carnaval ou de outras

coisas. E a Europa Central roubando.A música é a melhor dessas ilusões fatigadíssimas. O italianinho sujo veioda Argentina e aos ímpetos de Nápoles já prefere cantar seu tango comsotaque de gringo. Mas o que é instinto! bota irmata em cada frase. Nochorinho de três mulatos, violão, gaita e ganzá, os mais corajososprincipiam dançando, homem com homem porque as pretas se recusam adançar na rua. Na maioria é português com português, se pisando. É umsamba carioca da gema, que um dos portugueses dançarinos se lembrou

de humanizar mais, com o canto. Intromete na melodia da gaita quadrinhasdo mais puro e antediluviano Portugal. Acaba vencendo os instrumentistasque agora se resumem a um morno acompanhamento passivo. E o fadoreina, besta. Mais heterogêneo ainda é este mulato macota com os maisgordos braços de dona de pensão que já enxerguei. Fantasiou-se de índia,todinho de pena, que nem guarani de gravura. E acompanhado pelo ganzádo comparsa italiano, canta em falsete a habanera  da Carmen!89 E se eudisser que a dança dele muito se aproxima dum charleston90 tremido,

ninguém acredita.Os basbaques não respeitam nada, vão apertando o círculo que ninguém

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não pode mais nem dançar nem tocar. De repente dá um frenesi nessescarnavalescos apertados: com socos, patadas, cotoveladas, insultosmedonhos alargam um bocado a roda, que um minuto depois fecha outravez.

Só nas rodas dos pregadores de santidade o círculo é mais respeitoso edesleixado na união. Um dos santos é mulato claro, com jeito de bom. Dáuma sensação mesmo extraordinária de limpeza moral, todo bemarrumadinho, avisando o povo que não beba e o im do mundo está perto.“Senhores, está no livro sagrado que o im do mundo vem do oriente, éessa guerra da China com Japão!91 Dum lado icarão os bão, do outro ladoicarão os mau! Dum lado icarão os insolente, doutro lado icarão ossolente!” O outro cheira a cabotino. “Vós num pensai não que a nossa Bíbliaé deferente da Igreja, só que ela é em latim, ninguém entende e a nossa éem portuguêis! na China? é em chinêis! em chinêis!... Nóis num brigamocom ninguém não, nóis aceitemo toda as religião, porque a nossa religião édo amor! Num é cuma desses padre danados que só qué N. S. de Pirapora,Santo Antonho do Buraco, São Pedro da Tabatingüera! A nossa religião édo amor! nóis aceitemo tudo!”

Quase meia-noite. De repente um dos ouvintes olha pra trás, se afasta.Outro olha pra trás, se afasta. Em quinze minutos o largo da Concórdia se

esvazia. Fica um resto de basbaques na frente do teatro, olhando, olhando.Alguma negra fantasiada é um arroubo sublime de nem sei que felicidadessonhadas. Entrou no baile que está sem arroubo nenhum, exatamente. Maso que não imaginam os que não entram, parados ali sem vida, junto aosvendedores de limonada, mendoim, cuscuz, doces, abacaxi. Do outro ladodas árvores a avenida já está ofensivamente larga. Os bondes, os ônibusnem tiveram que suspender a circulação. E são os que mais se tomaram deCarnaval, passando numa velocidade maluca, badalando, fonfonando sem

parada, alarmando a paz circunspecta. 

88. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão, no manuscrito/“exemplar de trabalho”, com variantes emrelação à primeira versão do texto, publicada em 14 de fevereiro de 1932 , na coluna de MA noDiário Nacional , em São Paulo (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp.497-499).89. Canção e dança de origem afro-cubana difundida na Espanha e na América Latina. O Dicionáriomusical brasileiro  de Mário de Andrade comenta as possíveis origens árabes e a inluência dahabanera  sobre o maxixe brasileiro (Ed. organizada por Oneida Alvarenga e Flávia Toni. São

Paulo/Belo Horizonte: IEB/Itatiaia, 1989). O compositor francês Georges Bizet (1838-1875)introduziu uma habanera em sua ópera Carmen de 1875 , que tem como cenário a Espanha.90. Dança de origem norte-americana popular no Brasil nos anos 1920, de compasso binário como

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a habanera, mas de andamento rápido.91. Embora oicialmente a Guerra Sino-Japonesa tenha começado apenas em 1937, com a tomadade Pequim e Nanquim pelos japoneses e a aceitação, pelo governo nacionalista do Sul, da uniãoproposta desde 1935 pelo governo comunista do Norte para combater os japoneses, a invasão já seiniciara em 1931, com a tomada de Mukden.

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 SOCIOLOGIA DO BOTÃO921939 [1942]

 

 A sociologia está milagrosamente alargando  os seus campos deinvestigação. Hoje pesquisa-se sobre qualquer elemento da vida, comresultados inéditos da mais grave importância. Estamos todos, para maiorfelicidade, unanimemente convencidos que uma análise dos nomes dascasas que vendem colchões pode fornecer a razão do excesso de divórcios;e se uns destroem a verdade poenta dos alfarrábios ciscando anúncios de

jornais, outros constroem doutrinas inteiras sobre a urbanização dahumanidade, estudando a rapidez do vôo dos mosquitos. Ora foi meditandosobre isso com os meus botões, que estes me comunicaram a teoria ilustreque venho vos expor.

Porque, senhores, estou agora sendo vítima dos meus botões. Arrancado,sem nenhuma alegria, do meu lar paulistano, eu vivo agora a vida abertade um arranhacéu carioca. Pois nem bem se passaram três meses desteprocesso de viver, me vi forçado a encarar pela primeira vez na existência,

o problema do botão. E principiou se valorizando em mim aquele sublimesilêncio com que minha Mãe repassava semanalmente as minhas roupasvindas da lavadeira, reforçando botões bambos e pregando novos no lugardos que tinham me abandonado. Agora não. Minha Mãe icou lá no seu larde província, eu bracejo na descarinhosa luta da cidade grande, com trintae seis botões bambeados. E pouco a pouco, insensivelmente, já vou meacostumando com esta nova insegurança e com a ameaça imodesta de umarepentina nudez.

Alguns retrucarão que o meu caso é particular, pois sou solteiro. Meucaso é o da maioria, pois nem são as esposas modernas mais hábeis quenós, barbados, no oício de pregar botões (sei de muitas que se recusamaltivamente a fazê-lo), como nem são pouco numerosos os totalmentesolteiros. De resto, aproveito este ensejo tão íntimo para vos apresentarminha criada Maria, luminense benedita e dedicada que se sujeita a sermulher de botão pra mim. Solicitude não lhe falta: lhe falta é ter vindo aomundo naqueles tempos de dantes, em que minha Mãe aprendeu a pregar

botões tão garantidores como um fio de barba de meu avô.O homem, de uns tempos pra cá, não usa mais dos alastramentos

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totalitarismos, arregimentam facilmente as multidões rubicundas, é porqueestas já foram arregimentadas pela psicologia de um botão improvável. Asideologias como os botões só têm valor ocasional. O importante é que obotão tergiverse.

TERCIO:O meu amigo uruguaio me faz notar, porém, que mesmo no meio de tais

e tamanhos desabotoamentos sociais, sempre houve uma reação digna daparte do homem. Infelizmente esta mesma reação veio manchada pelocinismo aventureiro da civilização do botão. Já percebestes, por certo, queestou me referindo ao fecho éclair  ou zip, que não sei como se escreve. Masque contraditória coisa o fecho éclair !93 Duas carreiras de dentinhos eisque se unem e desunem a um risco de mão, zip! Como se fecharam ouabriram? mistério. E a consciência de cinismo oportunista se acentua. Serácerto que o substitutivo zip representa um derradeiro esforço do sersocial, na preservação de sua integridade! Mas de nulo oucontraproducente valor normativo, pela rapidez sem esforço que exige, esempre desleal e conformistamente aproximativo, o fecho zip representabem uma sociedade de panos quentes, misterioso e mítico, sem aquelesevero, realista e irretorquível sentido abotoante do botão de minha Mãe.Só as mães, não mãe-de-apartamento, só as MÃES sabem pregar botões! E

tenho dito. 

92. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha está o recorte de título análogo,do jornal O Estado de S. Paulo , de 30 de julho de 1939, assinado “Mário de Andrade”, com rasurasdo cronista, a lápis, corrigindo erros de impressão e modificando trechos para o livro de 1943.93. “Fecho éclair ” ou “fecho de correr” traduz  fermeture éclair , no francês forma vinculada a éclair ,palavra que isoladamente signiica “relâmpago”. A marca comercial Zipper derivou seu nome de  zip,“silvo, sibilo” ou, coloquialmente, “energia, vigor”.

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 XARÁ, XARAPIM, XERA941930 [1942]

 

Como os nomes  também são quotidianos... Foi até dramático, napróxima-passada revolução: nem bem surgia, na tomada de contas, umFulano dos Anzóis Carapuça que visitara o sr. Júlio Prestes 95 organizarabatalhões patrióticos, etc., surgia logo no dia seguinte outro fulano pelojornal reclamando, que não! que não era ele, era um tocaio apenas, umxará, um xarapim, um xera. Não foi à toa que tiramos todas estas palavras

do tupi pra indicar nossos numerosíssimos homônimos, mas pra quereclamar, gente! Já icou mais que convencionado que todos os brasileiroseram revolucionários pelo menos de coração, ai, que jamais nãopassaremos de uns xarás!

Eu não reclamei, e não reclamo contra os meus assustadores xarapins.Agora mesmo tive um que organizou batalhão e outro que deu dois mil réispra pagamento da dívida do Brasil. Uma vez, pondo os olhos num jornal, naprimeira página vinham grandes notícias anunciando o desaparecimento

do indigente Paulo Prado96 e, virada a página, sob uma cara patibular comcabeleira imensa, contavam que enim estava preso o ladrão Mário deAndrade, especialista em roubar canos de chumbo. Dessa vez iquei umpouco tonto.

Só de outra, porém quase me desonrei reclamando. O correio chegou ena minha correspondência estava um jornal, quem me mandou não sei. Eraum diário de uma linda capital do Norte. Já estive nela, passei lá um diasublime, até colhi conchinhas na praia. Pois fui lendo os títulos do jornal e

imaginem de quem era o escrito sobre José Pompeu da Silva Brasil! erameu! meu-teu-seu-nosso-vosso-deles! Um instinto, mui desprezível sei, depropriedade me convulsionou o entendimento e as sensações. Nem seidizer se gostei, se não gostei daquela literatura, estava tão vasculhado pordentro, o que era aquilo: eu escrevendo sobre José Pompeu da Silva Brasil!No momento não atinei com a possibilidade dum xera palmilhando em vidaconsuetudinária a cidade formosa em que colhi conchinhas uma vez.Pensei num furto, de tal forma o burguesíssimo instinto de propriedade me

abatia as paciências humanitárias, no instante. Pensei num furto. Masfelizmente que não reclamei. Reposto em calma o ser, percebi logo que era

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apenas mais um xera, enfim, seu Xarapim!Nos princípios da minha vida literária, quando ainda neste Coração

Perdido se mantinham ilusões de glória e perpetuação, adoteivaidosamente um nome que conjugava as memórias de meu Pai comminha Mãe... Porém me advertiram suave que, com o nome adotado, euicava tocaio de outro alguém, mais velho e nome-feito, homem de ilosoiase políticas a que qualquer confusão com o nome-feio de artista na certa iaprejudicar demais. Cedi, icando apenas com o que meu Pai me dera. Masque bom seria se eu pudesse ajuntar o nome de minha Mãe ao do meu Pai,sem ficar me parecendo com ninguém!...

Mas na mera coincidência nortista, assim que soube certo da vivência deum xarapim mais moço lá, a sensação de roubo desapareceu, mascompletamente. Que culpa esse moço tem de possuir um nome igual aomeu? Nenhuma. Sujeitou-se a todas as confusões e más-conselheirastradições de minha vida literária precaríssima, o pobre! vítima dasfatalidades xarás. Eu é que me sinto radioso de ter um tocaio mais novoparando em terras mais radiosas. Ah, se eu tivesse a idade dele... Me miro,me narciso nesse moço em vida apenas principiada. Que todos oscurupiras o façam marupiara e grande, como eu não pude ser! Olhe, Máriode Andrade do Norte, às vezes, quando estou nos matos das minhas

viagens, sigo deixando cigarros por todos os ocos dos paus. É proscurupiras. Não creio que esses ilhos primários da imaginação tupi sepreocupem em distinguir os xarás. Fumam os meus cigarros, mas todos osbenefícios que enviam, em vez, vão cair por engano no meu jovem xarapim.Não faz mal. Já não careço mais de beneícios, tenho a vida feita. Mudar denome, agora, já também não posso mais, xará, é tarde para estes quasequarenta anos. Me deixe conservar este nome que é seu, que reconheçocomo seu e que engrandecerá o Pará, xará. É apenas uma homenagem que

a minha experiência oferta à sua mocidade, com doçura ininita. Eesperança. 

94. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão, no manuscrito/“exemplar de trabalho”, com variantes emrelação à primeira versão da crônica publicada em 28 de dezembro de 1930, na coluna de MA noDiário Nacional , em São Paulo (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp.297-299).95. Eleito presidente da República em 1930, Júlio Prestes de Albuquerque (1882-1946) nãochegou a tomar posse em razão da revolução de que tratam as crônicas Revolução pascácia, Meusecreta e Idílio novo, incluídas em Os filhos da Candinha.96. Homônimo mais ilustre e afortunado do desaparecido, Paulo da Silva Prado (1869-1943),administrador público, historiador e ensaísta, colaborou nos mais importantes jornais brasileiros de

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sua época. Um dos três principais mecenas paulistanos do início do século – ao lado de José deFreitas Vale (1870-1957) e Olívia Guedes Penteado (1872-1934 ; personagem da crônica O domda voz) –, conseguiu o Teatro Municipal para a Semana de Arte Moderna de 1922 . Fundador daRevista do Brasil , dirigiu, com Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado (1901-1935), aRevista Nova. Suas principais obras são Paulística (1925) e Retrato do Brasil  (1928).

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 O DOM DA VOZ971939 [1942]

 

Estava hoje à procura de um assunto  quando tive a felicidade deencontrar um homem que admiro muito. Professor dos mais dedicados, sóuma vez duvidei desse justo: foi quando ele me comunicou que abrira umcurso de oratória. Não cheguei propriamente a me espantar, tive a certezaimediata de que o meu amigo estava irreparavelmente louco. Depois, muitoaos poucos, pude me convencer de que não se tratava de loucura não, mas

de um possível ideal, parece incrível.É sabido que os gregos se entregavam muito à oratória e os selvagenstambém. À noitinha, acabados os descansos do dia, os brasis se ajuntavamem torno do fogo e falavam, falavam, falavam. Os gregos também falavam,falavam, falavam. E os brasileiros também. E agora, com essa guerra,também os enormes guerreiros estão falando que é um incontestáveldespropósito. Se ao menos as guerras se limitassem a batebocas de chefesvalentíssimos, ah! como eu havia de abençoar o dom da voz! Em vez,

segundo a lição européia das guerras, está mais que provado quediscursos não dão pra ganhar batalha nem fazem valer o direito da gente.De forma que foi necessário organizar uma entrosagem muito conivente dearmas palpáveis e armas impalpáveis. Primeiro os grandes chefes deitammuito discurso e conseguem convencer do uso da guerra os que jáestavam convencidos disso. Imediatamente em seguida chega o instantemenos imaginoso do exercício das armas palpáveis, canhões, escondimentoapressado das crianças que participarão da guerra próxima, cidades

bombardeadas. Mas eis que nasce o medo, hoje intitulado guerra denervos, porque o homem, como todos os seus irmãozinhos do mato, dosares e das águas, é fundamentalmente medroso. E é então que voltasalvadoramente esse dom da voz que, de acordo com os prospectos doscursos de oratória, “permite convencer os outros e nos aumenta aconiança em nós mesmos”. E eis cada qual convencido e coniantíssimo.“Morres de fraco? Morre de atrevido!” O medo desaparece.

Ora valha-me Deus! Está claro que, pelo simples fato de escrever estas

linhas amargas, não me convenço de ter arrancado do poroso saco dasidéias um argumento a mais contra a oratória. Já  porém essa justiicativa

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de que saber falar em público nos aumenta a coniança em nós, coisaprovada, é que muito me melancoliza. Os conselhos da desconiança etimidez me parecem bem mais fecundos e intelectuais. Ah, essa marca daminha viagem amazônica...

Íamos um pequeno grupo de paulistas, dirigidos por D. Olívia GuedesPenteado,98 que por lá, os jornais e os pobres intitularam de “rainha docafé”. Mas não só do café ela era rainha, o que nos proporcionou váriasrecepções oiciais e numerosos discursos. Eu, que era o homem do grupo,tivera até esse dia a timidez intelectual de jamais falar em público, jamaisimprovisar. Já algumas vezes lera em público, manifestação honrada epertencente ao domínio da inteligência, e que nada tem a ver com falar. Eisque de-repente, logo num primeiro almoço íntimo, em Belém, quandochegou a hora prima pós-meridiana, que era a da sobremesa, um oradorse levantou e veio pra cima de mim com um discurso de saudação. Digoque o discurso veio pra cima de mim não porque fosse a mim dirigido, era,com toda a justiça, endereçado à rainha de nós todos. Mas logo percebi quea mim, homem do grupo e tido às vezes por poeta, caberia responder.Ainda a timidez me obrigou a hesitar em meu bom-senso açaimado, mas D.Olívia me fez um graciosíssimo pedido com o olhar. E penetrei na ondaconvulsa da pororoca.

O papelão que iz não se descreve, embora, nos momentos de lucidez, euconserve um inconfessável orgulho do meu fracasso. A única coisa de queme lembro é que, súbito, depois de uns quatro ou cinco minutos depalavras que eu falava, me nasceu uma idéia! Idéia não muito rara eu sei,mas enim sempre era uma idéia. Signiicava mais ou menos que, no meiodas coisas tão bonitas e novas que víamos, jamais inda nos lembráramosdo Sul, porque os homens eram os mesmos, parafraseando o grande poeta:“Tendo um só coração, tendo um só rosto.” Ainda encompridei a idéia,

acrescentando qualquer coisa sobre o sentimento perfeito que tínhamosda “inexistência dos limites estaduais” (não sou centralista, soumunicipalista, mas não fazia mal me trair em palavras). E acabei o discurso.E quando me namoraram os ouvidos uns aplausos delicados, palavra dehonra que o meu único desejo era levantar outra vez e fazer maisdiscurso! coisa fácil as palavras!...

Não faltou ocasião. Em quase todas as cidadinhas do rio imenso, tive queparafrasear o “grande poeta” e reconhecer mais numerosas vezes a

“inexistência dos limites estaduais”. E quando chegamos a Iquitos, capitald o departamiento  de Loreto, no Peru, a coisa icou prodigiosamente fácil.Tornei a parafrasear o “grande poeta” (não havia meios de me lembrar do

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nome dele!) e troquei os “limites estaduais” por “nacionais”, com ardentesentimento de americanismo.

Quem me trouxe à razão foi o “grande poeta”. Não houve meios, durantea viagem toda, de lembrar o nome dele. O nome sagrado de Machado deAssis, que nunca fez discursos de improviso, se recalcara no subconsciente,como terrível censura à minha coniança em mim. Só quando estava já nomar oceano, de volta, sem probabilidades de botar discurso mais, o nomedo poeta me tornou à lembrança. Caí em mim. Nesse mesmo dia, recebi umrádio de Luís da Câmara Cascudo,99 amigo íntimo, que ainda nospreparava uma recepção oicial, em Natal. Dizia: “Quer almoço presidentediscurso ou sem? Abraços.” Respondi: “Sem. Abraços.”

 

97. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha  estão dois recortes de títuloanálogo, com fonte identiicada pelo autor em nota marginal a lápis; no primeiro: “Estado 29-x-39”,e, no segundo, “Est. S. Paulo 29-10-939”, ambos assinados “Mário de Andrade”. As rasuras doescritor, também a lápis, corrigem erros de impressão e modificam trechos para o livro de 1943.98. Mecenas modernista, Olívia Guedes Penteado (1872-1934), assim como sua sobrinhaMargarida Guedes Nogueira e a ilha de Tarsila, Dulce do Amaral Pinto, estiveram com MA naviagem d ’O Turista Aprendiz à Amazônia, realizada entre maio e julho de 1927. O episódio aquirelatado está no livro O Turista Aprendiz .99. Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), grande estudioso do folclore do Brasil, amigo de Máriode Andrade e seu anfitrião no Rio Grande do Norte, na viagem d’O Turista Aprendiz de 1928-1929.

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 MEMÓRIA E ASSOMBRAÇÃO1001929 [1942]

 

Outro dia  maltratei bastante o valor da linguagem como intrumentoexpressivo da vida sensível. Agora conto um caso que exprime bem a forçadominadora das palavras sobre a sensibilidade. Quem relita um bocadosobre uma palavra há-de perceber que mistério poderoso se entocaia nassílabas dela. Tive um amigo que às vezes, até na rua, parava, nem podiarespirar mais, imaginando, suponhamos, na palavra “batata”. “Ba” que ele,

“ta” repetia, “ta” assombrado. Gostosissimamente assombrado. De-fato, apalavra pensada assim não quer dizer nada, não dá imagem. Mas vive porsi, as sílabas são entidades grandiosas, impregnadas do mistério do mundo.A sensação é formidável. Porém o caso que eu quero contar não é esse não,e se passou com a minha timidez.

Entre as pessoas que mais estimo está Prudente de Morais, neto,101 oescritor que tanto fez com a Estética,102 pra dar uma ordem mais serenaao movimento das nossas letras modernas. Há muitos Prudentes nessa

família e nós tratávamos o nosso por Prudentinho.Uma feita ele veio a São Paulo e fui visitá-lo. Cheguei no portão dumacasa nobre, alta como a tarde desse dia. Uma senhora linda tornavatradicional um jardim plantado entre duas moças. Meu braço aludiu àcampainha com delicadeza e uma das moças perguntou o que eu queria.“Falar com o Prudentinho” secundei. A moça me contou que o Prudentinhoestava no Rio.

– A senhora me desculpe, mas hoje mesmo ele telefonou pra mim.

Ela sorriu:– Ah, então é o Prudentão.Fiquei numa angústia que só vendo, senti corpos de gigantes no ar.

Jamais um aumentativo não me fez perceber com tamanha exatidão amalvadez humana. Decerto a moça teve dó porque esclareceu:

– Naturalmente é o Prudentão, filho do dr. Prudente de Morais...– Deve ser, minha senhora!... arranquei da minha incompetência.Então a moça foi boa pra mim e respondeu que o Prudentão não estava.

Fugi com tanta afobação da casa do gigante, uma casa mui alta, fugi comtoda a afobação.

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Estava muito impressionado e passei uma noite injusta. Não é quesentisse medo nem sentira – positivamente eu já não posso mais ter medode gigante. Porém tivera a sensação do gigante, e ele produzia em mimefeitos de estupefaciente. Eu enxergava um despotismo de Prudentessobre um estrado comprido, procurava, procurava e não achava o meu.Quando cheguei lá no im do estrado, enxerguei novo estrado cheio denovos Prudentes... Eram decerto encontradiços de rua, alguns rostos pudeidentiicar por estarem nas memórias desse dia. Dum fulano parado naesquina me lembrava bem.

Veio um momento em que não pude sofrer mais e reagi. Murmurei comautoridade: Prudentico! Essas conianças que se toma com oscompanheiros são bem consoladoras... Nos inundam dessa intimidade queé a presença de nós mesmos. Dormi.

É sempre assim. As memórias que a gente guarda da vida vão seenfraquecendo mais e mais. Pra dar a elas ilusoriamente a força darealidade, nós as transpomos para o mundo das assombrações por meio doexagero. Exageros malévolos, benéicos. E um dos elementos maisproícuos de criar esse exagero é a palavra. Poesias, descrições, ritosorais...

É um engano isso de airmarem que a gente pode reviver, tornar a

sentir as sensações e os sentimentos passados. As memórias são fragílimas,degradantes e sintéticas, pra que possam nos dar a realidade que passoutão complexa e intraduzível. Na verdade o que a gente faz é povoar amemória de assombrações exageradas. Estes sonhos de acordado,poderosamente revestidos de palavras, se projetam da memória para ossentidos, e dos sentidos para o exterior, mentindo cada vez mais. São asassombrações. Estas assombrações, por completo diferentes de tudoquanto passou, a gente chama de “passado”...

 

100. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão, com variantes, da crônica publicada na coluna “Táxi”, deMA no Diário Nacional , em São Paulo, em 10 de maio de 1929 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicasno Diário Nacional . Ed. cit., pp. 101-102).101. Mantivemos a graia que transforma o nome próprio em adjetivo. Francisco de Paula Prudentede Morais, neto (1904-1977), professor, ensaísta, jornalista, poeta, participou do movimentomodernista desde a Semana de Arte Moderna de 1922 . Vinculou-se às revistas modernistasEstética, Terra Roxa, Antropofagia, Revista Nova e Revista do Brasil .102. Revista do modernismo carioca fundada em 1924 por Prudente de Morais, neto e Sérgio

Buarque de Holanda (1902-1982).

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 MEU ENGRAXATE1031931 [1942]

 

É por causa do meu engraxate  que ando agora em plena desolação. Meuengraxate me deixou.

Passei duas vezes pela porta onde ele trabalhava e nada. Então meinquietei, não sei que doenças mortíferas, que mudança pra outras portasse pensaram em mim, resolvi perguntar ao menino que trabalhava naoutra cadeira. O menino é um retalho de hungarês, cara de infeliz, não dá

simpatia nenhuma. E tímido o que torna instintivamente a gente muitocombinado com o universo no propósito de desgraçar esses desgraçadosde nascença. “Está vendendo bilhete de loteria”, respondeu antipático, medeixando numa perplexidade penosíssima: pronto! estava sem engraxate!Os olhos do menino chispeavam ávidos, porque sou dos que icamfregueses e dão gorjeta. Levei seguramente um minuto pra deinir quetinha de continuar engraxando sapatos toda a vida minha e ali estava ummenino que, a gente ensinando, podia icar engraxate bom. É incrível como

essas coisas são dolorosas. Sentei na cadeira, com uma desconiança infeliz,entregue apenas à “fatalidade inexorável do destino”.Pode parecer que estou brincando, estou brincando não. Há os que

fazem engraxar os sapatos no lugar onde estão, quando pensam nisso. Háos como eu, que chegam a tomar um bonde comprido, vão até a rua Fulana,só pra que os seus sapatos sejam engraxados pelo “seu” engraxate. Háindivíduos cujo ser como que é completo por si mesmo, seres que sesatisfazem de si mesmos. Engraxam sapato hoje num, amanhã noutro

engraxate; compram chapéu numa chapelaria e três meses depois jácompram noutra; conversam com a máxima comodidade com osempregados duma e doutra casa e com todos os engraxates desse mundo.Indivíduos assim me dão uma impressão ostensiva de independência feliz,porém não os invejo.

De primeiro, faz104 talvez vinte anos, meu engraxate foi trabalhar com omeu freguês105 barbeiro. Era cômodo, icava tudo perto da minha casa deentão. Meu barbeiro, serzinho de uma amabilidade tão loquaz que acabou

me convencendo da perfeição da gilete, logo me falou que aqueleengraxate falava o alemão. Perguntei por passatempo e o italiano izera a

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guerra, preso logo pelos austríacos. Era baixote, atarracado, bigode dearame e uma calvície fraternal. Se estabeleceu uma corrente de forteinterdependência entre nós dois, isso o homenzinho trabalhou que foi umamaravilha e meus sapatos vieram de Golconda.106 Nunca mais noslargamos. Entre nós só se trocaram palavras tão essenciais que nem onome dele sei, Giovanni? Carlo? não sei. Um dia ele me contou baixinho,rápido, que mudava de porta. Foi o que me deu a primeira noção nítida deque o meu barbeiro era mesmo duma amabilidade insustentável. Mudeicom o meu engraxate e, pra não ferir o barbeiro, que ainal das contas eraum homem querendo ser bom, me atirei nos braços da gilete a que atéagora sou fiel.

Veio o dia em que a engraxadela aumentou de preço. Só soube muitomais tarde, por acaso, meu engraxate não me contou nada, preferindo icarsem gorjeta, não é lindo! Nos ins de ano, jamais pediu festas, eu davaporque queria. Hoje, tanto as festas como as pequenas gorjetas meproduzem um sentimento de mesquinhez, não sei por que diiculdadesmeu engraxate terá passado, quanto lutou consigo e com a mulher. Ainalnão agüentou mais esta crise, vamos ver se vender bilhete rende mais!

O menino, até me deu raiva de tanto que demorou. (Meu engraxatetambém demorava demais quando era eu, mas não dava raiva.) O menino,

pra falar verdade, engraxou tão bem como o meu engraxate e meussapatos continuaram vindo de Golconda. Não sei... não voltei mais lá. Fazsemana que não engraxo meus sapatos. Sei que isso não pode durar muitoe o mais decente é icar mesmo freguês do menino, porém minha única everdadeira resolução decidida é que vou comprar bilhetes de loteria. Nãotenho intenção nenhuma de tirar a sorte grande mas... mas que malestar!...

 

103. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão, no manuscrito/“exemplar de trabalho”, com variantesem relação à primeira versão da crônica publicada em 13 de dezembro de 1931, na coluna de MAno Diário Nacional , em São Paulo (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp.473-477).104. MA, no intuito de adotar formas da língua falada, escreveu “fazem”, que preferimos nãoconservar.105. Na época, era corrente o sentido de freguês designando o fornecedor habitual de algumserviço ou mercadoria.106. Cidade da antiga Índia, famosa por seus diamantes.

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 BOM JARDIM1071929 [1942]

 

Na anca do terreno  o sol se achata no amarelo sem gosto da bagaceira.Perfume lerdo, que não toma corpo bem, não se sabe se de pinga, deaçúcar, de caldo de cana. Bois. Três, quatro bois imóveis, mastigando acana amassada, fortes, alguns de bom estilo caracu no casco, no pêlo. Masjá os estigmas do zebu principiam aparecendo na zona...

Vem o cambiteiro com os jericos, três, no passo miudinho de quem dança

um baiano.108 Nos cambitos triangulares a cana vai deitada, últimos restosda safra do ano, arrastando no bagaço os topes de folha verde, feito umadeus.

Através da porta do engenho, escurentada mais pela força da luz defora, dois homens vêm, um na frente outro atrás, rituais, eretos, no semprepasso miudinho e dançarino dos brejeiros. Carregam a padiola com osbagaços da cana já moída. Trazem apenas calças e o chapéu de palha decarnaúba, chinesíssimo na forma. E que cor bonita a dessa gente!...

Envergonha o branco insosso dos brancos... Um pardo dourado, bronzenovo, sob o cabelo de índio às vezes, liso, quase espetado.Entro no engenho. É dos de bangüê, tocado a vapor. Os homens se

movendo na entressombra malhada de sol, seminus, sempre os chapéuschins: meio se colonializa a sensação em mim. Não parece bem Brasil... Estácom jeito da gente andarmos turistando pelas Áfricas e Ásias do atrasoinglês, francês, italiano, não sei que mais... Todos os atrasos daconveniência imperialista.

Depois do engenho verde, a construção faz uma queda. No outro planode lá é a casa de caldeira. Estão fazendo meladura. O canalete conduz ocaldo de cana pra cascatear pesado, pesado de açúcar, num tanque decimento, o parol, como se diz. A fantasista etimologia popular anda jáfalando em “farol”...

Fronteiro ao parol está o grupo das tachas fabricando açúcar. Outromalaio, bigodinho ralo, trabuca ali. É o “cunzinhadô”, como dizem lá emPernambuco – o “mestre”, o homem importante que dá o ponto no mel. A

musculatura dele exempliica a anatomia do costado humano. Felizmenteque não sei anatomia. Vejo, mas é o ouro duro daquele corpo, se movendo

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no esforço, transportando em cocos enormes de cabo preso no teto, o caldofervendo, ouro claro, duma para outra caldeira. Às vezes o vento vem eachata a fumaça da fervedura. Esconde tudo. Fumaça acaba aos poucos, e acena revive, o ouro pesado do homem perilando sobre o ouro claro daespuma das tachas. Na derradeira o mel está no ponto. A espuma, maisprofunda, quase cor das epidermes daqui, foi se entumescendo,entumescendo oval, com um biquinho no centro, ver peito de moça. “Peitode moça” é que falam mesmo, peito de moça... É o açúcar, delicioso,alimentar, apaixonante. Moreno e lindo mesmo, como um peito de moçadaqui.

 

107. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha está o recorte de título análogo,

com fonte identificada em nota do escritor, a lápis: “9-2-29”, assinado “MÁRIO DE ANDRADE”, e comrasuras a tinta, corrigindo erros de impressão e modiicando trechos para o livro de 1943. BomJardim é focalizado no diário do viajante (O Turista Aprendiz . Ed. cit., pp. 277-284).108. “Dança brasileira. Mais ou menos o mesmo que samba e provavelmente originado deste. Naminha viagem em 1928 pude notar que o povo em geral, no Rio Grande do Norte, Paraíba ePernambuco, quando falava em ‘baiano’ se referia a uma dança não cantada [...]. V. Baião.”(ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Ed. cit., p. 35.)

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 BIBLIOTECONOMIA1091937 [1942]

 

O contato com os livros   e manuscritos dessas idades queirreverentemente costumamos chamar de “passado”, será que nos deixa oser mais antigo?... Parece. Positivamente não é a mesma coisa a gente lerMatias Aires110 numa edição primeira ou numa reimpressãocontemporânea. A transposição moderna conterá sempre a mesmasubstância, e mesmo nas raríssimas edições honestas, a substância estará

enriquecida de comentários, correções, esclarecimentos. Mas o importanteé que não são apenas os dados da verdade que um livro pode nosfornecer. Quem julgar assim sabe ler pelo meio.

O livro não é apenas uma dádiva à compreensão, é, deve serprincipalmente um fenômeno de cultura. Quem lê indiferentemente umescrito numa edição do tempo ou noutra moderna, numa edição malimpressa ou noutra tipograicamente perfeita, num bom como num maupapel, esse é um egoísta, cortado em meio em sua humanidade. Lê porque

sabe ler, e apenas. O livro lido apenas para se saber o teor do escrito ésempre singularmente subversivo da humanidade que trazemos em nós. Ofenômeno mais característico desse individualismo errado, a genteencontra nos estudantes que, na ininita maioria, são pervertidos pelosseus livros de estudo. Não que todos os livros escolares sejam ruins, osrapazes é que ainda não aprenderam a ler. Lêem pra saber a verdade queestá nos livros, e apenas. O resultado são essas almas imperialistas, tãofreqüentes nos ginásios, vivendo em decretos desamorosos, incapazes de

distinguir, comendo, dormindo, respirando airmações. O estudantepernóstico, corrigindo os erros do pai!

Nas civilizações contemporâneas mais energicamente respeitosas dohomem, as universidades, os livreiros se esforçam por apresentar o livro,não apenas como um repositório de verdades, mas como um fenômenoduma totalidade muito mais fecunda que isso. Pela boniteza da impressão,pela generosidade do papel, pelo conselho encantador das gravuras, osbons livros modernos não querem nos obrigar apenas a saber a vida, mas

a gostar dela porém.Ora já de muito, bem que venho matutando em  que talvez a verdade

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menos deva ser um objeto de conhecimento que de contemplação... Nãoserá essa diferença fundamental que separa o encanto maravilhoso dePlatão da secura sem beijo de Aristóteles, no entanto bem maisverdadeiro?... Não será esse engano das nossas civilizações que as tornatão rasteiras, monetárias, dogmáticas, em oposição às grandes civilizaçõesda Ásia, bem mais gostosas e sutis?...

E cheguei com certo esforço adonde pressentia que desejava chegar: olivro antigo, o manuscrito original, pela sua venerabilidade, pelo esforço deacomodação à leitura, pela exigência permanente de controle do que diz,não nos deixa nunca apenas na psicologia individualista de quem aprende,mas no êxtase amplíssimo, difuso, contagioso da contemplação. Ele nosreverte à nossa antiguidade.

Deixem que eu diga, mas nas civilizações novatas que nem as destaAmérica, os seres são profundamente imorais, no sentido em que a moral éuma exigência derivada aos poucos do ser tanto indivíduo como social. Nãonos custa a nós, americanos, aceitar religiões, ilosoias, e mesmo importarcivilizações aparentemente completas. O nosso dicionário vai de A pra Z,direitinhamente. Tem F tem L e tem R: Fé, Lei, Rei. O que não nos épossível importar é a precedência orgânica dessa Fé, dessa Lei e desse Rei,nascidos de outras experiências. Nós existimos pouco, demasiado pouco.

Nós existimos em desordem. É que nos falta antiguidade, nos falta tradiçãoinconsciente, nos falta essa experiência por assim dizer isiológica da nossamoralidade que, só por si, torna a palavra “passado” duma incompetêncialarvar.

Isso nem o ótimo livro moderno conseguirá nos fornecer. O livro antigo émoral, com a sutil prevalência de não ser uma moral ensinada (que ésempre pelo menos duvidosa) mas uma moral vivida. É um banhoinconsciente de antiguidade. E se na mão do biblióilo o livro antigo é duma

volúpia incomparável, estou que devemos arrancá-lo dessas mãospecaminosas e botá-lo nas mãos rápidas dos moços. Convém tornar osmoços mais lentos, e iniciar no Brasil o combate às velocidades do espírito.Que abundância de meninos-prodígios transfere a vida agora da becadifícil dos clérigos pro quepe chamariz dos generais... Vivo meio sufocando.

Eu desconio que ninguém achará razão nestas palavras, quando o queme intitula é a Biblioteconomia. Mas pra mim foram os pensamentossossegados que pensei e quis dizer. Para mim, que envelheço rápido, o

pensamento como a vista já vão preciosamente perdendo aquele dom deprecisão categórica, que deine as idéias como as coisas nos seus limitescurtos. De-fato a biblioteconomia é, dentre as artes aplicadas, uma das

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mais airmativas. Diante desse mundo misteriosíssimo que é o livro, abiblioteconomia parece desamar a contemplação, pois categoriza e icha. Éengano quase de analfabeto imaginar tal desamor; e não foi senão por umvelho hábito biblioteconômico que, faz pouco, me ichei na categoria dosenvelhecidos, o que posso jurar ser pelo menos uma precipitação.

Isso é a grandeza admirável da biblioteconomia! Ela torna perfeitamenteacháveis os livros como os seres, e alimpa a escolha dos estudiosos de todasuja confusão. Este o seu mérito grave e primeiro. Fichando o livro, isto é,escolhendo em seu mistério confuso uma verdade, pouco importa qual, queo deine, a biblioteconomia torna a verdade utilizável, quero dizer: não oobjeto deinitivo do conhecimento, pois que houve arbitrariedade, mas umvalor humano, fecundo e caridoso de contemplação. E pelo próprio hábitode ichar, de examinar o livro em todos os seus aspetos e desdobrá-lo emtodas as suas ofertas, a biblioteconomia rallenta111 os seres e acode aosperigos do tempo, tornando para nós completo o livro, derrubando osquepes e escovando as becas.

 

109. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha, está a versão do texto emdatiloscrito com rasuras do escritor, a lápis e a tinta. O título Biblioteconomia surge ali comosubstituição a Definição do analfabeto.

110. Matias Aires Ramos da Silva de Eça (1705-1763), autor de Relexões sobre a vaidade doshomens, o primeiro livro de ilosoia brasileiro, publicado em 1752, ano que também viu surgir oprimeiro romance brasileiro, Máximas de virtudes e formosura , de Dorotéia Engrássia TavaredaDalmira, pseudônimo de sua irmã Maria Teresa.111. “Diminui gradativamente a velocidade”, em italiano.

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 A SRA. STEVENS1121930 [1942]

 

– Mme. Stevens.– Sim, senhora, faz favor de sentar.– Fala francês?– ...ajudo sim a desnacionalização de Montaigne.– Muito bem. (Ela nem sorriu por delicadeza.) O sr. pode dispor de

alguns momentos?– Quantos a sra. quiser. (Era feia.)

– O meu nome é inglês, mas sou búlgara de família e nasci na Austrália.Isto é: não nasci propriamente na Austrália, mas em águas australianas,quando meu pai, que era engenheiro, foi pra lá.

– Mas...– Eu sei. É que gosto de esclarecer logo toda a minha identidade, o sr.

pode examinar os meus papéis. (Fez menção de tirar uma papelada dabolsa-arranhacéu.)

– Oh, minha senhora, já estou convencido!– Estão perfeitamente em ordem.– Tenho a certeza, minha senhora!– Eu sei. Estudei num colégio protestante australiano. Com a mocidade

me tornei bastante bela e como era muito instruída, me casei com uminglês sábio que se dedicara à Metafísica.

– Sim senhora...– Meu pai era regularmente rico e fomos viajar, meu marido e eu. Como

era de esperar, a Índia nos atraía por causa dos seus grandes ilósofos epoetas. Fomos lá e depois de muitas peregrinações nos domiciliamos nasproximidades dum templo novo, dedicado às doutrinas de Zoroastro. 113Meu marido se tornara uma espécie de padre, ou melhor, de monge dotemplo e icara um grande ilósofo metaísico. Pouco a pouco o seupensamento se elevava, se elevava, até que desmaterializou-se porcompleto e foi vagar na plenitude contemplativa de si mesmo, iquei só. Istonão me pesava porque desde muito meu marido e eu vivíamos, embora

sob o mesmo teto, no isolamento total de nós mesmos. Liberto o espírito damatéria, só icara ali o corpo de meu marido, e este não me interessava,mole, inerte, destituído daquelas volições que o espírito imprime à matéria

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ponderável. Foi então que adivinhei a alma dos chamados irracionais evegetais, pois que se eles não possuíssem o que de qualquer forma ésempre uma manifestação de vontade, estariam libertos da luta pelaespécie, dos fenômenos de adaptação ao meio, correlação de crescimento eoutras mais leis do Transformismo.

– Sim senhora!– Como o sr. vê, ainda não sou velha e bastante agradável.– Minh...– Eu sei. Com paciência fui dirigindo o corpo do meu marido para um

morro que havia atrás do templo de Zoroastro, donde os seus olhos, parasempre inexpressivos agora, podiam ter, como consagração do grandeespírito que neles habitara, a contemplação da verdade. E o deixei lá. Volteipara o bangalô e iquei reletindo. Quando foi de tardinha escutei um cantode lauta que se aproximava. (Aqui a sra. Stevens começa a chorar.) Eraum pastor nativo que fora levar zebus ao templo. Dei-lhe hospitalidade, ecomo a noite viesse muito ardente e silenciosa, pequei com esse pastor!(Aqui os olhos da sra. Stevens tomam ar de alarma.)

– Mas, sra. Stevens, o assunto que a traz aqui a obriga a essasconfissões!...

– Não é conissão, é penitência! Fugi daquela casa, horrorizada por não

ter sabido conservar a integridade metaísica de meu esposo, e concebi ocastigo de...– Mas...– Cale-se! Concebi meu castigo! Fui na Austrália receber os restos da

minha herança devastada e agora estou fazendo a volta ao mundo, embusca de metaísicos a quem possa servir. Cheguei faz dois meses aoBrasil, já estive na capital da República, porém nada me satisfez. (Aqui asra. Stevens principia soluçando convulsa.) Ontem, quando vi o sr. saindo

do cinema, percebi o desgosto que lhe causavam essas manifestaçõesespecíicas da materialidade, e vim convidá-lo a ir pra Índia comigo. Láteremos o nosso bangalô ao pé do templo de Zoroastro, servi-lo-ei comoescrava, serei tua! oh! grande espírito que te desencarnas pouco a poucodas convulsões materiais! Zoroastro! Zoroastro! lá, Tombutu, 114Washington Luís,115 café com leite!...

Está claro que não foram absolutamente estas as palavras que a sra.Stevens choveu no auge da sua admiração por mim (desculpem). Não

foram essas e foram muito mais numerosas. Mas com o susto, eu colhia noar apenas sons, assonâncias, que deram em resultado este versomaravilhoso: “lá, Tombutu, Washington Luís, café com leite”. Sobretudo

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faço questão do café com leite, porque quando a sra. Stevens deu um silvoagudo e principiou desmaiando, acalmei ela como pude, lhe assegurei aimpossibilidade da minha desmaterialização total e, como a coisaameaçasse piorar, me lembrei de oferecer café com leite. Ela aceitou.Bebeu e sossegou. Então me pediu dez mil réis pra o templo de Zoroastro,coisa a que acedi mais que depressa.

Aliás, pelo que soube depois, muitas pessoas conheceram a sra. Stevensem São Paulo.

 

112. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão da crônica publicada na coluna de MA no Diário Nacional ,em São Paulo, em 31 de agosto de 1930 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed.cit., pp. 245-247).113. Zoroastro ou Zaratustra: fundador da antiga religião persa, o masdeísmo, uma dos primeirosmonoteísmos, situado pelos historiadores entre os séculos VI e VII a. C., embora alguns recuem essadata até 1000 a. C.114. O escritor abrasileirou o topônimo Tombuctu, da cidade da então África Equatorial Francesa,no atual Mali, importante centro difusor do islamismo desde o século XIV, quando era a capital doimpério mandinga e reinava o imperador Mansa Mussa ou Gongo Mussa.115. Washington Luís Pereira de Souza (1870-1957), último presidente da República Velha,deposto pela Revolução de 1930. O cronista alude à política do café com leite, que unia os doispontos principais da economia brasileira, São Paulo e Minas Gerais.

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 VOTO SECRETO1167-XI-1934 [1942]

 

Não sei, todos icaram entusiasmados porque as eleições em São Paulocorreram na “maior ordem”... Talvez haja o que distinguir. É incontestávelque todos e a própria tendência para a disposição boa das coisas, que é tãoda gente paulista, izeram com que as eleições terminassem dentro doremanso dos nossos monótonos entusiasmos. Mas porém tenho aimpressão bastante melancólica de que, se houve a “maior ordem” prática,

nem por isso deixou de ser devastadora a desordem mental.Voto secreto. É possível que um dia a gente venha a usar, com direito depropriedade, desse presente subitâneo que nos deram. O presente icoubonito lá fora, pra podermos falar que também no Brasil se emprega o tal.Mas aqui dentro, por enquanto, ele fez foi despertar aquele farranchotemível de mitos. Uma completa mitomania vai grassando por aí de váriaforma. Mitomania não somente no sentido em que as paixões partidáriasdeformaram, falsiicaram, esconderam. Até neste sentido é que a nossa

mitomania atual é mais perdoável. Eu me convenci de que a imensamaioria estão absolutamente convencidos de que estão com a razão. Seperrepistas como peceístas deformaram, esconderam, falsiicaramverdades, não izeram nada disso intencionalmente. Pelo menos, em geral.Acreditavam no que diziam ou faziam, ardentemente movidos pelo desejode salvar (!) o Estado. Infelizmente a salvação se resumiu em criar mitos.Culpa do voto secreto.

Não duvido que a ideologia democrática tenha tido o seu valor, mas hoje,

diante das exigências do tempo, nem se sabe mais o que é. É um mito,duma largueza aquosa, tão adaptável ao PC como ao PRP. O resultado dissoé que o voto secreto não conseguiu que adiantássemos um passo sobre1930. Não se discutiu ideologias, ninguém se dedicou por sistemas, porémpor indivíduos. Novos mitos também, estes indivíduos... Não discuto o valorde ninguém aqui, mas os chefes de partidos cujas idéias já não conseguemmais se agrupar em sistemas deinidos se viram guindados a deuses doBem e do Mal. O chefe que pra uns era o mito do Bem, pra outros era mito

do Mal. Daí não haver idéia possível. Dedicações de fanáticos, ódioserruptivos117 de apóstatas. Digo de apóstatas, porque neste caso incolor

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de PRP e PC, constituiu verdadeira apostasia deixar um partido por outro,quando ambos tinham a mesma religião!

Mas o voto secreto provocou nova mitomania mais curiosamenteparticular. Observei isso em centenas de pessoas com quem conversei.Foram talvez milhares os eleitores que se elevaram a mitos de si mesmos.Um dos processos desse individualismo empaioso consistiu(principalmente entre pessoas de certa idade e cultura de maiorpretensão) consistiu em votar fora das chapas partidárias. O eleitor sejulgando honestíssimo e dono de sua consciência (talvez outro mito...)batucava na máquina-de-escrever uma chapa mesclada, com os mitozinhosda sua simpatia, uns tantos do PC e outros tantos do PRP. As mais dasvezes, nem se dava ao trabalho de escrutar se não existiria por acaso noEstado alguém, fora dos partidos, com mais possibilidades de formar umpai-da-pátria. As chapas estavam ali, escolhendo pela gente!... Cozinhavamdentro das chapas. Pouco se lhes dava atrapalhar, pouco se lhes dava acontradição do sistema, pois votavam em indivíduos de partido queseguirão seus partidos: importante era ele, eleitor, provável proprietáriodo seu voto. Voto em quem Eu quero. Imaginava estar usando do seu voto,quando estava apenas abusando do seu Eu.

Mas entre os moços e na burguesia mais pobre, observei outro abuso,

muito curioso também. O voto secreto causou uma legítima bebedeira deliberdade que constatei em muitos. De posse duma arma que poderiamusar pra castigo de chefes maus, estes eleitores se esqueceramcompletamente de julgar por si mesmos se os chefes eram de-fato maus.Votaram contra. Votaram contra, não porque estivessem conscientementecontra, mas só para provar que podiam votar contra, t’aí!

E nesses brinquedos de primeira vez se desperdiçou a ininita maioriado eleitorado. Cada qual votou num mito: uns votaram nos seus chefes

ideologicamente inexistentes, outros votaram em si mesmos, tambémideologicamente inexistentes. Jogados pra um canto, em minoria esmagada,outros eleitores ainda havia, a meu ver os únicos dignos de maior atenção.Os esquerdistas vermelhos e os fachistas. Cegos de ódio e antagonismo. Sediria presos a mitos também... Não eram mitos não: estão presos, não temdúvida, mas conscientemente presos a ideologias perfeitamentedelimitadas e ixas. Uns cantando antecipadamente a sua vitória, verdes,mas dum verde que não me dá muita esperança não. Outros, por uma

aberração hedionda e, meu Deus! natural dos princípios... liberais, nãotendo direito de viver à luz do sol, perseguidos como leprosos. Ou como osprimeiros cristãos... E não se pense que pretendo icar assim, de camarote,

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assuntando o desilar das tragédias humanas. Todos os sintomas do meuser me lembram que sou ilho de tipógrafo, alma de tipógrafo. Só que nestadesordem mental que o voto secreto açulou, vermelhos como verdes têmde mim o mesmo respeito. Foram os únicos que tiveram consciência domundo e confiança nas idéias.

 

116. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha está o recorte de título análogo,assinado “Mário de Andrade”, com rasuras do escritor, a lápis e a tinta, corrigindo erros deimpressão e modiicando trechos para o livro de 1943. O título do periódico aparece impresso notopo do recorte: Revista Acadêmica, ou seja, matéria retirada do nº 9, ano 2 (Rio de Janeiro, marçode 1935).117. Trocadilho que guarda os valores católicos de Mário: irromper e o erro do apóstata.

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 PROBLEMAS DE TRÂNSITO1181939 [1943]

 

Não é possível silenciar   o acontecimento grave que foi para estelevíssimo Rio a Semana do Trânsito, instituída para ensinar aos cariocas aciência de andar bem direitinho. Numa bela segunda-feira de maio, ocentro apareceu cheio de inovações suspeitas. Alto-falantes bocejavampelas esquinas, fechavam cada canto de calçada rijas cordas d’açointransponíveis, e no meio das mais labirínticas encruzilhadas discursavam

uns púlpitos cobertos por um casco arredondado, a que logo os cariocasderam o nome de “guarda-chuva de Chamberlain”. 119 Pouco depois todaessa aparelhagem agia, e a população, acossada por milhares de policiaispalpitantes, começou a saber como se andava bem direitinho.

Era preciso mesmo. O Rio é uma cidade verdadeiramente catastróica.Em certas horas de volta pra casa ou de ida para o trabalho, é quaseimpossível um pedestre atravessar as avenidas de beira-mar. Isso, osautomóveis vêm feito uma pororoca de epopéia, com violência impassível,

de uma segurança portuguesa. Em certas ruas inda centrais e internas,como a do Catete, o movimento é tão vivaz, a impiedade dos bondes é tãoportuguesa, o barulho, ôh, principalmente o barulho é tão futebolístico, queem três meses qualquer ser que se utilize um pouco da cabeça ica tomadodas mais estupefacientes fobias.

Manaus também me deu sensações catastróicas, com seu processolondrino dos veículos tomarem a esquerda em vez da direita, como meacostumaram estas cidades do Sul. E como eu andava em automóveis

oiciais, naturalmente indisciplinados e velocíssimos, não podendo berrarde susto por causa da boa educação, ah meu Deus! dei mais suspiros queem toda a minha adolescência, que passei todinha suspirando à toa. Mas noAmazonas, rapazes, pelo contrário, o trânsito dos gaiolas é tãoacomodatício, que a gente querendo, pra variar, deixa o vapor partir, e vaipor terra pegar ele em de mais longe. Caso lindo foi aquele da cidadinhapernambucana que atravessei, pleno sol do meidia.120 O prefeito muiviajado tinha descoberto os problemas da circulação e na larga rua sem

ninguém nem nada, havia um polícia de trânsito com o seu simbólicobastão. Estávamos ainda a uns cem metros, que ele, lent íssimo, com um

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largo gesto episcopal, tirava o bastão da cinta e nos avisava que a rua,completamente vazia, estava completamente vazia mesmo e podíamospassar. Passamos na volada. Mas percebi muito bem o sorriso do guarda.Tinha... sei que não exagero, tinha uma expressão de desamparadagratidão. Éramos nós por certo, aquele dia, os que primeiro lhe dávamos aesmola espiritual do “funciono, logo existo”. E por isso o riso do guarda noscantava: – Obrigado, meus manos, obrigado!

O carioca já vai procurando, com a sua galhofa bem humorada, reagircontra os transtornos psíquicos que está lhe causando esta boa educaçãotransitória (de “trânsito”). Também os cantos fechados das esquinas já têmo nome de “corredor polonês”. Mas a verdade é que os cariocas estãodesanimadamente alitos, limitados assim no seu individualismo liberdoso.Os guardas se esfalfam, gritando contra os desobedientes. É uma delíciacompendiar os gritos deles: “Esse moço aí de branco! Não! o outro, de carameia triste, tome a sua direita! Olha a mocinha de blusa marrom, espereempinada na calçada!” Uns verdadeiros santos!

O mais engraçado é que os alto-falantes são meramente teóricos,prelecionando sem atentar ao que se passa na rua. Lá num estúdio doParaíso, um funcionário em estilo radiofônico intensivo, soletra normasteóricas de transitar, se imagine! Abriram o sinal verde, e o grupo

“empinado” na calçada principia atravessando a rua. Mas o alto-falantegrita: “Olha o sinal encarnado! Mais atenção! Não passe agora!” O grupoestaca aturdido. O guarda grita – “Passem, gente!” O alto-falante: “Olhaaquela criança que vai icar debaixo do automóvel!” Todos olhamhorrorizados, não há criança! os automóveis estão paradíssimos! “Abriu osinal branco! Pronto! Atenção! Abriu o sinal verde! passem depressa!” Masna verdade o sinal que se abriu foi o encarnado, o grupo quer passar, oguarda se esbofa “Não passe!”, os autos avançam irritados com a espera,

xingando. O pessoal fogem em confusão.E o rapaz da bicicleta? Vinha pedalando com desenvoltura, perdera umtempão com o passa-não-passa das esquinas, o patrão devia estar já comuma daquelas raivas portuguesas, na mercearia. O asfalto da esquinaestava livre e o empregadinho atirou a bicicleta na travessia. Um apitoviolentíssimo parou nossa respiração. O rapaz olhou pra trás, era o guardadanado, “Não viu o sinal!” O rapaz voltou. “Não volte, ferida! é contra-mão!”Aí o portuguesinho desanimou. Fez um ar de desgraça tamanha, sacudiu a

cabeça desolado, e, com uma praga que não se repete, desapeou, pôs abicicleta no ombro, subiu na calçada e lá se foi com os mais fáceispedestres, talvez pedestre para todo o sempre.

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A negrinha chegou na beira da calçada, justo quando o guardapreparava o gesto largo para dar passagem aos autos. Os últimos dosatravessadores já estavam pelo meio da rua, e o guarda fez sinal àrapariga que esperasse a próxima vez. Ela esperou paciente. Depois que asmáquinas passaram, o guarda mudou a direção do gesto, a negrinha podiapassar. Mas sucedeu que ninguém mais aparecera pra passar daquela vez,só havia a negrinha. A avenida Rio Branco suntuosa, com seus salientesmonumentos, Teatro Municipal, Biblioteca Nacional, Escola de Belas Artesesperavam na manhã branca que a negrinha passasse, esperavam. “Passa,menina!” que o guarda fez impaciente. Ela olhou de um lado, do outro, pôsa mão na cara, tapando o riso:

– Ah! sozinha não! tenho vergonha! 

118. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha está o recorte de título análogo,com fonte identiicada em nota de MA a lápis: “Estado 22-5-39”; assinado “Mário de Andrade”, comrasuras do escritor, a lápis, corrigindo erros de impressão e modiicando trechos para o livro de1943.119. O inseparável guarda-chuva preto do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain (1869-1940) freqüentava o noticiário cinematográico que, em 1938, evidenciava o início da SegundaGuerra Mundial.120. No exemplar de trabalho, MA reestabelece a forma popular “meiodia”, sanando correçãoindevida feita pela revisão do jornal e pela editora.

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 MESQUINHEZ1211929 [1942]

 

Tenho que distinguir porém . Se é fato que existe em certas classes desublimadores de vida (poetas, mendigos etc.) sincera incompetência praviver, não é menos certo que muito indivíduo se aproveita disso para nãotomar atitude ante os fenômenos sociais. Dado que o artista, o cientista éum ser à parte, pois então vamos nos aproveitar disso. Sistematizam esse“estado de off-side”122 que é inerente à psicologia deles, e na verdade já

não estão apenas à parte mais, criam mas é uma salvaguarda deindiferentismo e até sem-vergonhismo que lhes permite aceitar tudo emproveito pessoal.

Quando Julien Benda123 estabeleceu no livro bulhento dele a condiçãodo clerc, ele não esqueceu de especiicar bem que a contemplatividade dointelectual às direitas não impedia este de se manifestar a respeito dosmovimentos políticos e tomar parte neles. Mas disto os cultos brasilianosnão querem saber. Se, entre escritores, ainda existem alguns que, talvez

por mais acostumados a pensar, tomam partido, é absurdo como seestabeleceu tacitamente que pintores, músicos, arquitetos, isiólogos etisiólogos e teólogos são da neutralidade.

Neutralidade? É, eles chamam de neutralidade o que é muito boa faltade caráter. É a neutralidade que consiste v. g. no governo de Carlos deCampos, em tudo quanto era concerto, qualquer pecinha desse compositorlamentável, aparecer no programa. E me vinham: – “Você compreende,essa música é banalíssima, porém nós que pertencemos à classe dos

músicos devemos honrar um, sim, um músico que está na presidência doEstado.” E como a bondade pessoal de Carlos de Campos era mesmo umfato, aquilo rendia bem ao colega. Dele.

Este ano um pintor ainda me expunha suas teorias sobre a honradezproissional. Era assim: – “Você compreende (usam e abusam do ‘vocêcompreende’ arranjador gratuito de cumplicidade) você compreende, tudoisto que eu faço, não é minha arte não! Mas é disso que o povo gosta! Estasorquídeas, isso é passadismo do miúdo, mas Fulano, que você sabe a

importância dele na Prefeitura, queria por força que eu pintasseorquídeas. Eu pintei e ele comprou! Estou envergonhado de ter um quadro

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assim na exposição, mas, você compreende, é por causa do nome docomprador. Mais tarde, quando eu não tiver mais cuidados pecuniários,então hei-de fazer a arte que sinto em mim!”

E com isto, se receberem a encomenda de uma sinfonia pra Mussolini eum retrato de Napoleão a cavalo, fazem. Porque diz-que o assunto não temimportância na obra-de-arte!... Me parece incontestável que estamosatravessando um momento muito importante, que pode despertar no povobrasileiro a consciência social – coisa que ele não tem. Ora não só músicos,tisiólogos e isiólogos, mas até entre os literatos, vou percebendo umapouca vontade vagarenta em tomar atitude. Parece que estão muitopreocupados em cantar a mãe-preta, o seu rincãozinho, a sua religiãozinha,pra tomarem consciência verdadeira do momento que a nacionalidadeatravessa, e vai bastante mais além desses lugares-comuns temáticos donovo “modernismo” de agora. No poema de Martin Fierro vem aquelaestrofe honesta, que gosto muito:

 Yo he conocido cantoresQue era un gusto escucharMas no quieren opinarY se divierten cantando;Pero yo canto opinandoQue es mi modo de cantar.

 Eu acho que também temos que cantar opinando agora. Há muito mais

nobre virilidade em se ser conscientemente besta que grande poeta daarte pura.

 

121. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão da crônica que saiu na coluna de MA “Táxi”, no DiárioNacional , de São Paulo, no dia 1º de novembro 1929 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no DiárioNacional . Ed. cit., pp. 155-156).122. Expressão usual na época, referente à postura de quem se colocava à margem dos problemasda sociedade.123. Julien Benda (1867-1956), que, em La trahison des clercs, obra de larga difusão em sua época,discute o papel dos intelectuais.

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 GUAXINIM DO BANHADO1241929 [1942]

 

O guaxinim está inquieto, mexe dum lado pra outro. Eis que suspira lána língua dele: – Xente! que vida dura, esta de guaxinim do banhado!...Também: diabo de praieiros que nem galinha criam, pra mim chupar o ovodelas!...

Grunhe. O suspiro sai ailado, sopranista, do focinho ino, ágil que nembrisa. Levanta o narizinho no ar, bota os olhos vivos no longe plano da

praia. Qual! nem cana tem ali, pra guaxinim roer...E guaxinim está com fome. A barriguinha mais clara dele vai dandohoras de almoço que não pára mais. No sol constante da praia, guaxinimanda rápido, dum lado pra outro. O rabo felpudo, longo dele, dois palmosde guaxinim já igualado, é um enfeite da areia. Bem recheado de pêlos,dum cinza mortiço e evasivo, dado a cor-de-castanha, na sombra. Guaxinimsacode a cabecinha, se coça: – Que terra inabitável este Brasil! quegovernos péssimos, fixe!

E depois dessa exclamação consoladora, guaxinim se dirige prosalagados que estralejam verde-claro de mangue, quinhentos metros além.Chegado lá, pára um bocado e assunta em volta. Logo descobre um

buraco. Cheio de cautela, mete o focinho nele, espia lá dentro. Tira ofocinho devagar, desalentado. Olha aqui, olha acolá. Se chega pra outra locaadiante. Repete a mesma operação. Guaxinim retira rápido o focinho. Nofundo da loca, percebeu muito bem, o guaiamum. Então guaxinim põereparo bem na topograia do lugar. O terreno perto inda é chão de

mangue, úmido, liso, bom pra guaiamum correr. Só quase uns dez metrosalém é que a areia é de duna mesmo, alva, fofa, escorrendo toda, ruim praguaiamum fugir.

– Paciência! guaxinim murmura. Chega bem pertinho da loca, dá ascostas pra ela, medindo sempre com a pontaria dos olhos a distância doareão afastado. De repente, decidido, bota o rabo no buraco e chega ele decom força bem na cara do sobressaltado guaiamum, machucando os olhosde cogumelo do tal. Guaiamum ica danado e juque! com o ferrão da pata

de guerra agarra o rabo de guaxinim. Guaxinim berra de dor mas dá umamucica formidável e sacode guaiamum lá no areão –  vôo de Santos

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Dumont, dez metros só. Isso pra guaiamum, coitadinho, é vôo de SarmentoBeires, coisa gigante. O pobre cai atordoado, quase morto, que nem pode semexer.

Guaxinim está grunhindo desesperado com a dor. – Ai! pobre do meurabo! Lambe o rabo, sacode a cabeça no ar, tomando os céus portestemunha. Lambe o rabo outra vez, se lastima, se queixa, torna aacarinhar o rabo, ôh céu! que desgraçada vida essa de guaxinim dobanhado!

O guaiamum lá na areia principia se movendo, machucado, numatordoamento mãe. Vem vindo pro mangue outra vez. Guaxinim corre logoe come o guaiamum. Lambendo o focinho, olha o rabo. Suspira: – Paciência,meu rabo.

Sacode outra vez a cabecinha e vai-se embora pro banhado, terra dele. 

124. NOTA DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha  está o recorte “O TuristaAprendiz” – Paraíba (4 de fevereiro)”, assinado “MARIO DE ANDRADE”, com rasuras do escritor, alápis preto, modiicando trechos para o livro de 1943, e cruz a lápis vermelho sobre esse texto quesaiu no Diário Nacional,  em São Paulo, no dia 28 de março de 1929 (“28-III-29”), o qual está naedição citada de O Turista Aprendiz , às pp. 318-319.

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 TACACÁ COM TUCUPI1251939 [1942]

 

Quem me chamou uma atenção   mais pensamentosa para a cozinhabrasileira foi, uns quinze anos atrás, o poeta Blaise Cendrars. 126 Desdeque teve conhecimento dos pratos nossos, ele passou a sustentar a tese deque o Brasil tinha cultura própria (ou melhor: teria, se quisesse...), pois queapresentava uma culinária completa e especíica. Sem impertinênciadoutrinária, era apenas como viajante de todas as terras que Blaise

Cendrars falava assim. A tese lhe vinha da experiência, e o poeta garantiaque jamais topara povo possuindo cozinha nacional que não possuíssecultura própria também. Pouco lhe importava que a maioria dos nossospratos derivasse de outros vindos da África, da Ásia ou da penínsulaibérica, todos os povos são complicadas misturas arianas. O importante éque, fundindo princípios constitucionais de pratos asiáticos e elementosdecorativos de condimentação africana, modiicando pratos ibéricos,chegamos a uma cozinha original e inconfundível. E completa.

Alguns comedores bons discordam de que a nossa cozinha sejacompleta. Acham-na pesada e incapaz de criar jantares dignos, leves ecerimoniais. Culinária própria de almoço, exclusivamente. Não há dúvidaque a maioria dos nossos pratos principais é pesada, mesmo grosseira.Pratos como a panelada de carneiro nordestina, o vatapá baiano, o tutucom torresmo são de violência estabanada. O efó preparado à baiana é tãobrutalmente delirante que nem somos nós que o comemos, ele é que nosdevora. A primeira vez que ingeri uma colherada de efó, a sensação exata

que tive foi essa de estar sendo comido por dentro. Pratos que implicam asesta na rede e o entre-sono... Alguns mesmo nos deixam num tal estado deburrice (de sublime burrice, está claro) que não é possível, depois deles,comentar sequer Joaquim Manuel de Macedo.127

Mas isto é meia verdade, e dentro da nossa culinária variadíssima temoso que comer a qualquer hora do dia e da noite. O sururu alagoano bemcomo o dulcíssimo pitu nordestino são espécies delicadíssimas de manjar.Em todo caso, de modo grosseiro, pode-se dizer que há uma ascensão

geográica quanto ao reinamento e delicadeza da culinária nacional. Àmedida que avançamos para o Norte, mais os pratos se t ornam delicados.

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Se principiamos no Sul, o churrasco gaúcho nem pode-se dizer que sejaprato de mesa; é antes comida de campo que tira parte do seu encanto emser provada de-pé, entre os perfumes do vento e do fogo perto. E fazgrande exceção em toda a nossa culinária característica, por ser um pratosimples, que não se inspira apenas no seu elemento básico paracombinações mais complexas, antes procura revelar a carne em toda a suamensagem. Dir-se-ia, neste sentido, um prato inglês. Porque,ilosoicamente falando, desculpem, diremos que a culinária pode seorientar por duas apenas das três grandes idéias normativas que regemnossa humanidade: pelo Bem e pelo Belo. Está claro que, sendonecessariamente verdadeira e não interessando imediatamente ao...pensamento puro, a culinária põe a Verdade de banda. As cozinhasfrancesa e inglesa podem comparecer como protótipos das duasorientações normativas da culinária. A inglesa se orienta pela idéia doBem: mais simples, mais franca, buscando apenas variar pelos molhos amonotonia das suas bases. Até o seu uísque de após janta, mais digestivo efunerário, é um valor fácil como a maioria dos heróis shakespearianos, se ocompararmos ao sabor montaigne de uma  fine.128 A cozinha francesa seorienta francamente pela idéia do Belo. As bases alimentares quasedesaparecem, sutilizadas às vezes em combinações de um inesperado

miraculoso. Isso é invenção desnecessária, é arte às vezes do mais gratuitohedonismo.Em geral a nossa culinária se dirige também pelas normas do Belo.

Vindo do Sul para esta zona caipira, os nossos pratos já são ricasmultiplicações. Em alguns deles chega a ser diícil descobrir qual a basealimentar inspiradora. A feijoada, por exemplo, em que o feijão deixou deser o fundamento, pra se tornar o dissolvente das carnes fortes. E quase omesmo diríamos do nosso cuscuz paulista, que pondo de parte a farinha, se

determina pela combinação principal, “cuscuz de galinha”, “cuscuz decamarão”.Com a Bahia a violência dos pratos se acentua em mesa bem mais

variada. Estamos no auge da inluência negra: e uma brutalidade dezabumba, agressivamente misteriosa, cheia de carícias estupefacientes,arrasa os paladares, que caem no santo, completamente divinizados.

Da Bahia pro Norte, os grandes pratos vão se tornando cada vez maisdelicados. É certo que continuam ainda pratos ásperos, vem a panelada,

vem o trágico tacacá com tucupi. Mas o Nordeste concorre com os seuspitus e sururus; e então uma sioba cremosa deslizando sobre o feijão decoco em calda, servida em porcelana translucidamente branca, isso é prato

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para o mais granfino jantar.Mas, a meu ver, onde a culinária brasileira atinge suas maiores

possibilidades de reinamento é na Amazônia. Todos já perceberam quepus de lado certas caças, encontráveis mais ou menos por todo o país, quepodem nos dar pratos da maior delicadeza. O macuco baixa do poleiro comseu sabor tão silencioso; e vem a ingênua paca no seu gosto irônico deestarmos prejudicando virgens; e principalmente o tatu-galinha, uma dasnossas mais perfeitas carnes como sutileza do tecido. Mas são carnes queainda não se culturaram e não sabemos tratar. A rusticidade jesuítica dosnossos costumes rurais ignora esse requinte pecaminoso de descansarsuicientemente uma caça, de modo que a asperidade do mato iqueapenas como um... background  do paladar.

Não. É na Amazônia que melhormente podemos jantar. É lá que seencontra o nosso mais ino pescado de água-doce, ninguém pode imaginaro que seja uma pescadinha do Solimões! Ninguém pode imaginar o que éum “casquinho de caranguejo” distraidamente pulverizado com farinha-d’água. A tartaruga, principalmente a tracajá mais risonha, dá váriospratos suaves, e o pato de Marajó vagamente condimentado com o tucupipicante... Devo acabar aqui, pois estou icando com vontade de comparartais sabores com Morgan, Bergson e o engenhoso idalgo Valéry. E certas

frutas, principalmente o bacuri perfume puro, tratadas sem açúcar, viriaminalizar tais jantares, como versos de Rilke. E assim é que, nestes temposaviatórios, a minha experiência já vos pode dar este conselho: Almoça-sepelo Brasil, janta-se no Amazonas.

 

125. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha  estão três recortes do mesmotexto, com fonte identiicada em nota do autor, a lápis, “Estado 28-V-39”, assinado “Mário deAndrade”, e rasuras, também a lápis, corrigindo erros de impressão e modiicando trechos para o

livro de 1943.126. Blaise Cendrars é o pseudônimo de Frédéric-Louis Sauser Hall (1887-1961), poeta, escritor ejornalista nascido na Suíça. Viveu grande parte de sua vida na França, em cuja Legião Estrangeiralutou durante a Primeira Guerra Mundial, perdendo o braço direito. Em sua primeira visita aoBrasil, em 1924, participou, com Mário, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Olívia GuedesPenteado e outros, da viagem a Minas Gerais, apelidada, pelo crítico Alexandre Eulálio, “viagem dadescoberta do Brasil ”, momento em que despontou a estética Pau-Brasil.127. Romântico brasileiro (1820-1882), autor do romance A moreninha (1844).128. Neologismo decalcado no nome do ilósofo Montaigne (Michel Eyquem, 1533-1592), criadopara adjetivar o sabor da fine, aguardente de uvas, típica da França.

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 FÁBULAS1291931 [1942]

 

No quase fundo do pastinho desta chacra,130 junto do aceiro da cerca,tem uma arvoreta importante, com seus quatro metros de altura efolhagem boa. No sol das treze horas quentes passa um velho arrimado aum bordão. Pára, olha em torno, vê no chão um broto novo, ainda humilde,de futura arvoreta, e o contempla embevecido. Quanta boniteza promissoranesta folhinha rósea, ele pensa. Já descansado, o velho vai-se embora. Diz o

broto: – “Está vendo, dona arvoreta? A senhora, não discuto que é o vegetalmais corpudo deste pastinho, mas que valeu tamanha corpulência! Velhoparou, foi pra ver a boniteza rósea de mim.” – “Sai, cisco!” que a arvoretasecundou; “velho te viu mas foi por causa da minha sombra, em que eleparou pra gozar.”

Ora andava o netinho do velho brincando no pasto, catando gafanhoto,nisto enxergou longe, lá na beirada do aceiro, um tom vermelho. Correupra ele, era o broto, na intenção capitalista de o arrancar. Mas chegando

perto, faltou ar pro foleguinho curto do piá, ele parou erguendo a carinhapra respirar e se embeveceu contemplando a arvoreta que lhe pareceuimensa no pastinho ralo. Esqueceu o broto que, de perto, já nem eraencarnado mais, porém dum róseo sem força. Depois cansou também decontemplar a arvorita que nem dava jeito de trepar, deu um pontapé notronco dela e foi embora. – “Ah, ah”, riu a arvoreta, “está vendo, seu broto?Você, não discuto seja mais colorido que eu, porém columim parou foi praespantar com a minha corpulência.” – “Sai, ferida!” que o broto respondeu;

“diga: por que foi que o columim te enxergou, diga! por quê! Ahm, não estáquerendo dizer!... pois foi minha cor, ferida! foi minha cor lindíssima que ochamou. Sem mim, jamais que ele parava pra te ver, ferida!”

Ora sucedeu chegar a fome num formigueiro enorme que tinha pra lá dacerca, e as saúvas operárias saíram campeando o que lhes enchesse osceleiros. Toparam com uma quenquém inimiga que, só de malvadeza, prassaúvas icarem sofrendo mais fome, contou a existência do brotoencarnado. As saúvas foram lá e exclamaram: – “Isso não dá pra cova dum

nosso dente! antes vamos fazer provisão nesta enorme árvore.” Deram emcima da arvoreta que, numa noite e num dia,  icou pelada e ia morrer. O

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broto, sementezinha da arvoreta mesmo, noite e dia que chorava e quegemia, soluçando: – “Minha mãe! minha mãe!”

Carecendo de fogo em casa, no outro dia, o velho saiu pra lenhar. Passoupela arvoreta que era só pau agora e icou furibundo: – “Pois não é queessas danadas de saúvas me acabaram com a única sombra que eu tinhano pasto!” E de raiva, deu uma machadada no chão. Acertou justo no brotoque se desenterrou bipartido e ia morrer. O velho foi buscar formicida ematou todas as saúvas que, aliás, já estavam morre-não-morre porque afolha da arvoreta era veneno. E o velho pegou de novo no machado e foi àprocura dum pau pra lenhar. Enquanto isso, a arvoreta moribunda, comvozinha muito fraca, olhava o broto arrancado no chão: – “Meu ilho! meufilho!”

– Onde que vai, vovô? exclamou o netinho topando o importantemachado no ombro do velho.

– Vou lenhar.O columim logo lembrou a árvore enorme que tanto o espantara na

véspera: – “Pois então pra que você não derruba aquele pau grande queestá na beirada do aceiro, lá ”? – “Ora, que cabeça a minha!” pensou ovelho; “pois senão dá sombra mais e está perdida, melhor é derrubar aarvinha mesmo.” Porém muito já que tinha se movimentado no ardente sol.

Nem bem derrubou o tronco, veio um malestar barulhento por dentro,nem soube o que teve, fez “ai, meu neto!”, deu um baque pra trás emorreu.

No outro dia, enquanto andavam fazendo o enterro chorado do velho, onetinho estava entretidíssimo com o tronco derrubado da arvoreta. Assimretorcido como era, fazia um semicírculo que nem de ponte chinesa, sobreo chão. Isso o menino fez, só que não imaginando na China. Era uma ponteformidável sobre um imenso rio. O columim atravessava a ponte, chegava

do outro lado e era o porto. Então embarcava num galho da arvoreta, caídopor debaixo da ponte, remava com outro galhinho e estava tão satisfeitoque pegando a folhinha já roxa do broto, solta ali, enfeitou com ela ochapéu. Uma única saúva salva, que estava agarrada na folhinha do broto,mordeu a orelhinha do piá, que deu um imenso berro e foi emborachorando pra casa. Pra consolar o ilho, a mãe deu uma sova no broto queocasionara a mordida da saúva.

O menino viveu mais cincoenta-e-sete-anos, casou-se, fez política, deixou

vários descendentes. Uma quarta-feira morreu. 

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129. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão da crônica publicada na coluna de MA no Diário Nacional ,em São Paulo, em 5 de julho de 1931 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed.cit., pp. 393-394).130. Conservamos a forma “chacra”, oral; Mário de Andrade assim se referia à chácara da Sapucaia,em Araraquara, propriedade de seu primo Pio Lourenço Correa, local onde escreveu as primeirasversões de Macunaíma, no final do ano de 1926 e no começo de janeiro de 1927.

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 MEU SECRETA1311931 [1942]

 

Celebro o meu secreta  . Pouco antes da imensa revolução trintona, nosparecidos tempos do Perrepismo, quando se conspirava com volúpia,“nossa” casa viveu guardada por secretas. É verdade que não estavam lápor causa minha mas de meu político mano, deixem porém escapar aquele“meu” do título, que ica mais eufônico e satisfaz meus heroísmos. De resto,por tabela ou não, o caso é que eu estava guardado também, tomavam nota

de mim, me seguiam na rua e mais carícias dos parecidos tempos doPerrepismo.Pois o que eu quero agora é celebrar aqueles homens espiadores que

guardaram esta rua Lopes Chaves e jamais não impediram que lá em casaizessem tudo o que é preciso pra merecer prisão, bastilha e morte. Nemlembro mais deles bem... Tinham todos essa inexistência doce das políticaslocais. Doce e perigosa, está claro. Pode levar a gente à correição, isso pode.Pode derramar as lágrimas das mulheres, o que é desolador. Mas tudo

continua tão mesquinho... Que as rédeas do governo estejam nesta ounaquela mão, senão são as mãos propriamente a causa destas ruindades...A ruindade está na forma das rédeas, companheiros. De mais: daqui apouquinho, talvez cem anos, talvez menos, vem por aí abaixo uma guerraguaçu e ainal se acabam as nações. Estados Unidos deste Mundo. Capital?Qual será a capital?...

Celebro o meu secreta. Eu gostava principalmente era daquelafatalidade macia com que ele vinha, na entressombra da boca-da-noite,

pousar na minha esquina, como a lua. Eu partia, outros partiam, meu manoicava, ele icava. Quando horas altas eu voltava, o meu secreta sempre ali.Às vezes aquilo me dava uma raivinha de calo, passava bem rente dele,encarando. Ele tocava no chapéu, como a lua. Minhas janelas abertasescutavam o ar da noite. Pouco a pouco eu distinguia, saindo do silêncio, obengalão portuga do guarda-noturno. O bengalão vinha pausado até minhaesquina, parava aí. De repente dava três pancadinhas impacientes. Derepente dava uma bem forte, com ódio. Bengalão estava dizendo: “Olha,

seu secreta duma iga, se você izer alguma coisa pra essa gente que euguardo, você apanha, heim!” Ficava ali um tempão. Era incontestável que o

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guarda-noturno tinha ciúmes do secreta. Uma feita, quando cheguei, láestava o secreta na esquina e o guarda vinha vindo. Isso ele apressou aandadura portuguesa, veio icar rente de mim pra que eu entrasse semdesgraça. Então nessa noite foi uma barulheira danada de bengalão. Tiveque adiar o sono, ao acalanto desse zabumba confortante. Mas temposdepois secreta e guarda icavam camaradas. Passavam a noite vastaconversando, senvergonhamente ali mesmo, na esquina. Não achei maisgraça nenhuma neles, tinham virado gente.

Quando bateu enim a revolução trintona, o secreta se valorizou, meumano preso. O pior é que deu pra parar caminhão na minha porta,justamente quando! O secreta era obrigado a vir saber, “por ordem do dr.Laudelino”, o que eram aquelas minhas novas estantes de livros, aquelesperus engradados que vinham da solicitude das fazendas amigas. Era perumesmo, eram legítimas estantes de livros. Mas aquela espera dos dianhos,Mãe chorando, Itararé insolúvel, Getúlio, Getúlio, fui icando irrespirável.Uma psicologia de estraçalho grunhia por dentro, como se valesse a pena!Não podia sair de-noite. De-dia era aquela historieira de ir alimentar meumano na jaula, enim, uma psicologia de estraçalho, de acabar com aquiloduma vez. Ora eis que vou despedir uma visita de família, e o secreta diz-que postado abertamente no portão, espiando pra dentro. Não sei o que

me deu, iquei fulo. Só iz foi pegar no chapéu e sair olhando o homem. Eledeu de andar pelo quarteirão de minha casa, mui lento, seguro de si. Fiqueiparado, mãos nas ancas, desaiante, olhando o vulto que lá ia. Ele dobrou aesquina. Mas logo enxerguei a cabecinha dele espiando pra cá. Tornei aicar com uma bruta raiva e me dirigi, vem-valiente! pra lá. Fui rápido,quase correndo, porque estava decidido a não-sei-o-quê. Era incontestávelque eu estava decidido, mas era também incontestável que não sabiaabsoluto a que estava decidido. Mas o homem percebeu e quando cheguei

lá na esquina, ele já ia longe, quase no im do quarteirão, andando tambémjá numa certa pressinha. Olhava muito pra trás e quando me viu apressouinstintivamente o passo mais. Viu que me dirigia pra ele, dobrou a outraesquina mais depressa, e quando cheguei lá, que secreta nem nada! Játinha dobrado de-certo novas e mais esquinas, tinha partido por essemundo, estava fazendo o circuito de Itapecerica, alugando pensão emJacareí, não estava mais. Medo de mim não podia ser, está claro. Era, semele querer, essa espécie de malvadeza prudente, paliativos, paliativos, em

vez de resolver num golpe o problema do café. Era brasil. 132 Quandocheguei em casa, estava desfatigado e pude esperar... até agora. E aindaposso esperar mais um bocadinho. Tenho uma incapacidade enorme pra

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me preocupar com políticas nacionais. Depois pra quê? se mais dia menosdia, depois da guerra guaçu, vêm mesmo os Estados Unidos deste Mundo.

 

131. NOTAS DA EDIÇÃO | Segunda versão da crônica que saiu na coluna de MA no Diário Nacional 

de São Paulo, em 8 de março de 1931 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed.cit., pp. 347-349).132. Mantivemos a inicial minúscula que transforma o substantivo próprio em comum, concluindo oparalelismo construído com “medo” e “malvadeza”.

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 REI MOMO1331935 [1942]

 

Também quis celebrar   o rei Momo e logo me vesti de azul e deencarnado. Então me olhei no espelho e esmoreci. Não é que eu imagineindignidade desumana a gente estar se preocupando de alegria nummomento como este, em que positivamente o mundo vai de mal a pior.Ainal das contas, eu já cheguei também àquele alto de montanha, muitoavançado no caminho da experiência, pra estar mais ou menos desconfiado

de que sempre o mundo foi de mal a pior. E apesar disso ele ainda está aí,bastante ativo e um pouco perturbado. Talvez não faça mal que, depermeio a missões de SOS inanceiro e leis de segurança para osgoverninhos bastante perturbados, a gente se enlambuze, por uma quarta-feira apenas, com o zarcão da alegria. O que me fez esmorecer foram ascores que logo preferi pra me enfeitar.

São as cores tradicionais da alegria brasileira... Com elas se vestiram oszambis de mentira, tirados da escravaria, a que os padres, num gesto meio

aborrecido, como viu Koster, entregavam cetro e coroa à porta das igrejas.Com o azul e o encarnado se distinguiam as facções guerreiras nas dançasdos Congos e Gingas, bem como as dos nossos Congados e Moçambiquescaipiras. Nas Cavalhadas, de Norte a Sul, eram ainda o azul e o encarnadoque aformoseavam a gesticulação enfeitada de cristãos e mouros. Cristãosde azul, cor de Deus, mouros de vermelho, cor do Sujo. E ainda até agoranalgum raro lugar, a rapaziada briga por um pedacinho de ita das mulatasdo Cordão Encarnado ou do Cordão Azul, nos Pastoris...

Ora eu soube que chegou a esta cidade de São Paulo, quem? o rei Momoem pessoa. Mas eu não conheço o rei Momo, nunca tive argent   pra ir naEuropa. Qualquer dia havemos de ter por aí o Bruder Alex, o Sultão T-Tulba e os outros bodes expiatórios, também enlambuzados de alegria, quepermitimos reinem por toda uma quarta-feira, pra que, destruindo-osdepois, levem consigo o nosso mal humano. É inútil: não levam não e ignoroas cores do rei Momo europeu.

Por que não se tentar trazer de novo a São Paulo o Sultão do Meio-Sol e

da Meia-Lua, das Cheganças, o Arrelequim do Bumba-meu-Boi, o Matroáfabulosíssimo dos Caiapós, ou melhor, o rei Congo e a rainha Ginga?... Não

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estou censurando comissões de alegria, não é censura, é saudade. É esteanseio meu, rabugento, de unir presente e passado, anseio de quem vê diapor dia o homem sempre o mesmo, incapaz de beneiciar de suas própriasexperiências. Pois já não estão querendo criar o Conselho Nacional doAlgodão! Em cada gesto humano a gente percebe sempre, não aexperiência, mas a macaqueação de trezentos séculos. “Repetição, tudorepetição”, pra corrigir a atrasadíssima sabedoria salomônica. E serepetimos diariamente os erros milenários, se eles renascem comfacilidade de erva e fecundidade suína, por que não tentar o renascimentode costumes que só desapareceram pela desordem dos chefes?

Dantes, as festas dadas pelos chefes pra que o povo se... se esqueçatocavam base popular. Não era a Marinha que subia no tablado nem o reiMomo. Era o Armirante Mascaranha e o Surtão de Trugue-e-Metrogue.Nascia lá no transatlântico Portugal o, quem? o príncipe da Beira Baixa.Então estava convencionado que o brasileiro icou alegríssimo e queria sedivertir. Mandavam avisar de lá que os coloniais de cá tinham que mandarpra lá um presente de suponhamos um milhão de cruzados de cá probercinho do herdeiro macho. E isso era motivo de alegria fenomenal. E osuponhamos Ilmo. e Exmo. Sr. D. Luís Gonzaga de Sousa Botelho e Mourão,Governador e Capitam General da Capitania de São Paulo, decretava

grandes alegrias públicas, de que algum áulico poeta escreveria, em letrailuminada, a Relação. Ah, como esta vestimenta de azul e encarnado meamarga!... Estou imaginando num rei Congo diante do qual o próprioGovernador se abaixasse, pra lhe pegar o cetro caído, como sucedeu noTejuco... Ou nalgum armirante de mentira, que nem aquele João Pachecobaiano, que fazia parar divisões do exército inteiras, pra trocarcontinências de estilo com generais de verdade... Um pouco de orientaçãoem poucos anos faria renascer tudo isso... E talvez isso trouxesse pelo

menos uma justificativa mais humana aos decretos oficiais de alegria. 

133. NOTA DA EDIÇÃO | Não faz parte, como recorte, do manuscrito de Os ilhos da Candinha, nasérie Manuscritos Mário de Andrade, no Arquivo do escritor.

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 IDÍLIO NOVO1341932 [1942]

 

Oh! quem são esses  entes fugazes, duendes fagulhando na luxuosacidade!... Eles brotam dos bueiros, das portas, das torres, rostos lunares, ea dentadura abrindo risos duma intimidade ignorada no ambiente gélido.Chatos, troncudos eles barulham, pipilam, numa fala mais evolucionadaque a nossa, fulgurante de vogais sensíveis e de sons nasais quentes, quesão carícias perfeitas. Quem são esses sacizinhos felizes, coniantes nos

trajes improvisados, portadores da alegria nova, estrelando na ambiênciada agressiva cidade!...Naquele recanto de bairro a casa não era rica mas tinha seu parecer. Aí

moravam uma senhora e seus ilhos. Era paulista e já idosa, com bastanteraça e tradição. Cultivava com pausa, cheia de manes que a estilizavaminconscientemente, o jardinzinho de entrada e o silêncio de todo o ser. Suasmãos serenas davam rosas, manacás, consolos e, abril chegando,loresciam numa esplêndida trepadeira de alamandas, que fora compor

seu buquê violento num balcão. Nos abris e maios do bairro, os automóveispassando, até paravam pra contemplar.Outro dia estava a senhora lidando com as sedas sírio-paulistas da ilha,

quando a criada veio falar que tinha na porta um sordado. A senhorapercorreu logo a criada com olhos de inquietação. Com as últimasrevoluções a senhora tivera portão vigiado, armas escondidas, ilho preso.Ergueu-se, recompôs o estilo do rosto, foi ver. No portão estava umtenentinho moreno, cheio da elegância, mais a mulher dele, menos lexível,

achando certa diiculdade, se via, em se vestir com distinção. Mas ambosfiguras duma simpatia imediata, confiantes como água de beber.

– Bom dia! sorriram.– Bom dia.– Madame é a dona da casa!– Sou.– Nós passamos sempre por aqui! Achamos muito linda essa trepadeira

que a senhora tem no balcão!...

– Como se chama essa flor!...– Alamanda.

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– Alamanda!– É.– Nós moramos ali em cima naquela casa grande da esquina, e Hosana

sempre me chama a atenção para a sua trepadeira! aquela ali de frentenão é tão bonita assim!

– É tão bonita. É a mesma.– Não parece não! não acha, Catita!– Até parece outra, olha só a cor! Nós queríamos pedir à senhora que

nos desse um galho pra plantarmos em nosso jardim!– Eu dou o galho... Mas não sei se esta planta pega de galho. Comprei ela

já crescida.– A senhora quer que ajude! Hosana, vá com madame!– Muito obrigado, não carece.Então a senhora já completamente sossegada subiu ao balcão. Com a

natural cordialidade pouco visível exteriormente nela, escolheu três ouquatro galhos bem robustos, foi cortando. Ela de lá, eles de baixo,estabeleceu-se logo uma conversação agradável, toda criada pelotenentinho e sua mulher, que ainda durou no portão, com muitosagradecimentos do casal, já uma certa familiaridade e oferecimentos decasa e dos préstimos.

A senhora não soube corresponder porque nunca aprendera isso tãodepressa. Meio que a assustava aquela intimidade com vizinhos, pedircoisas, mandar presentinhos, jeitos que jamais não tivera na vida nem lheordenavam os seus manes. Não pôde oferecer nada, aquela colaboraçãocom vizinhos lhe desarranjava todo o silêncio. Mas soube sorrir com um“possível carinho” no adeus. E era incontestável que lhe icava no peitouma espécie de felicidade. Não era verdade, ela sabia, mas sempre tinhano mundo alguém que achara as lores dela mais bonitas que as do jardim

rico defronte. Estava próxima de querer bem o tenentinho e sua mulher. 

134. NOTA DA EDIÇÃO | Nova versão, com variantes, da crônica que saiu na coluna de MA no DiárioNacional , em São Paulo, em 24 de abril de 1932 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no DiárioNacional . Ed. cit., pp. 521-523).

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 MOMENTO PERNAMBUCANO1351934 [1942]

 

Não há coisa mais apaixonante  que ver a mocidade trepando na sacadados livros ou na esquina das revistas pra poder falar. O que eles vão falar?“Brincadeiras de moços, sonhos de moços”, sorrirão os experientes. Sim,serão sempre “brincadeiras”, se quiserem, no sentido estético em que aarte será sempre um jogo. E serão sempre sonhos. Mas é que careceavançar mais profundamente nesses sonhos e brincadeiras, e reconhecer

neles, além da mais vibrátil e boa condutora voz do tempo, o clamor demuitas reivindicações. A mocidade sofre bem mais que nós. Ela não seutiliza dessas morfinas espirituais da experiência e da paciência, com que agente projetamos nossas dores para um plano egoístico decontemplatividade, veriicando com elas as sentenças e provérbios domundo. O provérbio é um dos mais terríveis meios de estagnação dahumanidade... A gente se consola na veriicação de certas síntesesexperientes e inócuas, se distrai nesse brinquedinho e não avança mais.

Por isso os provérbios vivem na boca do povo, que é ramerrâmico etradicional, ou das várias velhices de idade, experiência ou sabedoria, quesão inativas e se alimentam da contemplação.

Estas melancolias me vieram com a leitura dos Vinte e seis poemas   deAderbal Jurema e Odorico Tavares, 136 moços que clamam dePernambuco. Um livro lindo. Talvez muitos da minha geração estejampasmos desta airmativa, diante de poemas que pouco parecerãoesteticamente bonitos. De-fato, eu também não “vejo” muita beleza, no

sentido propriamente estético, em poemas como esses. E no entanto, lido olivro, o meu ser guarda toda uma sensação nova, quase inenarrável, debeleza radiosíssima. Mas é que o ângulo social donde a gente percebe estabeleza nova é já um outro ângulo, de novo. Nós também já tínhamosmudado de ângulo, abandonando a fácil regra parnasiana, pra buscar, nãoapenas em ritmos novos, mas em assuntos do dia, e mesmo em assuntosconscientemente escolhidos, maior função para a nossa arte. O que foi todoo nosso brasileirismo gesticulante, senão um pragmatismo forçado?

Desprovidos de bom-senso (graças a Deus!) não buscávamos a realidadebrasileira, mas diversas idealidades dessa realidade, pra f orçar a nota e

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normalizar assim em nós os monótonos e esquecidos trejeitos da realidadebrasileira. Certamente nisso é que fomos mais belos. A beleza, porexigência do tempo, já não residia mais tanto na obra-de-arte e sim noartista. A beleza estava mais em nossos gestos que em nossas obras...

Sem dúvida são muitos moços, e ainda não izeram livros eternos, umJorge Amado no Cacau, um Amando Fontes com seus trágicosCorumbas,137 e agora Odorico Tavares e Aderbal Jurema com estespoemas. Porém há uma beleza profunda na atitude desses rapazes dianteda vida. E dão um passo enorme sobre os de minha geração. São estas asvozes novas que ecoam forte os problemas danados do tempo. Os da minhageração saíram das torres e estúdios para a rua. Mas os novos desceramda calçada e se misturaram na multidão. Será bem fácil reduzir suas obrasa sentenças e provérbios. É facílimo veriicar que a situação de certasclasses não tem a “realidade” que esses livros cantam. Cantam mentiras.Não são mentiras não. São apenas “idealidades” duma realidadeinsuportável, insustentável, mais trejeitante ainda que a desses lirismosnascidos duma legítima paixão.

E eis por que, não apenas os gestos desses moços, mas também as obrasdeles, apesar de incipientes, são objetivamente belas. A maneira com queesses rapazes falam era a própria que exigia o assunto deles. O verso em

que Virgílio cantou Dido era perfeito. Pra Dido. E da mesma forma sãoperfeitos o decassílabo do I-Juca Pirama  e o verso-livre de ManuelBandeira. Por que não será perfeita a explosão crua destes estilos novosem assuntos novos?... Também com eles eu me esqueço de mim,favorecendo o amor, meu coração se torna comovido e minha inteligênciase convence.

Arte, que desejas mais? 

135. NOTAS DA EDIÇÃO | Na pasta que conserva os datiloscritos e o exemplar de trabalho dostextos jornalísticos de Os ilhos da Candinha, os fólios 109-110 são a cópia datiloscrita rasurada dacrônica Momento pernambucano, que saiu no Diário de S. Paulo , 1º de julho de 1934, conforme severifica no recorte, no arquivo do escritor.136. Em 1934, Aderbal Jurema (1912-1986) e Odorico Tavares (1912-1980) dirigiram, em Recife,a revista literária Momento  (1933-1935), vinculada à editora do mesmo nome, responsável pelapublicação de Vinte e seis poemas, nesse mesmo ano. O livro foi enviado a MA com dedicatória doautor, assim como Insurreições negras no Brasil , de Tavares (Recife: Casa Mozart, 1935).137. O exemplar de Os corumbas  (Rio de Janeiro, Schmidt, 1933), romance de Amando Fontes, nabiblioteca do cronista, traz a dedicatória: “Para Mário de Andrade,/ culto e brilhante espírito,/homenagem afetuosa de/ Amando Fontes/ Rio, 22 ⁄ 7 ⁄ 933.”

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 ENSAIO

DE BIBLIOTHÈQUE ROSE1381930 [1942]

 

– Fecha a porta, Ritinha! Olhe o golpe de ar no pescoço de seu pai!Deu uma raiva nela. Sempre esse besta de golpe de ar! Pouco se

amolavam que ela sofresse, que o mundo tivesse caído em cima dela e avida não valesse mais a pena por causa de Fride. Fride era o Frederico tãolindo e sócio atleta do Paulistano. Não havia mais dúvida: Fride dera o fora

nela e por causa disso o mundo caíra.Nem bem acabara o trabalho da loja, correra ao encontro e Fride nãoestava. Esperou, esperou muito e se fez tarde. Nem com a carta, cheia deamor e paixão, ele viera, cachorro! E foi então que o mundo caiu. Abalouaté o clube, doida, responderam que o Fride estava sim, foram chamá-lo.Fride não veio ou veio, não sabia direito. Estava tão distraída imaginandono mundo que caíra por cima dela que, quando olhou, parece que a portase mexia fechando. E logo vieram dizer que Fride saíra.

E agora, nem bem entrava em casa, quando todos deviam correr pra ela,abraçá-la, pedir que ela não morresse tanto assim, já lhe gritavam quefechasse a porta depressa por causa do golpe de ar, ingratos! Tambémrespondeu dura que já tinha jantado e foi pro quarto.

Deitou vestida mesmo. Lhe viera uma fadiga deliciosa com o passeio eesta noitinha de verão, meiga, quase fria com os ventos chegados da Serrado Mar. O corpo de Ritinha se desmanchava na cama, nessa voluptuosadesmaterialização das desilusões enormes. Só se materializou de novo

quando os manos, fazendo uma zoada vasta, entraram no quarto gritandoque Pedro viera convidar pra um passeio na máquina. Os olhos de Ritinhabrilharam de ódio e ela foi até a porta da rua.

– Olha o golpe de ar no seu pai, Rita!Fechou a porta com estrépito atrás de si. Os meninos já tinham se

instalado no torpedo de aluguel, que brilhava, ainda em plena mocidadebem tratada. Pedro até era bem simpático, bigodinho já na moda e omoreno trazido do sertão. Só entrava às dez no serviço, e viera convidar,

porque amava. Mas Ritinha se lembrou que o mundo tinha caído e quenum momento desses ninguém se lembra de passear. Respondeu que não

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ia. Pedro ainda perguntou por quê. Ritinha disse:– Estou triste.Ele insistiu um bocado, explicando que só entrava às dez no serviço que

largaria às três da madrugada. Depois disse adeus e partiu muitíssimotriste.

Ela entrou desesperada, prodigiosamente triste, com dois mundos,muitos mundos caídos por cima dela. Se atirou na cama e agora pôdechorar. Depois de chorar, dormiu. Acordou sobressaltada, não era nemmeia-noite, ôh fome! Mesmo na mala, escondidos por causa dos manos,estavam os últimos chocolates que Pedro sempre lhe trazia do serviçoantigamente, no mês passado. Mas uma desinfeliz não come, Ritinhaimaginou. E icou imaginando nos chocolates. Eram bem gostosos oschocolates, mas sempre lhe vinha aquela idéia deslumbrada de que o Frideera moço chique, só chofer de si mesmo naquela grandiosa baratinha emque ela passeara duas vezes. Passeios aliás sem calma por causa do Fridequerer tanta coisa. Da primeira vez deu um beijo; da segunda deu muitos eaprendeu pra sempre que não devia mais passear na baratinha, nãopasseou. Mas Fride...

Levantou-se maquinalmente e foi buscar os chocolates porque não podiamais com a fome. Deitou de novo, mas que-dê sono! Só que estava bem

alimentada agora, com força pra ser desinfeliz. Pedro não! Só Fride! Fridedo meu amor e da minha paixão! Estava com muita sede, mas água nãotinha no quarto, só na varanda. O relógio bateu tenebroso as três damadrugada. Era a hora em que Pedro acabava o serviço o mês passado eRitinha, muito vestida da cintura pra cima, entreabria a janela pra dizerboa-noite e receber chocolates. Deu um desespero tão grande por Frideneste momento, que Ritinha se lembrou que devia suicidar-se, mas com oquê? Se atirar daquela janela baixa não matava. Ah! o golpe de ar! tinham

medo que o golpe de ar matasse o pai, pois ela é que ia morrer com o golpede ar. Aquela perigosa combinação de porta da rua e corredor da varandaseria a arma do suicídio. E assim ela aproveitava pra beber água. Se olhouno espelho, estava bem vestidinha, pôs um pó-de-arrozinho no nariz.

Cautelosa mas com certa pressa, três e dez, foi à sala de jantar e matou asede. Agora tinha que matar-se também. Tirou com muito jeito a tranca daporta da rua, abriu e fez uma fenda bem larga pra entrada do golpe de ar.Encostou a porta pra não bater. Depois sentou no lugar do pai, puxando o

decote da blusa nas costas, oferecendo corajosa o pescocinho ao golpe dear. E logo entrou um golpe de ar violento que fez Ritinha estremecer, quedelícia! Que delícia morrer, ela pensava. O golpe de ar a enlaçava

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apertando Ritinha e cadeira no mesmo abraço musculoso, uivando comamor e paixão, “Ritinha! Ritinha!” E ainal não pôde, afundou os beiçosardendo no pescoço macio dela, pinicando com o bigodinho aparado,torrado pelo sol queimador do sertão.

– Ritinha, faz isso não! O que passou, passou! eu caso com você!Ritinha chorava manso, deixando que o lenço meio sujo, misturado com

iapos de fumo de rolo e cheiro de níqueis, lhe enxugasse as lágrimasbonitas. E o golpe de ar a erguia poderoso da cadeira de suicídio emandava, escondido nos cabelos dela:

– Fecha a porta, Ritinha!, vá pra cama, que você apanha com um golpede ar!

 

138. NOTA DA EDIÇÃO | No título está a ironia à biblioteca das moças.

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 CALOR1391939 [1943]

 

Calor...  O Rio de Janeiro está na sua maior festa ísica de terra ondequem mandou o homem vir morar? O contraste é violentíssimo: percebe-seclaro que tudo quanto não é ser humano ou animal de cultura estágozando, se expandindo, se multiplicando, enquanto o homem sofrepavorosamente. Um pensamento só me preocupa o espírito vagarento:tudo quanto é ser humano sofre insoismavelmente, sofrem os pobres

como os ricos, não há distinção de casta, nem de raça, nem de idade,martirizados pelo calorão. Mas tudo o que é desumano se deslumbra erevive num escandaloso esplendor. Pois é incontestável que também afalange das mulheres loresce traidoramente, adere franco ao delírio davitalidade mineral e vegetal, tanto mais esplêndidas que o macho se mostrachucro e charro. Isto me inquieta pouco aliás, porque eu pago imposto, mashei-de continuar solteiro. Em todo caso, ajuntando recordações esparsaspelos anos, sinto mesmo que deve haver qualquer coisa de mineral nas

mulheres.Desta janela, os meus olhos vão roçando a folhagem vertiginosamentedensa da Glória e da praça Paris, buscar no primeiro horizonte osarranhacéus do Castelo. A superície da folhagem é feia, de um verdeeconômico, desenganadamente amarelado. Mas em baixo, dentro dessacrosta ensolarada, o verde se adensa, negro, donde escorre uma sombracandente, toda medalhada de raios de sol. Passam vultos, passam bondes,ônibus, mas tudo é pouco nítido, com a mesma incerteza linear dos

arranhacéus no longe, ou, mais longe ainda, no último horizonte, a Serrados Órgãos. Porque a excessiva luminosidade ambiente dilui homens ecoisas numa interpenetração, num mestiçamento que não respeita nem omais puro ariano. Os corpos, os volumes, as consciências se dissolvemnuma promiscuidade integral, desonesta. E o suor, numa lufalufa de lençosingênuos, cola, funde todas as parcelas desintegradas dos seres numaúnica verdade causticante: CALOR!

Estou me recordando dos outros grandes momentos de calor que já

vivi... Três deles se gravaram pra sempre em minha vida, momentossarapantados de infelicidade, desses que depois  de vividos a gente sente

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certo orgulho em recordar. O mais conscienciosamente sofrido dos três foinuma errada de meio-dia, alto sertão da Paraíba, junto à Borborema. Íamosde auto e fazia já seguramente duas horas que não encontrávamosninguém, na estrada incerta que tomáramos. O mundo era pedra só, doseixo ao rochedo erguido feito um menir, tudo pulverizado de cinza, sob agalharia sem folha das juremas sacrais. Sob elas, o deus-menino doNordeste, Mestre Carlos, o “que aprendeu sem se ensinar”, adormecerapra sempre e se desencarnara, indo com mais amplitude fazer bem aoshomens lá nos altos reinos. A hora aproximava do meio-dia, quandotopamos ainal com uma casa, algum “morador” de fazenda, com certeza.Chamamos por gente, e no im de certo tempo apareceu, palavra de honraque tivemos a noção perfeita de que o homem era Jesus. Um sertanejobelíssimo, completamente igual ao Jesus de Guido Reni,140 ou dasverônicas que se vende por aí. Ficamos estarrecidos. Mas Jesus foi péssimopra nós, a estrada que deveríamos tomar não era aquela não, mas a outraque fazia encruzilhada com a nossa, umas três horas de caminho atrás: erao pino do dia. Desde alta madrugada viajávamos assim, vindos do Açu, semcomer, recusando a água barrenta dos pousos, pois contávamos em brevealmoçar e tirar um bom naco de conversa em Catolé do Rocha, espreitandoos domínios do Suassuna.141 E agora só iríamos alcançar a cidadinha pela

boca-da-noite, se Deus quisesse. Ah, ninguém não ouse imaginar o calorque principiou fazendo de repente! um calor de raiva, um calor dedesespero e de uma sede pavorosa que a raiva inda esturricava mais. Essefoi o maior calor que nunca senti em vida, o calor dos danados, em quefalei palavras-feias, pensei crimes e me desonrei lupulentamente.142

De outra espécie, dolorido mas magniicentemente vicioso, foi o calorque agüentei no centro de Marajó, lago Arari.143 Entre as venturas da ilha,o verde inglês dos pastos, visita a búfalos e os sublimes pousos de aves,

coisa de indescritível fantasmagoria, a nossa ingenuidade de turistasculminara de bom-humor com a vista do vilejo144 lacustre que bóia naboca do lago. Nos transportamos para os tempos neolíticos, descobrimos acerâmica, polimos a pedra e várias outras conversas de fácil erudição.Depois decidimos dar um passeio no lago e tomarmos assim um gostinhodas inatingíveis jazidas do Pacoval, que icavam do outro lado e estariamsubmersas naquela época de cheia. Porém naqueles mundos amazônicosnão tem água que não guarde traição: nem bem avançávamos uns

quinhentos metros no lago, que a lancha estremeceu, mordendo fundo noareão invisível, parou. Depois de uns três esforços para nos safarmos doencalhe, o mestre percebeu que a coisa era grave e o melhor era mandar o

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único bote em busca de socorro. Imaginamos logo o que seria de tempo,descer num bote de remo todo o rio mole, arranjar socorro e o socorrochegar até junto de nós... O calor já vinha afastando com severidade asbrisas matinais do lago e o céu era sem nuvens. Nem foi tanto questão decalor, foi mais questão de luz. Aos poucos uma luz imensa, penetrante, foiengolindo tudo. Já mal se enxergava o vilarejo lacustre, as margens tinhamdesaparecido. O amarelado solar foi clareando impassível, foi se tornandocada vez mais branco, incomparavelmente branco, e o vilejo desapareceutambém, imerso no algodão que escaldava. O azul do céu diluiu-se naalvura de fogo que as águas espelharam sem piedade, brancas,assombrosamente brancas. A primeira consciência de sofrimento que tivefoi de estupor, não tem dúvida, espaventado com aquela trágica massa debrancos luminosos em que tudo se engolfou tumultuariamente, numestardalhaço espalhafatoso de cataclisma. Não havia mais olhar queousasse apenas entreabrir, mas as próprias pálpebras fechadas eramincompetentes para nos livrar da fatalidade da luz. O branco penetravapelos poros, pelos ouvidos, pela boca, nada agressivo agora, nadaimpetuoso, mas certo, irrevogável, irrecorrível, alcançando os ossos,alcançando o cérebro que de repente como que parava, convulsamentebranco também.

Hoje, às vezes, tenho desejo de sentir de novo a sensação medonha quesofri, tenho como que uma saudade daquele branco em fogo. Mas isso deveser vício, pureza é que não é. Se escolheram o branco para simbolizar apureza, deve ser mesmo porque a pureza é impossível de sustentar. Masagora estou lembrando aqueles tapuios do vilejo lacustre, que lá viviam eainda vivem, na convivência do assombro. Pois então mudemos a conclusãoe convenhamos que até com a pureza há gentes que conseguem seacostumar.

Enim a terceira lembrança de calor que guardo nos transporta aIquitos, no Peru. Mas nesta, o calor não se colore de raiva nem de luz, nemde coisíssima nenhuma, é um calor só calor, e talvez por isso mesmodegradante e de pouco interesse experimental. Nós chegáramos à cidade(assim mais ou menos do tamanho de Moji das Cruzes) com aindumentária de célebres, recebidos com aparato e o nobre presidente, deponto em branco, no cais lutuante, para nos saudar. Fazia um calor deestafa, e depois de todo um cerimonial longo, e por aí uma centena de

apresentações e conseqüentes apertos-de-mão, “muito prazer”, opresidente se retirou enquanto o secretário dele me advertia em segredoque dentro duma hora seríamos esperados em palácio, para retribuição

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oicial da visita oicial. Teríamos que vestir pelo menos um linho maisescanhoado e o suor nascia como fonte, diluindo qualquer esperança dediscrição. Me lembrei de tomar um banho frio, daquele frio relativo esempre sujo, das águas barrentas do Amazonas. Mas quando principiou acerimônia de enxugar o corpo é que se deu o acontecimento cruel:veriiquei apavorado que não havia nenhuma possibilidade de meenxugar. Nem bem enxugava de um lado, que o outro chovia em suoresinesgotáveis, que calor! Foi então que sentei na cama da cabina e tive,palavra de honra, tive, aos trinta e muitos anos daquela existência seca,uma sensação degradante: vontade de chorar. Me nasceu uma vontademanhosa de chorar, de chamar por Mamãe, me esconder no seio dela e mequeixar, me queixar muito, contar que não agüentava mais, que aquelecalor estava insuportável, desgraçado, maldito! Enquanto ela docementeenxugaria as minhas lágrimas, murmurando: “Tenha paciência, meu filho, ocalor é assim mesmo”... Se não chorei foi de vergonha dos espelhos. Porémjamais me percebi mais diminuído em mim, mais afastado das bonitasforças da dignidade.

O calor desmoraliza, desacredita o ser, lhe tira aquela integridadeharmoniosa que permitiu aos suaves climas europeus suas bárbarasnoções cristãs, sua moral sem sutileza, e suas forças brutamontes de

criação. Que se tenha conseguido implantar, neste calor brasileiro, laivosbem visíveis da civilização européia, me parece admirável de força etenacidade. E talvez tolice enorme... Melhormente nos formaríamos talvezcomo chins ou indianos, de místico e vagarento pensar.

 

139. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha está o recorte de título análogo,com fonte identiicada em nota do autor a lápis: “Estado 19-III-39”, assinado “Mário de Andrade”,com rasuras dele corrigindo erros de impressão e modificando trechos para o livro de 1943.

140. Guido Reni (1574-1642): pintor de tema religioso, célebre por suas Madonas. Mário conheciaa pintura européia por reproduções em livros.141. Alusão à viagem feita por Mário de Andrade ao Nordeste do Brasil, como Turista Aprendiz, dedezembro de 1928 a fevereiro de 1929. Catolé do Rocha, “capital do cangaço paraibano”, éfocalizada na crônica Automóvel, 19 de janeiro, publicada no Diário Nacional , São Paulo, em 28 defevereiro de 1929. Na edição citada de O Turista Aprendiz , localiza-se às pp. 289-291.142. Trocadilho referindo-se ao consumo de cerveja, embebedando-se.143. Mário, em sua viagem de Turista Aprendiz à Amazônia, fotografou o lago Arari.144. Respeitamos o neologismo criado por Mário de Andrade para “vilarejo”.

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 RITMO DE MARCHA1451932 [1942]

 

Do meu ônibus  desembarquei na praça do Patriarca. Faltavam aindauns quinze minutos e sem pressa entrei pela rua Direita, em busca dolargo da Sé, onde se realizava o comício. Mas nem bem entrei na rua avisão me surpreendeu, me agarrou, me convulsionou todo. E num átimo acarícia do meu bem-estar mudou-se num sentimento áspero de energia ede vontade.

Não era mais aquela multidão adoçada com os pirulitos das moças, queeu viera apreciando no ônibus, nem a largueza clara da praça onde tantasruas desembocam lançando golfadas de pedestres irregularmentemovidos. Embora muita dessa gente naquele instante demandassem olugar do comício, ainda estava desritmada na amplidão da praça.

Mas entrando na rua estreita o espetáculo era outro, tudo se organizavanum ritmo voluntarioso de marcha, formidável de caráter. Não se via umacara só. O que se via era aquele ruminante ondular de ombros, e os passos

batebatendo plãoque-plãoque no pavimento da rua, plãoque-plãoque,plãoque-plãoque. Um raro homem que vinha em sentido contrário estavamiserável, com vergonha, quem sabe, uma doença em casa, algum outrodever imprescindível. Mas vinha mísero, de olhos no chão, numindividualismo bêbado, sem nexo, nem sabendo andar. Ar de danseur , erahorrível. E que se esgueirasse, porque os ombros plãoque-plãoque nãodavam passagem, quadrados, decisão, inabaláveis, sem delicadeza,plãoque.

O comércio fugira assustado, fechando as casas, não havia vitrinas. Nemjoalherias com suas jóias, nem banhistas e cenas de baile nas casas demodas, as casas de música sem suas vitrolas, nem confeitarias de amor,namoros, chope, nada. Casas mortas na rua estreita, desabitadas deconvites e feitiços, como a própria decisão. O luxo, o prazer, o quotidianodesapareceram da rua. A própria gente marchando se uniicara numaquase inconcebível consciência bruta de coletividade: o ombro operário, odo estudante, o do burguês e o desse ilustre segurando o netinho de dez

anos pela mão, plão. Militares, nenhum, aquartelados. Só os políciasmercenários, de longe em longe, feito belas adormecidas.

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Livre de todas as quotidianidades da vida civil, aquela multidão ia a umcomício. Ia contar seu desejo, ia exigir um bem comum. Ia berrar pela suaúnica verdade do momento, que os chefes não estavam querendo lhe dar.E aquela multidão assim não era nem alegre nem triste, era trágica. Tinhaperdido por completo o ar festivo das multidões. O ritmo era um só,binário, batido, ritmo de marcha, ritmo implacável de exigência que há-deconseguir de qualquer jeito o que quer. E porque ansiosos por saber o queia se passar no comício, todos estavam calados, todos guardados em simesmos, decididos, num ritmo marcado de marcha, batendo com os pés nochão.

 

145. NOTA DA EDIÇÃO | Segunda versão da crônica que saiu na coluna de MA no Diário Nacional ,

em 28 de fevereiro de 1932 (ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional . Ed. cit., pp.505-506).

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 TEMPO DE DANTES1461929 [1942]

 

Este é um caso brasileiro da terra potiguar.No município de Penha suponhamos que Antônio de Oliveira Bretas era

senhor de engenho, homem já de seus trinta e cinco anos, casado com donaClotildes, já sabe: cabeça-chata atarracado, falando alto. Dona Clotildeschamava ele “seu Antônio” e ele respondia “a senhora”. A mana delatambém morava no engenho que não era grande não, produção curta mas

com uma aguardente famosa no bairro.Na véspera de Ano Bom dançavam um pastoril muito preparado na vilada Boa Vista, icada a umas três léguas do engenho, e dona Clotildes quisver. Chamou a negrinha:

– Vá dizer a seu Antônio que eu quero que ele me leve na Boa Vista, vero pastoril.

A negrinha foi.– Fale pra dona Clotildes que não quero ir na Boa Vista hoje.

A negrinha foi e voltou falando que dona Clotildes mandava dizer quequeria mesmo ir ver o pastoril. O senhor de engenho embrabeceu:– Pois se ela quiser ir que vá sozinha! Levo ninguém não!Dona Clotildes teve raiva.– Clotildes!... ôh Clotildes!...Que Clotildes nada. O vestido caseiro estava sacudido na cama. Os

sapatos caseiros por aí. Dona Clotildes tinha partido com a mana. Três dejaneiro um vizinho portou no engenho, chamou Antônio de Oliveira Bretas

e deu o recado. Diz que dona Clotildes mandava pedir ao marido ir buscá-la, passado Reis.

– Foi sozinha! pois que venha sozinha! Vou buscar ninguém não!E não foi mesmo. Dona Clotildes decerto achou desaforo aquilo e icou

esperando na vila. Um mês passou. Mas, e agora? O senhor de engenhocareceu de ir na vila por amor duns negócios, ir lá?... Parecia por causa damulher... Mandou um amigo. Dona Clotildes soube, se moeu de raiva: agoraé que não voltava sem seu Antônio ir buscá-la!

Dois meses passaram, três... Passou um ano, passaram dois, meusamigos! No engenho, seu Antônio vivia sozinho, não mostrando tristeza.

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Mas mandava limpar o quarto de casados sem que mudassem nada dolugar. O sapato direito sacudido no meio do quarto. O vestido caseirodormindo de atravessado na cama aqueles anos inativos. E nove anospassaram.

Numa noite de lua dona Clotildes voltou. Antônio de Oliveira Bretasfumava na sala de entrada, conversando com o amigo que viera compraraguardente. Este chegou na porta da casa, se calou de repente, aprumou avista:

– Compadre!– Eu?– Homem, parece que é dona Clotildes que vem lá na estrada!...– Hum.Era dona Clotildes com a mana. Apeou do cavalo e chegou na porta.– Dá licença, seu Antônio?– A senhora não carece de pedir licença nesta casa.Não houve uma explicação, uma recriminação, nada. Dona Clotildes

entrou, foi até o quarto. O vestido caseiro dela, aquele, meu Deus! faziamnove anos, estava até sacudido com raiva, de atravessado na cama. Ossapatos, mesma coisa, no chão, sem alinhamento. Quarto na mesma. Ar, namesma. Nove anos passados. Dona Clotildes se trocou e, como estavam na

hora da ceia, mandou a agora moça-feita da negrinha botar a mesa.Cearam. Vieram as palavras quotidianas, quer isto? quer aquilo? quero,não quero não, dormiram, se levantaram, etc.

 

146. NOTA DA EDIÇÃO | Crônica publicada inicialmente na série resultante da viagem ao Nordeste;saiu no Diário Nacional , em São Paulo, em 10 de janeiro de 1929, sob o título: O Turista Aprendiz.Natal, 17 de dezembro, 21 horas (ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz . Ed. cit., pp. 233-235).Versão, com variantes, no exemplar de trabalho.

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 ESQUINA1471939 [1942]

 

É chegado o momento de vos descrever minha esquina.Eu moro exatamente na embocadura dum desses igarapés cariocas

feitos de existências em geral apressadas – ruazinhas, vielas que, nascidasno enxurro do morro próximo, desembocam na famosa rua do Catete.Estranha altura este quarto andar em que vivo... Não é suficientemente altapara que a vida da esquina se afaste de mim, embelezada como os

passados; mas não chega a ser bastante baixa pra que eu viva dessamesma vida da rua e ela me marque com seu pó. Mas apesar dos quartos-andares e outras comodidades modernas que a cercam nos becos e praiaspróximas, a rua do Catete é ainda caracteristicamente uma rua a doisandares. O andar térreo, onde mascateia um comércio miúdo sem muitasambições, e, tenham as casas três ou quatro andares, um só andarsuperior, onde se enlata no ar antigo, muitas vezes respirado, umagentinha de aluguel.

Contemplando essa gente do segundo andar, me ponho imaginando aclasse a que pertence. É um lento exército de iniéis, que fazem todos osesforços pra não pertencer à classe operária. Mas é fácil veriicar que nãochegam a ser essa pequena burguesia que vive agarrada ao seu bem-bome indiferente a tudo mais. Não. É uma casta de inclassiicáveis, cuja formaessencial de vida é a instabilidade. Enorme parte dela é pessoal do biscate,que a audácia faz pegar qualquer serviço, qualquer. Ou são empregadosbaratos que insistem em bancar alturas, e só começam vivendo quando de-

noite, no sábado, se transiguram na roupa cinza e no sapato de praia, evão por aí, feito gatos, buscando amor. Ou são costureirinhas, bordadeiras,chapeleiras que não trabalham na oicina, isso não! trabalham “particular”,menos vivendo do seu recato ou tradição renitente que da espera dealgum príncipe que as eleve a freqüentadoras de bar. Há também asfamílias: pai cansado, cujo exclusivo sinal de vida é o cansaço, mãedesarranjada que dá pensão pra estudantes de fora e as crianças, muitascrianças, de dois até treze anos. Porque é uma coisa terrivelmente

angustiosa esta do andar superior da rua do Catete: a quase completaausência de adolescentes. Com a rara exceção de algum estudantinho

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pensionista, não se vê uma só garota, um só rapaz de quinze até vinte anos.Não sei se morrem, se fogem – em qualquer dos dois casos buscando vidamelhor.

Instáveis no trabalho, instáveis na classe, estes seres são principalmenteinstáveis na moradia. É mesquinho, mas ninguém mora mais de três mesesna mesma casa. As famílias, os sozinhos chegam e da mesma forma partem,quase mensalmente. Mas sem ruído, com humildade sorrateira, mudançastão reles que não chegam sequer a colorir a existência da esquina. E oandar superior da rua do Catete se enfeita de barbantes em cuja pontaacenam papelões, fazendo o sinal do “Aluga-se”.

Minto. No meio de toda essa instabilidade, há um caso altivo que tem mepreocupado até demais. Quase em frente da esquina, há uma casa dejanelas fechadas. Desque148 cheguei aqui, faz um ano e oito meses, essacasa viveu sempre assim. De primeiro imaginei que ninguém morasse ali, eo andar estivesse condenado pela Higiene, que idéia minha! Se a Higienequisesse agir, creio condenaria toda a rua do Catete. Ainal, uma feita, erapela manhã, percebi que uma nesga tímida se abria numa das portas desacada da tal casa. A nesga foi se abrindo com muita lentidão, e ainal seaventurou pela abertura uma cabecinha de criança. Criou cora-gem,entusiasmada com o dia, entrou todinha na sacada, chamou outra da

mesma idade e graça, e ambas se debruçaram sobre a rua, olhando tudo,mostrando tudo. E de repente, esquecidas, principiaram soltando felizesrisadas. Pela abertura, se percebia que a sala estava inteiramente despida,nenhum móvel. Então apareceu uma senhora que não olhou pra nada, neminquieta parecia. Apenas deu uns petelecos nas crianças e fechou tudooutra vez. De vez em longe a cena se repete inalterável. As criançasconseguem abrir a porta e se debruçam, brincando de ver a esquina. Nãodura muito, surge a senhora que não olha mundo, dá uns petelecos nas

crianças e fecha tudo outra vez.E há o caso do rapaz que se olhava nu, altas horas, num jogo deespelhos... E há o caso da gorda, o do paralítico a quem morreu a mulherque o tratava, o das duas irmãs, mas tenho que descer para o andar térreo.Na rua, quem vive são os operários. Este operariado do Catete, que morapor aqui mesmo, no fundo das casas, no oco dos quarteirões, nos várioscortiços que arriscam desembocar na própria rua. Muitos vivem de pé-no-chão, mesmo aqui, bem junto da sublime praça Paris. Não é gente triste,

embora todos sejam de ísico tristonho. O nível de vida é baixíssimo, só asmocinhas se disfarçam mais. Os outros, mesmo os jovens, mesmo oslusíadas resistentes, mostram sempre qualquer ombro tombado ou peito

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fundo, marca de imperfeição. Deles a vida não é instável, pelo contrário.São sempre os mesmos e já os conheço a todos. Esta gente, passados osvinte-e-dois anos e o “ajuntamento” legal ou não, não se movimenta mais:são os homens que vêm até a esquina. De-noite, após a janta, ou nosdomingos de camisa limpa, eles têm que descansar e se divertir umbocado. Então vêm na esquina, se encostam nas árvores ou se ajuntam naporta dos botequins, conversandinho. Os bondes passam cheios do futebolque nos faz esquecer de nós mesmos. Mas estes homens nem de futebolprecisam. Só conseguem é vir até a esquina, reumáticos de miséria.

Mas o bom-humor brinca assim mesmo nas bocas, até em horas detrabalho, e a esquina é um espetáculo em que há qualquer coisa dedesumano, de macabro até. Como é que este pessoal consegue conservarum bom-humor que pipoca em malícias e graças! Esta gente parece ter aleviandade escandalosa do mar de praia que está próximo e se atreve ajogar banhistas quase nus até nesta esquina tão perfeitamente urbana.Mar também achanado, sem crista, de baixo nível de vida, este mar deporto... Nem ao seu parapeito podemos chegar em passeio, porque são tãonumerosos os casais indiscretos quanto numerosíssimos os exércitos debaratas, baratinhas, baratões, num assanhamento de carnaval. E émonstruoso, é por completo inexplicável este amor entre baratas, coberto

destas baratas que qualquer calorzinho põe doidas, avançam pelo bairro,cruzam lépidas a esquina, invadem o arranhacéu.Gasto mais de metade do meu ordenado em venenos contra as baratas.

Vivo sem elas, mas só eu sei o que isto me custa de energia moral. Altashoras, quando venho da noite, há sempre uma, duas baratas ávidas, meesperando. Se abro a porta incauto, perdido nos pensamentos insolúveisdesta nossa condição, isso elas dão uma corridinha telegráica, entram etratam logo de esconder, inatingíveis. Eu sei que, feito de novo o escuro no

apartamento, elas irão morrer se banqueteando com os venenos que mecustam a metade do ordenado. Mas me vem uma saudade melancólica dosmeus ordenados inteiros, dos livros que não comprei, dos venenos comque não me banqueteei. Pra dar banquete às baratas. Às vezes eu mepergunto: por que não mudo desta esquina?... Mas sempre o meupensamento indeciso se baralha, e não distingo bem se é esquina de rua,esquina de mundo. E por tudo, numa como noutra esquina, eu sintobaratas, baratas, exércitos de baratas comendo metade dos orçamentos

humanos e só permitindo até o meio, o exercício da nossa humanidade.Não é tanto questão de mudança. Havemos de acabar com as baratas,primeiro.

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147. NOTAS DA EDIÇÃO | Nos manuscritos de Os ilhos da Candinha  estão dois recortes do mesmotexto assinado “Mário de Andrade”. Trazem nota e rasuras do autor a lápis, identiicando a fonte –“Estado de S. Paulo 17-12-39” e “Estado 17-XII-39” –, corrigem erros de impressão e modiicamtrechos para o livro de 1943. Fazem-se acompanhar do datiloscrito da crônica com rasuras do

escritor a lápis e a tinta, última versão que deu base ao texto na edição de 1942 . Em dezembro de1939, MA residia no Rio de Janeiro, à rua Santo Amaro, 5, próxima à rua do Catete.148. O cronista adota a forma popular, oral, que funde “desde que”.

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 ARTES DE UM CRONISTA

Marcos Antonio de Moraes 

[...] contando em pormenor o que fiz, vivi, senti [...]Mário de Andrade in O ternoitinerário ou trecho deantologia

 

Em seu exemplar   de La Culture des Idées , do escritor francês Remy deGourmont (1858-1915), Mário de Andrade sublinhou esta passagem,fisgada no ensaio Do estilo ou da escrita:

 Se houvesse uma arte de escrever, esta seria então a arte de sentir, a arte de ver, a arte de

ouvir, a arte de servir-se de todos os sentidos, explorando a realidade ou a imaginação; e aprática elevada e nova de uma teoria do estilo seria bela na medida em que se pudessemostrar como se penetram estes dois mundos separados, o mundo das sensações e o mundodas palavras.

 O excerto, transcrito em uma icha, recebeu a indicação “Arte de

escrever”, para integrar a “enciclopédia pessoal” do autor de Paulicéiadesvairada, o Fichário analítico, manuscrito no arquivo dele, no patrimôniodo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Embora o trecho assinalado no estudo de Gourmont determine, emprincipal, uma postura ética (o modo de ser, o caráter) e estética (o modode representar as “sensações” na escrita) do escritor em face da literatura,idéia a qual Mário parece comungar ao elegê-la como objeto de relexão, oexcerto sugere também o delinear dos contornos da crônica, gêneroliterário intimamente ligado à vida e, nessa direção, agindo sobre ela. Ocronista moderno, antena de sua época, aguça os sentidos (sentir, ver,ouvir) para explorar “a realidade ou a imaginação”. As “sensações” doescritor, atravessando o “mundo das palavras”, encontra guaridaprincipalmente em jornais e revistas, espaços do tempo presente que acrônica institui como lugares de partilha de alumbramentos, perplexidadesou de indignação. Antonio Candido, em A vida ao rés-do-chão no livro

Recortes, sinalizando o trânsito da experiência para a literatura, observaque a crônica “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ouuma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas

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suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas,sobretudo porque quase sempre utiliza o humor”. Pode-se airmar que acrônica, tão presa à experiência vivida ou imaginada, sempre efêmera,namora a literatura – “arte de escrever”, na bonita síntese de Gourmont.

Mário de Andrade, na Advertência de Os ilhos da Candinha, coletânea decrônicas recolhida, em sua maioria, em diversos periódicos, entre 1928 e1939, associa os textos reunidos à “literatura”. Essa palavra, contudo, vemcarregada de ambigüidade. Signiicando expressão descompromissada(“leviana”), contrapõe-se à escrita como instrumento de ação, que marcoua trajetória artística e intelectual do polígrafo modernista. Assim, para ele,a crônica coligida no volume mostrava-se vincada pela gratuidade (“jamaislhe dei maior interesse que o momento breve em que, com ela, brincava deescrever”) e pela feição lúdica (“brincava de escrever”) que não abria mãode experimentalismo lingüístico (“gramática desbocada”), em busca de umideal de linguagem literária que reconhecesse a herança da vanguarda.Entretanto, coniar ingenuamente nesse julgamento sumário que valoriza aescrita ligeira e sedutora, elidindo a dimensão social ou política, édesconhecer o escritor implacavelmente engajado (“sempre tãointencional”) e o chão histórico no qual o livro vem à lume, o Estado Novo,com suas sutis (ou não) tiranias e mordaças.

A intenção de reunir crônicas em livro, coniada em carta a ManuelBandeira, em 24 de maio de 1934, já deixava entrever uma apreciaçãoestética de Mário sobre a crônica. Escrevia na ocasião ao amigo poeta quelhe sugerira a compilação de textos jornalísticos de intervenção:

 [...] a sua idéia [...] não está longe dos meus propósitos. Você fala dum livro de crítica

literária, e estou perfeitamente de acordo. [...] O que imaginei, e me parece mais feliz, seráreunir em livro um certo número de crônicas de vário assunto, dentre as melhores quepubliquei por aí tudo, principalmente no Diário Nacional . E descobri um nome adorável prolivro: Os ilhos da Candinha. Não sei se você conhece, de-certo conhece, essa expressão, quequer dizer, a voz do povo, o que andam falando, os diz-ques.

 Nessa conidência, o juízo crítico que fundamenta o conceito de

“melhores” ica subentendido. Somente a partir de 24 de novembro de1942, com o pequeno prefácio pronto, a seleta de crônicas deinida econcluído o árduo trabalho de “passar a limpo” os escritos – considerandoaqui a tarefa de suprimir “encompridamentos de exigência jornalística” ede realizar “reposições de linguagem” modiicada por redatores etipógrafos ciosos da gramática normativa de feição lusitana – é que sepoderá ter, então, idéia do que signiicou para Mário de Andrade a

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“aspiração amarga ao melhor” e o espectro da crônica literáriamariodeandradiana.

 “Estava hoje à procura de um assunto”  | Mário de Andrade, deinindona Advertência o caráter “literário” dos textos congregados em Os ilhos daCandinha  e sustentando a sua contribuição lingüística original, passa aolargo de outros aspectos discursivos e temáticos determinantes de suascrônicas. Todavia, o conjunto de 43 textos da obra sugere um possívelarcabouço no gênero. Assim como a seleção do conjunto pode deinir umespectro estilístico e programático da crônica mariodeandradiana, aorganização do material no livro também sinaliza a organicidade do projetoeditorial. Consultando os manuscritos conservados em grande parte noarquivo do escritor, constata-se o intuito de construir ligações na ordemdos textos. Em duas folhas de papel jornal, Mário fornece a chaveinterpretativa de algumas correlações entre os escritos, bem comoposições estratégicas no livro: “ Última crônica = Esquina”; “O dom da voz –deve ser a primeira crônica a falar viagem pelo Amazonas”; “‘Uma quarta-feira’ Rei Momo, deve vir depois de outra crônica com a mesmaexpressão”; “Bom pra iniciar a expressão ‘uma quarta-feira’ é Culto dasestátuas [Romances de aventuras/ Fábulas]”; “Sociologia do botão vem

depois de Brasil-Argentina”; “Anjos do Senhor tem que vir depois da Pescado dourado”; “Xará, xarapim, xera só pode vir depois do Terno itineráriopor se referir a Coração Perdido”. Se a crônica possui autonomia artística,ganha nova significação dentro de uma estrutura literária mais complexa, olivro. Diante da revelação dessas pegadas que consubstanciam estratégiasnarrativas, o leitor é chamado a participar ativamente do processo decriação daquele que, em conidência epistolar ao crítico Álvaro Lins, emmarço de 1942, se reconheceu “um sujeito muito ‘consciente’” de seus atos,

pois “obras” e “gestos” estariam sempre “sob o signo do Querer”.Acomodar a Esquina nas últimas páginas de Os ilhos da Candinha  talvezacene para o vigor de um texto, no qual as linhas de força da crônica,aparecem em plenitude, justamente no espaço reservado ao  grand inale –arte e artiício de construir o surpreendente e tocante, para continuarressoando no pensamento do leitor. O cronista, de um quarto andar noCatete carioca, “contempla” o “espetáculo” da vida urbana; grandezas emisérias. Voyeur   que ultrapassa a superície da realidade, a qual escava

até as camadas mais profundas, também mergulha no próprio ser.Insulado, sofre a inelutável solidão de todos nós, “homens partidos”. Paraalém da dimensão existencial, um matiz de crítica social realça o texto.

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Diante dessa precária coletividade – rasteira e medrosa, como as “baratas”que infestam o apartamento do cronista – resta pouco de ideais utópicos.Moralidade de aluguel, integridade frágil. E não adianta se mudar dessaesquina para qualquer outra do país ou de um mundo, então, em guerra.“Havemos de acabar com as baratas, primeiro”, ou em outras palavras,será preciso, antes, construir um mundo novo. O leitor fecha o livro, páradiante de tantos caminhos de conhecimento da realidade; dobra-se sobreele mesmo, vasculha-se naquele “exercício da nossa humanidade” previstono finalzinho da crônica.

Mário de Andrade explora o hibridismo característico da crônica.Realidade (ou pura invenção de quem está em busca de um assunto),elaboração artística e consciência crítica se fundem. Naquela Esquina, atopograia, com aplainado mar ao fundo, vista do seu apartamento da ruaSanto Amaro, 5, no Rio de Janeiro, é verdadeira; as baratas também.Recorde-se daquela carta de Mário, de fevereiro de 1939, endereçada àpintora e amiga Anita Malfatti: “Gasto chuva de litt aqui no apartamento, enão dou jeito nesta quase-desgraça. Me sinto desmoralizado, empobrecidoem minha integridade humana”. A experiência prosaica se faz detrampolim para a imaginação (não seriam criações iccionais os insólitosquadros da gente miúda observada de cima?) e para a relexão crítica de

grande densidade. Se nesse quadro urbano, a junção das diversas facetasda crônica é inconsútil, em outros textos, percebe-se a sobreposição deuma característica sobre outras. Nesse rumo, em certas crônicas sobressaia tonalidade do memorialismo, em outras, a do iccional ou da proposiçãode um debate sobre algum aspecto mais coletivo.

 “Ajuntando recordações esparsas pelos anos”  | O memorialismo, espaçode iguração do sujeito e debate sobre a problemática da “escrita de si”,

freqüenta as crônicas da Candinha. Mário de Andrade não deixouautobiograia, mas contou-se fartamente em suas cartas; em outrosescritos iccionais também transigurou a sua própria experiência,esfumaçando compromissos indissolúveis com a realidade. Negando-se adeixar um retrato autobiográico canônico, colocou em xeque a própriapossibilidade de se reconstituir o passado, tema importante, aliás, dosatuais estudos sobre o gênero testemunhal. Na crônica Memória eassombração, Mário, mostrando grande consciência das armadilhas e

insuiciências da “escrita de si”, pondera que “as memórias são fragílimas,degradantes e sintéticas, pra que possam nos dar a realidade que passoutão complexa e intraduzível. Na verdade o que a gente faz é povoar a

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memória de assombrações exageradas”.A crônica de Mário de Andrade, em sua condição natural de gênero de

fronteira, tira dessa particularidade sua força expressiva, sobretudo aoincorporar elementos da autobiograia. Dispersa em “trezentos, trezentos-e-cincoenta” fragmentos nas falas da Candinha, encontramos a imagem doescritor. Pouco nos questionamos sobre a veracidade da memória, pontonão cogitado nas malhas do texto. O menino desenha-se no relato daassombração em Macobeba; o pai “tipógrafo”, em Voto secreto e Nasombra do erro; a mãe, em Sociologia do botão; o “político mano” em Meusecreta; a cachorrinha de estimação ensina algo aos donos (e aos leitores)em Educai vossos pais. A casa na Lopes Chaves – o Coração Perdido, emoutras duas crônicas. Se quisermos acompanhar Mário do Amazonas atéIquitos no Peru, abrimos as páginas de O dom da voz e Calor, ou, seguircom ele na longa viagem “etnográica” ao Nordeste, passeamos por BomJardim, Romances de aventura e Ferreira Itajubá.

A conissão de Mário de que possui “memória muito fraca”, exigindo dele“uma biblioteca muito grande”, o relato de uma “pesca do dourado”, daqual resultou uma fotograia conservada em seu arquivo, entre tantosoutros aspectos e episódios de sua vida, permitem que o leitor chegue maispróximo da vivência cotidiana do autor paulistano. Veriica-se, em muitos

momentos, o trânsito do individual (memorialístico) para a expressão dosentimento humano, quando o “eu” torna-se espelho de seu público. O“meu engraxate”, por exemplo, é o “nosso engraxate”, pois fala aos nossossentimentos mais recônditos, ao mexer em ibras doridas, como aquelasensação de instabilidade se algo de nosso universo aparentemente sólidomodiica-se de forma inesperada. Na crônica Cai, cai, balão, vamoscaminhando de uma experiência particular do cronista para a descobertadas forças obscuras do ser. Os fatos de vida semeados nas crônicas,

justapostos a impressões pessoais e julgamentos de Mário, acabam porconstituir um complexo peril biográico, inquieto e inconcluso – humano,enfim.

 “agora, conto um caso” | O narrador da Candinha, embarcando no lúdico,assume plenamente a perspectiva literária para diluir as fronteiras entrecrônica e conto. A prosa iccional funda-se na presença desgarrada deBelazarte nas páginas de Os filhos da Candinha. Em O diabo, Belazarte não é

mais o testemunho de vidas infelizes, mas o companheiro de aventurafantástica do narrador, ambos ludibriados pelo maligno em “forma tãopura de mulher”. No Ensaio de bibliothèque rose, dialogando com a

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tradição francesa das historietas açucaradas, sente-se ainda a sombra deBelazarte, pois na crônica nos deparamos com a caixeirinha de loja,Ritinha, abandonada pelo namorado rico, desejando liricamente se suicidarcom um “golpe de ar” gelado da madrugada. Personagem ainada comoutros irmãos de infortúnio dos Contos de Belazarte , só faltou mesmo olancinante fecho “E Ritinha foi muito infeliz...”

As crônicas-conto Tempo de dantes e Foi sonho, narrativas primorosas,ainam-se ao incorporar traço marcante da organização social brasileira,no que se refere à estrutura familiar patriarcal. São efetivamente “casosbrasileiros” que desenham o caráter tradicional do homem em nossasociedade, segundo valores enraizados em uma cultura marcada pordesigualdades e relações de opressão. O “senhor de engenho” em terrasnordestinas e o “mulato proletaro” na cidade são igurações resistentes dainstituição patriarcal, ao qual tudo o mais se submete e ganha sentido.Lembre-se, nessa mesma direção, o pai delineado no Peru de Natal deContos novos, a sua imagem “vitoriosa” e “insuportavelmente obstruidora”,mesmo depois de morto, e todo esforço do narrador criado por Mário emtransformá-lo em apenas uma distante e inócua “estrelinha no céu”.

Um “suposto” Antonio de Oliveira Bretas, pomposamente nomeado emTempo de dantes, na força do homem, dono do pequeno mas respeitado

engenho de cana, “senhor” de dona Clotildes, da agregada “mana dela” eda serviçal “negrinha”, personiica aquela instituição familiar e econômicado passado colonial brasileiro, da Casa grande & senzala de Gilberto Freyre.De outro lado, no presente urbano, à margem da sociedade, à margem docapitalismo, desconhecendo a gramática normativa instrumento de poder,ganha contornos, em Foi sonho, um personagem sem nome, negro, onarrador peculiar, “home pra uma, duas, déiz muié”. Enfrentando essasconstruções históricas distintas e complementares no tempo, no espaço e

nos extratos sociais brasileiros, emergem duas mulheres, “dona Clotildes” e“Florinda”. Ambas se submetem ao poder do marido e os contos captamexatamente momentos de superação. “Dona” Clotildes assume o risco daprópria independência, decidindo ir, contra a vontade de “seu” Antonio,ver o Pastoril não longe dos domínios do senhor. Florinda, pela vez dela,foge da casa pobre, quando o marido bêbedo traz a outra para roubar-lheo lugar na cama do casal. O discurso do poder patriarcal se airma emambas as narrativas. Se dona Clotildes foi sozinha, que voltasse sozinha,

avisa despeitado o consorte; e ela resistirá por longos nove anos, quandoentão decide retomar a posição subserviente (transigurada em cuidadopaterno) que sempre lhe coubera. Vendo-a retornando, seu Antonio nada

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fala, porque o lugar que ocupava nessa sociedade marcada por conceitos evalores imutáveis não exige alarde. O companheiro de Florinda vai buscá-la, reconhece o seu erro, culpando a bebedeira no carnaval; esgota-se emargumentos para obter o perdão da mulher. Um destes é apenas aconiguração sonora (a voz) daquilo que não precisou ser pronunciadopelo senhor de engenho: “mulé foi pá tá im casa me sirvindo cum duçura”.Antonio de Oliveira Bretas e o negro de Florinda são, talvez, o mesmohomem, o mesmo caráter, enformados pela história brasileira.

Se a face problemática da realidade nacional pode ser desentranhadadessas duas crônicas-icção, em outras de mesma qualidade, deparamo-nos com expressões soltas, rasgos de intervenção crítica, chamando anossa atenção. Em A sra. Stevens, uma frase aparentementedespropositada re-signiica a crônica. Depois da estranha composiçãonascida ao correr da pena, “Zoroastro, Zoroastro! lá, Tombutu, WashingtonLuís, café com leite!...”, o narrador tenta desajeitadamente justiicá-la.Entretanto, ica claro que o texto, divulgado em 31 de agosto de 1930,dialoga com o momento político tenso que resultará em 3 de outubro desseano, depois de eleições presidenciais fraudulentas, na Revolução de 1930(a “revolução trintona” da crônica Meu secreta) que depôs WashingtonLuís, derrubando com ele os esteios das oligarquias paulista e mineira que

se revezavam no mando. Guindava-se ao poder Getúlio Vargas.Guaxinim do banhado, história de bichos, à maneira das fábulas e doscontos populares, estampada inicialmente na série do “Turista Aprendiz”do Diário Nacional  em 28 de março de 1929, sob a rubrica “Paraíba, 4 defevereiro”, mostra o animalzinho esfomeado que “sacode a cabecinha, secoça”, queixando-se “– Que terra inabitável este Brasil, ixe”. Reformuladapara entrar na Candinha, o crônica tinge-se de tonalidade crítica aindamais intensa, transformando-se ao ganhar a expressão “que governos

péssimos” entre as palavras “Brasil!” e “ixe”. Assim, o artigo que sub-repticiamente serviu para lamentar os destinos que o país ia tomando nadécada de 1920, funcionava nos anos de 1940 para açular o governo deVargas.

 “andei curioseando estas considerações”   | O cronista acompanha osfatos de sua época, reletindo sobre eles. Pondera sobre a hipocrisia do“culto das estátuas”, vê de perto, com ceticismo e bom-humor, a campanha

carioca de educação para o trânsito, tece considerações sobre a nossadependência cultural européia – “macaqueação” – ao focalizar o reinado deMomo. Os acontecimentos observados suscitam a escrita pública que

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perscruta aquilo que fugiria de olhos pouco atentos. O jornalista formadorde opinião recusa a análise apressada, ainal, “temos que distinguirporém”.

Não obstante Mário de Andrade airme na Advertência de Os ilhos daCandinha  ter em conta de “leviana” a sua produção cronística,desgostando-se dos artigos mais “sérios”, sabemos que esse “intelectual àsdireitas”, espelhado em Julien Benda em Mesquinhez, nunca se furtou a “semanifestar a respeito dos movimentos políticos e tomar parte neles”.Superou, na medida das possibilidades de sua formação e classe social a“incapacidade enorme pra [se] preocupar com políticas nacionais”,confessada em Meu secreta. Muitas menções aos “problemas danados dotempo” (fascismo, imperialismo, hitlerismo etc) atravessam as crônicas deMário tirando-lhe, de algum modo, a idealizada perenidade de seus textos,mas colocando-as no terreno de atuação do homem de letras engajado no“cantar opinando”.

Na coletânea organizada pelo criador de Macunaíma  percebe-se agrande potência de um projeto estético-ideológico que tenciona apreenderaspectos da psicologia nacional. Aqui e ali pululam idéias sobre o Brasil esobre seu povo. “O nosso papel na América tem sido viver no ar”, escreveem Anjos do Senhor, crônica na qual o brasileiro aparece como “gente

pesada que vive no ar e não sabe mesmo nada onde que vai parar”. EmBiblioteconomia, que na primeira versão datiloscrita chamou-se Deiniçãode analfabeto e foi lida em homenagem a bibliotecária do Departamento deCultura de São Paulo, Adelfa Figueiredo, por seu diretor, encontra-se asentença provocativa:

 Nós [brasileiros] existimos pouco, demasiado pouco. Nós existimos em desordem. É que

nos falta antiguidade, nos falta tradição inconsciente, nos falta essa experiência por assimdizer isiológica da nossa moralidade que, só por si, torna a palavra “passado” duma

incompetência larvar. Refere-se, em outros textos, à “nossa mitomania” e à necessidade de

“despertar no povo brasileiro a consciência social – coisa que ele não tem”.Em uma visada geral, Mário constata as tensões na base de nossa cultura:

 Que se tenha conseguido implantar, neste calor brasileiro, laivos bem visíveis da civilização

européia, me parece admirável de força e tenacidade. E talvez tolice enorme... Melhormentenos formaríamos talvez como chins ou indianos, de místico e vagarento pensar.

 Candinha que somos todos, descontentes de tudo, opiniosos de projetos

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alheios, não cumpriria, por im, acusar no livro de Mário de Andrade aausência de Será o Benedito, uma das melhores e mais pungentes de suascrônicas?

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 TEXTO DE ORELHA

Além de sua face mais conhecida – a de romancista, poeta e uma dasiguras centrais do modernismo brasileiro –, Mário de Andrade foi em todaa sua vida colaborador assíduo de jornais e revistas. Suas crônicasmostram como o que foi escrito ao calor dos acontecimentos,despretensiosamente, pode fugir ao efêmero e se tornar um retrato de seuautor e de uma época.

Os quarenta e três textos aqui reunidos foram publicados em jornais e

revistas brasileiros entre 1929 e 1939 e selecionados pelo próprio autorem 1943 para Os ilhos da Candinha. Mário escolheu aqueles queconsiderou mais “levianos” – as crônicas mais “sérias” não o agradavam,“por deicientes e mal pensadas” – e que signiicaram para ele um“momento de libertação”, em contraste com a “intencionalidade” de sualiteratura.

No entanto, os textos escolhidos coincidem com as preocupaçõesintelectuais do autor: a luta contra os totalitarismos, a reforma ortográica

que “abrasileiraria” nossa língua, a renovação da poesia e os dilemas damodernização do Brasil.Esses temas são tratados com humor e ironia e com uma linguagem

próxima da oralidade buscada por Mário em seus contos, romances epoemas. Para Mário, aliás, os gêneros fatalmente se entrosam. E éironizando as divisões literárias que ele termina a crônica “O ternoitinerário”: “Queria continuar deste jeito contando em pormenor o que iz,vivi, senti, mas porém a intenção de entrar nalguma antologia me prende

as vastidões.”

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 SOBRE O AUTOR

MÁRIO DE ANDRADE começou seu trabalho como cronista em  1920 , narevista  Ilustração Brasileira , e prosseguiu em diversos jornais e revistas do

 país até sua morte, em   1945. Além de  Os ilhos da Candinha , Mário teve publicado postumamente o livro   O Turista Aprendiz , o relato em forma decrônicas de sua viagem pela Amazônia em   1927 que serviu de inspiração

 para  Macunaíma, o herói sem nenhum caráter , obra-prima da literaturabrasileira. Com Os ilhos da Candinha e dois de seus livros mais importantes,Macunaíma e  Amar, verbo intransitivo , a Agir inicia o lançamento da obra

desse poeta, contista, romancista, cronista e crítico de arte, um dos principaisexpoentes do modernismo brasileiro.

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 TEXTO DE QUARTA CAPA

“O que imaginei, me parece mais feliz, será reunir em livro um certonúmero de crônicas de vário assunto, dentre as melhores que publiquei por aí tudo, principalmente no Diário Nacional. E descobri um nome adorável prolivro: Os ilhos da Candinha. Não sei se você conhece, de-certo conhece, essaexpressão, que quer dizer, a voz do povo, o que andam falando, os diz-ques.” 

 Carta a Manuel Bandeira, 24 de maio de 1934